1996

Cinco propostas sobre a filosofia libertina e uma sobre assédio sexual

por Maria Rita Kehl

Resumo

O antifeminismo radical dos libertinos bane da filosofia libertina a possibilidade da existência de um sujeito feminino e propõe uma erótica em que o homem assume plenos direitos de submeter a natureza (mulher) e dela gozar afirmando sua superioridade. Na filosofia libertina, só há dois lugares para a mulher: ou ela se faz fálica ou porta o corpo castrado que a condena ao lugar de vítima daqueles que detêm o poder (fálico).

O libertino persegue um gozo impossível, supremo, absoluto, não um gozo fálico, acessível ao neurótico comum, por isso ele é um eterno insatisfeito.

A ideia da paixão da instrumentalidade proposta pelo psicanalista Contardo Caligaris lembra a paixão libertina pois é um sistema criado pelos processos secundários (sob o domínio do eu) no qual o sujeito se coloca como instrumento do gozo do outro.

Num certo sentido, todas as adesões fanáticas se explicam por aí. Caligaris utiliza tal conceito para explicar a possibilidade de qualquer sujeito normal aderir a uma montagem perversa. A função da paixão da instrumentalidade é a de livrar o sujeito da solidão e dos riscos da singularidade e cada sujeito se apresenta como instrumento do gozo do Outro. Se o prazer obtido pelo libertino parecer ridículo, o libertino goza ao fazer gozar o outro.

Na paixão llibertina, o homem não corre risco. Os danos são todos exclusivamente das mulheres conquistadas. A igreja católica sempre identificou o corpo da mulher ao pecado, à tentação do demônio ou ao corpo sagrado da procriação. O cristianismo só concede valor às mulheres assexuadas (puras) ou às mães. No Ocidente, o discurso romântico só também só concedia valor às mulheres inacessíveis. Até pouco tempo atrás esse era o papel das mulheres.

No fim do século XIX as mulheres começaram a reinvidicar acesso a recursos e privilégios masculinos. No entanto, no discurso produzido pelas mulheres sempre cabia a elas o papel de vítima, a posição de objeto para o outro.

A partir da segunda metade do século XX as mudanças reivindicadas pelas mulheres se consolidaram. O ingresso em massa no mercado de trabalho e as técnicas anticoncepcionais permitiu às mulheres uma liberdade sexual equivalente a dos homens.

Entretanto, o fim do tabu da virgindade e da dupla moral sexual, a dessacralização do corpo feminino e a possibilidade da mulher desvincular desejo sexual e amor produziu uma crise sem precedentes causada primeiro pela descoberta pela mulher que o gozo fálico não é tão interessante e que a possibilidade de trocar de parceiros não garante o prazer além das perdas narcísicas sofridas.

Nos discursos condenando o assédio sexual há uma recorrência a um sentimento de humilhação diante da insistência masculina. Mas, não seria esse sentimento de humilhação proveniente da perda narcísica consequente da dessacralização do corpo feminino?

Restam várias questões: As mulheres se tornarão mais capazes de se defender sustentando o direito a recusa ou chamarão a polícia persistindo na posição de vítimas dos homens? Estarão as mulheres prontas para pagar um preço da democracia sexual que elas próprias lutaram para conseguir? Suportarão elas a ferida narcísica de ver seus corpos interpelados pelo desejo masculino como objetos possíveis (portanto banais) do desejo?


A FILOSOFIA LIBERTINA É UM DELÍRIO DA RAZÃO

O pior louco é o que perdeu tudo, menos a razão.
Chesterton

A filosofia libertina pode ser lida, hoje, como produção de uma razão delirante. Verdade que se trata de um delírio moderno, filho das ideias iluministas e da nova classe de homens self-made — a burguesia que fez a Revolução Francesa. Mas como formação reativa ao domínio da Igreja católica e da nobreza decadente, o próprio espírito das Luzes substituiu a onipotência divina pela onipotência da razão, que é uma forma de onipotência do eu.

Freud não é o primeiro teórico a relacionar razão (que ele denomina, diferente de Lacan, o simbólico) e loucura. No final do texto O inconsciente,[1] Freud menciona o perigo do pensamento abstrato distanciar-se demais da base imaginária, fundada nas “primeiras e verdadeiras representações dos objetos”. A base imaginária, empírica, de nosso pensamento é que coloca limites aos vôos abstratos da razão. A semelhança entre o pensamento abstrato e a loucura consiste no fato de que em ambos “tudo é permitido”. O pensamento abstrato prescinde de qualquer lei que não sejam as leis da lógica, nas quais a base “empírica” da verdade, que depende do imaginário e passa necessariamente pelos afetos, se perde. Assim, o pensamento “enlouquece” pela falta de limites à sua capacidade de inventar o real.

Um exemplo elementar: é sempre necessário algum tabu para sustentar a civilização, e a manutenção do tabu não passa pela razão, mas por alguma espécie de fé, ou seja, de ilusão, compartilhada. Escrevendo sobre a razão libertina, Adorno faz lembrar a impossibilidade de racionalizar o tabu do incesto.[2] Na História de Juliette, o papa, que a pedido dela faz uma defesa do assassinato, “percebe que é mais fácil racionalizar os atos não cristãos do que — como se tentou outrora — racionalizar pela luz natural os princípios cristãos, segundo os quais esses atos [criminosos], provêm do diabo”. Pela ótica da “natureza”, que o Iluminismo instaurou, não há nenhuma razão para o homem não praticar o crime. Até o humanismo depende de certa profissão de fé.

Assim, delírios da razão são totalitários, justamente ao tentar encontrar, e transformar em máxima moral, a verdadeira natureza humana. Mas também são totalitários ao tentar impor à sociedade uma ordem hiperlógica — o que Rouanet chama de “razão louca”, em contraposição a uma possível “razão sábia” que o autor equipara a certa racionalidade instaurada pela psicanálise, que leva em conta o inconsciente e os afetos.[3]

A “razão louca”, onipotente, tem que banir de seu campo toda diferença a fim de tudo dominar. Como a República de Platão. Como o próprio período do Terror, na Revolução Francesa. Como a fé onipotente na técnica e na ciência gerando o conceito de “guerra total”, que obteve a adesão em massa dos franceses, ingleses e alemães na Primeira Guerra Mundial, anunciando com muita antecedência os dois piores delírios da razão moderna (poderíamos chamar de “razão alienada”, não segundo Marx mas segundo Freud?) — o nazi-fascismo e o stalinismo.

No Iluminismo, o horror ao mistério, ao inexplicável, ao oculto, engendrou o horror ao inconsciente (ainda não dito como tal) na compulsão de tudo dizer, tudo mostrar, tudo iluminar — e, por que não?, tudo fazer. Tudo saber sobre o desejo, tudo dizer sobre o sexo e, principalmente, tudo fazer — este o imperativo da filosofia libertina, nascida da onipotência da razão.

Mas, sem os libertinos, jamais teríamos nos tornado modernos. Não só por seu ateísmo radical, mas por sua contribuição para a invenção do sujeito moderno e sua revelação do mal como componente indissolúvel da sexualidade humana. A filosofia libertina inaugura a modernidade ao contribuir radicalmente para a destruição de ilusões sublimes ou religiosas sobre a natureza humana — no que a psicanálise viria a se juntar, cem anos depois. Com a diferença que a psicanálise, sabendo dos fundamentos criminosos que o homem civilizado recalca, aposta na necessidade da construção, ainda que artificial (como tudo o que é da cultura), de alguma vontade compartilhada que possibilite a vida. A filosofia libertina conserva em relação ao pensamento moderno que veio depois uma diferença, uma espécie de base metafísica (ainda que não declarada negada) que preserva uma “verdade” humana imutável, além da história, “natural”, a qual caberia ao verdadeiro espírito esclarecido revelar, trazer à luz, deixar agir. Há na filosofia libertina uma fé na verdade que é ao mesmo tempo ingênua e pretensiosa. A ideia de que podemos, e devemos, “viver na verdade” (a verdade do gozo, do crime) que a sociedade, inimiga dessa verdade, tenta ocultar. A ideia de que a natureza é a verdade última do homem guarda um ranço metafísico; supõe que exista alguma “natureza humana” anterior às formações da linguagem, às produções discursivas, à história.

Ao mesmo tempo, a fé nas Luzes não se coaduna, nos libertinos, com o espírito republicano (apesar do discurso de Sade, “Franceses, mais um esforço […]”[4]). O prazer do libertino se dá na reprodução dos ritos do Antigo Regime, e mesmo o discurso que ele produz — uma espécie de etiqueta radical e totalitária, ainda que ao avesso — combina mais com a vida na corte do que com a vida republicana. O libertino representa a si mesmo como pertencendo a uma classe de homens superiores, com direitos ilimitados de gozar do outro. Sade odeia a ideia de igualdade. “Esperamos que nossos leitores esclarecidos nos entendam e não confundam de modo algum o absurdo despotismo político com o muito luxurioso despotismo das paixões e da libertinagem.” Mas como conceber um sem o outro a não ser sob a forma moderna, nos termos de Foucault, da substituição do poder soberano pelo poder disciplinar? A adesão que o libertino exige está muito próxima da servidão voluntária de La Boétie: num sistema binário onde só cabem dominadores e vítimas, espera-se que o convidado (o mesmo acontece, a meu ver, com os leitores de Sade) se alinhe “voluntariamente” do lado dos primeiros. O que quase todo leitor tenta fazer, num ato defensivo de identificação com o agressor, já que a não-adesão o coloca automaticamente do lado das vítimas e dos imbecis.

Em seu minucioso estudo sobre o pensamento de Sade,[5] Eliane R. Moraes diz que a filosofia sadiana concebe duas liberdades, uma lá fora e outra, bem mais vasta, dentro (da alcova, do castelo etc.). Muito no espírito do que Hannah Arendt escreve sobre o conceito de liberdade sob o liberalismo, onde o exercício da liberdade só é possível no âmbito privado, ao contrário da democracia grega, na qual a liberdade só fazia sentido como prática pública, exercida na polis. A liberdade sadiana tem que se exercer entre quatro paredes, “bem diferente da que se vê nas ruas de Paris e que ele critica veementemente em “Franceses, mais um esforço (…)”.[6] Mas, apesar da adesão aos ritos, privilégios, e principalmente ao décor decadente do Antigo Regime, alguma coisa na filosofia libertina antecipa o pensamento do burguês moderno.

Para Adorno, “o sistema de gozar proposto por Juliette é a antecipação do cálculo burguês”, em que “as pessoas assumem em face das outras aquela relação racional, calculadora, que havia muito fora proclamada como uma antiga sabedoria no círculo esclarecido de Juliette”. Do mesmo modo, a separação corpo-espírito é própria dos libertinos e do burguês (Adorno diz que o libertino não passa de um burguês indiscreto).

Ainda sobre a ditadura da razão, André Malraux, em seu prefácio às Ligações perigosas,[7] escreve que a máxima de Valmont e Merteuil é “conhecer os homens para agir sobre eles”, e acrescenta. “Este livro, que só fala de paixão, a ignora quase totalmente. Uma só aparece aí: o amor que mme. de Tourvel experimenta. O de Valmont por ela, ele não pára de dominá-lo”. Para Malraux, a paixão de Valmont e Merteuil consiste em ajustar sua erótica a uma concepção tão racional e perfeita das relações humanas que elimine do horizonte todo risco de dor (ficando todo o preço do lado de suas “vítimas”). Aqui, pensamos também nos libertinos sadianos, aos quais poderia se aplicar a observação de Malraux: “Realizam atos premeditados em função de uma concepção geral da vida”. O que exige um domínio absoluto das paixões, que geralmente desorganizam a lógica e cegam a razão.

Volto à ideia central do delírio libertino, nascida do Iluminismo, que é a ideia de natureza como fundamento das ações humanas. Se as Luzes deslocam Deus do centro do universo e eliminam a tutela divina sobre os homens, os libertinos fazem uma leitura muito particular desse deslocamento, leitura de um anti-humanismo radical: a natureza é a razão última do homem. Ora, quais são as leis que regem as relações entre os “seres da natureza”? Em primeiro lugar a desigualdade (sobretudo de forças) e a crueldade. Os homens não nascem iguais, são as “ridículas” leis da sociedade que tentam garantir igualdade — “todas as operações da natureza são exemplos da violência necessária do forte sobre o fraco” (Filosofia na alcova). Ao conclamar uma razão “natural” contra as “ridículas leis da sociedade”, a filosofia sadiana se aproxima mais do obscurantismo que pretende combater do que das Luzes à qual diz se alinhar. O discurso sadiano parece tentar uma “solução de compromisso” entre o “tudo mostrar” do Iluminismo e o magma obscuro, não simbolizável, o real onde se originam as pulsões e do qual ele pretende tudo dizer, sem nada alterar (sem perceber que o dizer já implica o domesticar). Deleuze, no prefácio à Vênus das Peles,[8] comparando Sacher-Masoch a Sade, aponta para o desespero do texto sadiano em busca de uma natureza primeira (enquanto tudo o que podemos conhecer é uma natureza “segunda”, secundária — a “primeira” faz parte do “impossível” real) onde reside o gozo. “Mas essa natureza original, precisamente, não pode ser dada: só a natureza segunda forma o mundo da experiência […].” Para Deleuze, a natureza primeira é objeto somente de uma ideia, um delírio da razão. Onde é este lugar de pura não-linguagem no qual o libertino pretende imperar e gozar? Ele não existe, e por isso a partir de certo ponto os personagens de Sade começam a suspirar por um Crime Ideal, que é mais uma Ideia do que um ato humano possível. Assim, o puro materialismo de Sade encontra sua contradição, o puro idealismo que a filosofia das Luzes tentava superar.

A FILOSOFIA LIBERTINA É A APOLOGIA DA ORDEM FÁLICA

O falo, sabemos, é o símbolo ordenador da sexualidade, do desejo e do gozo humanos. Representa no inconsciente o objeto causa do gozo do Outro (originalmente, a mãe), assinalando simultaneamente a sua falta. Na teoria lacaniana, o falo se inscreve, para os sujeitos, em duas dimensões:

Imaginária — a dimensão do corpo, e das teorias infantis sobre a sexualidade. Confunde-se com o pênis. Divide o mundo em duas ordens, os fálicos e os castrados. As mulheres pertencem ao segundo grupo.

Simbólica — o falo como limite ao gozo do Outro. Significante que ordena o desejo sexual não a partir da oposição (fálico-castrado), mas da diferença (homem-mulher). Essa diferença não se dá em simetria, homens e mulheres não estão em posição simétrica em relação ao falo. Os homens, portadores do símbolo fálico imaginário, estão submetidos por isso mesmo à angústia de castração que faz de seu gozo um “gozo fálico” e os inscreve inteiramente na ordem fálica. As mulheres, “castradas” em seu corpo desde antes do Édipo, reconhecem a instância fálica, mas algo de seu gozo escapa a ela. Dizemos que a mulher está inscrita na ordem fálica… mas não toda.

A ordem fálica desconhece a alteridade da mulher. Ela não inclui a mulher como alguém que se organiza diferentemente, mas sim como a que tem a menos, a quem falta aquilo que se deveria ter. A mulher é faltante, segundo a ordem fálica. O libertino, com sua obsessão pela saturação, pelo excesso, seu horror a toda falta, recusa qualquer legitimidade à alteridade da mulher. Se ela quiser se inscrever no jogo erótico, é como vítima, por sua condição de fraqueza e inferioridade fálica. A não ser que, como Dorothea, Merteuil ou mme. St. Ange, ela se inscreva como mulher fálica ou mesmo (Dorothea) como homem. No romance de Laclos, o conde de Valmont, em carta à sua cúmplice mme. Merteuil, considera insustentável a paixão por mme. de Tourvel, reveladora de uma fraqueza que ele não quer admitir: “Preciso conquistar esta mulher para me salvar do ridículo de estar apaixonado”. No que consiste esse ridículo a não ser no revelar-se carente do outro, faltante, incompleto?

Em Sade, os que detêm o falo detêm também o poder de gozar, que é sempre gozar do outro, sobre o outro, ou, como escreve L. A. Contador Borges, em seu posfácio à Ciranda dos libertinos:[9] “Do que se goza aí […] senão do próprio órgão? O gozo do falo é o que o libertino celebra […] O poder sobre o gozo é privilégio dos senhores. Goza! é a lei; tal é a instância do superego em Sade”.

Tanto Contador Borges quanto Deleuze apontam na obra de Sade o ódio pela mulher, a vocação para destruir a imagem materna, a exaltação do pai, invertendo o modelo edipiano. Eliane R. Moraes nota que as substâncias do gozo sadiano são sangue e esperma, demarcando as atividades da vítima e do libertino: aquela chora, este goza. Novamente o universo binário onde os personagens (e o leitor) são convidados a se inscreverem em apenas um, de apenas dois lugares possíveis. É assim que entre os libertinos, ou seja, entre iguais, se estabelece uma cumplicidade que visa a proteger a equação infantil pênis = falo. Entre cavalheiros, “nenhuma desordem, nenhum rompimento”, na expressão de Eliane Robert Moraes, referindo-se à aliança entre os quatro devassos de Os 120 dias de Sodoma.

A FILOSOFIA LIBERTINA É UMA RESPOSTA DO EU AO IMPERATIVO DO GOZO

Lacan, no texto Kant com Sade,[10] nota que o supereu tortura o eu tentando fazê-lo obedecer a dois imperativos, que não só se excluem mutuamente como são, um a um, impossíveis de se cumprirem: “Goza!” e “Não goza!”. O primeiro corresponderia à exigência sádica — o termo se aplica bem, aqui —, o segundo, ao imperativo categórico kantiano. É tão impossível impedir absolutamente alguém de gozar quanto obrigar alguém a gozar. A filosofia libertina corresponde, a meu ver, a uma grandiosa organização do eu comprometido todo (sem fissuras) com a exigência superegóica do gozo — um gozo tornado dessa forma ainda mais impossível, já que o gozo não corresponde aos recursos do eu. O eu administra, quer tudo saber, tudo organizar, tudo mostrar ou dizer (como em Sade), o que são justamente medidas para barrar o gozo. A compulsão do eu é neurótica, e o neurótico não quer saber de gozar. O gozo irrompe justo onde o discurso falha, onde a cadeia significante faz um lapso qualquer. Além disso, o gozo a que o supereu tenta obrigar o sujeito é um gozo supremo, absoluto e impossível — não o gozo fálico, acessível ao neurótico comum, mas o que se chama em jargão lacaniano o gozo do Outro.[11]

A filosofia libertina é um discurso compulsivo, ininterrupto, sobre o gozo. Quem goza, nas Ligações perigosas? Mme. de Tourvel, e só ela, no auge de sua paixão. Verdade que ela paga caro por isso (quem não paga?). Já Merteuil e Valmont estão sempre se detendo, retomando o controle (se é que alguma vez o perdem) a um passo de gozar — já que não existe uma maestria perfeita, um domínio total sobre o gozo, a não ser às custas do gozo mesmo. Valmont, no entanto, reconhece a mediocridade dessa alternativa, “a insípida vantagem que há em se conquistar uma mulher a mais”. Em oposição à mediocridade do gozo fálico, Valmont está sempre a um passo de conhecer outro gozo, sempre tentado a “perder a cabeça” pela inocente mme. de Tourvel. Para se proteger, recorre sempre a Merteuil e à rigorosa ética de conquistas inventadas por ambos como uma forma de controlar as paixões dos outros — esses idiotas comuns.

Nesse sentido, podemos pensar na cena libertina como uma construção do perverso para mistificar o neurótico, ou seja, nós, leitores comuns. No diálogo entre o neurótico e o perverso, o perverso monta uma cena para fazer com que o neurótico acredite que ele domina os segredos do gozo — e o neurótico, bobo, acredita. O perverso goza sim, mas não como o neurótico acredita. Ele goza ao iludir o neurótico (a cultura), ao se fazer mestre de um gozo que ele também não alcança. Mas como todo fingidor, é claro, ele goza “ao fingir o que deveras sente” etc.

Em Sade e em Laclos (aliás, também nos textos mais ingênuos, mais abertamente pornográficos, de Restif de la Bretonne), o prazer é organizado segundo um princípio de perfeita economia, onde nada deve se perder, se dissipar, se descontrolar. Quando começa a conquistar mme. Tourvel, Valmont escreve uma carta a mme. Merteuil na qual pede perdão à amiga por “conservar ainda certa emoção” da noite da véspera. “Preciso me violentar para me distrair da impressão que ela me causou.” As emoções não são confiáveis, elas dissipam uma energia que desorganizaria a ordem libertina. E. R. Moraes e Contador Borges mostram que o estado de espírito do perfeito libertino é a apatia dos sentimentos e a excitação dos sentidos. As sensações são confiáveis, as emoções não (mas como gozar sem a participação das forças obscuras do desejo, do psíquico, do inconsciente?).

Segundo o método da apatia, o libertino persegue um gozo impossível, e nessa busca é um eterno insatisfeito. Monge Severino: “Tudo está aquém de meus pensamentos, nada satisfaz meus desejos”. Jerônimo: “Há mais de vinte anos só tenho tesão diante da ideia de um crime superior a todos os que o homem possa cometer no mundo. Tudo o que fazemos aqui é a mera imagem do que gostaríamos de poder fazer” (notar o tédio presente em toda essa perseguição ao tesão ideal). O libertino está sempre em dívida com o seu ideal de gozo — não à toa, Deleuze se refere à importância do supereu na metapsicologia do sadismo.

Uma digressão: todo discurso científico ou filosófico não pode evitar que a ideologia tome emprestados seus elementos mais fáceis, mais assimiláveis. A psicanálise freudiana emprestou às ideologias das sociedades de mercado a ideia da infância feliz, a marca do narcisismo. A psicanálise freudiana gera um subproduto que é a fetichização do gozo como chave para dar sentido à existência humana. Adorno aponta essa ideologia (não fala de Lacan, claro): “Abandonando-se à natureza, o gozo abdica do que seria possível”. Abdica de intervir sobre o real em busca, por exemplo, do prazer. Para Adorno, o gozo é semelhante à compaixão (não seria esta uma forma sublimada de gozar?) que renuncia à mudança. Ambos contêm um elemento de resignação. Nietzsche (neste caso, falando contra Juliette): “Contra todos os que se contentam em gozar!” (Fragmentos).

A PAIXÃO LIBERTINA LEMBRA A “PAIXÃO DA INSTRUMENTALIDADE”

Já vimos que a paixão libertina é uma paixão mental, que tenta criar uma ordem perfeita regida pelo gozo fálico. A ideia de paixão da instrumentalidade é do psicanalista Contardo Caligaris,[12] um conceito que ele desenvolve para explicar as montagens perversas — das cenas de montadas pelo masoquista até o sistema “perfeito” da “utopia” nazista. Um sistema criado pelos processos secundários (processos sob dominio do eu, não do isso) no qual o sujeito se coloca como instrumento do gozo do Outro. Num certo sentido, todas as adesões fanáticas a sistemas ou instituições se explicam por aí, e, no fanatismo católico por exemplo, está implícito. Desde os crimes da Inquisição até a celebração dominical do sacrifício de Jesus, tudo se organiza para a maior glória, ou seja, para o gozo de Deus. Caligaris utiliza o conceito de paixão da instrumentalidade para explicar a possibilidade de qualquer sujeito “normal” aderir a uma montagem perversa, em que ele fica livre de arcar com as vicissitudes da subjetividade e se faz instrumento do gozo de um Outro, que rege a máquina e organiza os sujeitos. A adesão de milhões de cidadãos alemães “comuns” ao nazismo, para Contardo, não precisa ser explicada por um ódio aos judeus ou um prazer sádico. Quando o funcionário da SS alega que esteve “só cumprindo ordens” quando mandava os judeus para os fornos crematórios, talvez ele não esteja sendo cínico. Cumprir ordens, fazer parte da montagem, ser instrumento do gozo do Outro — esta a paixão própria da obediência cega.

Os personagens de Sade são todos iguais; poderiam ser dispostos em série, ordenados quanto às suas pequenas diferenças — adeptos da coprofilia, fanáticos da necrofilia, pedófilos etc. Assim também, num sistema mais imperfeito (portanto menos opressivo), as mocinhas devassas da Anti-Justine de Restif também são idênticas, diferenciadas pela cor do cabelo ou a grossura das coxas. Não há diferenças subjetivas entre um libertino e outro. A paixão da instrumentalidade consiste em fazer tábula rasa da subjetividade. Sua função (e a adesão que ela incita) é a de livrar o sujeito da solidão e dos riscos da singularidade. No limite, todos pertencemos a um discurso que nos precede e estabelece um campo para nosso desejo — a família, uma profissão, um credo religioso ou político etc. A paixão da instrumentalidade leva ao limite essa adesão, em que cada sujeito é instrumento do gozo do Outro. A montagem é essencial nesse sistema. Ela funciona como ordenadora do sistema de um gozo que os mortais comuns passam a vida tentando decifrar. Um exemplo está no discurso de Verneuil, nos 120 dias de Sade: “O grande ser que represento como ministro, e de quem recebi ordens esta manhã, vos responderá por um bilhete. Tereis que executar seu conteúdo. Lembrai-vos que o estilo dos decretos de um Deus é sempre um tanto obscuro […]”. Eliane Robert Moraes descreve a montagem ordenada pelo “grande ser” que Verneuil diz representar: “Os bilhetes são rolos de cetim branco saindo da boca do Eterno até os joelhos de cada libertino, que, depois de lê-lo, deve ir para um dos gabinetes, satisfazer a volúpia a ele destinada (…)”. Que alguém destina a cada um de nós uma volúpia — que alívio isso nos faria sentir! Livres da escolha, da culpa, da dúvida e da responsabilidade, só nos restaria obedecer. E, se o prazer obtido parecer mediocre, o libertino goza ao fazer gozar o Outro, que destinou a cada um, previamente, um lugar e uma “volúpia”.

A PAIXÃO LIBERTINA NADA QUER SABER SOBRE A MULHER

Talvez seja uma vingança do Iluminismo contra a feminilidade, do mesmo modo que, na literatura realista do século XIX (que também pretende tudo dizer, tudo mostrar), um escritor como Flaubert cria um paradigma da sexualidade feminina, na personagem de Emma Bovary, apenas com o intuito de vingar-se dela.

Há uma passagem em Ligações perigosas em que o libertino Prévan mostra a superioridade de sua estratégia diante da fragilidade das mulheres: faz com os amantes traídos das três damas que conquistou um pacto de cavalheiros para desgraçar a reputação (e a auto-estima) delas. Embora traídos por Prévan, os três cavalheiros aceitam o acordo com o sedutor, divertindo-se em humilhar suas amantes — elas sim, as verdadeiras enganadas nessa intriga.

A mulher atípica é mme. Merteuil, que responde às advertências de Valmont contra Prévan, com quem pretende se divertir um pouco: ela sabe muito bem onde está se metendo, pois como mulher libertina não tem nada a ver com as outras, as vítimas. Ela aprendeu há muito tempo a jogar o jogo da erótica masculina — só assim uma mulher se dá bem entre os libertinos e é respeitada por eles. Ela escreve que sabe muito bem o quanto uma conquista fracassada, para os homens, representa só um sucesso a menos, enquanto para uma mulher um sucesso de menos significa uma queda brutal.

Nesta partida tão desigual, nossa sorte consiste em não perder, e vossa desgraça, em não ganhar. […] Suponhamos que você se empenha tanto em nos vencer quanto nós em nos defendermos. Mesmo assim, seu empenho inicial torna-se desnecessário após a conquista. Unicamente ocupados de seu novo prazer, vocês se entregam sem medo ou reserva. Não é a vocês que concerne a duração dessa aventura.

Merteuil percebe que para o libertino não há risco, perda ou humilhação — esses danos ficam todos na conta das mulheres que ele conquista. Não há perda porque todas as mulheres se equivalem (como para Don Juan), cada uma sendo só mais uma numa série infinita e pouco diferenciada. Essa indiferenciação entre todas as mulheres nos lembra o desprezo de Sade pelo órgão sexual feminino, incapaz de despertar volúpia em seus personagens — na Filosofia na alcova, Dolmencé e mme. Saint-Ange enumeram as vantagens do cu, quando comparados à sem-gracice da boceta. “Não conheço nada tão enfadonho quanto os prazeres da boceta; tendo-se já, como a senhora, provado os do cu, não concebo como podeis retornar àqueles.” O cu, órgão “sexual” que apaga as diferenças entre homens e mulheres… “Certifico-lhes de que não há a menor comparação, e que será muito difícil voltarem à frente depois de terem passado pela experiência do traseiro”, responde a Saint-Ange.

Nas Ligações, lembro a passagem em que mme. Merteuil mostra seu desprezo pelas mulheres: “Guarde vossos conselhos e temores para essas mulheres delirantes, que se dizem sentimentais, cuja imaginação exaltada fará crer que a natureza colocou os sentidos no lugar da cabeça. E que, não tendo nunca refletido, confundem sem cessar o amor e o amante […] e, no seu delírio, acreditam que só com eles encontrarão prazer”. Desprezando a mulher, ou melhor, as posições femininas, Merteuil despreza também o amor (volúpia feminina por excelência): “Entendi que o amor, que nos vendem como a causa de nossos prazeres, é apenas o pretexto para eles”.

Dorothea, a “messalina” de Sade, é tida como um homem: tem um clitóris avantajado com o qual possui Justine: “Mas o que é isso, madame… alguma coisa empurra esse lençol? retirai esse véu! rendo-me à ilusão: muito mais homem do que mulher, a madame não tem nada a esconder!” (grifo meu). Esta é uma mulher que não causa repulsa ao libertino, que não precisa ocultar seu órgão sexual repugnante — “pertence à classe dos homens pois é digna disso”. Sade, no entanto, convoca as mulheres a se libertarem de suas posições infantis, românticas, católicas, e se entregarem à libertinagem. “Mulheres lúbricas, que a luxuriante Saint-Ange vos sirva de modelo. Desprezai com ela tudo o que contraria as leis divinas do prazer. Moças tanto tempo contidas por laços absurdos e perigosos de uma virtude quimérica e de uma religião repugnante, imitai a ardente Eugênia: destruí, pisai com a mesma rapidez em todos os preceitos ridículos inculcados por pais imbecis […]” Como não ver nesse discurso (Filosofia na alcova), também, um precursor das modernas conquistas de liberdades sexuais pelas mulheres?

Se é difícil, algumas vezes impossível, a algumas mulheres ceder a esse convite, não é apenas por uma adesão ingênua aos “ridículos preceitos paternos” etc., mas pela impossibilidade de uma mulher se inscrever, sem prejuízos, na rígida ordem fálica do discurso libertino onde ela só pode ficar como vítima — ou como homem.

É interessante notar que o “antifeminismo” radical dos libertinos não aparece somente na posição sádica do marquês, o mais terrível de todos os libertinos. Na introdução da Anti-Justine, Restif,[13] o ingênuo, declara-se inimigo de Sade e propõe que sua obra seja lida como uma homenagem às mulheres. Mas nem por isso encontra para elas outra possibilidade além de fazê-las girar em torno do falo. O que está banido da filosofia libertina é a possibilidade da existência de um sujeito feminino:

Ninguém se indignou mais do que eu com as obras sujas do infame Dsds… [alusão ao marquês de Sade] que li na prisão. O celerado só apresenta as delícias do amor para o homem, acompanhadas de tormentos ou da própria morte das mulheres. Meu objetivo é fazer um livro mais saboroso que os seus, que as esposas poderão dar a seus maridos a fim de serem mais bem servidas por eles […] em que a libertinagem nada terá de cruel para o sexo das graças […]. Ao lê-lo, todos vão adorar suas mulheres e vão mimá-las metendo em suas conas. Mas todos abominarão ainda mais o vivisseccionista, o mesmo que foi tirado da Bastilha com uma longa barba branca em 14 de julho de 1789.

Por fim, cito dois trechos da Juliette de Sade. O primeiro diz que a diferença entre um homem e uma mulher é tão grande quanto a que existe entre o homem e o macaco. “As razões que teríamos para recusar que as mulheres façam parte da nossa espécie são tão boas quanto as que temos para recusar que os macacos sejam nossos irmãos.” Comparando os dois corpos nus, “veremos claramente que a mulher não passa de uma degradação do homem”.

Em outro trecho ainda, o conde Belmor diz a Juliette: “A inferioridade de vosso sexo em relação ao nosso está suficientemente bem estabelecida para que jamais possa excitar em nós um motivo sólido para respeitá-las, e o amor que nasce desse respeito cego não passa de um preconceito como ele próprio”.

Se no século das Luzes a razão era considerada atributo masculino e a mulher, identificada à natureza, a filosofia libertina propunha uma erótica em que o homem, investido da onipotência da razão, assumia plenos direitos de submeter a natureza e dela gozar, afirmando sua superioridade “inata” sem nada querer saber da subjetividade da mulher.

AFINAL: ASSÉDIO SEXUAL É LIBERTINAGEM?

Vimos na filosofia libertina que a cultura nascida na Europa das Luzes, da qual somos ainda herdeiros, só concede dois lugares à mulher: ou ela se faz fálica e adere à lógica que rege o gozo dos homens (seus algozes, na erótica libertina), ou porta o corpo castrado que a condena ao lugar de vítima daqueles que detêm o falo e, portanto, o poder. Num caso, a mulher abre mão da feminilidade para compartilhar com os homens a posição fálica. No outro, a feminilidade é equiparada ao masoquismo.

O discurso libertino, no entanto, nunca monopolizou a “história das ideias” no Ocidente. Bem antes dele a Igreja católica, contra a qual os libertinos erigiram sua montagem (portanto, parte essencial daquele gozo), identificava o corpo da mulher ao pecado, à tentação do demônio ou ao corpo sagrado da procriação — um discurso que se acentuou no século XIX com a criação do dogma da Virgem Maria. Que o corpo feminino deva permanecer intocável, ou porque representa o Mal, ou porque deve permanecer puríssimo, são dois modos equivalentes de fazer com que ele não revele a marca do que aterroriza o homem — sua castração.

O cristianismo só concede valor às mulheres se estas forem assexuadas ou mães (o que são quase dois modos de dizer a mesma coisa). Um terceiro discurso dominante no Ocidente, o do amor romântico, também idealiza a mulher enquanto ser distante e intocável. O romantismo tem em comum com a filosofia libertina a associação entre a mulher e a natureza. Mas enquanto os libertinos, inspirados pelos ideais científicos do Iluminismo, despojam a ideia de natureza de todo mistério — ela está aí para que o homem se sirva dela —, o romantismo, de forte herança cristã, faz da associação mulher-natureza uma fonte de representações excitantes para a imaginação. Assim, a mulher deve se manter distante para preservar seus “mistérios”, e com isso suscitar não somente o desejo mas a própria adoração masculina.

Este o destino das mulheres no Ocidente moderno, até bem poucas décadas: sua valorização dependia sempre de manter-se numa posição inacessível. Toda vez que uma mulher se torna sexualmente acessível ela se degrada — como a vítima abobalhada dos libertinos, como a pecadora perigosa dos cristãos, como a cortesã que é a “outra”, o avesso da musa dos românticos.

O deslocamento das posições tradicionais promovido pela modernidade tornou impossível que a mulher permanecesse como “o outro do discurso”, isto é, objeto dos discursos produzidos pelos homens. Há uma passagem da mulher para uma posição de sujeito, sobretudo no século XX, mas é uma passagem complicada para homens e mulheres. Por um lado, desde os fins do século XIX vemos as mulheres manifestarem seu desajuste em relação às posições femininas tradicionais — as histéricas de Freud bem o disseram — e reivindicarem o acesso aos recursos e privilégios até então considerados como masculinos, tanto na vida social e profissional quanto na sexualidade. Por outro lado, quando começam a produzir um discurso próprio (o que é condição para sair da posição de objeto), as mulheres passam a falar de si mesmas como vítimas. O discurso da vítima, que carrega evidentemente uma verdade histórica, representa a posição de objeto para o Outro — no caso, os homens — ao mesmo tempo em que reivindica autonomia, independência, respeito, difíceis de se obter até que as mulheres abram mão das vantagens do vitimismo.

Do ponto de vista dos homens, a excessiva aproximação entre os campos masculino e feminino reativa o velho horror à castração. Não só na mulher, quando ela se torna muito acessível e elimina os véus de mistério que encobrem a falta. A aproximação entre os campos masculino e feminino também confronta o homem com sua própria castração, além de revelar a fragilidade do que se considera a posição masculina. A virilidade dos homens depende, sim, de certa passividade, de certo submetimento por parte das mulheres — disso, os libertinos sabiam muito bem. A vítima submetida e amedrontada era uma das condições que mantinham sempre ereto o falo do libertino. Portanto, se as reivindicações das mulheres mudaram com a modernidade, as dos homens não inovaram em nada no campo das diferenças sexuais: eles continuam demandando que as mulheres fiquem longe o suficiente para serem desejadas. E que, ao se aproximarem, mantenham ao menos certo recato que os proteja daquilo que eles definitivamente não querem saber.

No período agitado que hoje alguns consideram como o começo da pós-modernidade — a segunda metade do século XX — as mudanças reivindicadas pelas mullheres desde a Revolução Francesa finalmente se consolidaram. O ingresso em massa em todos os setores do mercado de trabalho e a consequente independência financeira, além de um acesso à participação na vida pública comparável ao dos homens, eliminou a equivalência tradicional entre a posição feminina e a posição infantil. No plano das trocas sexuais, a divulgação de técnicas anticoncepcionais eficazes permitiu desvincular a sexualidade da procriação, o que por si só equivale a permitir à mulher, pela primeira vez na história, uma liberdade sexual equivalente à dos homens. O fim do tabu da virgindade e da dupla moral sexual, a dessacralização do corpo feminino, a possibilidade da mulher também desvincular desejo sexual e amor, tudo isso promoveu uma tal desterritorialização nas relações entre homens e mulheres que durante muito tempo ainda teremos de lidar com as crises que ela produziu.

Um dos sintomas de crise é a histeria que se criou, primeiro nos Estados Unidos e agora também no Brasil, em torno da proposta de criminalização do assédio sexual. Em primeiro lugar, quero considerar que, depois de um período em que a liberação sexual parecia uma espécie de conquista do paraíso — e também com o advento ameaçador da AIDS —, houve uma decepção para as mulheres: o gozo fálico não é assim tão interessante quanto pode parecer do ponto de vista invejoso criado pela repressão moral, e a possibilidade de variar intensamente de parceiros não garante a ninguém o prazer que parecia prometer. Em segundo lugar, há perdas narcísicas em jogo. Nos discursos que condenam e tentam criminalizar o assédio sexual, por exemplo, as mulheres referem-se frequentemente a um sentimento de humilhação diante da insistência masculina. Penso que aqui há um deslocamento no sentido freudiano do termo, em que uma ideia consciente substitui a expressão de outra, recalcada. Afinal, o assédio sexual pode chatear, cansar, até mesmo intimidar quem é objeto dele. Mas por que haveria de ofender, de humilhar a mulher? O deslocamento a que me refiro é que a humilhação sofrida pelas mulheres não provém dos eventuais maus modos de assediadores insistentes, mas da perda narcísica consequente da dessacralização do corpo feminino.

Essa dessacralização, as próprias mulheres lutaram por ela, foi condição de um grande ganho de liberdade, de mobilidade na relação das mulheres com seus corpos. O preço a pagar foi a perda dos privilégios da posição de objeto-tabu. Não somos mais as musas idealizadas do amor romântico, as virgens proibidas do cristianismo, guardadas como objetos de grande valor a serem concedidos em troca de um dote, ou, mais modernamente, de promessas de amor eterno, proteção e segurança.

Cito um trecho do documento elaborado pela Comissão de Direitos e Liberdades Individuais[14] transcrito pela deputada Martha Suplicy (PT-SP) em seu projeto de lei pela criminalização do assédio sexual. Nele define-se assédio como “ato de insinuação sexual que atinge o bem-estar de uma mulher ou de um homem e constitui um risco para sua permanência no emprego, na forma de propostas, insinuações persistentes, verbais ou gestuais”. Outra definição, no mesmo texto: “Comentário sexual, um gesto, um olhar, palavras sugestivas repetidas e não desejadas ou um contato físico considerado repreensível, desagradável ou ofensivo que nos incomoda em nosso trabalho”.

É evidente que o assediador, que em tempos de “mulheres liberadas” imagina que nenhuma há de lhe recusar um “favor” sexual, é capaz de criar situações desagradáveis e constrangedoras para suas “vítimas”, mas a questão que se coloca para as mulheres é: vamos nos tornar mais capazes de nos defender, sustentando nosso desejo e também nosso direito à recusa, ou vamos chamar a polícia e persistir na posição de vítimas dos homens? Martha Suplicy considera o assédio sexual como um mecanismo de humilhação de gênero que deve ser denunciado e criminalizado, porque desvaloriza a mulher. Ora, esse é um discurso muito próximo dos que consideram o sexo uma sujeira e as manifestações do desejo sexual aviltantes.

Diante dessa suposta desvalorização — a mulher vale menos quando é tomada como objeto do desejo sexual de um homem que não a ama, só quer ter prazer com ela —, qual a revalorização que se está pleiteando? A histeria anti-assédio, a meu ver, é a pior combinação possível entre o filisteísmo capitalista, que trata o corpo como propriedade privada, e o moralismo cristão, que desvaloriza e incrimina a sexualidade.

Debatendo com a deputada petista, o advogado Samuel McDowell considera a tentativa de criar uma lei anti-assédio como “manifestação da intolerância […] e produto do desejo de entregar aos aparelhos de Estado competência cada vez mais repressiva no terreno das relações individuais”. Se o projeto de lei anti-assédio visa punir aqueles que tentam “constranger, por meio de palavras ou gestos, homens ou mulheres com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual”, ou “empregar meios físicos, violência, ameaça e coerção psicológica para constranger homem ou mulher à prática de atos sexuais”, McDowell lembra que constrangimento ilegal e ameaça são duas formas de abuso de poder já previstas por lei, e que o assédio, fora desses recursos ilegais, não pode ser considerado delito: “Faz parte dos conflitos inerentes às relações pessoais”. Finalmente, a reiteração da lei penal do que já está previsto nela corresponde, para o jurista, a “uma exacerbação da atividade repressiva dos aparelhos públicos”. Essas exacerbações, conclui, “são frequentes em muitas manifestações coletivas atuais, como as que ocorrem sob a inspiração do politicamente correto, que trazem a contrapartida de transpor para quem se diz, ou é de fato, vítima potencial de uma conduta opressiva, o papel de agente de um autoritarismo equivalente ao que visa combater”.

De minha parte, penso com certo desgosto que as mulheres não estão se mostrando preparadas para pagar o preço pela democracia sexual que elas próprias lutaram tanto para inaugurar. Que não sabem suportar a ferida narcísica de ver seus corpos, sagrados e idealizados até a geração de suas avós e ainda proibidos até a geração de suas mães, serem hoje interpelados pelo desejo masculino como objetos possíveis (portanto banais) do desejo, sem o acompanhamento das idealizações que a repressão produzia. E que não suportam também a responsabilidade recém-adquirida pela liberdade de manifestarem seu próprio desejo sexual, que implica o risco (este, os homens sempre correram) de sofrerem recusas, abandonos, rejeições. As mulheres querem a liberdade sem perder a sobrevalorização que o tabu do incesto conferia a seus corpos. Ainda querem as rosas, os elogios, os tapetes vermelhos estendidos a seus pés, as promessas — e, o que é mais covarde, as garantias — dos tempos em que virgindade era um bem a ser vendido a um preço alto.

Admito que algumas formas de assédio possam consistir em ofensas desagradáveis ou mesmo graves. Mas, avaliando perdas e danos, considero a histeria anti-assédio como reação de massa aos difíceis enfrentamentos dos conflitos sexuais, um retrocesso infinitamente mais grave.

Notas

[1] S. Freud, O inconsciente (1915), in Obras completas, vol. 2, pp. 2069-82, Madri, Biblioteca Nueva, 1976.

[2] Theodor Adorno, “Juliette ou Esclarecimento moral”, in Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

[3] Sérgio Paulo Rouanet, “As bacantes”, in Os sentidos da paixão, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

[4] Cf. Sade, A filosofia na alcova, Salvador, Ágalma, 1995.

[5] Eliane Robert Moraes, Sade — a felicidade libertina, Rio de Janeiro, Imago,1994.

[6] Idem, ibidern, n. 5.

[7] Choderlos de Lados, Les liaisons dangereuses, Paris, Gallimard, 1972.

[8] Sacher-Masoch, A Vênus das Peles, in Gilles Deleuze (org. e prefácio), Masoquismo.

[9] L. A. Contador Borges, Posfácio à Ciranda dos libertinos (textos de Sade), São Paulo, Max Limonad, 1988.

[10] Jacques Lacan, Kant con Sade, in Escritos, vol. 2, Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 1995, pp. 744-70.

[11] Ver a respeito J.-D. Nasio, Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993.

[12] Contardo Caligaris, seminários na Livraria Pulsional, São Paulo, 1992. 0 tema da paixão da instrumentalidade também está em A clínica do social. São Paulo, Escuta,1991.

[13] Restif de la Bretonne, Anti-Justine, Porto Alegre, L&PM, 1991.

[14] Publicado na revista Teoria e Debate, do Partido dos Trabalhadores, no 29, ano 8, jun./jul./ago. 95, seção “Debates”, com Martha Suplicy, Samuel McDowell e Maria Rita Kohl.

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