1999

Céu de Capricórnio e tristeza do Brasil

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Em “Tristes trópicos”, Claude Lévi-Strauss reconhece nos Nambikwara, do Mato Grosso, o homem em “estado de natureza”. Nessa condição originária, a benevolência universal apresenta-se como lei e é, antes de mais nada, uma experiência vivida na forma de visão direta. Daí a devoção de Lévi-Strauss às “Confissões” de Rousseau. Autobiografia e diário de viagem constituem, no filósofo e no etnólogo, um “logos” comum, já que, para ambos, o que está em jogo é a compreensão do Outro, que parte da autointerpretação. Quem elabora suas vivências em pensamento é, a um só tempo, o escritor e o personagem da narrativa. “Toda autobiografia” – escreve Jean Starobinski – “é uma autointerpretação”. Seria então inconveniente procurar a veracidade da crônica nos três princípios que fundaram a cientificidade moderna: o da identidade, o da não-contradição e o do “terceiro excluído”. Mais adequado seria considerar as noções de espaço, tempo e do Outro que habitam o imaginário ocidental, assim como observadas já em Heródoto, sobretudo quando narra, detalhada e respeitosamente, os costumes dos egípcios, dando a conhecer, por contraste, a própria Grécia. “Entre os egípcios, as mulheres” – escreve Heródoto –  “compram e vendem, enquanto os homens ficam em casa a tecer […]. Os homens carregam os fardos em suas cabeças, mas as mulheres os carregam nos ombros […]. Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de divindades. Os filhos não são compelidos contra sua vontade a sustentar seus pais, mas as filhas devem fazê­lo mesmo sem o querer.

Diferencia-se o homem primitivo do “homem do homem” através da artificialidade, que gera ilusões e injustiças. É a violência da obra da contranatureza ou da civilização. “É nas mãos do homem” – escreve ainda Starobinski – “e não em seu coração que tudo degenera. Suas mãos trabalham, mudam a natureza, fazem história.” A lógica do coração segue um “princípio de natureza” – a piedade natural, identificação inata com seu semelhante – que os costumes mais depravados ainda não destruíram. É ela que induz, sem reflexão, ao socorro dos sofredores. É um sentimento tão natural que mesmo os animais mais ferozes dão dela algum sinal. É assim que, segundo Rousseau, quando em alguma parte eles encontram o corpo de algum animal da mesma espécie, “dão-lhe uma espécie de sepultura”.

Os Nambikwara são sósias do homem rousseauniano. A força selvagem, a acuidade dos sentidos, a nudez, a despreocupação, a paixão indolente, a indiferença acerca do futuro – tudo isso concorreria para a reconstituição do homem “tal como deve ter sido” ao “sair das mãos da natureza”. A descrição do reino natural – a fartura de seus bens, a paisagem da floresta, a limpidez do ar, a imensidão do céu… – constitui um “paraíso perdido”. Daí o luto da perda do tempo de felicidade, inocência e de narcísico repouso. Em contrapartida, desigualdade e história se implicam. Eis por que também Lévi-Strauss associa a história do Eu ao devir da humanidade. “O estudo desses selvagens” – escreve Levi-Strauss – “traz outra coisa além da revelação de um estado natural utópico, ou da descoberta da sociedade perfeita no coração da mata; ajuda-nos a construir um modelo teórico da sociedade humana que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas com  a ajuda do qual poderemos discriminar o que há de inato e de artificial na natureza atual do homem[…]. O homem natural não é nem anterior nem exterior à sociedade.”

Note-se que Lévi-Strauss não usa o termo “primitivo”, já que ele traz em si algo de “rudimentar”. Prefere tratar, por exemplo, do pensamento selvagem, em contraste com o ocidental. É selvagem porque exuberante e avesso a qualquer forma de dominação ou abstração epistemológica e quantificadora. Se o homem civilizado perdeu as referências de inserção no mundo – seu lar antes protegido por deuses ou Deus –, ele se encontra em caminhos que não levam a lugar nenhum.

Os heróis e os mitos fundadores das narrativas dos primitivos, ao contrário, fixam-no em seu mundo. Nesse sentido, nômade é o homem moderno e seu culto do progresso. Mais uma vez, está-se próximo de Rousseau, na desconfiança dos desenvolvimentos da ciência e da técnica, despoetizadoras. Elas constroem um mundo que ignora os homens, e estes vivem em um universo que ignora a ciência.


Em Tristes trópicos Lévi-Strauss – que conheceu tantas capitais e culturas, transitou de cidades a aldeias indígenas, dos polinésios aos templos da Birmânia, do Taj Mahal a Bombaim, de São Paulo aos Bororó – faz, entre tantas narrativas de viagens, a tristeza passar por nossos trópicos. Autobiografia que relutou em escrever, nela o memorialista não distingue o Eu emotivo dos estudos do etnólogo. Já nas primeiras linhas do livro algo surpreende: “Odeio as viagens e as expedições”. Afirmação paradoxal, se pensarmos que, em princípio, a etnografia não existiria sem as grandes trajetórias. Os dicionários definem as viagens com a designação de “deslocamento” sim, mas “entre lugares distantes”. Podemos entender que as distâncias não se dão apenas no espaço, pois a palavra inclui, de maneira essencial, o tempo. Supõe também um ponto, de partida e de retorno – referência simbólica de um Eu sensível a acontecimentos e experiências. A palavra alemã Erfahrung (“experiência”) conserva algo do sentido de seu radical fahr-, que no alemão antigo significava “atravessar regiões durante uma viagem”. Experiência diz respeito a tempos heterogêneos que se acrescentam a um sujeito e constituem sua identidade ao longo de todo o percurso – ao fim do qual o si mesmo será também um outro.

Se Lévi-Strauss indica o desconforto das viagens, não o faz por falta de ânimo ou descuido de ofício. Antes de conhecer outras margens, já as trazia dentro de si. Esses seus outros que mais tarde encontraria fora de si, em florestas e aldeias, seriam fonte de conhecimento e de autoconhecimento. Identidade plural, diríamos hoje, o Outro já estava delineado nesse Eu, nos desvãos de sua abertura e indeterminação. Aproximando-se de Montaigne, Lévi-Strauss começa por considerar a questão da identidade em sua diferença interna: “Somos duplos em nós mesmos[…]. Eu agora, eu depois, somos, a bem dizer, dois […l. Há mais diferença entre nós e nós mesmos do que entre nós e um outro” (Essais, II, 16; III, 9. Livre de Poche, 3 vols., 1972).

Antropólogo espontâneo é, para Lévi-Strauss, Rousseau, de quem se faz discípulo e a quem dedica o ensaio: “Rousseau, o fundador das ciências do homem”: “Foi ele que no Discurso da desigualdade entre os homens entendeu que, se quisermos conhecer os homens, é preciso considerá-los na proximidade e à nossa volta. Mas se quisermos estudar o homem deveremos olhar mais longe”. O longínquo é distância no espaço e no tempo, é referência a homens de outros tempos e lugares evocados pela força do pensamento e da imaginação. O Discurso da desigualdade é presentificação de uma ausência – a da natureza ou do homem da natureza. Para desenhá-los, Rousseau reivindica a ideia de “origem”, encontrando no “primitivo” esse momento inaugural no tempo, de um tempo “fora do tempo”, que não se mede pelo tempo cosmológico, tampouco pelo da sociedade civil: “Sua alma [a do primitivo] não é por nada agitada, entrega-se ao único sentimento de sua existência atual, sem nenhuma ideia de futuro, por mais próximo que seja; e seus projetos, limitados por sua vista, se prolongam até o fim do dia. Tal é ainda hoje o grau de previsão de um Caraíba; vende de manhã seu leito de algodão e vem chorar à noite para recomprá-lo, por não ter previsto que precisaria dele na noite seguinte” (Rousseau, Discours de l’inégalité, Garnier, pp. 49-50). Leitor dos escritos de viajantes, das expedições de conquista, Rousseau reuniria dois livros – o Discurso da desigualdade dos homens e o Ensaio sobre a origem das línguas, embora publicados separadamente. Neles o filósofo entrelaça o amor-de-si- a autopreservação – à piedade natural em um tempo anterior ao tempo no qual homem e natureza se confundem na dimensão do presente.

É o homem em “estado de natureza” – em sua inocência primeira, sem vícios nem virtudes por vezes, bom por natureza em outras – que Lévi-Strauss reconhece nos Nambikwara do Mato Grosso em seus Tristes trópicos. Nessa condição originária a benevolência universal tem força de lei e é, antes de mais nada, uma experiência vivida da qual se tem uma visão direta. Reúne-se o Rousseau das Confissões ao Lévi-Strauss de Tristes trópicos. Autobiografia ou diário de viagem, no filósofo e no etnólogo um logos comum: está em jogo a compreensão do Outro, que é também autointerpretação. Aquele que elabora suas vivências em pensamento é, a um só tempo, o escritor e a personagem dessa narrativa: “Toda autobiografia”, nota Starobinski, “é uma auto-interpretação” (“Le style de l’autobiographie”, Poétique, nº 3, Seuil, 1970, p. 257). Seria inconveniente procurar a veracidade da crônica nos três princípios que fundaram a cientificidade moderna: o princípio de identidade, de não-contradição e um “terceiro excluído”. Mais adequado seria considerar aqui as noções de espaço, tempo e do Outro que nos habita. Em Heródoto encontramos indicações sobre a exemplaridade do conhecer-se a si mesmo pela mediação do Outro. Quando o historiador grego narra detalhadamente e com admiração respeitosa os costumes dos egípcios, é a própria Grécia que nos dá a conhecer: “Entre os egípcios, as mulheres compram e vendem, enquanto os homens ficam em casa a tecer […]. Os homens carregam os fardos em suas cabeças, mas as mulheres os carregam nos ombros […]. Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de divindades. Os filhos não são compelidos contra sua vontade a sustentar seus pais, mas as filhas devem fazê-lo mesmo sem o querer” (Histoires, Plêiade, livro II, p. 35). O Outro é um nós mesmos invertido.

Que se pense agora nas circunstâncias em que as Confissões e Tristes trópicos foram redigidos. Em ambos, um tom de elegia, de enobrecimento póstumo, o sentimento de uma felicidade perdida. Em tempos de penúria, filósofo e antropólogo refugiam-se nos dias felizes nos quais nada marcava as horas. O homem da natureza tem um só medo – a dor. A dor, diz Rousseau, não a morte, pois quem vive no presente desconhece o passado e o futuro: “Sua alma, que nada perturba, entrega-se ao único sentimento da existência atual sem nenhuma ideia de futuro, por mais próximo que seja, e seus projetos, limitados pelo alcance do olhar, se prolongam somente até o fim do dia” (Discours, op. cit., pp. 49-50). E para delinear a constituição original do homem é para si mesmo que se volta: “Liberto da inquietude da esperança”, nota Rousseau, “e certo de perder assim, pouco a pouco, a do desejo, vendo que o passado já não me era nada, procurava me pôr inteiramente no estado de um homem que começa a viver” (Rousseau, “Émile et Sophie”, Oeuvres complètes, Hachette, vol. III, p. 18).

Diferencia-se o homem primitivo do “homem do homem”, aquele que resulta de artifícios, logras, injustiças e convenções – violências da obra da contranatureza, da civilização. Tudo é bom ao sair das mãos da natureza: “É nas mãos do homem e não em seu coração que tudo degenera. Suas mãos trabalham, mudam a natureza, fazem história” (Starobinski, La transparence et l’obstacle, Gallimard, 1970, p. 34). A lógica do coração segue um “princípio de natureza” – a piedade natural, identificação inata com seu semelhante – que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade de destruir. É ela que nos leva, sem reflexão, ao socorro dos que vemos sofrer. É um sentimento tão natural que mesmo os animais mais ferozes dão dela algum sinal. É assim que, diz Rousseau, quando em alguma parte encontram morto um animal da mesma espécie, “lhe dão uma certa espécie de sepultura”.

Os Nambikwara são sósias do homem rousseauniano: a força do selvagem, a acuidade de seus sentidos, sua nudez e despreocupação, suas paixões indolentes, sua indiferença com relação ao futuro permitem a Rousseau reconstituir o homem “tal como deve ter sido” ao “sair das mãos da natureza”, e a Lévi-Strauss encontrá-lo nos Nambikwara. A descrição do reino da natureza – a fartura de seus bens, a paisagem da floresta, a limpidez do ar, a imensidão do céu – constitui um “paraíso perdido”. Daí o luto da perda do tempo de felicidade, inocência e de narcísico repouso. Em contrapartida, desigualdade e história se implicam. Eis por que também Lévi-Strauss associa a história do Eu ao devir da humanidade: “O estudo desses selvagens [os Nambikwara] traz-nos outra coisa além da revelação de um estado natural utópico, ou da descoberta da sociedade perfeita no coração da mata; ajuda-nos a construir um modelo teórico da sociedade humana que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas com a ajuda do qual poderemos discriminar o que há de inato e de artificial na natureza atual do homem […]. O homem natural não é nem anterior nem exterior à sociedade” (Lévi-Strauss, Tristes trópicos, pp. 387-8).

A construção do homem das origens, como a dos Nambikwara, é uma utopia. Nem sonho, nem fantasia, mas indexada no imaginário, ela constitui uma “ficção heurística”, tem sentido transformador. Deve ser examinada não como irreal ou inexistente, mas como veraz, em oposição ao “verdadeiro”. Para Lévi-Strauss e, por que não, Rousseau, o estado utópico da origem do homem é um momento mimético cuja importância está menos no que exprime e mais no que torna possível pensar. Irreal, imaginária ou fictícia, a Utopia não é o impossível, mas o ainda não realizado. Seu modo de ser é um enigma, pois não depende de um saber, nem de uma opinião justa: pertence à esfera da afetividade, diz respeito a desejos, abrindo um espaço de inteligibilidade para o devir, tornando possível a invenção da liberdade e de seus emblemas. O homem é feliz e livre no estado de natureza. Feliz: “Se entendo bem o termo miserável, é uma palavra sem nenhum sentido ou que só significa uma privação dolorosa e sofrimento do corpo ou da alma. Ora, gostaria que me explicassem qual poderia ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde – o primitivo” (Rousseau, Discours, op. cit., p. 56). Livre:

Ouço sempre dizer que os mais fortes oprimirão os mais fracos. Que me expliquem o que querem dizer com a palavra opressão. Uns dominarão com violência, outros gemerão, submetidos a todos os seus caprichos. Aí está precisamente o que observo entre nós, mas não vejo como se poderia dizer isso de homens selvagens, aos quais se teria mesmo grande dificuldade de fazer compreender o que é servidão e dominação. Um homem poderá muito bem apossar-se dos frutos que um outro colheu, do animal caçado, da gruta que lhe servia de abrigo, mas como chegaria a ponto de se fazer obedecer? E quais poderão ser as cadeias de dependência entre homens que nada possuem? Se me expulsam de uma árvore, sou livre para ir a uma outra, se me perseguem num certo lugar, o que me impedirá de ir a outro? Se encontrar um homem com força bem superior à minha e, além disso, depravado, preguiçoso e feroz o bastante para me obrigar a prover à sua existência enquanto permanece ocioso, será preciso que ele se resolva a não me perder de vista nem um instante sequer e a me amarrar com muito cuidado enquanto dormir, temendo que eu escape ou que o mate […]: depois de tudo isso, sua vigilância amaina um pouco, um ruído imprevisto faz com que volte a cabeça, ando vinte passos na floresta, meus grilhões se quebram e ele não me verá nunca mais. [Rousseau, op. cit., pp. 64-5]

A contraposição natureza/cultura, homem natural/homem civil marca o fim do estado de felicidade e liberdade, tema, também este, de influência de Rousseau. Em ambos amplia-se o alcance da autobiografia: ela insiste menos na história do Eu e mais nas transformações da humanidade e de suas alteridades. É preciso, pois, diferenciar-se daquela posição que, com a justificativa da objetividade, neutraliza o que é estranho, estrangeiro ou desconhecido. Para alcançar algo que nos é próprio, é imprescindível, antes de tudo, passar pelo que nos é estrangeiro. Objetividade ou neutralidade não passam, aqui, de autismo e indiferença. A função da utopia é semelhante à do estrangeiro, pois permite reverter a vista, não para observar melhor, mas para olhar em outra direção. A utopia é a époché do estado civil.

O homem nasceu livre e, nos diz Rousseau, em toda parte está acorrentado; aceita a tirania-servidão que revela o fim da liberdade natural:

Assim como um corcel indomável eriça a crina, bate com o casco na terra e se debate impetuosamente só com a aproximação do freio – enquanto um cavalo domado suporta pacientemente o chicote e a espora -, também o homem selvagem não curva sua cabeça ao jugo que o homem civilizado traz sem murmúrio, e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma servidão tranquila. Não é, pois, pelo aviltamento dos povos dominados que se devem julgar as disposições naturais do homem a favor ou contra a escravidão, mas sim pelo prodígio realizado por todos os povos livres para se esquivarem da opressão. Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o sossego de que gozam sob seus grilhões […] mas, quando vejo animais nascidos livres e que detestam o cativeiro esmagarem a cabeça contra as grades da prisão, quando vejo multidões de selvagens nus desprezarem as volúpias europeias e enfrentarem a fome, o fogo, as armas e a morte para conservar somente sua independência, concluo que não cabe aos escravos [isto é, os civilizados, tomar-se como modelo para] raciocinar sobre liberdade. [Op. cit., p. 82]

Esse lugar é ocupado, em Lévi-Strauss, pelos Nambikwara, descritos como inocentes e “ingênuos”, a mesmo título que os Caraíba.

Para utilizarmos uma expressão de Clastres, os primitivos são vistos pelos europeus da época das Conquistas (mas não só) como homens “sem fé, sem lei, sem escrita, sem mercado, sem história, sem Estado e, em definitivo, sem rei”. Em um artigo dedicado ao pensamento de Lévi-Strauss, Clastres observa: “Os selvagens, como se sabe, desaparecem quando, no século XVI, o Ocidente triunfante lançou sua técnica, sua moral e sua fé na conquista dos trópicos. Demasiado frágeis, talvez, e desarmados para um combate tão desigual, as culturas ‘primitivas’ apagam-se uma após outra; e, assim, despossuídos de si mesmos, é à extinção e à morte que se encontram então destinados esses homens diferentes, devolvidos ao antigo silêncio das florestas e savanas doravante desertas: pois perdem o gosto de viver” (“Entre o silêncio e o diálogo”. ln: Lévi-Strauss, L’Arc Documentos. São Paulo, 1968, p. 87). Clastres explicita o sentido da tristeza em nossos trópicos, tal como a expressa Lévi-Strauss: no espírito da civilização europeia das Conquistas e, coextensiva a sua história, ele indica a proximidade entre violência e razão. Tudo aquilo que não é ela própria cai no campo da desrazão e é considerado irracional. Em outras palavras, o espírito moderno opõe-se a sociedades “sem história”, aquelas que – pela distância em relação à vida dos civilizados – exaltam a natureza como um absoluto. Diante disso, a modernidade civil significa, antes de mais nada, uma concepção inédita de natureza e de relação com ela. O domínio de uma ciência universal ou universalizável substitui a “ciência sacerdotal mágico-religiosa”, pois os homens de ciência tomam o lugar antes reservado a teólogos, feiticeiros e xamãs: “Moisés deve se transformar em Bacon, a ideia de Deus deve se apagar diante da ideia da gravitação universal” (M. Abensour, O novo espírito utópico. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990, p. 203). A civilização ocidental, a partir de seus êxitos no controle da natureza e dos novos descobrimentos, interferiria de forma violenta na ordem do mundo, estabelecendo-se a contiguidade entre violência e conhecimento. O “selvagem”, homem natural ou primitivo, é para os europeus – adultos, brancos e civilizados – essencialmente ameaçador, desconhecido e estranho, objeto de exclusão ou, antes, de destruição. Assemelham-se nisso demência e primitividade: “Demente da Europa ou selvagem da América”, escreve Clastres, “um e outro se vêem, contra sua vontade, promovidos a um parentesco proveniente de o Ocidente ter recusado a aliança dessas linguagens estranhas” (op. cit., p. 88).

Tristes trópicos aproxima-se, agora, do Ensaio sobre a origem das línguas. Aqui, a natureza opõe-se à cultura, à escritura. Nesta Rousseau reconhecia um momento avançado da desigualdade dos homens, entre outras razões, pelo fato de separá-los e dividi-los, pois, uma vez instituída a escrita, agravou-se a desigualdade entre os que escrevem e lêem, entre ágrafos e iletrados. Começa o segredo da escrita e da informação. E Lévi-Strauss escreve: “Os Nambikwara não sabem escrever, […] no início [de nossos contatos] traçavam linhas horizontais onduladas”. Lembre-se que nos métodos de educação do barroco o escrever nasce do desenhar; Rousseau também aponta como um dos traços da degradação do estado de natureza o advento não propriamente da linguagem articulada, mas o da escrita – que estabelece a separação entre os homens. Tomando por guia o “fundador das ciências do homem”, Lévi-Strauss faz suas as formulações de Rousseau:

Começou-se por separar homem e natureza e por fazer dele um reino soberano, acreditando-se, assim, que se apagava seu caráter mais irrecusável, o de ser, antes de mais nada, um ser vivo. E, fechando-se os olhos a essa propriedade comum, abriu-se caminhos para todos os abusos. Nunca como no final dos quatro últimos séculos de sua história o homem ocidental compreendeu que, arrogando-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, entregando a uma tudo o que se recusava à outra, abria um círculo maldito e que a mesma fronteira, constantemente deslocada para trás, serviria para separar os homens uns dos outros e reivindicava, em benefício de uma minoria cada vez mais restrita, o privilégio de um humanismo corrompido desde seu nascimento, por ter feito do amor-próprio, do egoísmo e da indiferença seu princípio e sua noção. [“Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem”. ln: Presencia de Rousseau. Buenos Aires: Nueva Vision, 1972, p. 17]

O homem, antes disperso pelas florestas, sem necessidade de fala, escrita, moralidade ou razão, vive na plenitude dos sons inarticulados. Morada originária, a natureza está dotada de um silêncio ruidoso, cheio de significações, significações que vacilam em um limiar. Pode-se mesmo dizer, na sequência, que os vocábulos na língua dos selvagens não suscitam a noção do verdadeiro e do falso. Fala originária, significam sempre mais ou menos do que se espera na ordem das razões. Ordem aleatória pode também ser “excessiva”, como a linguagem dos mitos e a dos místicos que “ousam se dirigir a Deus de igual para igual” (cf. Leda Tenório Motta. Lições de literatura francesa. São Paulo: Imago, 1997, p. 164). A civilização ocidental habituou-se a repetir que as palavras são feitas para comunicar o pensamento, o que significa afirmar que elas se definem na interlocução. Nessa “fala” originária de que trata o Ensaio sobre a origem das línguas, as palavras não só não correspondem incontrovertidamente às coisas, como estão longe de ser abstratas e conceituais. São, melhor dizendo, imagéticas, pois “começou-se por desenhar e não por escrever” (Rousseau).

Nesse sentido, Rousseau afirma: “Assim que a Grécia viu-se tomada por sofistas e filósofos, não se viram mais nem poetas nem músicos célebres. Cultivando a arte de convencer perdeu-se a de comover”. A fala originária e primordial revela uma subjetividade sem transcendência – uma existência por assim dizer anônima e indivisa, não separada da natureza e da natureza das coisas -, já que os limites entre o eu e a exterioridade não constituem balizas seguras. O primitivo constrói uma sintaxe que se efetiva independentemente do conhecimento das regras da gramática. Essa fala originária é, para o civilizado, enigmática, pois os sons não apresentam limites definidos. A única linguagem de que os homens dispersos na floresta, em repouso indolente, necessitavam era a dos gestos e sons que comunicam um fruto próximo às mãos ou algum perigo. A linguagem própria à comunicação emotiva tem origem metafórica, pois nasce do movimento das necessidades, desejos e paixões: “Para compreender-se mutuamente, não basta”, escreve Nietzsche, “empregar as mesmas palavras. Tal é a condição indispensável ao homem em suas relações recíprocas […]. Isso se encontra em todas as formas de amizade ou de amor” (Más allá dei bien y dei mal. vol. VIII. Buenos Aires: Aguillar, 1947, pp. 233-4). Porque amor e amizade implicam uma relação com o Outro, envolvem a linguagem. Neles as palavras excedem as palavras, suas verdades não se encontram em enunciados coerentes, lógicos, demonstrativos, mas preferencialmente fora deles, nas imagens que suscitam. Linguagem imagética, metafórica – ela é portadora de uma verdade, verdade misteriosa, pois é, ao mesmo tempo, infalível e inverificável. É dessa natureza, também, a linguagem da Utopia. Com respeito a isso, Lévi-Strauss comenta: em Rousseau,

o estudo dos selvagens traz-nos outra coisa além da revelação de um estado natural utópico ou da descoberta da sociedade perfeita no coração das florestas; ele nos ajuda a construir um modelo teórico da sociedade humana que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas com seu auxílio conseguiremos discriminar o que há de inato e de artificial na natureza atual do homem, e conhecer bem um estado que já não existe, que talvez nunca existiu e provavelmente nunca existirá, do qual, no entanto, é necessário ter uma ideia justa para bem julgarmos o nosso estado presente. [Rousseau, apud Lévi-Strauss, op. cit., pp. 387-8]

O canto do primitivo, assim como a palavra poética, revela uma “intersubjetividade” que prescinde da faculdade de julgar porque sua lógica não é a do verdadeiro e do falso, mas antes uma “lógica inscrita no sensível”. Mais essencial, seu sentido é emocional, sentimental, existencial.

Devemos desconfiar, no entanto, do prestígio que veio a tomar, a partir do platonismo, a palavra origem. Esta investe-se de um significado novo, uma vez que para Platão o céu inteligível é fonte e origem identitária das ideias perfeitas, inalteráveis e eternas. Para Rousseau, origem é aquela que existe na música. O originário na música, escreve Rousseau, não faz apelo àquela linguagem adamítica, nomeadora. Sons e palavras, no lugar de palavras escritas, são gestos sonoros nos quais os sentidos residem em um ou mais lugares ao mesmo tempo, disseminando associações imprevistas. Compreendê-los – compreender os sons que habitam as palavras – é o esforço da poesia e da arte, que permanentemente faz e desfaz ritos de passagem entre a natureza e a cultura, para reaver seu sentido oracular. Como observa Clastres, a obra de Lévi-Strauss “é algo como uma inauguração de um diálogo com o pensamento primitivo, ela encaminha nossa própria cultura em direção a um novo pensamento” (ibidem, p. 90).

Lévi-Strauss inicia seu livro anotando: “Odeio as viagens e os exploradores” (Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70, 1979, p. 110), mas é deles que vai tratar e sobre os quais vai discorrer – é como se, desse Outro que iria buscar, já tivesse uma visão “formada” antes das viagens. Talvez tenha descoberto viagens e selvagens nos livros e relatos de missionários e viajantes, antes de conhecê-los na floresta tropical. Já trazia dentro de si a figura do Outro, sendo capaz, então, de reconhecê-lo fora para lhe dar a palavra e o deixar falar. Tristes trópicos refere-se, entre outros, aos Nambikwara, reconhecendo neles, com piedade, um povo orgulhoso e altivo e, no entanto, condenado a desaparecer no “processo civilizatório”. Mais que doenças e outras violências, tiveram confiscados seus usos, costumes, crenças e tradições, privados de sua humanidade. Em sua narrativa, o antropólogo nos faz ver o que ele vê, ou melhor, nos dá a ver o que os nativos vêem, na floresta – os seres invisíveis que os vigiam, protegem ou esperam. Lévi-Strauss passa das cidades a uma aldeia bororó, dando a conhecer uma e outra em suas diferenciações e identidades, sem neutralizar o que há de estranho e de estrangeiro entre elas. Tal como o tradutor benjaminiano, Lévi-Strauss respeita o estrangeiro. Traduzir uma língua em outra, uma cultura para outra, requer preservar aquilo que as fazem estrangeiras, suas zonas de obscuridade e incomunicabilidade. Para traduzir a Ilíada para o alemão, dizia Benjamin, é preciso não germanizar o grego, mas antes helenizar o alemão, o que amplia nossas próprias possibilidades e nosso próprio mundo interno. Porque, como dizia Montaigne, “deparamos em qualquer homem com o Homem”.[1]

Lévi-Strauss apresentava-se como herdeiro de Rousseau, lendo-o como aquele que institui um olhar e um saber de si que é saber do outro, mas também como o profeta da etnologia contemporânea. Ao final de O totemismo hoje, Lévi-Strauss refere-se a Rousseau dizendo ter sido ele quem, antes da descoberta do totemismo como religião, ingressou naquilo que é a abertura para o totemismo em geral: a “piedade natural”, sentimento mimético que faz com que desejemos o fim do sofrimento desse outro nós-mesmos, por essa força que nos une ao outro, e em sua dor é a nossa que vemos. Piedade que é identificação, ainda, com tudo o que é vivo.

Toda palavra é, para os selvagens, imagética, figurada, investe seres animados e inanimados da natureza com características humanas, com o que antecipa Freud em Totem e tabu. E Rousseau aproxima as palavras dos antigos às do selvagem, ao escrever: “Desde que aprendemos a gesticular, esquecemos a arte das pantomimas, pela mesma razão que, contando com tantas belas gramáticas, já não entendemos mais os símbolos dos egípcios. O que os antigos diziam com mais vivacidade era expresso não através de palavras, mas de signos. Não o diziam: mostravam-no” (Essai sur l’origine des langues. Ed. bilíngue. Ravenna: A. Longo, 1970, p. 152). O que os antigos mostravam era a metáfora hieroglífica, o signo visível do sagrado. Rousseau reavê as mais antigas línguas orientais, em que não se pode encontrar nada de “frio ou raciocinado”. São línguas eloquentes e figurativas, não são línguas de geômetras, mas de poetas, pois não se começa por pensar, mas por sentir.

Se em As estruturas elementares do parentesco Lévi-Strauss tomava por eixo a proibição do incesto, em Tristes trópicos a escrita é a questão principal. Afastando-se de qualquer unificação eurocêntrica do imaginário e da visada científica de conceitos e abstrações, Lévi-Strauss, como Rousseau, o faz por considerar a linguagem abstrata incapaz de nomeação. Esta convém a um universo, uma natureza e uma humanidade convertidos ao anonimato. Para um Nambikwara, ao contrário, um nome pode prender-se tanto a qualidades que se quer atribuir ao “sujeito” da nomeação como a estados de alma daquele que nomeia, e mais a frequente variação dos nomes próprios, conforme requer cada situação. Em caso de morte, por exemplo, todos aqueles que têm o mesmo nome do desaparecido trocam essa identificação por outra, proscrevendo o espírito que acorreria caso fosse utilizado seu nome. Jamais neutro, o nomear é dar vida às coisas, propriedades, cores, qualidades. Outra maneira com a qual Lévi-Strauss se refere ao caráter “mimético” e lúdico das palavras. Os primitivos referem-se às coisas de modo diverso da mera denotação. A linguagem poética deve combinar clareza e metáfora, pois implica uma percepção intuitiva entre o semelhante e o dessemelhante. O elemento conotativo, teatral, lúdico, define a ideia de uma interpretação que relaciona um ser que é com outro que ainda não é: “A ausência de uma literalidade completa”, anota Adorno, “testemunha a tensa não-identidade entre essência e fenômeno” (cf. Dialética e positivismo em sociologia). A virtualidade de palavras, seres e objetos torna-os inassimiláveis à ordem de um sujeito fundacional soberano. Desse ponto de vista, a clareza cartesiana é hybris ontológica.

Reconciliando a “lógica do coração” com a “prosa do mundo”, reconhece-se uma referência comum a Lévi-Strauss e a Kant leitor de Rousseau. É em uma razão assimilada à imaginação que se pode encontrar a fonte mais essencial de “todo sonho possível”, pois, diz Kant, “é difícil manter sempre a linguagem prudente da razão” (cf. Crítica do juízo). O encontro entre Rousseau e Lévi Strauss reúne o filosófico e o poético. É esta a ”atitude estética” da filosofia. Esta é “a capacidade de perceber nas coisas mais do que as coisas são; sob seu olhar, o que é transmuta-se em imagem. Desse modo, em “Lição de escrita”, Lévi-Strauss refere-se à violência da racionalidade que desnatura o nome próprio. Nomear abstratamente é expropriar. Expropriação primeira, a consideração do primitivo como “mentalidade pré-lógica”. Lembremos Bacon, que em seu Novum organum funda a racionalidade ocidental científica no método indutivo, que pretende chegar à lei universalizadora. Tudo o que a razão demonstrativa e calculadora não pode explicar ou compreender é excluído como irracional – o que reduz, mais uma vez, fetiches, feitiços e magia a superstições rudimentares, ídolos que deviam ser destruídos por não passarem de construções fortuitas de “povos-crianças”.

Não por acaso, Lévi-Strauss não fala em primitivos – pois a palavra vem carregada do sentido “rudimentar”. Prefere falar de Pensamento selvagem, diferenciando-o daquele utilizado pelos homens na vida civil. É selvagem porque exuberante e indócil à qualquer forma de dominação durante toda sua vida; indócil, ainda, a qualquer forma de abstração epistemológica e quantificadora. Com isso, amplia-se o que se convencionou denominar civilizado; o homem da cultura ocidental tem muito a aprender com a riqueza de seus ritos. Se o civilizado perde referências de inserção no mundo, se perdeu seu lar antes protegido por deuses ou por Deus; se o homem moderno não pode contar com a eternidade prometida, ele se encontra em caminhos que não levam a lugar nenhum. Os heróis e os mitos fundadores das narrativas dos primitivos, ao contrário, o fixam em seu mundo. Nesse sentido, nômade é o homem moderno – o da civilização do progresso. Lévi-Strauss aproxima-se, também aqui, de Rousseau, na desconfiança dos desenvolvimentos da ciência e da técnica despoetizadoras. Elas constroem um mundo que ignora os homens e estes vivem em um universo que ignora a ciência.

Tristes trópicos fala de um eu ampliado em que a identidade é plural. Refere-se aos nativos para falar da vida civil, na qual o plural do Eu não é um nós homogêneo. Aquele disponível à multiplicação de seus eus é também sensível à diversidade das culturas e a mitos fundadores da vida em comum dos homens: “Nunca passo diante de um fetiche de madeira, um Buda dourado, um ídolo mexicano, sem pensar comigo mesmo: talvez seja este o verdadeiro Deus” (Baudelaire, citado por Benjamin em Rua de mão única). Se os trópicos são tristes, é porque sua aculturação foi, é e será violenta e corsária, pois é assim que o dominador entende o contato com o primitivo. Para Lévi-Strauss, ao contrário, não se trata de “integrar” o estrangeiro a nós e, ainda menos, persegui-lo, mas acolhê-lo neste inquietante estranhamento que é tanto o dele como o nosso. Montaigne, precursor de Rousseau e de Lévi-Strauss, anota: “Somos cristãos do mesmo modo que somos perigordianos ou alemães”. Em um homem estão todos os homens.

Para haver diálogo na sociedade, na política, entre culturas, é preciso haver encontro – o que só ocorre com a condição de que duas culturas tenham esquecido e abandonado a própria “‘origem’, e isso depende de que cada uma já se tenha tornado dupla com respeito a si mesma” (Maria Perniola, Transiti. Bolonha: Cappelli, 1985, p. 145). Trânsitos-de um ao outro, de um lugar a outro, é a experiência de Lévi-Strauss, que escreve: “Uma expedição etnográfica ao Brasil central prepara-se no cruzamento Réaumur-Sebastopol. Aí se entrecruzam os vendedores de artigos de costura e de moda; é aí que se pode esperar descobrir os produtos próprios para satisfazer o gosto difícil dos índios […]. Em um bairro de Paris que permanecera para mim tão desconhecido como a Amazônia, entreguei-me, portanto, a estranhos exercícios, sob o olhar de exportadores tchecoslovacos. Ignorando tudo de seus negócios, experimentava a falta de termos técnicos para precisar minhas necessidades. Apenas podia aplicar os critérios indígenas” (op. cit., p. 243). O etnólogo habita um lugar que é um “entre-dois”. Racionalista, místico, animista – vive a experiência de uma relação com algo que lhe escapa, num cosmos incerto de seus próprios postulados: “Tudo se passa como se houvesse uma gramática, mas sem lógica correspondente”. Essa gramática não mais se articula sobre o verdadeiro, o pensado, o nomeado. Essa ordem não semântica perturba os postulados que fazem crer numa significação única e estável das coisas. Infra e transracional é a experiência do etnólogo-viajante e sua capacidade de “perceber nas coisas mais do que as coisas são”. Se os trópicos são tristes, é porque o antropólogo vê, com o desaparecimento violento ou lento do mundo selvagem, um caminho sem volta. Mas os trópicos são tristes por mais de uma só razão. O antropólogo trabalha com ausências. Por isso é bricoleur, colecionador de fragmentos e reminiscências. Ambos se constituem como objetos de decifração porque o antropólogo que filosofa confronta se com o enigma do espaço e do tempo, espaço e natureza, tempo e história. Na admiração sagrada pela natureza, o primitivo reconhece o fascínio que exerce “em suas desordens e devastações mais violentas e desregradas”. É nelas que “a natureza evoca melhor o sentimento do Sublime” (Kant, Crítica do juízo, § 23. São Paulo: Iluminuras, 1997). O fervor religioso que ela suscita procede de uma natureza atemporal e inabalável, excessiva em sua magnificência e elevação. Os românticos, na senda de Rousseau, teriam a consciência, enfim, de forças que nos ultrapassam.

Tudo isso desaparece nos choques do moderno. Dessa perda e desse luto nos falam as obras de Lévi-Strauss leitor de Rousseau. Aquele conjunto de experiências intelectuais e emotivas que constituem o que se chama “desencantamento do mundo” dilacera homem e natureza. Esta não tem mais nada de perene e indestrutível. Ao contrário, ela é objeto de manipulação da ciência, que desconhece seus fins e que, de agora em diante, está voltada para a destruição da natureza e da humanidade, e, em primeiro lugar, a dos povos primitivos e seu “estado natural”: “Toda a natureza começaria por se lastimar se lhe fosse dada a palavra”, escreve Benjamin (“A felicidade do homem antigo”. ln: Gesammelte Schriften, v). Filósofo e antropólogo contemplam com tristeza aquilo que o sujeito da dominação produtivista e cientificista olha como conquista. A tristeza dos trópicos é expressão da morte violenta ou lenta dos povos das florestas, desaparecimento imposto pelo lógos civilizador, mas também porque o olhar politizado do antropólogo trabalha com fragmentos-ruínas do homem e da natureza que procura eternizar por fotografias e demais recursos que ampliam a “memória voluntária”. Seu método e seu campo de participação são tristes. A fotografia é sempre póstuma, no instante mesmo em que procura eternizar um instante do presente. Tempo e história dão a conhecer o nascimento e a ruína de culturas e civilizações. Na primeira visita ao Brasil central, Lévi-Strauss já reconhecia, no presente, um presente que se tornaria passado, e assim, em todo futuro, o já passado. Futuro anterior, poderíamos dizer. Nesse horizonte podemos compreender o sentido da tristeza dos trópicos – que é também a de Lévi-Strauss. Na atividade do memorialista, cuja autobiografia consistiu em tomar-se a si mesmo como objeto de narração, a memória afetiva presentifica épocas extintas, aquilo que já não existe mais. Mas que sentimento é este que se depreende de livros e viagens, livros e viagens que causam tristeza? Concluindo, é Espinosa que lhe dá o nome: “Aquele que se recorda de alguma coisa com a qual se deleitou, deseja possuí-la nas mesmas circunstâncias em que, na primeira vez, com ela se deleitou[…l; se aquele que ama descobrir que alguma dessas circunstâncias falta, ficará triste, pois imagina algo que exclui a existência da coisa amada. Como deseja, por amor, essa coisa ou circunstância, imagina-a faltando, entristece. Essa tristeza, enquanto referida à ausência do que amamos, chama-se saudade [desiderium]” (Espinosa, Ética, livro III, definição 32, proposição 36, trad. Marilena Chaui).

Notas

  1. Tradução de Sérgio Milliet, op. cit., p. 368. (N. E.)

    Tags

  • acuidade dos sentidos
  • animais mais ferozes
  • ao sair das mãos da natureza
  • artificialidade
  • autobiografia
  • autointerpretação
  • avesso a qualquer forma de dominação ou abstração epistemológica e quantificadora
  • benevolência universal
  • cabeças
  • caminhos que não levam a lugar nenhum
  • caonfissões
  • casa
  • cientificidade moderna
  • civilização
  • Claude Lévi-Strauss
  • compelidos
  • compram
  • compreensão do outro
  • condição originária
  • consagrada
  • construir um modelo teórico da sociedade humana que não corresponde a nenhuma realidade observável
  • contranatureza
  • contrapartida
  • contraste
  • coração
  • costumes
  • costumes depravados
  • crônica
  • culto do progresso
  • degenera
  • descoberta da sociedade perfeita no coração da mata
  • desconfiança dos desenvolvimentos da ciência e da técnica
  • desigualdade
  • despoetizadoras
  • despreocupação
  • destruir
  • destruíram
  • detalha
  • detalhada
  • Deus
  • deuses
  • devir da humanidade
  • devoção
  • diário de viagem
  • discriminar o que há de inato e de artificial na natureza do homem
  • egípcio
  • egípcios
  • elabora
  • elaborar
  • escritor
  • espaço
  • estudo
  • etnólogo
  • experiência vivida
  • exuberante
  • fardos
  • fartura de bens
  • faz história
  • fazem história
  • filhas
  • filhos
  • filósofo
  • força selvagem
  • forma de visão direta
  • Grécia
  • Heródoto
  • heróis
  • história
  • história do eu
  • homem civilizado
  • homem do homem
  • homem em estado de natureza
  • homem moderno
  • homem natural anterior exterior à sociedade
  • homem rousseauniano
  • homens
  • homens vivem num universo que ignora a ciência
  • identidade
  • identificação inata com seu semelhante
  • ilusões
  • imaginário ocidental
  • imensidão do céu
  • implicam
  • indiferença acerca do futuro
  • induz
  • injustiças
  • inocência
  • Jean Starobinski
  • lar
  • lei
  • Lévi-Strauss
  • limpidez do ar
  • lógica do coração
  • logos comum
  • luto
  • mãos
  • mato grosso
  • mitos fundadores
  • muda a natureza
  • mudam a natureza
  • mulheres
  • mundo
  • mundo que ignora homens
  • nambikwara
  • não-contradição
  • narcísico repouso
  • narra
  • narrar
  • narrativa
  • narrativas
  • noções
  • nômade
  • nudez
  • obra
  • ocidental
  • ombros
  • outro
  • país
  • paisagem da floresta
  • paixão indolente
  • paraíso perdido
  • pensamento
  • personagem da narrativa
  • piedade natural
  • primitivo
  • primitivos
  • princípio da natureza
  • reconstituição do homem tal como deveria ter sido
  • referências de inserção no mundo
  • reflexão
  • reino natural
  • revelação de um estado natural utópico
  • Rousseau
  • rudimentar
  • selvagem
  • selvagens
  • sentimento tão natural
  • sepultura
  • serviço de divindades
  • sinal
  • socorro dos sofredores
  • sustentar
  • tecer
  • tempo
  • tempo de felicidade
  • terceiro excluído
  • trabalha
  • trabalham
  • três princípios
  • tristes trópicos
  • vendem
  • veracidade
  • violência
  • vivência
  • vivências
  • vontade