2011

Ceticismo, erro, verdade

por José Raimundo Maia Neto

Resumo

O ceticismo é uma tradição filosófica que tem sido bastante influente na filosofia e em outras áreas do saber desde seu início no helenismo, com Pirro de Elida, até os dias de hoje. Ao longo de tal trajetória, a crença foi objeto central de exame por parte dos filósofos céticos que, por motivos diversos, ou buscaram eliminá-la, ou — verificando sua persistência apesar da crítica epistemológica aos seus fundamentos — mostraram seu enraizamento antropológico. Sem poder dar conta de tema tão amplo e complexo, o mais prudente será tratar de alguns dos autores cruciais da tradição cética no contexto da “invenção das crenças”. Por uma questão programática, os menos conhecidos, mas não menos importantes, tais como, além de Pirro, Arcesilau de Pitane, Zenão e Cícero. Assim, não se tratará nem da dúvida cartesiana, nem da obra de Hume. A primeira enseja uma batalha de dimensões épicas — embora travada na interioridade do filósofo — entre a resolução livre de se desfazer de todas as crenças adquiridas — passo considerado por Descartes como preparatório para o estabelecimento das verdades metafísicas — e a grande dificuldade de se descartar as crenças por causa do seu enraizamento antropológico. Contra ele (em última instância determinado pelo corpo), a vontade livre infinita cria um monstro poderoso. É o gênio maligno, que age de modo a convencer o sujeito pensante de que todas as suas crenças são falsas para, assim, efetivar a sua deliberação de delas se livrar. Hume, por sua vez, instrumentaliza a dúvida radical cartesiana e sua própria dúvida sobre causação para mostrar que nossas crenças são sentimentos e paixões, já que resistem a críticas epistemológicas incontornáveis. A atenção recairá sobre Agostinho e Montaigne, mediadores entre a visão cética antiga da crença (como algo eliminável) e a visão moderna (como algo vital). Com isso, torna-se pertinente o tema do embate entre ceticismo e crença na ficção de Machado de Assis.


O ceticismo é uma tradição filosófica que tem sido bastante influente na filosofia e em outras áreas do saber desde o seu início no helenismo, com Pirro de Elida, até os dias de hoje[1]. Ao longo desta longa trajetória, a crença foi objeto central de exame por parte dos filósofos céticos que, por motivos diversos, ou buscaram eliminá-la, ou — verificando sua persistência apesar da crítica epistemológica aos seus fundamentos — mostraram seu enraizamento antropológico. Destaco a seguir alguns pontos da tradição cética que considero cruciais no contexto deste ciclo sobre A invenção das crenças. Deixarei deliberadamente de lado dois capítulos centrais da história do ceticismo para ressaltar outros menos conhecidos, mas não menos importantes. Não tratarei da dúvida cartesiana e do ceticismo humiano. A primeira enseja uma batalha de dimensões épicas — embora travada na interioridade do filósofo — entre a resolução livre de se desfazer de todas as crenças adquiridas — passo considerado por Descartes como preparatório para o estabelecimento das verdades metafísicas — e a grande dificuldade de se descartar as crenças por causa do seu enraizamento antropológico. Contra tal enraizamento (em última instância determinado pelo corpo), a vontade livre infinita cria um monstro poderoso: o gênio maligno, para convencer o sujeito pensante de que todas as suas crenças são falsas e, assim, efetivar a sua deliberação de delas se livrar. Hume, por sua vez, instrumentaliza a dúvida radical cartesiana e sua própria dúvida sobre causação para mostrar que nossas crenças são sentimentos e paixões, já que resistem a críticas epistemológicas incontornáveis. Neste trabalho, deixo Descartes e Hume de lado para tratar de Agostinho e de Montaigne, que fazem a mediação entre a visão cética antiga da crença (como algo eliminável) para a visão moderna (como algo vital)[2]. O foco em Agostinho e Montaigne traz, ainda, a utilidade suplementar de mostrar a pertinência do embate entre ceticismo e crença na ficção de Machado de Assis. Começo, entretanto, com os céticos antigos.

PIRRO DE ELIDA (C. 360-274 A.C.)

Pirro considerava que a felicidade era incompatível com crenças. Entendendo a felicidade como ausência de perturbações (ataraxia), o pirronismo antigo identificava suas duas fontes fundamentais[3]. Uma delas, inevitável, seriam as afecções corporais não originadas na mente, como fome e dor. A segunda, evitável, seriam justamente as crenças[4]. O pirronismo seria, então, uma filosofia terapêutica que busca a tranquilidade pela eliminação das crenças. Mesmo as perturbações inevitáveis, nos diz Sexto Empírico, único pirrônico cujos escritos sobreviveram, podem ser mitigadas[5]. Uma vez que tais perturbações, via de regra, estão associadas a crenças, a eliminação destas últimas elimina o componente evitável da perturbação[6]. Isto é exemplificado por um episódio supostamente ocorrido na vida de Pirro, relatado por Diógenes Laércio (IX.68): “Enquanto marinheiros inquietavam-se em razão de uma tempestade, ele, que estava sereno, recuperou ânimo apontando, no convés, um porquinho comendo e disse ser necessário ao sábio alcançar aquela imperturbabilidade”. A tranquilidade do porquinho deve-se à ausência de crenças que perturbam os marinheiros. Estas crenças são tanto factuais (a crença em um naufrágio iminente) como valorativas (a crença de que a morte é um mal).

A anedota remete a uma imagem recorrente na tradição cética: a assimilação do mundo a um mar revolto no qual nada é estável. As crenças seriam, assim, tentativas vãs de fixarem para o ser humano algo de real ou verdadeiro num mundo imponderável e mutável. Este aspecto do ceticismo de Pirro aparece de forma mais evidente no fragmento sobre a indiferença das coisas — atribuído ao discípulo de Pirro, Timão de Fliunte (320-230 a.C.) —preservado por Eusébio de Cesareia (260-340 d.C.). Segundo o fragmento, quem quer ser feliz precisa responder a três questões: 1) o que são as coisas por natureza, 2) que atitude devemos ter em face delas, 3) o que resultará para aquele que assumir esta atitude. As respostas de Pirro/Timão são “que as coisas são igualmente indiferentes, instáveis e indecidíveis. Por essa razão, nem nossas sensações, nem nossas opiniões são verdadeiras ou falsas”. A atitude adequada seria, então, “permanecer sem opiniões, inclinações e hesitações”, e o resultado desta atitude será “primeiro a afasia e, em seguida, a tranquilidade”[7]. Um ideal de felicidade orienta, assim, o ceticismo de Pirro. Esta felicidade é concebida como tranquilidade mental em face da instabilidade das coisas do mundo. Como toda crença é uma tentativa de fixar esta instabilidade, diferenciando uma coisa de outra através de um juízo sobre alguma coisa, as crenças são, em primeiro lugar, totalmente inadequadas como descrições do mundo e, em segundo, elas são tão instáveis como as próprias coisas às quais se referem. Nesta visão de mundo, a tranquilidade só pode ocorrer no recolhimento silencioso (afasia) de uma vida “adoxástica” (sem crenças)[8].

A anedota colhida por Diógenes Laércio que assemelha a tranquilidade do sábio pirrônico à de um porco revela duas críticas que sempre foram feitas aos pirrônicos: 1) a suspeita quanto à viabilidade de uma vida humana sem crenças e, caso isto seja possível, 2) a desejabilidade de tal vida. O problema aparece de forma cômica na maioria dos demais episódios relatados por Diógenes Laércio em seu capítulo sobre Pirro. Segundo Erastótenes de Cirene, “quando [Pirro] se assustou, tendo sido atacado por cães, respondeu ao que o acusava que é difícil despir-se completamente do humano” (Vidas, IX.66). Não somente a tranquilidade que costumava exibir[9]era difícil de ser mantida em situações tensas em que as paixões são dificilmente controláveis pela razão, mas a própria ação ordinária parece exigir uma infinidade de crenças. Outra fonte antiga relatada por Diógenes Laércio, Antígono de Caristo, dizia que Pirro “não se desviava nem se guardava de coisa alguma que, porventura, se encontrasse em seu caminho — carros, cães ou despenhadeiros —, nada confiando às sensações. Desse modo […] era salvo pelos conhecidos que o acompanhavam” (Vidas, IX.62)

Os relatos sobre a vida cética de Pirro variam muito nas fontes, refletindo um debate sobre a viabilidade da filosofia cética[10]. Embora os elementos atribuídos ao próprio Pirro sejam escassos, discípulos posteriores, como Enesidemo de Cnossos (século I), argumentam a viabilidade de uma vida pirrônica, interpretando e detalhando o reconhecimento por parte de Pirro do fenômeno (o que aparece). O pirrônico, assim, não questiona as sensações enquanto aparências, mas apenas a crença de que as coisas sejam por natureza tais como aparecem em circunstâncias específicas. O reconhecimento do que aparece seria suficiente para viabilizar a ação, que dispensaria qualquer juízo sobre a natureza do que aparece. O escopo fenomênico — argumentam estes pirrônicos — não se restringe ao sensível, incluindo também as crenças e valores tradicionais formadoras do pirrônico como de qualquer indivíduo humano.

OS CÉTICOS ACADÊMICOS

A outra vertente do ceticismo antigo também teve nas crenças o seu alvo principal, mas por motivos diferentes dos pirrônicos. Trata-se do que hoje denominamos “ceticismo acadêmico”, na época apenas “Academia”, a mesma fundada por Platão. No período em que era liderada por Arcesilau de Pitane (316-241 a.C.), a academia introduziu a epoche (suspensão do juízo), sobretudo em contraposição ao estoicismo. Segundo Cícero, nossa principal fonte sobre o ceticismo acadêmico, tanto Arcesilau como Zenão, fundador do estoicismo, consideravam a opinião (doxa) incompatível com a sabedoria, uma vez que o que é objeto apenas de opinião não possui a certeza necessária para garantir que se tem a verdade e que, portanto, não se comete erro. Zenão considerava que algumas percepções tinham a evidência necessária para garantir ao sábio a certeza de possuir a verdade. Chamava tais impressões de cognitivas por nos darem cognição do objeto. O sábio estoico deveria dar o seu assentimento somente a essas percepções cognitivas ocorridas em condições ideais de percepção, em que o objeto aparece de forma clara e distinta. A principal crítica que Arcesilau dirigia a Zenão era que mesmo tais percepções poderiam ser falsas, logo não podiam ser chamadas, com certeza, de cognitivas. Observava, por exemplo, que às vezes temos percepções em sonhos tão claras e distintas quanto as mais claras e distintas em vigília. Assentir mesmo à impressão supostamente cognitiva dos estoicos seria então uma precipitação, isto é, opinar e não conhecer. “Por essas razões”, disse ele, “ninguém deve declarar ou afirmar algo, nem o aprovar com o seu assentimento, mas deve sempre coibir e preservar de todo lapso a precipitação que é imensa quando se aprova algo ou falso ou incerto, e nada é mais torpe do que o assentimento e a aprovação tomarem a dianteira da cognição e apreensão[11].”

Para que a rejeição da impressão cognitiva estoica com base em argumentos epistêmicos leve à suspensão do juízo, a seguinte premissa normativa precisa ser adotada: o sábio só deve dar assentimento ao que for apreendido de forma certa e evidente pela razão. Uma vez que a crítica epistemológica mostra que nenhuma impressão satisfaz este critério, segue-se a suspensão do juízo sobre todas as coisas.

Teria Arcesilau, apesar do seu ceticismo, adotado esta visão normativa do sábio? Ou será que argumentava dialeticamente a partir da visão estoica do sábio? Estas duas interpretações que dividem os estudiosos de hoje já eram debatidas no seio da academia na época de Cícero, que atribui a Arcesilau a visão normativa do sábio. Cícero cita o silogismo que conclui pela epoche universal: “Se o sábio assentir a algo, alguma vez opinará. Mas o sábio não opina jamais. Logo, não assentirá a nada”. Arcesilau aprovava esta conclusão pois aceitava tanto a premissa maior [“se o sábio assentir a algo, alguma vez opinará”] como a menor (“o sábio não opina jamais”) (Ac II.67).

Cícero diz, então, que Zenão e Arcesilau estavam de acordo sobre a sabedoria ser incompatível com a opinião. “A principal força (vim) do sábio reside, concordando [Arcesilau] com Zenão, em não ser enganado (cavere ne capiatur) nem se ver no erro (ne fallatur videre) — pois nada é mais distante da concepção que temos dadignidade do sábio do que o erro, a leviandade e a precipitação” (Ac II.66). A divergência entre Zenão e Arcesilau diz respeito somente à premissa maior [“se o sábio assentir a algo, alguma vez opinará”]. Enquanto Zenão achava possível um assentimento não precipitado, que configurasse conhecimento (episteme) e não opinião (doxa), Arcesilau dizia que todo assentimento resultava em opinião. Qualquer que tenha sido a posição de Arcesilau, o fato — decisivo para a tradição, como veremos — é que Cícero enfatiza esta visão do sábio, que aparece como uma justificativa maior para a suspensão do juízo.

“Na nossa opinião”, Cícero fala em sua própria pessoa, “mesmo se algo pudesse ser percebido”, isto é, mesmo se os estoicos estivessem certos ao afirmar a existência da impressão cognitiva, “entretanto, o hábito de assentir parece perigoso e escorregadio (lubrica), e, portanto, já que se concorda que assentir a algo falso ou incerto é uma falta gravíssima, o melhor é sustar todo assentimento para não precipitar se prosseguir de forma temerária (irrefletida) (ne praecipitet si temere processerit) (Ac II.68).” Vemos, assim, que o ceticismo acadêmico ciceroniano se caracteriza por uma grande aversão ao erro. A filosofia é a forma de evitá-lo. Temos, então, uma visão da sabedoria na qual evitar o erro é mais importante do que encontrar a verdade.

O ceticismo acadêmico busca a eliminação das crenças. Primeiro porque, como não são racionalmente comprovadas, podem ser falsas. Além de trazerem o risco do erro, as crenças impedem o uso íntegro da razão.

Um uso da razão subsequente à adoção de crenças não verificadas racionalmente será necessariamente parcial, distorcido por estas crenças. Ao contrário, o uso da razão emancipada de crenças garante um exercício pleno desta faculdade, caracterizando uma integridade intelectual não somente como princípio normativo epistêmico (só dê assentimento ao que for racionalmente plenamente justificado), mas também como princípio antropológico e moral.

Somos mais livres e independentes, pois a nossa faculdade de julgar é íntegra e estamos livres de qualquer necessidade de defender dogmas prescritos quase como éditos. Pois os outros são atados antes de poderem julgar qual [doutrina] é melhor e em seguida formam juízos […] sobre coisas desconhecidas, seja sujeitando-se a algum amigo ou sob a influência de algum primeiro discurso que ouviram, e agarram-se como a uma pedra a qualquer doutrina a qual são trazidos pela tempestade. (Ac II.8)

Como no episódio de Pirro na nau ameaçada pela tempestade, encontramos aqui, novamente, a alegoria da tempestade das crenças. Mas enquanto o porto seguro de Pirro é uma indiferença cloxástica-axiológica não racional (comparada à do porco), o porto seguro dos acadêmicos é a autonomia e integridade do sujeito racional, emancipado de toda crença.

AGOSTINHO DE HIPONA (383-430)

A visão negativa das crenças dos acadêmicos é atacada por Agostinho no momento mesmo de sua conversão. O esforço agostiniano em compatibilizar a filosofia com o cristianismo exige uma reabilitação filosófica das crenças.

A primeira obra escrita por Agostinho após a sua conversão foi o Contra acadêmicos, uma espécie de ajuste de contas com os Acadêmicos de Cícero. O ceticismo acadêmico, tal como apresentado por Cícero, teve papel fundamental no processo psicológico da conversão de Agostinho[12].

Este papel foi inicialmente positivo e depois negativo. Positivamente, foi fundamental para a remoção de dois obstáculos à conversão: a adesão de Agostinho ao maniqueísmo e, de forma mais geral, ao materialismo. Negativamente, a, concepção racionalista do sábio comprometido com a integridade intelectual é um obstáculo maior à adesão a uma crença que se coloca como não racional[13]. A integridade intelectual apresenta três aspectos incompatíveis com a adoção plena do cristianismo: 1) o princípio normativo de que o sábio só deve dar o assentimento ao que for evidente para a razão; 2) uma concepção de sabedoria na qual evitar o erro é mais importante do que alcançar a verdade; e 3) mais geralmente, a autonomia racional do sábio alcançada não no assentimento a um corpo doutrinário, mas internamente, na própria integridade de suas faculdades[14].

A importância do ceticismo acadêmico na conversão de Agostinho aparece no detalhado relato, feito nas Confissões, das etapas que o levaram a aderir intelectualmente e institucionalmente à Igreja Católica Romana. Agostinho diz que quando se estabelece em Roma, proveniente de Cartago, descobre “que os mais prudentes dos filósofos eram os chamados Acadêmicos”[15]. Os céticos acadêmicos[16], continua Agostinho, fizeram-no “reter de maneira mais frouxa e menos comprometida as doutrinas [maniqueístas][17], até que encontrasse algo melhor” (v.10). Desde então, passa a defender a doutrina maniqueísta “sem o ardor de antigamente”, isto é, mitiga o seu assentimento. Este testemunho assemelha-se à continuação de uma passagem dos Acadêmicos de Cícero citada acima (II.8), na qual Cícero relata o que foi provavelmente a posição do seu mestre Filo de Larissa. Filo desloca o foco da argumentação cética do embate contra a impressão cognitiva dos estoicos (característica do ceticismo acadêmico de Arcesilau e Carnéades) para a busca do verossímil — entendido como o mais próximo da verdade. O acadêmico da escola de Filo assente ao verossímil, porém consciente de que se trata de uma mera opinião falível e não conhecimento (episteme).

Pois embora todo conhecimento seja cheio de dificuldades, e que a obscuridade das coisas mesmas e a debilidade de nossas faculdades tenham levado os mais antigos e doutores a desesperarem-se de possuir o que desejavam, nem eles desistiram nem nós abandonaremos por fatiga a nossa busca. Nossas discussões não têm outro fim senão, através da contraposição de teses opostas, extrair e exprimir seja a verdade seja o que lhe for mais próximo. (Ac II.8)

Agostinho encontra-se neste momento justamente em busca da verdade que ainda não encontrou, contrapondo as teses opostas maniqueístas e católicas. Sua adesão prévia plena, dogmática, ao maniqueísmo agora se mostra precipitada, parecendo-lhe o maniqueísmo não mais verdadeiro, mas somente mais verossímil do que o catolicismo. Embora não use a qualificação, podemos dizer que por causa da aproximação com os céticos acadêmicos o assentimento que passa a dar ao maniqueísmo é falibilista.

Agostinho passa, então, por este momento filoniano, mas preserva o ideal de sabedoria dos principais céticos acadêmicos (Arcesilau e Carnéades), seguindo neste ponto Cícero. O sábio deve, acima de tudo, evitar o erro e, portanto, jamais opinar. Diz Agostinho que se “envergonhava de [se] ter deixado enganar e iludir por tanto tempo com promessas de certeza e de ter proclamado como seguras tantas incertezas” (VI.4). Agostinho toma consciência de que sua adesão dogmática ao maniqueísmo era uma precipitação, isto é, um assentimento dado a algo como verdadeiro na ausência de justificação racional, em suma, uma mera opinião. “[O] que já era certo para mim é que [as doutrinas maniqueístas] eram incertas, e que eu as tinha considerado certas, quando perseguia a fé católica com minhas cegas acusações” (VI.4). A precipitação foi tomar como se fosse certo o que era somente verossímil. Ele diz que nesta altura ainda não considerava o maniqueísmo como falso, mas como incerto, expondo-se ao vexame do erro. Como diz Cícero descrevendo precisamente a precipitação, “nada é mais torpe do que o assentimento e a aprovação tomarem a dianteira da cognição e apreensão” (Ac. I.45).

O ceticismo acadêmico continua a influenciar Agostinho, afastando-o ainda mais do maniqueísmo. Contribui também para o afastamento definitivo o contato com Ambrósio, cuja leitura alegórica do Velho Testamente remove um obstáculo para a aceitação do catolicismo: a dificuldade para um cristão filosoficamente esclarecido em aceitar o sentido literal do Velho Testamento. Agostinho descreve então uma situação de equipolência entre o maniqueísmo e o catolicismo (“os argumentos de defesa das duas partes equivaliam-se”, v. 14), produzindo enfim — como no ceticismo antigo — a suspensão do juízo sobre o maniqueísmo, mas sem adesão ao catolicismo que se lhe opunha. Agostinho diz que ainda não podia conceber uma realidade espiritual e que, no que dizia respeito à realidade do mundo sensível, as opiniões de todos os filósofos se equivaliam. Assim, duvidando de tudo, à maneira dos acadêmicos […] flutuando entre todas as doutrinas, resolvi abandonar os maniqueus (v.14).” A experiência vergonhosa da adesão dogmática a uma doutrina falsa faz Agostinho adotar o princípio acadêmico da integridade intelectual: assentir somente ao evidente ou demonstrativo preservá-lo-ia de todo erro. Tal princípio é o novo obstáculo para a conversão, pois o cristianismo é uma religião histórica, cujo fundamento é um livro histórico, e todo evento histórico é incapaz de ser demonstrado. Para remover este último obstáculo, Agostinho faz uma promoção filosófica das crenças.

O fundamento da crença não é mais o individuo autônomo racional, capaz ou de bem usar sua razão preservando-se da opinião na suspensão do juízo ou de mal usá-la, precipitando-se na ilusão de ter alcançado racionalmente uma verdade que é, de fato, incerta. Nem cético nem dogmático, Agostinho torna-se cristão. Agostinho elabora filosoficamente uma noção de crença, alternativa tanto à opinião (doxa) como ao conhecimento (episteme), capaz de fazer a mediação entre a filosofia e a religião. A crença é o assentimento dado a algo que não se compreende racionalmente, mas que não constitui opinião (precipitação) porque, em primeiro lugar, trata-se de algo (a história) que não pode, por sua própria natureza, ser objeto de conhecimento demonstrativo. Em segundo lugar, diferentemente da opinião, a crença tem fundamento não na razão como o conhecimento, mas na autoridade dos testemunhos históricos[18]. Tanto nas Confissões como em uma obra específica sobre o tema — De utilitate credendi —, Agostinho argumenta que a maioria das nossas crenças são baseadas em testemunhos históricos — mais ou menos longínquos — e que se fôssemos restringir o assentimento somente ao que fosse evidente ou demonstrativo a vida seria inviável.

Em De utilitate credendi XI, Agostinho tematiza filosoficamente esta nova noção de crença. Distingue três atos cognitivos: intelligeri, opinari credere. Os dois primeiros são os reconhecidos pelos filósofos. A opinião é vergonhosa (turpissimum) como a caracteriza Cícero, pois ela é um assentimento precipitado a algo que, em princípio, poderia ser objeto de compreensão racional (intelligeri). Mas a crença é isenta de toda culpa porque seu objeto próprio é aquilo que não é passível de ser conhecido pela razão, mas pelo testemunho oral ou escrito. Sem a crença, fundada na confiança em testemunhos alheios, não teríamos qualquer segurança de quem são nossos pais, nossos amigos etc. Volto, então, ao processo psicológico de conversão de Agostinho relatado nas Confissões.

Convencia-me então de que, longe de repreender os que acreditam em tuas Escrituras, reconhecidas com tanta autoridade em quase todos os povos, são repreensíveis aqueles que não acreditam e a quem não se deve dar ouvidos se disserem: “Como sabes que estes livros foram dados aos homens pelo espírito do único Deus, que é a verdade?”. E isso se adequava tanto melhor à minha crença quanto é certo que nenhum argumento, por mais capcioso que fosse, de tantos filósofos que discordavam entre si, cujos livros estudei, tinha podido arrancar do meu coração a fé na tua existência (…) sendo os homens incapazes de encontrar a verdade mediante a razão pura, e tendo necessidade do apoio da Sagrada Escritura, eu já principiava a crer que não concederias tanto autoridade por toda a terra a estes Livros Sagrados se não tivesses querido que se acreditasse em ti e se buscasse a ti através deles. (Conf. VI.5)

O fato de serem nossas crenças em sua maioria subjetivamente certas — embora não demonstrativas mostra a inadequação do princípio acadêmico de integridade intelectual. A razão não pode ser critério único de assentimento, pois muitas coisas certas (como “sou o pai do Frederico”, “Adauto Novaes é o organizador deste livro”, “existe uma cidade chamada Roma” etc.) não são demonstráveis. Como dirá Pascal, tais crenças são adotadas pelo coração e não pela razão. Creio nestas coisas não porque elas são evidentes para a minha razão, mas porque confio no testemunho de familiares, amigos e historiadores. A adoção de tais crenças pressupõe confiança no testemunho alheio. A autonomia racional do sábio implícita na integridade intelectual é, assim, descartada como inviabilizando o acesso a verdades factuais que não tenham sido objeto de observação direta. Como a verdadeira religião para Agostinho é histórica, o ideal de sabedoria não pode ser o acadêmico. Assim é que a crítica principal que Agostinho faz aos céticos acadêmicos no Contra acadêmicos não é epistemológica, mas moral: ele ataca o ideal racionalista de sabedoria do acadêmico por excluir a via aberta ao ser humano para alcançar a verdade: a via da autoridade. O maior problema no ceticismo acadêmico, para Agostinho, está numa concepção de sabedoria que desestimula a busca da verdade pelo medo de errar. Contrariamente ao que pensam os acadêmicos, encontrar a verdade é muito mais importante do que evitar o erro. O preço da possibilidade de cometer um erro ao assentir ao que não é demonstrativo será fartamente compensado se a crença assentida for verdadeira. Mais ainda, no cristianismo agostiniano é uma arrogância pensar que o ser humano limitado e corrompido pelo pecado original possa evitar o erro por sua própria razão. Subordinada a razão à autoridade das testemunhas da Bíblia (de Cristo passando pelos apóstolos até os católicos contemporâneos de Agostinho), o que era obscuro nas Escrituras e, por conseguinte, motivo para suspensão do juízo por ser incerto e possivelmente falso — torna-se “mistério”: uma verdade que a razão não consegue discernir[19].

MICHEL DE MONTAIGNE (1533-1592)

Os céticos antigos caem em quase completo esquecimento durante os cerca de mil anos que vão da época de Agostinho (século V) até a segunda metade do século XV. No Renascimento, entretanto, verifica-se grande interesse nas obras dos céticos antigos, tanto acadêmicos como pirrônicos[20]. Além do trabalho erudito de recuperação do corpus scepticorum, o século XVI assiste também a um renovado interesse em Agostinho, que passa a ser uma das principais fontes do ceticismo antigo juntamente com Cícero, Sexto Empírico, Diógenes Laércio, Plutarco e Galeno.

Entre os diversos autores renascentistas que se interessaram pelo ceticismo, o mais importante e influente foi Montaigne. O ceticismo se faz presente em praticamente todos os ensaios dos Livros II e III, especialmente na “Apologia de R. Sebond” (II, 12).

Apesar da grande quantidade de estudos sobre a Apologia, pouca ênfase tem sido dada ao contexto muito particular de sua elaboração: as guerras de religião na França[21]. A “Apologia” é um ensaio completamente atípico de Ensaios. Destoa de todos os outros pelo tamanho desproporcional e pelo fato de tratar de questões teológicas. Montaigne diz, um tanto constrangido, que não pode evitar tais questões dado o objetivo específico do texto — outro ponto que o diferencia dos demais ensaios —, a saber, responder às críticas feitas ao Liber creaturarum do teólogo espanhol Raymond Sebond [ou Ramon Sibiuda], que ele traduziu para o francês a pedido do pai[22]. A motivação da tradução e, provavelmente, das respostas às objeções é a polêmica religiosa. Montaigne dá conselhos no texto diretamente a uma senhora que se acredita ser a princesa católica Marguerite de Valois[23], irmã do rei católico da França Henri Ill, então esposa do protestante Henri de Navarre[24]. Na época em que a Apologia foi escrita (em torno de 1580), Henri de Navarre era governador da região da França que incluía Bordeaux (cidade de que Montaigne foi prefeito) e Montaigne, seu Chevalier de Chambre. Assim é que, ao aconselhar Marguerite de Valois sobre a questão mais fundamental da época, Montaigne estava simplesmente exercendo o seu ofício[25].

Na Apologia, Montaigne retoma e radicaliza o debate em torno do princípio de integridade intelectual combatido por Agostinho e defendido pelos céticos acadêmicos. Montaigne vê a oportunidade do pensamento de Agostinho na crise intelectual gerada pela Reforma. Como se sabe, a teologia agostiniana é reivindicada pelos reformadores como a genuína teologia cristã que teria sido corrompida pela Escolástica. É, portanto, uma estratégia hábil de Montaigne radicalizar a posição agostiniana sobre a não subordinação das crenças à razão no embate contra os reformadores.

Pois Santo Agostinho, arrazoando contra estas pessoas [racionalistas], tem a oportunidade de criticar sua injustiça por considerarem falsas as partes de nossa crença que nossa razão fracassa em estabelecer; e para mostrar que muitas coisas podem ser e ter sido cuja natureza e causas nosso raciocínio não consegue fundamentar, destaca-lhes certas experiências conhecidas e indubitáveis nas quais o homem admite nada ver. (II, 12, 176)

Ora, são justamente os reformadores que assumem a postura racionalista em matéria de religião na época de Montaigne, exigindo razões para o assentimento a dogmas católicos como o da eucaristia. Entretanto, os tempos são outros e muito mais graves. Montaigne vê como mais perigosos os racionalistas reformadores do século XVI do que os racionalistas maniqueístas da época de Agostinho. Os reformadores são mais agressivos e arrogantes segundo Montaigne, subordinando o poder infinito de Deus aos princípios de nossa razão finita[26]. A Reforma é caracterizada como um “início de doença [que] facilmente degeneraria num execrável ateísmo” (II, 12, 161-162). Como o fundamento de todos os dogmas religiosos é a autoridade, não sendo possível para a razão humana discriminar de forma segura aqueles que seriam razoáveis dos não razoáveis,

o vulgo […] depois que alguns artigos de sua religião foram postos em dúvida […] não tarda em jogar comodamente na mesma incerteza todas as outras partes de sua crença, que não tinham dentro dele mais autoridade nem fundamento do que aquelas que lhe foram abaladas; e sacode como um jugo tirânico todas as ideias que recebera pela autoridade das leis ou pela reverência ao antigo costume, […] empenhando-se daí em diante em não aceitar coisa alguma a que não tenha interposto seu julgamento e dado consentimento pessoal. (II, 12, 162)

A introdução do princípio de integridade intelectual no domínio religioso é desastrosa, pois, como já observou Agostinho, as crenças religiosas são indemonstráveis. Montaigne radicaliza a posição de Agostinho (que considerava que algumas coisas podiam ser conhecidas), argumentando que a razão é incapaz de fundamentar qualquer crença. Seguindo neste ponto os céticos acadêmicos, a aplicação rigorosa do princípio de integridade intelectual levaria não ao ateísmo, mas à suspensão universal do juízo. Entretanto, a exata observação do princípio da integridade intelectual é rara mesmo entre os filósofos (talvez até entre os céticos), quanto mais entre os homens comuns (o vulgo). O que geralmente ocorre é o assentimento a algo que tem a aparência de razoável, mas que facilmente, por uma infinidade de circunstâncias, pode se revelar não razoável para o mesmo indivíduo. Assim, a mera limitação agostiniana da razão é insuficiente para contrapor-se à ameaça colocada pela Reforma. Diz então Montaigne “(…) que é preciso fazer mais [do que faz Agostinho] e ensinar-lhes [aos racionalistas] que, para denunciar a fraqueza de sua razão, não é preciso ficar selecionando exemplos raros […] todos os assuntos por igual e a natureza em geral renegam sua jurisdição e intermediação” (II, 12, 176).

Isto é, diferentemente de Agostinho, cujo ceticismo é limitado aos sentidos, Montaigne apresenta um ceticismo mais amplo e radical que coloca em xeque a própria razão. Não tratarei aqui dos diversos aspectos desta crítica cética à razão, limitando-me ao que me parece mais diretamente relevante para nosso tema: o ataque à verossimilhança ou razoabilidade aparente das crenças. O ataque de Montaigne expõe a fragilidade epistêmica destas crenças verossímeis, ao mesmo tempo em que revela sua força psicológica[27].

[A razão] não faz mais que extraviar-se por toda parte, mas especialmente quando se imiscui nas coisas divinas. […] vemos diariamente — por pouco que ela vá contra a vereda habitual e se desvie ou se afaste do caminho traçado e batido pela Igreja — como ela logo se perde, se embaraça e se enreda, girando e flutuando nesse mar vasto, turvo e ondulante das ideias humanas, sem freio e sem objetivo. Tão logo se perde desse caminho largo e comum, ela vai se dividindo e se dissipando por mil estradas diversas. (II,12, 280-281)

Montaigne associa a multiplicação de seitas protestantes ao racionalismo religioso. Contrariamente à posição dos reformadores, a razão não é capaz de fixar crenças. Ao contrário, Montaigne vê a razão como subordinada a crenças totalmente instáveis, determinadas por contingências e fatores não racionais. Esta instabilidade é particularmente notável no caso das guerras de religião na França da época de Montaigne. Crenças controversas, precárias e não fundamentadas são, neste contexto, literalmente vitais. O conselho que Montaigne dá a Marguerite de Valois é o de permanecer católica mesmo em face de argumentos verossímeis dos hábeis apologistas reformadores que frequentam a corte do marido.

Nosso espírito é um instrumento errante, perigoso e imprudente; é difícil juntar-lhe ordem e medida. E em minha época os que têm alguma rara excelência acima dos outros [os reformadores] […] vemo-los quase todos excedendo-se em desregramento de ideias e de costumes. (…) Por isso vos será melhor vos comprimirdes no andamento costumeiro, qualquer que seja, do que alçardes voo nessa permissividade desenfreada. Mas se algum desses novos doutores decidir fazer-se de engenhoso em vossa presença, à custa de sua salvação e da vossa, para vos livrardes dessa perigosa peste que se espalha diariamente em vossas cortes, esse preventivo, na extrema necessidade, impedirá que o contágio de tal veneno prejudique a vós e aos que vos assistem.(II, 12, 339-340)

O ceticismo radical da Apologia é este preventivo que se justifica como último recurso contra os reformadores que se valem da volubilidade da razão para tornarem os princípios de Calvino verossímeis. Montaigne sugere que se a princesa ou alguém de sua corte não conseguir contrapor os argumentos protestantes com argumentos católicos mais verossímeis, o prudente será desconsiderar a verossimilhança como critério de opção religiosa, uma vez que a verossimilhança resulta das operações de uma razão cambiante. Com efeito, imediatamente na sequência, Montaigne critica a verossimilhança acadêmica, retomando uma das críticas que Agostinho faz aos acadêmicos em Contra acadêmicos II.16 e 19-21, a saber, que a verossimilhança pressupõe a verdade.

Mas como eles se deixam dobrar pela verossimilhança, se não conhecem a verdade? Como conhecem a aparência de algo cuja essência não conhecem? Ou podemos julgar absolutamente ou absolutamente não podemos. Se nossas faculdades intelectuais e sensíveis não têm fundamento nem base, se não fazem mais que flutuar e girar ao vento, é inútil deixarmos qualquer parte de sua ação arrebatar nosso julgamento, qualquer que seja a aparência que esta pareça apresentar-nos; e a atitude mais segura para nosso entendimento, e a mais bem-sucedida, seria aquela em que ele se mantivesse sereno, reto, inflexível, sem tremor e sem agitação. (II, 12, 344)

Se a verdade está em Deus[28], isto é, se ela é totalmente transcendente, nossas faculdades são desqualificadas também para estabelecer verossimilhanças (entendida, como em Agostinho, como semelhante à verdade). Deste modo, o que aparece para a razão como verossímil é desprovido de fundamentação epistêmica. A volubilidade da razão implica a volubilidade da verossimilhança. Ontem o catolicismo romano aparecia verossímil. Hoje o calvinismo aparece verossímil. O que aparecerá verossímil amanhã? Se aderirmos ao verossímil aderiremos a uma doutrina que, depois, possivelmente revelar-se-á falsa para os mesmos instrumentos que antes a mostravam verossímil. A adesão ao que quer que seja, verossímil ou não, deve ser falibilista para não ficarmos à deriva na tempestade das crenças[29].

A razão nunca é íntegra. Vai sempre a reboque do fluxo incessante de crenças e das paixões.

“Nunca estamos sem doença. As febres têm seu calor e seu frio; dos efeitos de uma paixão ardente caímos nos efeitos de uma paixão friorenta” (II,12,355). Nossa fragilidade se revela na facilidade com que fatores os mais insignificantes determinam nossa percepção das coisas. Não há um ponto de vista humano epistemicamente privilegiado, um porto seguro ao abrigo do fluxo incessante das crenças[30].

Se a razão já havia sido desbancada pela crença por Agostinho (Montaigne repete a posição agostiniana na resposta à primeira objeção a Sebond na ARS)[31], agora a crença também fica abalada. Montaigne recomenda permanecer nas antigas crenças da Igreja Católica não por serem verdadeiras (como pretende Agostinho, reivindicando a autoridade como fundamento da verdade). Ao contrário, são circunstancialmente até menos verossímeis que as calvinistas. A posição recomendada é uma adoção distanciada epistemicamente, falibilista.

Posto que um homem sábio pode se enganar, e cem homens, e muitas nações, e mesmo a natureza humana, segundo nós, se engana durante vários séculos nisto ou naquilo, que garantia temos de que por vezes ela deixe de se enganar e que nesta época ela não esteja enganada? (II, 12, 365)

Após séculos e séculos de fortalecida autoridade da crença cristã, conferida, segundo Agostinho, pela quantidade de pessoas nas várias partes do mundo que creem na Bíblia, este fundamento da autoridade sofre dois abalos terríveis na época de Montaigne, um externo (a descoberta do Novo Mundo) e um interno (a Reforma). O consenso de que fala Agostinho como fundamento da autoridade da Bíblia já não está presente. Sua ruptura pela Reforma abalou a base racional de tal fundamento de adesão (que Agostinho reivindica). Podemos entender agora por que Montaigne vê seus oponentes racionalistas como muito mais perigosos do que os de Agostinho. O racionalismo da época de Agostinho (o maniqueísmo) atingia somente uma elite intelectual de cristãos, diferentemente do cenário das lutas religiosas na França. Do ponto de vista cultural, o contexto agostiniano é de franco crescimento da Igreja Católica, através de sucessivas conversões de povos inteiros. O contexto montaigniano é, ao contrário, de crise da Igreja Católica, com sucessivas e crescentes defecções para as igrejas protestantes. Nesse naufrágio, nem a razão nem a crença podem servir de tábua de salvação.

MACHADO DE ASSIS (1838-1908)

Concluo este percurso pela história do ceticismo de forma breve com um autor literário do século XIX que transformou esta problemática que vimos relatando em Agostinho e Montaigne numa das mais belas tramas da literatura universal. Falo de Machado de Assis e de sua obra-prima, Dom Casmurro.

Machado de Assis possuía em sua biblioteca pessoal as Confissões de Santo Agostinho e os Ensaios de Montaigne[32]. Há evidências, na obra de Machado, de que ele fez uma leitura atenta de ambos. Quincas Borba, pouco antes de morrer ensandecido, escreve a Rubião que era Santo Agostinho. Atesta isto com algumas coincidências na vida de ambos, colhidas nas Confissões. Chega mesmo a citar o livro e o capítulo em que Agostinho trata do problema do mal (onde refuta a solução maniqueísta dos dois princípios)[33]. Não seriam as memórias de Bento Santiago uma espécie de Confissões? Mas confissões apresentadas no registro dos Ensaios. Com efeito, Bento Santiago faz uma pintura de si em Dom Casmurro[34]É o próprio autor quem revela o seu modelo. “Poucos teriam ânimo de confessar aquele meu pensamento da Rua de Mata-Cavalos [a saber, que se a mãe doente morresse estaria livre do seminário e pronto para entregar-se aos braços de Capitu]. Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas mes gestes que j´escris; c’est moi, c’est mon essence. Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal” (I, 878).

Pensar nos Ensaios de Montaigne como modelo de Dom Casmurro ajuda a esclarecer o seu enigma. O narrador não busca desviar o leitor da verdade (a terrível injustiça de que a inocente Capitu foi supostamente vítima), dando verossimilhança à crença que tinha na época dos acontecimentos na culpabilidade da ex-mulher. Ele relata suas crenças, exibindo toda a fragilidade e instabilidade delas. As confissões de Bento, sua pintura de si, é a rememoração de sua deriva e naufrágio no oceano das crenças. A razão vai a reboque das paixões e dos acasos. Poderíamos citar novamente Montaigne: “nunca estamos sem doença. As febres têm seu calor e seu frio; dos efeitos de uma paixão ardente caímos nos efeitos de uma paixão friorenta” (Ensaios II, 12, 346). Paixão ardente do Bentinho da juventude, paixão morna do Bento Santiago da maturidade, paixão friorenta do Casmurro da velhice. Nunca estamos sem paixão e cada uma determina uma visão específica. O verossímil decorre de cada condição subjetiva e, como sempre estamos numa ou noutra disposição, não há acesso à verdade. Como diz o autor Casmurro, a “verossimilhança […] é muita vez toda a verdade” (I, 816). Desconectados de uma ciência da verdade (episteme), resta-nos a doxa, e esta é totalmente infundada epistemologicamente, embora imperiosa psicologicamente. As crenças fazem com que Bento oscile como a nau na tempestade. De repente Capitu lhe aparece como a melhor das esposas e a vida é pura felicidade. De repente Capitu lhe aparece como a mais traiçoeira das esposas e a vida é um pesadelo. A razão pode dar verossimilhança a estas duas aparências opostas que geram crenças opostas, e Bento fica à deriva, ora acreditando uma coisa, ora acreditando outra[35]. Eventos contingentes irrelevantes — por exemplo, um cavaleiro passa diante da casa de Capitu, que olha para ele — determinam mudanças subjetivas radicais.

Montaigne diz no ensaio sobre o arrependimento que “o mundo não é mais que um perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito” (III, 2, 27). Brás Cubas, refletindo sobre a vaidade e finitude das coisas (tudo acaba ao longo de sua vida, as pessoas queridas, as paixões amorosas, as ambições e projetos políticos), diz o seguinte a propósito da “ideia fixa” (o emplasto anti-hipocondríaco) que o matou (distraindo-o de uma corrente de ar): “Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo [como as ideias fixas]: talvez a lua, talvez as Pirâmides do Egito” (I, 514). Bento retoma a metáfora montaigniana para falar da finitude e mutabilidade não das coisas, mas das crenças, cuja aparente fixidez é mero efeito de um delírio dogmático. “Agora que penso naqueles dias de Andaraí e da Glória, sinto que a vida e o resto não sejam tão rijos como as Pirâmides” (I,908). Diferentemente de Brás Cubas, Bento não testemunhou o fim das coisas. Sua vida oscilou da felicidade à infelicidade sem que mortes inesperadas tenham ocorrido e projetos tenham sido frustrados. O que mudou foi a sua crença a respeito de Capitu. Crença que ele mostra ser inteiramente precária do ponto de vista epistemológico. A instabilidade do mundo é menos a das coisas do que a das crenças ou, melhor dizendo, o mundo é instável e precário porque as crenças o são.

Quando Bento diz a Capitu que Ezequiel não é seu filho, esta lhe diz o seguinte: Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança […] A vontade de Deus explicará tudo […] Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio […] Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada” (I, 936).

Para Montaigne, não temos acesso à verdade porque ela está em um Deus totalmente transcendente. Em Machado a verdade não está sequer neste Deus[36]. Argumentando que não se pode exigir provas demonstrativas da Bíblia para crer, vimos que Agostinho faz uma análise da crença como fundamentada na confiança no testemunho alheio. Nas Confissões, a conversão ocorre quando Agostinho considera quantas coisas tinha que crer com base na mera confiança nos outros. Em particular, considerou, “como estava absolutamente seguro da identidade dos meus pais, o que não poderia saber sem acreditar no que ouvia” (Confissões, VI.5)[37]. Bento não acredita no que ouve de Capitu sobre sua identidade de pai de Ezequiel. “E assim”, diz Agostinho em De fide rerum quae non videntur (Sobre a fé nas coisas que não são vistas), se formos acreditar somente no que é evidente para a razão ou para os sentidos, “nem o marido amará a esposa nem vice-versa se não acreditam no amor recíproco. Nem desejarão ter filhos […]” (II, 4).

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. […] Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (I, 841)

Na impossibilidade de uma fundamentação racional das nossas crenças mais fundamentais (como já mostrara Agostinho) e num quadro de instabilidade radical destas crenças (como já mostrara Montaigne), resta a Bento tornar-se autor casmurro. Adota um ponto de vista retirado, fora da ressaca que afogou Escobar. Este ponto de vista de náufrago[38], de onde escreve suas memórias, lhe dá não a onisciência (a verdade) das coisas (este era, segundo Montaigne, o ponto de vista de Deus totalmente vedado aos homens), mas a recordação das verossimilhanças que o deixavam à deriva no “turbilhão da vida”. Como diria o defunto-autor Brás Cubas, “este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho, sem exceção nem piedade” (I, 623).

Notas

  1. A tradição cética só não é influente durante o período medieval. Entre as propostas contemporâneas de uma filosofia cética podem ser citados os “neopirronismos” propostos independentemente por Robert Fogelin (Pyrrhonian Reflections on Knowledge and Justification, Oxford: Oxford University Press, 1994) e, no Brasil, Oswaldo Porchat Pereira (Rumo ao ceticismo, São Paulo: Unesp, 2006). 
  2. Inspiro-me parcialmente, no caso de Montaigne, nos livros de Frédéric Brahami, Le Scepticisme de Montaigne (Paris: PUF, 1997) e Le Travail du Scepticisme: Montaigne, Bayle, Hume (Paris: PUF, 2001), propondo, entretanto, uma leitura diferente da “Apologia de Raymond Sebond” e enfatizando outros aspectos do ceticismo montaigniano. 
  3. Cf. Sexto Empírico, Esboços do Pirronismo, 1.8, 12, 25-30 e 111.235-238. 
  4. Não temos indicações de que o próprio Pirro, que nada escreveu, tenha feito esta distinção, relatada por Sexto Empírico alguns séculos depois de Pirro, entre uma fonte evitável e outra inevitável das perturbações. 
  5. Pirro é citado por Sexto como exemplificando de forma notável o ideal da vida pirrônica (PH 1.7). Neste sentido podemos interpretar a seguinte anedota relatada por Diógenes Laércio sobre sua vida: “Conta-se que, ao lhe aplicarem um remédio antisséptico em um corte e lhe cauterizarem uma ferida, sequer franziu o cenho” (Citado da “Vida de Pirro” de Diógenes Laércio, capítulo IX.67, traduzida por Gabriela G. Gazzinelli. In: A vida cética de Pirro, São Paulo: Loyola, 2009, p. 165. Todas as citações da “Vida de Pirro” são desta tradução.) 
  6. Sexto, que foi médico, diz que algumas vezes os pacientes suportam uma cirurgia ao passo que um observador desmaia por ter a crença de que se trata de uma experiência terrível (PH 111.236). 
  7. O fragmento é traduzido diretamente do grego por G. Gazzinelli, op. cit., p. 105. 
  8. Sobre a afasia no ceticismo de Pirro e no ceticismo moderno, ver o meu artigo “O silêncio dos céticos”. In: Adauto Novaes (org.), O silêncio dos intelectuais, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 273-292. 
  9. O discípulo de Pirro, Timão de Fliunte, elogiou o mestre em vários poemas: “Ó velho, ó Pirro, como e partir de que encontraste uma fuga da servidão às opiniões e vacuidade dos sofistas?” “Isso, ó Pirro, meu coração deseja aprender, como, sendo mortal, facilmente conduzes uma vida tranquila, único guiando os mortais à maneira de um deus” (Vidas, ix.65). 
  10. O estudo de Gabriela G. Gazzinelli acima citado é exemplar neste e em vários outros aspectos relacionados ao ceticismo e à vida de Pirro. 
  11. Cícero, Academica 1.45, Cambridge: Harvard University Press, 1933. 
  12. Agostinho era professor de retórica, domínio no qual a maior autoridade já era Cícero. Cícero foi fundamental não somente como fonte da retórica como da filosofia. Diz Agostinho (Confissões III.4) que foi a leitura do Hortênsio de Cícero (obra hoje desaparecida) que o despertou para a filosofia enquanto busca da sabedoria. 
  13. Nas palavras de um ilustre discípulo moderno de Agostinho: “Quem então recriminará os cristãos por não poderem explicar racionalmente a sua crença, eles que professam uma religião que não podem reduzir à razão; eles declaram ao expô-la ao mundo que é uma estultice, stultitiam, e depois vos queixais de que eles não a provam. Se a provassem, não manteriam a palavra. É tendo falta de prova que eles não têm falta de sentido”. Pascal, Pensamentos, São Paulo: Martins Fontes, 2001, frag. 418 Lafuma. 
  14. Agostinho é sabidamente o principal autor da doutrina da corrupção humana pelo pecado original. Desenvolveu esta doutrina sobretudo em sua polêmica antipelagiana. 
  15. Santo Agostinho, Confissões, São Paulo: Paulus, 1984, v.Io. Todas as citações das Confissões são desta edição, com modificações. A Academia enquanto instituição já havia desaparecido na época de Agostinho. Roma foi, entretanto, o último centro da Academia, onde Filo de Larissa escreveu livros que, segundo Harold Tarrant (Scepticism or Platonism? The Philosophy of the Fourth Academy, Cambridge: CUP, 1985), marcaram o platonismo médio da época de Agostinho, que ele caracteriza como uma síntese entre o platonismo doutrinário e um ceticismo metodológico. 
  16. Na verdade Agostinho não os considerava céticos, pois lhes atribuía um platonismo doutrinário esotérico. O ceticismo seria somente exotérico, voltado contra as filosofias sensualistas e materialistas da época, em particular o estoicismo. Sobre o platonismo associado aos últimos acadêmicos, em particular Filo de Larissa, além do livro de H. Tarrant acima citado, ver também Carlos Levy, Cicero Academicus. Recherche sur la philosophie cicéronienne (Roma: École Française de Rome, 1992) e Jan Opsomer, In Search of the Truth. Academic Tendencies in Middle Platonism (Bruxelas: Paleis der Academieën Hertogsstraat, 1998). 
  17. O maniqueísmo de Agostinho derivava de sua reflexão sobre o problema do mal. A formação cristã que tinha “obrigava-[o] a crer que um deus bom não podia ter criado uma natureza má. Concluía daí que devia haver duas substâncias opostas entre si, ambas infinitas, sendo porém a má em medida mais limitada e a boa em medida mais ampla”. (Confissões, v.20) 
  18. Ver Etienne Gilson, Introdução ao estudo de Santo Agostinho, São Paulo: Discurso Editorial/Paulus, 2007, pp. 61-82. 
  19. “E, assim, eu já atribuía à profundeza dos mistérios as obscuridades que antigamente costumavam impressionar-me” (Confissões, VI.8). 
  20. Ver Charles Schmitt, Cicero Scepticus: A Study of the Influence of the Academica in the Renaissance, Haia: Martinus Nijhoff, 1972; Richard Popkin, História do ceticismo de Erasmo a Spinoza, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000; Gianni Paganini; José Maia Neto (orgs.), Renaissance Scepticisms, Dordrecht: Springer, 2009. 
  21. O trabalho de Popkin citado acima é uma exceção, mas limita-se à relevância do problema epistemológico pirrônico da justificação de um critério de verdade. 
  22. Michel de Montaigne, Ensaios, São Paulo: Martins Fontes, 2000, V. II. 12, 13. 164. 
  23. Ver Joseph Coppin, “Marguerite de Valois ç le Livre des Créatures de Raymond Sebond”, Revue du xvi siècle, 1923, n. 50, pp. 57-66. 
  24. Marguerite de Valois era defensora e praticante das letras. Ver Éliane Viennot, Marguerite de Valois: histoire d’une femme, histoire d´un mythe, Paris: Payot, 1993. 
  25. Montaigne atuou como mediador entre Henri de Navarre e o poder central católico. Detalhes e documentos relativos a esta mediação, incluindo cartas trocadas entre Montaigne e Henri de Navarre, são dados por Alphonse Grün, La Vie Publique de Montaigne: étude biographique (Paris: Amyot, 1855), pp. 377-395. O casamento de Marguerite com Henri de Navarre ficou célebre pela sangrenta noite de São Bartolomeu (12 ago. 1572), quando os católicos aproveitaram a presença dos convidados protestantes para massacrá-los. Henri de Navarre assumiu o trono francês como Henri IV em 1589, iniciando a dinastia dos Bourbon, e se converteu ao catolicismo em 1593. O Édito de Nantes, que concedeu tolerância aos protestantes, é de 1598, um ano após a morte de Montaigne. 
  26. “[n]as disputas que acontecem atualmente em nossa religião, se pressionardes demais os adversários eles vos dirão abertamente que não está no poder de Deus fazer que seu próprio corpo esteja no paraíso e na Terra e em vários lugares ao mesmo tempo” (II, 12, 292). 
  27. O conceito de verossimilhança é uma das traduções (a outra é provável) de Cícero para o critério — inicialmente prático — acadêmico do pythanon. Uma impressão provável ou verossímil é uma que induz ao assentimento pela sua plausibilidade, mas que não traz marcas evidentes de verdade. Ver Cícero, Acadêmicos 11.99, e Sexto Empírico, Adversus Mathematicos VII.166-189. 
  28. Ensaios, II, 12, 313. 
  29. “Se amiúde me vi traído por essa aparência, se minha pedra de toque [a razão] costuma se mostrar falsa e minha balança parcial e injusta, que segurança posso ter nesta vez mais que nas outras? […] No entanto, que a fortuna quinhentas vezes nos mude de lugar, que não faça mais que, como a um vaso, esvaziar e encher incessantemente nossa crença com outras e outras opiniões, sempre a atual e mais recente é a certa e infalível. Por esta é preciso abandonar os bens, a honra, a vida e a salvação. […] O que quer que nos preguem, o que quer que aprendamos, deveríamos lembrar-nos sempre de que é o homem que dá e o homem que recebe […] Apenas as coisas que nos vêm do céu têm direito e autoridade de convicção […] Não importa o que acolhêssemos no entendimento, deveríamos lembrar que amiúde acolhemos nele coisas falsas, e por meio desses mesmos instrumentos que amiúde se contradizem e se enganam (II,12, 346-347). 
  30. “Se a natureza encerra nos termos de seu andamento habitual, como todas as outras coisas, também as crenças, juízos e as opiniões dos homens; se eles têm sua revolução, sua estação, seu nascimento, sua morte, como os repolhos; se o céu os agita e gira à vontade, que autoridade magistral e permanente lhes atribuiremos?” (II, 12, 364). 
  31. Esta objeção é que não se pode buscar apoiar a fé na razão. A resposta agostiniana de Montaigne é que, embora de fato a mera razão não possa estabelecer a fé sobrenatural, ela pode ter um papel de fortificação de uma fé meramente humana. 
  32. Machado possuía uma tradução francesa das Confissões e uma edição francesa de 1870 dos Ensaios. Cf. José Luis Jobim (org.), A biblioteca de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks, 2001), respectivamente itens 55 e 500 do inventário da biblioteca de Machado feito por Jean-Michel Massa. 
  33. Quincas Borba afirma que Agostinho está certo em recusar qualquer positividade do mal, mas discorda que seja um “desvio da vontade”, pois o mal “nem mesmo existe”. O pessimismo agostiniano contrasta radicalmente com o otimismo humanitista. Machado de Assis, “Quincas Borba”. In: Obras Completas (Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962), v. I, pp. 649-650. Todas as citações de Machado são desta edição. 
  34. “Está aqui um livro de boa-fé, leitor. […] Quero que me vejam aqui em minha maneira simples, natural e habitual, sem apuro e artifício: pois é a mim que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e minha maneira natural, tanto quanto o respeito público mo permitiu. (…) Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria do meu livro” (Ensaios, “Ao leitor”, pp. 3-4). 
  35. Ver, por exemplo, os capítulos “Dúvidas sobre dúvidas” e “Cismando”. 
  36. Os primeiros contos e poemas de Machado são claramente cristãos, em clara contraposição aos grandes romances da segunda fase, em particular as Memórias póstumas. 
  37. Fides ex auditu [A fé vem da audição] (Carta aos Romanos, x.17). 
  38. A onda da vida trouxe-nos [Brás Cubas e Lobo Neves] à mesma praia [a Câmara dos Deputados], como duas botelhas de náufragos” (I, 620). 

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