2011

Camus e o Mediterrâneo: do absurdo ao sol do meio-dia

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Ao tratar da forma moderna de “crítica das ilusões”, sobretudo em Marx, Nietzsche e Freud – que identificam nelas alienação e, na “descrença”, o encontro das origens das explicações transcendentes acerca do mundos natural e humano –, Camus entende que, na verdade, o contrário da crença é a lucidez, consciência trágica e senso do limite. Eis por que ele contrapõe o pensamento do limite grego ao do Absoluto do pensamento alemão ou o Mediterrâneo ao Mar do Norte.

Realidade geográfica e histórica, o Mediterrâneo é também conceito filosófico, que, em Camus, evoca o “meridional” em oposição ao “setentrional”, uma vez que aquele se encontra mais próximo de onde nasce o sol e, por isso, beneficia-se mais do que outras regiões da luz e do calor. Daí Camus desenvolver uma ética e uma política segundo uma estética ligada ao Sul e ao Mediterrâneo, reunindo cultura e vida, natureza e arte, enquanto a harpa eólia vibrava quando o sopro do vento tangia suas cordas, assim como na Grécia antiga em que política e graça uniam-se, e Afrodite, a “deusa dos sorrisos”, presidia a assembleia do povo, amante da beleza, da essência trágica da vida e da serenidade dos mármores do Partenon.

Tudo começa com o amor ao sensível. Ele que precede o conhecimento teórico e inaugura uma verdade inseparável dos sentidos e dos sentimentos. No Sul, Camus enraíza o pensamento sensual, mas não segundo a ideia banal que o oporia ao Norte frio ou o sol ao mau tempo, ou a luz à escuridão, já que, mais do que isso, o Norte indica a direção para um pensamento firme e resoluto. “Não perder o Norte” é – lembre-se – não se desnortear, desorientar-se, é não extraviar-se do caminho do raciocinar metódico. Já no Sul de Camus a regra é de não haver regras, devendo o homem inventar muitas, considerando as circunstâncias e, antes de tudo, o prazer. A razão não pode se opor à vida. Por isso escreve Camus que “o Mediterrâneo é isto, este aroma e este perfume que é inútil exprimir: nós os sentimos todos na pele”. Reavendo a verdade da sensação contra os plenos poderes da razão, Camus acolhe o materialismo de Epicuro contra o de Marx, já que “a Grécia irritava Marx, avesso a qualquer beleza solar”.

A partir da modernidade, a natureza e a História passam a ser obras humanas, dominadas para fins de sobrevivência material, sob constante ameaça. Disso resultou poder. Mas “o belo equilíbrio entre o humano e a natureza – a aceitação do mundo pelo homem, que soergue e faz resplandecer todo o pensamento antigo – foi esfacelado em nome da história (…) O ingresso nessa história, através dos povos nórdicos que não souberam sustentar uma tradição de amizade com o mundo, precipitou esse movimento”. Para Camus, Marx, desfazendo-se da religião entendida como alienação ou ideologia, constrói a ideia da liberdade absoluta, que ele encontra na ação que controla as condições sociais da economia e do trabalho. Camus, ao contrário, volta-se para o que está em poder do homem e para o que escapa a cada um, pois a primeira experiência humana não é a do trabalho alienado, mas o absurdo.

Habita-se o mundo pelo “crime dos pais primordiais”. Ou seja: o autoritário ato de pôr no mundo uma criança sem consentimento dela. Por isso Kant escreve que o choro do recém-nascido é expressão de amargura e indignação, devendo os pais agir de tal forma que os filhos possam resignar-se com o absurdo desta situação. É ele a ocasião para refletir sobre a necessidade e a liberdade na vida e na História. Distanciando-se do poder da razão e da vontade como definidoras da liberdade e da dignidade, bem como da ideia de que o “homem é para o homem o ser supremo”, Camus considera que o acaso não rege apenas o nascimento, como determina o sem sentido originário do mundo. A começar pelo fato de que não se escolhe a família em que se nasce, nem a época ou a classe social; tampouco as condições físicas, talento e habilidades, ser prudente na política ou no governo de si. Se, para Marx, “só existe uma Ciência, a da História” e “o comunismo é o enigma da História resolvido”, para Camus o que fundamenta a liberdade não é a vontade racional, mas a consciência do absurdo.


Ao tratar da forma moderna de “crítica das Ilusões”, em particular de Marx, Nietzsche e Freud — que, cada qual a sua maneira, identificam nelas alienação e, na “descrença”, o encontro das origens humanas das explicações transcendentes com respeito ao mundo natural e humano Camus compreende que o contrário da crença não é a descrença, mas a lucidez, consciência trágica e senso do limite. Eis por que Camus contrapõe o pensamento do limite grego ao do Absoluto do pensamento alemão, o Mediterrâneo ao “Mar do Norte”.

Realidade geográfica e histórica, o Mediterrâneo é um conceito filosófico que, em Camus, evoca o “meridional” em oposição ao “setentrional”. O meridional encontra-se mais próximo de onde nasce o sol e, por isso, beneficia-se mais que outras regiões da luz e do calor. Camus desenvolve uma ética e uma política segundo uma estética ligada ao Sul e ao Mediterrâneo, reunindo cultura e vida, natureza e arte, como a harpa eólea que vibrava quando o sopro do vento tangia suas cordas; também a Grécia unia “política e graça”; Afrodite, a “deusa dos sorrisos”, presidia a assembleia do povo: “o Mediterrâneo, que nos cerca de sorrisos, de sol e de mar, nos dá a lição”[1]. Povo amante da beleza e com o sentido trágico, os gregos inventaram a filosofia, a tragédia e os serenos mármores do Partenon.

Tudo começa com o amor do mundo sensível, ambos, amor e o sensível, precedendo o conhecimento teórico e inaugurando uma verdade inseparável dos sentidos e dos sentimentos. No Sul Camus enraíza o pensamento sensual, mas não segundo a ideia banal que oporia o Sul quente e o Norte frio, o sol e o mau tempo, a luz e a escuridão. O Norte indica a direção para um pensamento firme e resoluto: “não perder o Norte” é não desnortear-se, desorientar-se, é não extraviar-se do caminho do raciocinar metódico. Mas no Sul de Camus a regra é de não haver regras, devendo o homem inventar muitas, considerando as circunstâncias e, antes de tudo, o prazer. A razão não pode se opor à vida: “O Mediterrâneo”, escreve Camus, “é isto, este aroma e este perfume que é inútil exprimir: nós os sentimos todos na pele”. Ele é o “amor da vida” de Palma, na Espanha, contrapondo-se ao frio de Praga, na diferença entre o Mar do Norte e os Mares do Sul[2]. Reavendo a verdade da sensação contra os plenos poderes da razão, Camus acolhe o materialismo de Epicuro contra o de Marx: “A Grécia irritava Marx, avesso a qualquer beleza solar”[3]. Em Ohomem revoltado, Camus contrapõe a contemplação grega[4] ao pensamento alemão de Hegel e de Marx. Enquanto os gregos se aquietavam na filosofia, os alemães se atormentam com a dialética: “Stendhal via uma primeira diferença dos alemães com os outros povos no fato de se exaltarem pela meditação em vez de se acalmarem”[5]. Para Camus, o determinismo social não é tudo: “entre o céu e estes rostos voltados para ele, não há nada onde dispor uma mitologia, uma literatura, uma ética ou uma religião, senão pedras, a carne, estrelas e estas verdades que as mãos podem tocar”. Para os gregos o céu é cosmos e esfera protetora em que a Terra, na região sublunar, ocupa a menos interessante posição, lugar dos movimentos finitos e da morte. Este “mundo fechado”, circular, imóvel em sua perfeição, fixa limites aos empreendimentos humanos. O “pensamento solar” grego significa estar a favor da vida: “na Grécia a natureza sempre esteve em equilíbrio com o devir”[6]. Povo amante da beleza, os gregos não se prenderiam ao que é transitório, condenado à ruína e ao desaparecimento. No que tange à beleza, preferiram o eterno à beleza empírica e contingente. Com efeito, a figura de Helena e sua afamada beleza, “que incontáveis tristezas e aflições causaram a gregos e troianos”, não teria sido o alvo guerreiro, mas a disputa pela posse de uma estátua, já que Páris raptara a escultura. Helenos e troianos não se entregariam a tantos ardores por um corpo sensível e imperfeito, susceptível à ação destruidora do tempo: com efeito, [Helena] não era tão formosa como a pintavam porque nela se encontraram defeitos e manchas e mais, parece que jamais navegou rumo a Troia, e sim que levaram em seu lugar uma estátua sua por cuja beleza se guerreou durante dez anos”[7]. A beligerância não fora determinada pelo desejo de posse de um ser inconstante e imperfeito, mas “pelo valor de uma beleza solar, helênica, íntegra e imarcescível, que, comungado por todos os povos da Hélade, congregaria, em grega comunidade, as dispersas póleis”[8].

A partir da modernidade, a natureza, bem como a História, serão obra do homem, dominadas para fins de sobrevivência material e de controle de suas ameaças constantes. Disso resultou poder sobre a natureza e a História: “o belo equilíbrio entre o humano e a natureza — a aceitação do mundo pelo homem, que soergue e faz resplandecer todo o pensamento antigo — foi esfacelado em nome da história (…) O ingresso nessa história, através dos povos nórdicos [o pensamento alemão] que não têm uma tradição de amizade com o mundo, precipitou esse movimento”. Para Camus, Marx, desfazendo-se da religião entendida como alienação ou ideologia, constrói a ideia da liberdade absoluta, que ele encontra na ação que controla as condições sociais da economia e do trabalho. Camus, ao contrário, volta-se para a Grécia e sua percepção dos limites do humano, do que se encontra em nosso poder e do que escapa a cada um, pois a primeira experiência do homem não é a do trabalho alienado, mas o absurdo.[9]

Habitamos o mundo pelo “crime dos pais primordiais” que nele colocaram autoritariamente uma criança sem seu consentimento. Por isso Kant escreve que o choro do recém-nascido é expressão de amargura e indignação, devendo os pais agir de tal forma que os filhos possam resignar-se com o absurdo desta situação. É ele a ocasião para refletir sobre a necessidade e a liberdade na vida e na História. Distanciando-se do poder da razão e da vontade como definidoras da liberdade e da dignidade do homem, bem como da ideia de que o “homem é para o homem o ser supremo”, Camus considera que o acaso não rege apenas o nascimento, como determina o sem sentido originário do mundo. A começar pelo fato de que não se escolhe a família em que se nasce, nem a época ou a classe social; tampouco as condições físicas, talento e habilidades, ser prudente na política ou no governo de si. Se, para Marx, “só existe uma Ciência, a da História” e “o comunismo é o enigma da História resolvido”, para Camus o que fundamenta a liberdade não é a vontade racional, mas a consciência do absurdo.

Questionando assim a tradição alemã, que entende a liberdade como ação racional ou a ação como racionalizadora do campo histórico, Camus volta-se para o pensamento grego e para a ideia de necessidade, como ele a encontra em Epicuro: “é uma infelicidade viver na necessidade, mas não é necessário viver na necessidade”. Trata-se da condição de ser mortal do homem, dos prazeres que prometem a felicidade, do discernimento do que se encontra em nosso poder e o que nos escapa. Aquele que se afasta de desejos necessários será escravo de exigências que engendram sonhos eternamente insatisfeitos: “a ambição, por exemplo, cresce à medida que se a contenta; é uma espécie de fome artificial que se excita ao ser saciada, que se vai radicalizando quanto mais satisfeita[10]. Seguir a natureza é saber que ela só suscita desejos que ela mesma pode satisfazer — facilmente e com pouco: “graças sejam dadas à bem-aventurada natureza que fez as coisas necessárias fáceis de serem satisfeitas enquanto as coisas difíceis de obter não são necessárias”[11]. Porque o contentamento do corpo pela saúde e da alma pela ataraxia é a sensação, Camus entende o sensualismo epicurista como seu equilíbrio perfeito. Este sentido da medida se encontra no pharmakon da Carta a Meneceu, os remédios para a vida virtuosa baseados na limitação dos desejos, distante dos vãos e ilimitados quereres, que forçam à desmesura. Quanto à dor, que é uma realidade e sempre em si mesma um mal, não é preciso identificar-se com ela, pois “a filosofia permite ao sábio conduzir seu espírito para outra parte, desviando-se dela”. Até porque as dores agudas são sempre passageiras — seja porque logo desaparecem, seja porque somos nós que partimos e, mortos, não sentimos nada.

Experiência primeira e arcaica da dor é a morte e o exílio do homem em um mundo hostil, aos quais Camus opõe a consciência do absurdo e do dilaceramento que ele implica. Como escreveu Heráclito: “A natureza é bela, é bela a terra e é belo o céu, / a órbita do sol, as estrelas, a lua… / o resto é tudo dor, temor e nada mais”[12]. O grego da era clássica conhece o encantamento do sol de verão e das cores da primavera, contempla o reflexo de nuvens e montanhas em lagos e enseadas. Mas tais belezas despertavam em sua alma tão afeita ao belo o sofrimento face à limitação da inteligência e sua incapacidade de respostas aos mistérios do mundo. E Camus cita Epicuro e Lucrécio: “a terrível tristeza de Epicuro […] nasce, sem dúvida, de uma angústia da morte que não é estranha ao espírito grego. Mas o tom patético que essa angústia assume é revelador: ‘Podemos nos precaver contra toda espécie de coisas; mas no que concerne à morte, continuamos como os habitantes de uma cidadela arrasada’. Lucrécio afirma: ‘A substância deste vasto mundo está reservada para a morte e a ruína’”[13]. Também o absurdo do trabalho para não morrer. Se a Grécia não dispunha de um conceito para designá-lo como função social, era pela dolorosa necessidade de trabalhar do povo, uma condição tão estreitamente ligada à vida que não se poderia dissociá-los. Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo anotou: “nem de dia, nem de noite não deixarão os homens de estar atormentados pela fadiga e pela miséria”. Expressão do rigor de viver, a lei do trabalho surge ao lado da sentença de morte.

Essa é a razão pela qual Camus encontra em Sísifo seu emblema. Sua infelicidade é o fardo do rochedo a ser erguido. Camus lembra que os gregos, já em sua mitologia, haviam apreendido a dimensão de sofrimento que o trabalho esvaziado de sentido implica, como o de Sísifo, das Danaides e de Tântalo. Porque o trabalho é, como a morte, a dimensão inultrapassável da existência, o momento da consciência é o instante trágico do reconhecimento de sua malsinada condição, mas é também o do consentimento. Citando o Nietzsche de O crepúsculo dos ídolos, Camus observa: “o artista trágico não é um pessimista. Ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível”[14]. O consentimento “não ratifica a minha razão, que sempre será incompreensível Husserl afirma: ‘Se todas as massas submetidas à gravidade desaparecessem, a lei da gravidade não seria destruída, mas ficaria simplesmente sem nenhuma aplicação (…) As leis fundamentais das ciências naturais teóricas seriam válidas mesmo que o espírito não existisse, [pois] existiriam suas leis’”[15]. Para Camus, este universo de abstrações lógicas não responde à verdade da humana condição: “os homens morrem e não são felizes”(Caligula).

Da Ilíada aos estoicos, do materialismo antigo ao do século XVIII e a Marx, tratava-se de refletir sobre o que está em nosso poder e o que não controlamos. Camus procurava o sentido da afirmação de Heráclito quando escreveu: “a disposição inicial do homem [seu caráter] é seu destino”, deslocando a questão para se saber em que momento uma vida se transforma em destino: “Na morte?: mas é um destino para os outros, para a história ou para sua família. Pela consciência? Mas é o espírito que se faz uma imagem da vida como destino, que introduz uma coerência onde ela não existe. Nos dois casos, trata-se de ilusão. Conclusão? Não há destino?”[16]. Em vez de responder a Heráclito, Camus prefere não concluir nada sobre aquilo que nos é inacessível, saber se há ou não destino, preferindo cingir o sentido da questão. O destino desdobra-se na ideia científica de causalidade, nascida, no Ocidente, como defesa contra a angústia da imprevisibilidade dos eventos aos quais o homem sucumbia. Mesmo a tragédia apresentou uma primeira racionalização do destino, porque este significava uma forma de “causa e efeito” como a culpa trágica — a hamarthia — e a punição, o crime e o castigo. O destino não é senão o desconhecimento da causa. Camus anota: “Édipo suprime a Esfinge e, se ele dissipa os mistérios, é por seu conhecimento do homem. Todo universo dos gregos é claro. Mas é o mesmo homem que o destino dilacera tão selvagemente, o destino implacável e sua lógica cega. Clareza sem sombras do trágico e do perecível”[17]. Eis por que a primeira forma da revolta é metafísica. Se, para Kant, a razão compensa um nascimento que não foi desejado, revelando a liberdade de um novo nascimento, liberando o homem de suportar passivamente o que outros decidiram em seu lugar aprendendo a começar por si mesmo, em Camus não há esta ideia tranquilizadora: “no drama antigo, quem paga é sempre quem tem razão, Prometeu, Édipo, Orestes etc. Mas isso não tem importância. De todo jeito todos acabam no Hades, com razão ou não. Não há nem recompensa nem castigo. De onde, a nossos olhos tornados sombrios por séculos de perversão cristã, o caráter gratuito desses dramas”[18]. Se Édipo, ao fim, encontra-se consigo mesmo e aceita o destino, fazendo dele uma obra sua, esse reconhecimento é sua liberdade: “cada um busca seu deserto e, assim que é encontrado, o reconhece como duro demais. Não se dirá que eu não poderei suportar o meu”[19].

O trabalho de Sísifo, que vem de nenhum lugar e leva a parte alguma, é de “uma monotonia infindável, que torna, simultaneamente, os dias longos demais e a vida por demais breve”[20]. Mas o que interessa neste momento do relato é o instante do retorno, a descida do herói em direção à pedra: “um rosto que pena tão próximo à pedra já é ele mesmo de pedra […]. Esta hora que é como uma respiração e que retorna com tanta certeza quanto seu tormento, esta hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que deixa a altura e trespassa nas grutas e descobre que não há desígnios absolutos ou um destino superior imposto pelo céu, ele é superior a seu destino. Ele é mais forte que sua rocha”[21]. Se o trabalho repetitivo e absurdo é o fardo que faz de Sísifo o “proletário dos deuses”, a consciência constitui sua identidade e sua liberdade: “Neste instante sutil em que o homem se volta para sua vida, Sísifo, retornando para sua rocha, contempla esta sequência de ações sem vínculos entre si e que se torna seu destino, criado por ele […], persuadido da origem inteiramente humana de tudo que é humano […]. Cada grão desta pedra, cada brilho mineral desta montanha dominada pela noite, forma, para ele, um mundo”[22]. Camus indica a tentação de uma felicidade mineral, a que toma o “partido das coisas”. Só assim Sísifo pode se liberar da servidão dos papéis sociais ou naturais, da identificação ao lugar que a história designou. A consciência libera do fardo e, ao mesmo tempo, libera as energias que se perdem nele.

Na senda grega, Camus faz sua a questão de “como viver”, pois o absurdo não é uma questão teórica, mas requer sabedoria prática. Por esta razão o filósofo critica o intelectualismo e todas as sistematizações do pensamento abstrato, não em nome de um irracionalismo, mas para enfatizar a lógica do ilógico que restringe o poder da razão teórica, aquela que afirma haver lógica onde não há nenhuma. Nossa condição é a de um ser, ao mesmo tempo, “grande e cheio de miséria”: “A inteligência ela mesma me diz a seu modo que o mundo é absurdo. Seu contrário é a razão cega que pode bem pretender que tudo é claro, eu quero provas e desejaria que ela tivesse razão. Mas, apesar de tantos séculos pretensiosos e para além de tantos homens loquazes e convincentes, eu sei que tudo isso é falso”[23]. Camus nega o poder transcendente da razão, pois, vivendo em um mundo relativo, contingente e diverso, é preciso estar atento às desmedidas ambições de sua unificação pelo espírito de sistema. Assim como em Hamlet a questão é “ser ou não ser” em um mundo “povoado de estranhos prodígios”, de coisas que não possuem uma significação apenas, e que somente por isso parecem irracionais, para Camus a razão não pode contentar-se com sua onipotência. A pergunta é “viver ou não viver” com o quantum de “não razão” que comporta a existência: “a este ponto de seus esforços, o homem encontra-se diante do irracional. Sente em si o desejo de felicidade e de racionalidade que tem sempre a tendência a se tornar desmedida. O absurdo nasce deste confronto entre o apelo humano e o silêncio insensato do mundo”[24]. O mundo não é absurdo, ele é tão somente “sem razão”. Por isso entre a consciência e o mundo não há epoché, intencionalidade ou relação, mas confronto, pois o mundo não é razoável nem se oferece à medida da razão: “o absurdo é a lucidez da razão que constata seus limites”[25]. Ser ou não ser vem a significar enfrentar situações duvidosas e incertas, em circunstâncias que não são postas, mas impostas. Assim foi com Hamlet, que não nasceu para o poder, e Ricardo II, diante da única questão propriamente metafísica: “Falemos de túmulos, vermes e de epitáfios”[26]. Situação paradoxal, a de Camus, admitindo o irracional sem renunciar à razão, resistindo, simultaneamente, ao ceticismo, ao Espírito Absoluto e ao Totalitarismo: “Sabedor do absurdo e para ser coerente com ele, o homem se dá conta de que a consciência é a coisa mais difícil do mundo a se manter. As circunstâncias quase sempre se lhe opõem. É preciso viver a lucidez em um mundo no qual a dispersão é a regra”[27]. Porque viver é uma questão de filosofia prática, Camus empreende a crítica à razão em suas figuras lógicas: “saber se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou 12 categorias, se ele é portanto aristotélico ou kantiano, vem depois”[28]. O esforço de unificação do pensamento lógico e por sistema não vence o absurdo, apenas o falsifica na crença na ciência e na razão. A existência não se pauta por princípios racionais porque da vida não há sistema. Camus não diz ser preciso “perseverar no seu ser”, e sim resistir à atração do não ser que é o reverso abstrato, niilista, da razão. Por isso, o suicídio não é senão uma pena de morte autoinfligida, como se a vida fosse um crime que necessitasse de punição. Como Sísifo — que vive o absurdo sem procurar uma explicação humana ou um desígnio superior —, o homem é inocente do absurdo, não pede clemência para uma dor imerecida, da mesma forma que Édipo, que diz “sim” ao final de tudo, e que Mersault em O estrangeiro.

Meursault, um Édipo “argelino” sem classe social definida, é o herói trágico moderno, herói em um mundo sem heroísmo nem reis, sem deuses ou deus. O estrangeiro é um anti-herói cujo duplo é o “primeiro homem” que “se encontrava no mundo […] sem passado, sem moral, sem modelos, sem religião, mas feliz de o ser e de o ser na luz, angustiado diante da noite e da morte”. A vida mediana e rotineira do “primeiro homem”[29] torna-se trágica no “estrangeiro”. Sua condição não é a do imigrado ou a de uma classe social, pois é estrangeiro em sua própria classe. Meursault é um estranho na natureza que, na modernidade, perdeu a medida. Em O estrangeiro reaparece o destino como exílio. O romance tem início com o monólogo do narrador: “Hoje mamãe morreu”. Conjugado como se se tratasse do presente, o tempo é o de um passado próximo do presente, mas sem se saber com precisão o que “hoje” significa. Por isso o narrador prossegue: “ou, talvez ontem, não sei bem”. Esse acontecimento é um fato consumado em um presente intemporal, porque a perda da mãe é um evento fora do tempo, absoluto, o correspondente existencial do exílio e do estranhamento do homem na natureza. É o começo do destino, o “estar em face do mundo e só consigo mesmo”, destino e absurdo que representam o fim das “núpcias” com a natureza e a consciência do exílio. O duplo de “hoje mamãe morreu” é o telegrama oficial que Meursault recebe do serviço funerário do asilo em que ela vivia: “mãe falecida — enterro amanhã — sinceras condolências [sentiments distingues]” . Em sua pretensa “objetividade”, o comunicado “não quer dizer absolutamente nada”, mas antecipa a fatalidade que virá. Pois “a mãe” morreu e o filho “vai morrer”, havendo uma relação certa entre a morte da mãe e a pena de morte do filho. O que não significa relação de causa e efeito, mas a coincidência equivale a uma causalidade, como as formações aparentemente arbitrárias do inconsciente. Se não é verdade que a primeira morte causou a segunda, a afinidade dos acontecimentos é perturbadora; uma causalidade “sem razão” não deixa de estar presente.

Meursault é estrangeiro e estrangeiro a si mesmo; tudo o que lhe acontece é “profundamente” banal, a morte da mãe ou o assassinato acidental de um homem. Seus dias são monótonos e indiferentes, neles “não há nada de novo sob o Sol”. Mesmo o sol — grego e mediterrâneo, vitalista e prazeroso — torna-se assassino. Meursault mata por causa do sol que é, também, sua única razão de viver[30]. Se, na tragédia, homens buscam traçar um difícil caminho para a justiça, Camus adverte que hoje é o Tesouro Público e o Mercado que tomam a palavra: “Olhe aqui, imbecil’, diz Caligula a seu intendente. ‘Se o Tesouro tem importância, então a vida não tem nenhuma […]. Todos os que pensam como você devem admitir este raciocínio e contabilizar a vida em nada porque o dinheiro é tudo’”[31] . Para o Tesouro Público e o Mercado pouco importa a justiça, desde que as contas estejam pagas. Eis por que a lógica do dinheiro prescinde das “boas maneiras”, o que resulta na concisão do telegrama que lhe comunica a morte de sua mãe: as “sinceras condolências” não têm nada de “sincero”, os “sentiments distingues” são “sem distinção”.

Assim como a fórmula é impessoal e administrativa, a justiça também nada tem de justa. Por isso, Meursault é acusado de um crime, mas culpado de todos os que não cometeu, exceto o assassinato de um árabe, culpado por não chorar no enterro, condenado por sua “insensibilidade”. A um certo ponto do processo, o advogado exclama: “enfim, ele é acusado de ter enterrado a mãe [sem lágrimas] ou por ter assassinado um homem?”. Meursault observa que o público ri, mas o promotor, que “não estava lá para isso”, “acusa este homem de ter enterrado a mãe com um coração de criminoso”. Luto sem melancolia, Meursault é um enigma. Como Édipo, o “estrangeiro” é inocente e culpado, seus atos lhe escapam, seu daimon é um “gênio maligno” que se empenha em falsificar seus menores gestos, tornando-o responsável por sua própria infelicidade. Quanto às últimas palavras de Édipo cego e sem trono, elas são a aceitação corajosa de uma ordem que o ultrapassa e assim diz “tudo está bem”, aceitação que não é resignação, mas reconciliação com seu destino: a purificação passa a significar nada negar nem excluir, a aceitação do mistério da existência, dos limites do homem e, enfim, desta ordem onde sabemos sem saber”[32]. Mas a dor de Sísifo, como a de Édipo, não é em vão, já que, negando os deuses e sustentando a pedra, realiza um esforço que torna humana sua vida. Tornando-se senhor de seu próprio destino, Sísifo funda sua grandeza na revolta, fazendo decorrer deste universo sem deuses e sem Deus a única felicidade acessível ao homem: “a própria luta para chegar ao alto basta para preencher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”[33]. Na impossibilidade de superar o absurdo, Sísifo desvia o destino de seu curso inexorável, reapropriando-se do que parecia lhe escapar. No instante da lucidez, o trágico se apresenta e o destino se desfaz. Sísifo, no alto da montanha, decide não mais descê-la. Permanecendo no alto, passa a contemplar a paisagem. Torna-se artista, pois “o que paralisa uma obra projetada torna-se a própria obra[34]“. Esta exigência dos “cuidados de si” não se separa da vida na comunidade dos que partilham um mundo comum, em que um vem em socorro do Outro. Sísifo solitário e o homem solidário correspondem a O mito de Sísifo e a O homem revoltado.

“Esculpir em argila” é a expressão com a qual Camus se associa à tradição grega e helenística de Simplicius, que escreve: “Qual o lugar do filósofo na cidade? Será o de um escultor de homens e de um artesão que fabrica cidadãos leais e dignos. Ele não terá pois outro ofício que se purificar a si mesmo e purificar os outros para viver a vida conforme a natureza que convém ao homem; ele será o pai comum e o pedagogo de todos os cidadãos, seu reformador, seu conselheiro e seu protetor, oferecendo-se a todos para cooperar na realização de todo o bem, regozijando-se com os que são felizes, padecendo com os aflitos e os consolando”[35]. Contrapondo-se à versão cartesiana da ciência para a qual a argila revela a instabilidade de tudo, e a rocha, o conhecimento seguro do geômetra[36], Camus considera a plasticidade da matéria ao mesmo tempo que sua fragilidade.[37] A escultura de si é sempre finita e vulnerável, tarefa interminável do homem. E o esforço criador do artista de si mesmo é “ciência admirável”. A medida grega não consiste em impor um sistema de prescrições e interdições, pois é um livre e “medido” trabalho de criação de si, a um só tempo “estética da existência” e “estilização da liberdade”. A “obra de si” como “bela obra” não se adapta à moderna ideia de realização de si como superação de si, seja na vida individual, seja na história coletiva[38]: “Trabalhar e criar ‘para nada’, esculpir na argila, saber que sua criação não tem futuro, ver sua obra destruída um dia, profundamente consciente de que isso não tem mais importância que construir para os séculos, é a difícil sabedoria que o pensamento absurdo autoriza. Tomar frontalmente as duas tarefas, negar por um lado e exaltar de outro, é o caminho que se abre ao criador absurdo. Ele deve dar ao vazio suas cores”[39].

No encontro entre o homem e o mundo, a argila é o elemento maleável, encontro desencontrado com “a instável necessidade de durar”[40]. Com efeito, os gregos não atribuíam a seus deuses perfeições que encontravam em si mesmos, mas declaravam-se belos na medida em que se aproximassem desta região de luz que era para eles a morada dos Imortais: “o jovem nu em seu esplendor, o kouros, não é nenhum adolescente real de que a arte do escultor tenha apreendido o enigma feliz, ele apresenta aos olhos de todos a obra do éthos tal como seria se pudesse de uma vez por todas escapar à infelicidade do tempo […]. É o testemunho daquilo que em um tempo que não é feito para a duração os deuses ofereceram para nós, servindo-se dele [do kouros, da escultura], sua face luminosa”[41]. A vontade de transformação, em Camus, não é a de ajustar o mundo a seus desejos, uma vez que à pergunta “por quê?” não segue resposta alguma, por isso o sentimento de “lassitude et étonnement”, de lassidão e espanto. Neogrego, Camus não nega a “certeza sensível” e a ideia de uma natureza humana como Marx, que afirma que ela não é senão “o conjunto das relações sociais”. Ao contrário, é porque existe algo como uma “natureza” no homem que é possível a revolta: “A análise da revolta conduz pelo menos à suspeita de que há uma natureza humana como queriam os gregos e contrariamente aos postulados do pensamento contemporâneo. Por que se revoltar se não há nada em si de permanente para preservar? É por todas as existências que o escravo se revolta”[42]. Porque a vida é contingência, a revolta se afasta do monopólio metafísico do Bem e da Verdade, procurando uma ação e um pensamento sob a medida do homem. Este é o “pensamento do meio-dia”: “qualquer empreendimento mais ambicioso revela-se contraditório. Não se alcança o absoluto nem se o cria através da história. A política não é religião, ou então ela é inquisição”[43].

O “pensamento do meio-dia” é o senso do limite e da medida: “se a revolta pudesse fundar uma filosofia, seria uma filosofia dos limites, da ignorância calculada e do risco”[44]. Ao pensamento da desmedida, do “Norte”[45], Camus opõe o gênio mediterrâneo como mediação à luta mortal das consciências de Hegel, pois no confronto entre o senhor e o escravo “o escravo só se emancipa ao escravizar por sua vez”[46]. Camus consagra em sua filosofia o “pensamento solar da Grécia” e dos gregos, feito de equilíbrio e do sentido do relativo: “um limite, no sol, os detém. Cada um diz ao outro que ele não é Deus. Aqui termina o romantismo. Nesta hora em que cada um de nós deve tensionar o arco […] para conquistar o que ele já possui, na e contra a história, em suma, o amor desta terra; na hora em que nasce um homem, é preciso abandonar sua época e seus furores adolescentes. O arco se torce, a madeira grita. No cume da mais alta tensão vai brilhar a silhueta de uma firme flecha, com o traço mais rigoroso e mais livre”[47]. Em um mundo sem respostas definitivas em que se encontra Sísifo, um “pessimismo” mitigado manifesta-se, o do materialismo antigo, em que não se encontra, porém, nem fatalismo nem causalidade mecânica, contra os quais nada poderia ser feito. Ao contrário, sem a liberdade do clinamen o mundo seria só potência cega. Assim como no materialismo de Epicuro o clinamen integra a liberdade e o capricho dos átomos, para Camus o clinamen inaugura uma filosofia que é antidestino, fazendo decorrerem a revolta, a liberdade e a paixão, todas ditas “minhas” porque pertencentes a um sujeito não da consciência clara e distinta, mas do que há de resistente e de opaco nas relações do homem com o mundo.

Por isso, a Sísifo, o proletário dos pesos sem medida, corresponde Don Juan, o aristocrata solitário no theatrum mundi barroco: “Don Juan chegou a uma ciência sem ilusões […], [ele é] a imagem de um homem face a face com o deus que não adora […], ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem eloquência e, como ele sabe, também sem profundidade”[48]. Como Sísifo, Don Juan tem o lote do dândi. Também ele é o herói da ambivalência das coisas, pertencendo inalienavelmente à Terra, assumindo sua imanência ao mundo em suas contingências e limitações históricas, mas também liberto delas, porque consciente da própria facticidade. Por isso Don Juan não se quer superior a seu destino: “é um grande engano”, escreve Camus, “pretender ver em Don Juan um homem que se nutre do Eclesiastes. Porque, para ele, a única vaidade é a esperança de outra vida”. Ser do instante, ele não é o memento mori que lembra ao homem a todo momento sua vulnerabilidade, como no Eclesiastes: “antes que o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. O Don Juan de Camus substitui a antecipação da morte e o além pelo “agora” e, por isso, não se separa do tempo para se projetar em um futuro incerto, ajustando-se ao instante. Desiludir-se é não recorrer à transcendência, o que não quer dizer tristeza e desengano, mas um pensamento do meio-dia, em que ora a natureza é o que salva do absurdo, ora o que condena ao absurdo.
Com efeito, o nome Mersault, de “O verão”, é composto de Mer e soleil, indicando a indivisão originária do homem e da natureza em A morte feliz. Em O estrangeiro, a personagem é Meursault, é Meurt soleil, onde meurtre [assassinato] substitui o mar. Em O Estrangeiro, ao contrário da inocência do momento presente, o sol é desestabilizador, o outro do Sol mediterrâneo, ele é o “demônio do meio-dia”, que, na tradição, é o momento da catástrofe. Ao meio-dia, quando o sol se encontra no seu ponto mais alto no céu, quando o vento não sopra[49], as Sereias exercem seu poder, e as ninfas se apoderam dos sonolentos imprudentes que, adormecidos à beira dos rios, despertam tomados de acinesia (torpor), afonia e mania. Para os meteoreologistas antigos o meio-dia é a hora dos terremotos, a mesma hora sísmica do tiro de revólver de Meursault, do disparo que rompe o sol do tédio. O sol, no ápice de sua imobilidade, em estado de autocombustão, é vencido por seu próprio calor. Hora propícia dos demônios, meio-dia é a metade do caminho, quando o viajante se encontra tão longe do ponto de partida quanto do de chegada, é o espaço do não retorno, como também é o tempo próprio do demônio. Em O estrangeiro, o meio-dia é a atmosfera irrespirável, o momento da dissolução do eu na desordem incoerente das sensações, paisagem em que se manifesta a estagnação do tempo que não passa, sua eternidade negativa, um meio-dia insuportavelmente longo[50]. Sobre o tédio, Camus anotou: “Monotonia das últimas obras de Tolstói. Monotonia dos livros hindus — monotonia das profecias bíblicas — monotonia do Buda. Monotonia do Corão e de todos os livros religiosos. Monotonia de Nietzsche — de Pascal — de Chestov — terrível monotonia de Proust, do Marquês de Sade etc. etc.”[51]. O tédio nadifica o sentido de tudo. Meursault, sob o calcinante sol, está privado de emoções, desenraizado de qualquer paixão, tomado pela indiferença e pelo vazio. Não há no assassinato do árabe maldade ou racismo, como não há qualquer afeto com respeito a seu colega Raymond. O estrangeiro não tem “alma”. Uma perda momentânea de consciência, um súbito calor bastam para sua despersonalização e para que dispare o tiro. Perda da consciência, a vertigem que faz dele um criminoso sempre esteve por perto, permanente, dissimulada e vaga. Nada o surpreende ou choca. Este “homem sem qualidades” e sem valores, a não ser um — se é que este se pode designar valor, já que é negativo —, sua cólera contra a religião e contra o capelão que ele expulsa de sua prisão antes de ser executado. Exilado de si mesmo, o estrangeiro encontra-se distante tanto dos árabes quanto de qualquer outro indivíduo de sua cidade.

Mas o pensamento do meio-dia pode ser também o “pensamento solar” da Grécia, o momento pânico, o tempo propício para escutar as vozes da natureza, abrindo-se para a “perfeição do instante” e do instante criador. É nesta hora mágica, em que tudo se volatiliza na languidez do repouso, que “os deuses se deixam de vez em quando ver pelos homens”.

Camus concebe a indiferença que não é a “frieza burguesa” diante do sofrimento do homem e da natureza, mas o da pedra. Em seus “Carnets”, Camus anota: “A irmã — Peça a Deus para ser como uma pedra. Aí está a maior felicidade, e é o que ele escolheu para si mesmo. — Ele é surdo, eu lhe digo, e mudo como um granito. Faça-se semelhante a ele para não conhecer mais do mundo que a água que rumoreja e o sol que aquece. Juntemo-nos às pedras enquanto ainda é tempo (a desenvolver)”[52]. E em O homem revoltado Camus observa: “O ser é pedra. […] A felicidade de Epicuro se encontra, principalmente, na ausência de dor; é a felicidade das pedras”[53].

Essa felicidade do instante atemporal é a dos gregos. Nos “Carnets de 1937, Camus enfatiza a “ausência de sentido histórico entre os gregos”. Povo feliz, predominam o mito e a despreocupação com o futuro, na fusão entre a transitoriedade das coisas e a duração. Os gregos só vivem o presente, e essa arte de viver levou os dórios a talhar em madeira a primeira coluna de seus templos e, simultaneamente, conceber a natureza eterna. A pedra figura a medida divina da natureza, seu logos. E Camus cita Heráclito: “O Sol não irá além de sua medida porque, se o fizesse, as Erinias, ministras da justiça,o colocariam em seu lugar”. O pensamento trágico dos antigos não perde a medida da natureza e, no Mediterrâneo, encontra-se com São Francisco de Assis e seu Hino ao Sol: “É ainda um mediterrâneo, São Francisco de Assis, que faz do cristianismo, do mais íntimo e atormentado, um hino à natureza e à alegria de viver. E a única tentativa feita para separar o cristianismo do mundo, é a um nórdico, Lutero, que se o deve. O protestantismo é propriamente falando o catolicismo arrancado de suas raízes mediterrâneas e da sua influência ao mesmo tempo nefasta e exaltante”[54].

O Mediterrâneo diz respeito à koiné à philia, ele pôs em contato povos e culturas: “Mar internacional atravessado por todas as correntes, o Mediterrâneo é, de todos os países, o único talvez que se reúne aos grandes pensamentos orientais. Pois ele não é clássico e ordenado, ele é difuso e turbulento, como os bairros árabes ou os portos de Gênova e da Tunísia. Este gosto triunfante da vida, este senso do abatimento e do tédio, as praças desertas ao meio-dia na Espanha, a sesta, eis o verdadeiro Mediterrâneo, e é do Oriente que ele se aproxima. Não do Ocidente latino”[55]. Camus diferencia o Mediterrâneo grego e sua medida sábia da cultura latina, pragmática e abstrata:

Não foi a vida que Roma retomou para si da Grécia, mas a abstração pueril e raciocinadora. O Mediterrâneo está em outra parte. Ele é a própria negação de Roma e do gênio latino. Vivaz, […] a Grécia nada tem a ver com a abstração. […] Mussolini foi o digno continuador dos Césares e dos Augustos antigos. […] Não é o gosto do raciocínio e da abstração que reivindicamos no Mediterrâneo, mas sua vida — os caminhos, os ciprestes, os rosários de pimentas — Esquilo e não Euripides — os Apoios dóricos e não as cópias do Vaticano. É a Espanha, sua força e seu pessimismo, e não as fanfarronadas de Roma — as paisagens calcinadas de sol e não os cenários de teatro em que um ditador se embriaga com sua própria voz e subjuga as multidões[56].

O mal politico são as ideologias, sucedâneo da religião em uma época niilista. Elas são “a doença […] de não acreditar em nada e pretender saber tudo”[57]. “Seres efêmeros”, de “um só dia”, “da raça das folhas”[58], uma “lei natural” que quer que os humanos se reconheçam todos como uma mesma humanidade, pois um homem é todos os homens.[59] Trata-se, para Camus, de praticar uma justiça incondicional em casos extremos como as guerras, pois nada poderia “privar o homem da responsabilidade fraternal para com aqueles que sofrem”: “o amor”, escreve Camus, “só pode ser vivido sob a forma do dom radical, isto é, do desinteresse e da gratuidade assegurados pela ausência de transcendência em uma luta sem esperança”[60].

A “educação pelas pedras” é a sabedoria da natureza, a pedra imita o repouso do divino, como Camus o encontra em Çakia-Mouni, que “passou muitos anos no deserto, imóvel com os olhos fixos no céu. Os próprios deuses invejavam esta sabedoria e este destino de pedra. Em suas mãos espalmadas e ressequidas, as andorinhas tinham feito seu ninho. Mas um dia elas voaram para não mais voltar. E aquele que matara em si desejo e vontade, glória e dor, pôs-se a chorar. As flores nascem então das pedras”[61].

Camus se afasta de Pascal, que, em seus Pensamentos, anota que “Cristo agonizará na cruz até o fim do mundo e que durante esse tempo não se deverá dormir”, aprovando, ao contrário, os apóstolos adormecidos[62]. Esta sabedoria provém da “escultura de si”, ascese constante e lucidez:

as contradições não se resolvem em uma síntese ou em um compromisso puramente lógico, mas em uma criação. Quando o trabalho do operário, como o do artista, tiver uma chance de ser fecundo, só então o niilismo será definitivamente ultrapassado, o renascimento terá um sentido. Cada um de nós, do lugar em que se encontra, por nossas obras e atos, deve servir esta fecundidade e este renascimento. Não é seguro que o consigamos, mas no final das contas é a única tarefa que merece ser empreendida e que se persevere nela[63].

Camus imagina o dia em que Sísifo sobe a montanha e, do alto da colina, decide não mais voltar à planície, devendo-se encontrar alguém para substituí-lo na tarefa vã. Autor de si mesmo e de sua história, Sí-sifo torna-se criador e artista. Transformar o tempo livre em trabalho e o tempo do trabalho em tempo livre é um “pedido feito ao céu”, e essas preces não significam outra coisa senão a espera do milagre[64]. Toda cultura é a expectativa de um milagre, e o milagre algumas vezes acontece, esperança que põe em movimento toda a História: “Duchamp declarou que no momento em que exibiu sua Fonte sentiu-se para além do espaço e do tempo. Por assim dizer repetiu um ato divino, este ato é a criação absoluta mais além do trababalho[65]. Se o trabalho é lazer e o lazer, trabalho, a falta de tempo relaciona-se com uma “inaptidão ao ócio”. A ociosidade associa-se à preguiça, uma vez que o trabalho pelo trabalho, o trabalho como fim em si, é a fonte da preguiça que é cansaço de viver. A scholé, o ócio, a contemplação é a atitude de quem se abandona ao sono, assemelhando-se aos adormecidos que, segundo Heráclito, “agem e colaboram [também eles] ao devir do mundo”[66]. O sono profundo e sem sonhos imita o repouso divino.

A escultura de si é trabalho livre e contemplação, é um acordo sutil e encontro do homem consigo mesmo[67], e alia a estética da existência e a beleza do mundo, o belo e a liberdade:

os países que abrigam a beleza são os mais difíceis de defender — tanto se gostaria de poupá-los. Assim, os povos artistas deviam ser as vítimas preferenciais dos povos ingratos — se o amor da liberdade não primasse sobre o amor da beleza no coração dos homens. É uma sabedoria instintiva — a liberdade era a fonte da beleza. (…). No século II, discussões sobre a aparência pessoal de Jesus. São Cirilo e São Justino: Para conferir todo seu sentido à encarnação, diziam ser preciso que ele tivesse um aspecto abjeto e repugnante. (‘São Cirilo: o mais aversivo dos filhos dos homens’.) Mas o espírito grego: ‘Se ele não for belo, ele não será Deus’. Os gregos venceram[68].

Notas

  1. Albert Camus, Œuvres complètes, Paris: Gallimard, v. IIp. 1326, 2007. (Col. Bibliothèque de la Pléiade) 
  2. Há implícita uma referência a Montesquieu e à importância dos climas para uma antropologia filosófica, mas o que importa a Camus é uma geografia ligada à concepção de razão — “esprit géométrique” no Norte, quer dizer, razão lógica e fenomenológica; “esprit de finesse”, razão engenhosa, no Sul. 
  3. Trata-se, na perspectiva de Camus, da oposição entre o pensamento grego e a filosofia alemã moderna que compreende a práxis guiada por conceitos absolutos, Espírito, povo ou classe social, como o sentido da história. A partir da Revolução Francesa — mito de que Camus não compartilhava—, as sociedades passaram a se conceber sob o signo da eterna mudança. O “povo” é o deus laicizado e infalível: “O Contrato social […] um catecismo, do qual conserva o tom e a linguagem dogmática […], [deu] uma explicação dogmática à nova religião [da Revolução Francesa cujo deus é a Razão, confundida com a natureza, e cujo representante na Terra, em lugar do rei, é o povo considerado em sua vontade geral. […] Sabe-se que o esforço dos monarquistas na Assembleia [é para que o julgamento do rei se submeta aos delegados da ‘nova divindade’, o povo]. A vida do rei poderia assim ser subtraída à lógica dos juristas burgueses […] para ser confiada ao menos às paixões espontâneas e à compaixão do povo […] Saint-Just considera que o crime da realeza é permanente, está ligado à pessoa do rei, a sua existência […]. A teocracia foi atacada em 1789 em seu princípio e morta em 1793 [com o Terror] em sua encarnação […]. No dia 21 de janeiro, com o assassinato do rei-pai, termina o que se chamou significativamente de a paixão de Luís XVI. Sem dúvida é um escândalo repugnante ter apresentado como um grande momento de nossa história o assassinato público de um homem fraco e bom […]. Seu livro de cabeceira [na prisão do Templo] é a Imitação de Cristo. A suavidade e a perfeição que esse homem, apesar de sua sensibilidade mediana, demonstrou em seus últimos momentos […] e sua breve fraqueza no cadafalso solitário, ao som do terrível tambor que lhe encobria a voz, tão longe desse povo por quem esperava ser ouvido, tudo isso nos deixa imaginar que não era um capeto que morria, mas sim o Luís de direito divino […]. Para melhor ressaltar esse elo sagrado, o seu confessor o ampara em seu momento de fraqueza, ao relembrar-lhe sua `semelhança’ com o deus de dor. E, então, Luís XVI se recupera e retoma a linguagem desse deus: ‘Beberei deste cálice até a última gota’. Depois, deixou-se conduzir, trêmulo, pelas mãos ignóbeis do carrasco!”. (0 homem revoltado, Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 146-148. Cf. também nesse livro “0 terrorismo de estado e o terror racional”, pp. 223-225.) 
  4. scholé e o ócio são condenados pela “mobilização infinita” da modernidade que se concebe segundo a ideia de “revolução tecnológica”, definindo-se o homem também por sua ação na História. A scholé é também o tempo dos “cuidados de si”, exercícios do corpo e da alma, o saber da natureza e de si, desfazendo-se crenças que embaralham o pensamento com opiniões vãs. O retorno a si permite a comunidade dos homens que partilham um mesmo destino e humanidade: “pelo fato da morte”, escreve Metrodoro, discípulo de Epicuro, “habitamos uma cidade sem muralhas”, na qual a felicidade se dá no horizonte da pura precariedade. A ética é uma estética, uma construção de si na amizade com o outro e com o mundo. Por isso o artista encontra-se do lado do filósofo. O artista, como o filósofo, é “ocioso”. O artista, como escultor de si mesmo, “não participa das artes guerreiras ou dos jogos nas palestras, não compõe discursos sérios, não cumpre os deveres do bom cidadão, não intervém na vida pública — mais que inútil, transforma-se em perigo para a sociedade” (Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 105). Como Sócrates, o filósofo e o artista de si mesmo é um solitário pelo espírito e civil pelo corpo, a filosofia alternando o rumor da praça pública e a solidão da interioridade do pensamento. O que estabelece o laço social é a phylia, vínculo afetivo com o Outro e a cidade. 
  5. Albert Camus, “O terrorismo individual”, O homem revoltado, op. cit., p. 178. 
  6. Albert Camus, L’homme revolté. In: Œuvres complètes, op. cit., p. 701. 
  7. Giovan Pietro Bellori, “La Idea de pintor, escultor y del arquitecto, selecionadas entre las belezas naturales superior a la naturaleza”, Vidas de pintores, Madri: Akal, 2005, p. 44. 
  8. Ricardo Marques Azevedo, Antigos modernos: estudo das doutrinas arquitetônicas nos séculos XVII e XVIII, São Paulo: FAU-USP, 2009, p. 28. 
  9. Camus se afasta das filosofias que na senda de Kant, Hegel e Marx consideram a liberdade do homem, sua autonomia de Sujeito moral ou histórico, capaz de ser “o ator e o autor de sua própria história”: “O capital retoma a dialética [hegeliana] da dominação e da servidão, substituindo a consciência de si pela autonomia econômica, o Reino final do Espírito absoluto pelo advento do comunismo […]. [Para Marx] a alienação religiosa tem a mesma origem que a alienação econômica. Só se acaba com a religião realizando a liberdade absoluta do homem quanto a suas determinações materiais” (O homem revoltado, op. cit.). 
  10. Jean-Marie Guyau, La Morale d’Epicure,in La Morale d’Epicure et ses rapports avec les doctrines contemporianes, de Romeyer Dherbey, trad. Jean Baptiste Gornival, La Versane, Suíça: Ed. Encre Marine, 2002, p. 49. 
  11. Estobeu, Florilégios, XVII, 23. 
  12. Herádito, apud Heber Salvador Lima, Os deuses que não morreram, Rio de Janeiro: Loyola, 1996, p. 76. 
  13. Albert Camus, op. cit., p. 46. Rio de Janeiro /São Paulo: Record, trad. Valérie Rumjanek, 2008. 
  14. Albert Camus, “Carnet 1935-1948”, Œuvres complètes, op. cit., v. IIp. 890. 
  15. Albert Camus, O mito de Sísifo, Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 58-59. 
  16. Idem, “Cahiers Œuvres complètes, op. cit., v. IIp. 968. 
  17. Idem, “Cahiers Œuvres complètes, op. cit., v. IIp. 882. 
  18. Idem, p. 919. 
  19. Idem, p. 975; Camus se refere ao Deuteronômio, ao Êxodo, a Amós, a Jeremias, a Jó. Deste modo, o absurdo corresponde à dúvida metódica cartesiana que permite desfazer-se das falsas certezas, antes de se alcançar um fundamento seguro: “quando eu analisava o sentimento do absurdo no Mito de Sísifo, estava à procura de um método e não de uma doutrina. Eu praticava a dúvida metódica. Procurava fazer esta tabula rasa a partir da qual pode-se começar a construir”. Assim como Descartes buscava um ponto fixo e seguro, Camus revoga o que se mostra como indubitável, tudo o que se dá como razão de viver. O absurdo é a primeira verdade. Se a dúvida metódica traz em si mesma o princípio de seu ultrapassamento – quanto mais radical a dúvida, mais a certeza será segura -, o absurdo contém em si mesmo também o princípio de sua superação. Mas esta não significa desaparecimento do absurdo, que continuará a sê-lo do princípio ao fim, já que consignado pela consciência. Pois, se é possível sair da dúvida, o mesmo não se dá com o absurdo do qual decorre a revolta, nesse confronto perpétuo do homem com sua própria ininteligibilidade e enigma. O absurdo atesta a ausência radical de todo fundamento transcendente, e o sentimento do absurdo nasce da tomada de consciência da gratuidade da existência. O absurdo não se encontra no sentimento de “estar a mais” no mundo, mas no sentimento de ser “estrangeiro”: “para sempre serei estrangeiro a mim mesmo”, “eu vivo em um mundo que me é estranho”. 
  20. Albert Camus, O mito de Sísifo, op. cit., p. 246. 
  21. Idem, Le Mythe de Sisyphe, Paris: Gallimard, 2007, p. 165 (tradução própria). 
  22. Idem, ibidem, p. 168. 
  23. Albert Camus, O mito de Sísifo, trad. Ari Roitman e Paulina Watch, Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008, pp. 34-35. 
  24. Albert Camus, O mito de Sísifo, op cit., p. 41. 
  25. Idem, pp. 41 ss. 
  26. Cf. Shakespeare, Ricardo II, trad. Carlos Nuines, e.books, ed. Ridendo Castigat Mores. 
  27. Cf. Albert Camus, “Cahiers”, Œuvres complètes, op. cit., v. IIp. 943. 
  28. Albert Camus, O mito de Sísifo, op cit. 
  29. Cf. Albert Camus, Le premier homme. In: Œuvres completes, op. cit. 
  30. Ao refletir sobre o que está em nosso poder e depende da ação do homem, Camus analisa a revolta metafísica em O mito de Sísifo e no romance O estrangeiro, a revolta histórica em O homem revoltado e no romance A peste. Procedendo à crítica da razão histórica, Camus faz ao heroísmo antigo suceder o moderno. Aos grandes e nobres guerreiros de Troia, “matadores involuntários” de homens, que se enfrentam nos campos de batalha, “sucedem os assassinos gratuitos (se não for justamente a ausência de razões de viver que se torna uma razão para matar ou morrer)”(O homem revoltado). 
  31. Albert Camus, Caligula, ato 1, cena VII, Œuvres complètes, I, Ed. Plêiade, 1931-1944, 2006, p. 335. 
  32. L’Étranger. In: Œuvres complètes, op. cit., p. 1708. Não se trata de o absurdo ser o sem sentido ou o contraditório. Ele tem um sentido, mas falso. Raciocínio formalmente falso, ele é contrário tanto à razão “crítica” quanto ao senso comum; sem determinação lógica, ele procede não de um conceito, mas da experiência. A lógica do ilógico não funda um irracionalismo, mas procura demarcar os limites da razão teórica. O absurdo se manifesta no “ser ou não ser” shakespeariano. Para Camus, o mundo é povoado de irracionais, com os quais deve-se viver ou não, aceitando o quantum de irracionalidade que a existência comporta. O homem não poderia se medir pela razão, que, aliás, frequentemente tende a ser desmedida. Assim, diferentemente de Protágoras ou das filosofias da História, o homem — medida de todas as coisas — não tem medida alguma. 
  33. Albert Camus, O mito de Sisifo, op. cit. 
  34. Camus, Œuvres complètes, v. IIp. 937. Pode-se dizer que o momento da consciência e da lucidez é o instante em que Sísifo se libera de Sísifo, o operário do operário, da alma que se lhes forjou. Caso contrário, o fardo permanece como nas observações de Espinosa sobre o avarento que, em meio à tempestade em alto-mar, se desfaz de todos os seus tesouros para aliviar sua embarcação e sobreviver, nem por isso deixando de ser avarento. Assim, se o pobre pode tornar-se rico, ele será sempre um pobre que veio a ser rico, a não ser que se reconcilie com o passado, aceitando o que era “destino” mas se tornou “coisa sua”, como nos processos de sublimação. Com respeito à sublimação, Freud escreve só conhecer um caso de sublimação bem-sucedido, o de São Francisco de Assis, que além de santo foi poeta. 
  35. Simplicius (ed. Ilsetraut Hadot), Commentaire sur le Manuel d’Épictète, XXXll, linha 154, Leiden: Brill, 1996. 
  36. Cf. Descartes, Discurso do método. 
  37. Esta plasticidade é, em particular, a do Ator e seus diferentes papéis; sua racionalidade é mimética, é “ingenium” “engenho”. Gracián, em O oráculo manual, observa que se o ingenium é nossa disposição natural e assim é que varia de um a outro, o engenho permite a passagem do que é estável ao movente, do obscuro à claridade, do incerto ao seguro, no sentido grego da métis. Esta é “o engenhoso expediente de que o herói dispõe, no final da provação, para levar seu projeto a bom termo […], a habilidade de sair-se bem em situações sem saída” (Joaquim Brasil Fontes, op. cit., p. 364. Cf. também Marcel Detienne; Jean-Pierre Vernant, Les Ruses de l’inteligence: La métis grecque, Paris: Flammarion, 1974). 
  38. Tanto o ideal desmedido de “ultrapassamento de si” como as performances corporais do atletismo contemporâneo, quanto a ideia de “solução definitiva” na História — Espírito absoluto ou sociedade sem classes — significarei a busca de absolutos, e, nesse sentido, Camus critica a ideia hegeliana e marxista do papel da violência entendida como progresso. Para Camus a liberdade é sempre “liberdade condicional” e resulta do permanente trabalho de si, de tudo o que incide sobre o homem e de que ele mesmo não é a origem. 
  39. Albert Camus, Le mythe de Sisyphe. In: Œuvres complètes, op. cit., pp. 189-190. 
  40. Cf. Albert Camus, L ‘Homme revolté. In: Œuvres complètes, op. cit., P. 664. 
  41. Cf. Bernard Sichère, Histoires du mal, Paris: Grasset, 1995, p. 55. 
  42. Albert Camus, L’Homme révolté, op. cit., p. 425. 
  43. Idem, pp. 146-148. 
  44. Idem, p. 693. 
  45. À ideia de revolução sangrenta, Camus prefere a revolta e o senso da plasticidade. Como a natureza meridional “livre e “móvel”, a ação é leveza e se plasma com as circunstâncias cambiantes da vida. 
  46. Albert Camus, O homem revoltado, op. cit., p. 174. 
  47. Idem, L’Homme revolté, op. cit., p. 708. 
  48. Idem, O mito de Sísifo, op. cit., p. 89. 
  49. Antes de as sereias iniciarem seu canto devastador, instala-se um silêncio indescritível, acompanhado pelos ventos que fustigam o mar. Aristóteles escreve em suas Metereológicas que o meio-dia é o momento em que há menos vento, é o de sua saturação canicular. 
  50. O absurdo incorpora a questão do tempo — vitalista no ensaio “O Verão”, coisificado no mito de Sísifo, estagnado em O estrangeiro. 
  51. Albert Camus, “Carnets II”, op. cit., p. 931. Recorde-se aqui o silêncio de chumbo do meio-dia e o canto das cigarras a que se refere Platão no Fedon, ao apresentar Sócrates às margens do Ilisso, quando o filósofo exorciza a ameaça da hora fatal para o pensamento, a preguiça e a inércia intelectual a que o meio-dia induz, esta hora imóvel que ameaça o pensamento com a akinesia — a paralisação. O canto das cigarras é “canto do meio-dia” — mesembrinos ôdos. Aquele que se inicia na aventura do pensamento não pode ser tomado pelo demônio do meio-dia e pelo canto das cigarras, que nessa hora ressoa de maneira ensurdecedora, imobilizando o pensamento. Não é, pois, um acaso se Sócrates propõe o despertar filosófico como resistência ao torpor acalentado pelo canto. As cigarras são aqui para o filósofo o que o canto das sereias era para Ulisses na Odisseia. O filósofo é aquele que pensa naquela hora em que os outros homens estão fazendo a sesta. Lembre-se também que é ao meio-dia que Antígona dá uma sepultura ao irmão, o que revela que o meio-dia é o tempo do “ato puro”, da imobilidade do ato em si mesmo; é a hora da catástrofe ou da revelação — como Jeanne d’Arc, que nessa hora era interpelada por vozes; para não falar do demônio do meio-dia que assediava os monges em seu recolhimento e dos eremitas no deserto do Egito. Lembre-se também a “acídia” medieval, a doença dos monges em suas celas solitárias, que sentem desprezo pela vida que levam, ou dos eremitas no deserto e os demônios que os assombram ao meio-dia, quando se desesperam de Deus. E a revelação do Eterno Retorno de Nietzsche em SiIs Maria, como também Zaratustra e o grande Meio-Dia, a hora da morte do grande Pã, seguido de um silêncio pânico. 
  52. Idem, ibidem, p. 974. 
  53. Idem, “Os Filhos de Caim”, O homem revoltado, op. cit., pp. 46-47. 
  54. Idem, “La nouvelle culture méditerranéenne”, Œuvres complètes, op. cit., V. I, p. 567. 
  55. Idem, ibidem, p. 569. 
  56. Idem, ibidem, pp. 568-569. 
  57. Albert Camus, L’Homme revolté, op. cit., p. 1061. 
  58. Homero, Píndaro. 
  59. Cf. Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. 
  60. Albert Camus, Œuvres complètes, op. cit.,”Carnets II”, p. 75. 
  61. Idem, “Cahiers in, pp. 922-923. Este estado é o simétrico oposto dos eremitas tomados de acídia nos desertos de Alexandria. A imobilidade é aqui a da pedra que participa, imitando-o, do divino “que reúne em si intensidade de vida e contemplação. Trata-se de desproletarizar o proletariado e a hegemonia do trabalho alienado porque proletário é uma noção diversa da de pobreza. Pode-se ser pobre sem ser proletário e proletário sem ser pobre. Aquele que reduz todas as dimensões da vida à condição de trabalhador — como o “especialista” — é proletário. Proletário aquele que está acorrentado de corpo e alma a um processo de trabalho, o trabalho preenchendo a totalidade de seu espaço vital com o empobrecimento interior do homem. 
  62. Para Camus, o trabalho do artista é aquele do “abandono de si”, como quem dorme. Ausência de tempo livre e insônia de alguma maneira estão vinculados. Nesta abertura silenciosa da alma, o trabalho não é sofrimento e pena, mas atitude festiva, uma alegria interior que não se confunde com a inatividade, e seu silêncio é o da concórdia, como Deus, que a cada dia criava e “isso era bom” (Gênesis, 1,31). 
  63. Albert Camus, “Défense de L ‘Homme revolté”, Œuvres complètes, op. cit., p. 1715. 
  64. Como a utopia de 1968: “Maio de 68 foi neste sentido a utopia realizada do “trabalho de Deus”, quer dizer, um trabalho sem cansaço, como a festa […] dos anos sessenta que foram um dom de Deus. A geração de 68 foi uma infusão repentina de energia vital. Muitas pessoas em diversas partes do mundo começaram a exigir: ‘queremos fazer algo sem fazê-lo. Queremos ser todos como Diógenes (de Sínope) e Duchamp (seus ready-made); […] 1968 foi um momento de sonho divino […] em que era possível criar sem trabalhar. […] Queremos uma société du spectacle, queremos uma performance absoluta’. […] Fizeram passeatas para exigi-lo, finalmente o exigiram a Deus, porque um governo mundano não pode dar algo assim” (Boris Groys, Políticas de la inmortalidad, Buenos Aires: Katz, 2008). 
  65. Boris Groys, op. cit. 
  66. Heráclito, Os pré-socráticos, frag. 75. 
  67. O tédio e a tristeza, ao contrário, são o desespero “no qual cada um não quer ser ele mesmo”, como escreveu Kierkegaard: “o lazer não é dado antecipadamente pelas circunstâncias exteriores — interrupção do trabalho, tempo livre. O lazer é um estado de alma e enquanto tal se situa no extremo oposto do paradigma do trabalho (…). O lazer vive da aprovação e não se confunde com a inatividade (…). Ele se assemelha a um silêncio alimentado de concórdia e que preenche o diálogo de quem ama (…). A forma superior dessa aprovação (de si e do mundo) é a festa, esta calma que reúne em si intensidade de vida e contemplação. Aquele que celebra uma festa experimenta de maneira não cotidiana seu pertencimento ao mundo; experimenta o sentido fundamental do mundo e se põe em acordo com ele” (Josef Pieper, Le Loisir, fondement de la culture, Genebra: Ad Solem, 2007, pp. 4547). 
  68. Albert Camus, “Carnet”, op. cit., pp. 930-945. Cf. também Hans Belting, Il culto delle immagini, Milão: Carocci, 2005. O imperador Justiniano cunha, no século VII, a primeira moeda bizantina com a imagem de Jesus com a representação helenística da beleza, em que a figuração corresponde à beleza e luminosidade dos deuses olímpicos gregos — sobretudo Zeus é o modelo. Quando de uma segunda cunhagem, a figura passa a ser semítica, pesada, racial. Com a representação helenística, se enfatizava a natureza transcendente, suprassensível, deus de beleza celestial, espiritual; com a semítica, seu aspecto intramundano. 

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