2004

Civilização partida

por Maria Rita Kehl

Resumo

Quando visitou Hanói com um grupo de intelectuais em 1969, Susan Sontag previu que, apesar da superioridade militar e tecnológica, os Estados Unidos sairiam derrotados da guerra contra o Vietnã. Para Sontag, a certeza dos soldados vietcongues em relação ao seus ideais revolucionários ganharia a guerra contra a dúvida dos soldados americanos que não sabiam exatamente em nome de quem estavam lutando.

“Somos a única civilização que duvida de si mesma”, escreveu Sontag se referindo não somente aos Estados Unidos mas às culturas ocidentais do século XX.

O termo moderno civilização surgiu para designar as sociedades europeias em relação aos povos do recém descoberto “Novo Mundo”. O civilizado é aquele que constrói sua identidade por oposição ao Outro. Diante da dúvida advinda da existência desse Outro, a modernidade produziu duas atitudes predominantes: a intolerância e, em oposição, a tolerância com o diferente. O grande valor ético trazido pela modernidade foi a capacidade de suportar a dúvida, a divisão, a falta de certeza, que cede lugar ao Outro e permite a convivência com a diversidade.

O século XX foi o século do inconsciente  e a relação entre civilização e barbárie pode ser pensada em correspondência com a relação entre o eu e o inconsciente.

A abertura para o outro é uma condição para a tolerância, pois uma das bases da intolerância é o mecanismo defensivo de projetar sobre o outro — meu semelhante na diferença — tudo aquilo que eu rejeito em mim mesmo. Se não quero admitir o “mal” e a contradição em mim mesmo, vou projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de que não quero saber, em mim. E, quanto mais próximo for o próximo, mais ele serve de suporte para esse mecanismo de defesa — foi o que Freud percebeu ao articular a intolerância ao “narcisismo das pequenas  diferenças”.

É importante pensar que o conflito Ocidente versus islã hoje talvez não seja um conflito entre bárbaros e civilizados, mas entre as modalidades de barbárie produzidas por ambos os sistemas, em que cada um tenta eliminar no outro os elementos que podem perturbar suas certezas de estar do lado do Bem e da Verdade, únicos e inquestionáveis.

A melhor tradição da modernidade aposta no diálogo, nas negociações e na tolerância mútua como recursos para que as guerras se tornem desnecessárias.


Em 1969, quando o mundo estava longe de supor que os Estados Unidos perderiam a guerra do Vietnã, a escritora Susan Sontag visitou Hanói com um grupo de intelectuais de esquerda norte-americanos a convite do governo. Registrou a visita em um longo ensaio chamado “Viagem a Hanói”, espécie de diário de viagem no qual ela analisa com muita sensibilidade o impacto que o encontro com aquela sociedade tão diferente da sua lhe causou. Uma das reflexões mais importantes de Sontag é a previsão que ela faz, de que os vietcongues ganhariam a guerra apesar da óbvia inferioridade militar e tecnológica em relação ao inimigo.

A vantagem vietcongue, puramente psicológica, estaria em sua convicção inabalável nos ideais revolucionários pelos quais lutariam até o fim, em oposição à frouxa convicção dos soldados norte-americanos em sua “causa”. Mas Susan Sontag, embora valorizasse a coragem e a determinação do povo do Vietnã, não se mostrava encantada com seu fanatismo. Sem deixar de sublinhar a ambiguidade da afirmação, a um só tempo etnocêntrica e autocrítica, Sontag comenta que ela faz parte de uma sociedade que duvida de si mesma; o preço da enorme abertura que esse sentimento propicia em relação a tudo o que é novo e diferente é a falta de convicções seguras sobre o bem e o mal, o belo e o feio, o certo e o errado.

No final da década de 1980, Octavio Paz também se referiu aos Estados Unidos como um caso raro de sociedade imperialista que parecia demonstrar um certo gosto em se admitir em crise com seus próprios valores e com seu poder. O fato de muitos norte-americanos rejeitarem ou criticarem o ideário imperialista de seu país fazia com que se sentissem mais sensíveis e também mais avançados, escreveu Paz. É verdade que ele se referia aos Estados Unidos do final da era Reagan, assim como Susan Sontag estava se referindo aos Estados Unidos da década de 1960, uma sociedade muito diferente da que conhecemos hoje, depois do atentado de 11 de setembro de 2001. Mas quero tomar aqui a proposta de Sontag, de que duvidar de si mesma seja uma das principais características das civilizações modernas. O termo civilização surgiu com o advento da modernidade, para designar as sociedades europeias em relação aos povos do recém descoberto “Novo Mundo”. Penso que podemos fazer coincidir, grosso modo, “modernidade” e “civilização”; não porque as sociedades pré-modernas ou antimodernas sejam bárbaras, mas simplesmente porque o conceito de civilização foi criado para marcar uma diferença em relação a elas. Ora, se o civilizado é aquele que constrói sua identidade por oposição ao Outro, seu semelhante na diferença — o oriental, o indígena, o bárbaro —, podemos dizer que ele nasce marcado pela diferença. Ou seja: nasce dividido.

O longo período a que chamamos modernidade, que se originou por volta do século XVI e ainda não se esgotou, produziu duas atitudes predominantes diante da dúvida advinda da existência desse Outro, que define sua identidade mas não sua unicidade. Uma delas é a intolerância, fundamentada pelas correntes de pensamento que tentam produzir convicções e certezas com base em um significante absoluto, capaz de ocupar o lugar deixado vazio por Deus. Esse significante inquestionável pode ser a razão, a ciência ou — atualmente — o mercado. O sujeito do conhecimento que emerge desses modos de pensar está (precariamente, como veremos) centrado na razão e na soberania do eu.

A segunda atitude a que me refiro seria (em oposição à primeira) a da curiosidade, da hospitalidade e da tolerância com o diferente. Mas essa abertura cobra o preço da dúvida e do conflito intersubjetivo, representado como conflito entre o eu e o outro. Tolerar o estranho não significa apenas permitir que ele exista em algum lugar, longe de nós. Não significa apenas suportar que ele ocupe a periferia de um mundo no qual nós, modernos civilizados, supomos ocupar o centro. Abrigar e tolerar o estranho é permitir que ele nos desestabilize permanentemente, deslocando nossas certezas, borrando as fronteiras de nossa suposta identidade, oferecendo traços identificatórios que frustram o outro projeto moderno, de unicidade e individualidade. Tolerar o estranho é tolerar também a incerteza que ele traz. Este é o grande valor ético trazido pela modernidade, valor que permite que nos orgulhemos de ser “civilizados”: a capacidade de suportar a dúvida, a divisão, a falta de certeza, que cede lugar ao Outro e permite a convivência com a diversidade.

Uma das características da experiência do sujeito moderno é a falta de rígidos limites identitários; a “morte de Deus” anunciada por Nietzsche destruiu as possibilidades de os homens se filiarem a uma versão unívoca da verdade, e definir o ser e o destino com base nela.

Por isso mesmo a experiência moderna, desde a Renascença, é uma experiência com a variedade — de informações, contatos humanos, opiniões etc. Os piores cenários da modernidade consistem nas tentativas de recosturar as brechas existentes nas múltiplas versões da verdade e construir um discurso único, uma identidade fixa para os sujeitos, uma nova fé. O melhor cenário apresenta-se quando as sociedades modernas reagem à experiência dessa “falta de verdade” admitindo que a promiscuidade e a permissividade em relação à convivência com o estrangeiro, em todos os sentidos da palavra, são a grande fonte de riqueza humana das culturas que desejam se identificar como civilizadas.

O SUJEITO SOLAR E O INCONSCIENTE

Quero começar aproveitando uma pergunta da plateia sobre o inconsciente. Foi uma pergunta meio fora de hora porque ainda nem comecei a conferência, de modo que ainda não construí, junto com a plateia, argumentos que me permitam respondê-la. Mas ela me evoca um poema de Ungaretti que pode me ajudar a introduzir o tema da  noite.

Com minha fome de lobo amaino
meu corpo de ovelhinha.
Sou como
o mísero barco
e como oceano libidinoso.

Esta é uma imagem muito bonita para representar a relação entre o nosso eu e o inconsciente: um mísero barco em um oceano libidinoso. É evidente que o barquinho tem poucas chances de conduzir seu destino diante das forças poderosíssimas do oceano, mas digamos que talvez ele tenha mais chances se souber aproveitar os ventos e as correntes marítimas do que se reagir contra eles. Ou seja: o eu que tenta controlar o rumo de nossas vidas é muito menor do que o “oceano libidinoso” que o ultrapassa. Seu sucesso depende da possibilidade de fazer uma certa aliança com o inconsciente para não ser engolido por ele.

O século XX foi o século da psicanálise. Isso equivale a dizer que foi o século do inconsciente. O século em que as forças e representações inconscientes deixaram o silêncio e a obscuridade a que foram relegadas no início da era moderna, e voltaram a ganhar um estatuto de discurso significativo, cujas representações enigmáticas possuem uma relação com a verdade do sujeito. Notem que digo: “voltaram a ganhar um estatuto de discurso significativo”, indicando que, em sociedades organizadas em moldes diferentes da racionalidade moderna, as produções do inconsciente teriam um outro lugar, reconhecido como lugar de produção de verdade; pensem no caso dos adivinhos na Antiguidade, ou dos xamãs nas sociedades indígenas, por exemplo. Ou dos pais e mães-de-santo do candomblé. Mas não vou me estender sobre isso agora.

A afirmação sobre o banimento e o retorno do inconsciente já nos coloca diante de um problema: o inconsciente teria então um estatuto específico na modernidade? “Onde” estava o inconsciente nas culturas pré-modernas? Só os modernos são “sujeitos do inconsciente”? Não creio que possamos ir tão longe no espaço desta conferência. Mas é possível supor que a modernidade, ao proporcionar o advento de um sujeito centrado na razão individual, um sujeito soberano em relação a suas certezas e suas representações, não tutelado por Deus e suas instituições terrenas, estabeleceu uma configuração subjetiva muito particular no que diz respeito à relação entre o eu (identificado com a razão e a consciência) e o inconsciente. Meu interesse, como o de muitos psicanalistas hoje em dia e também historiadores e filósofos, é entender como, do sujeito solar, racional e autocentrado que a modernidade constituiu, surgiu o sujeito do poema de Ungaretti, que percebe seu eu como um mísero barquinho entregue às correntes e às tempestades do oceano libidinoso que ele não controla.

Como psicanalista, não consigo dissociar a proposta deste curso, que é pensar as relações entre civilização e barbárie nos nossos dias, desta outra polaridade, entre o eu moderno e o inconsciente. Não há nenhuma correspondência biunívoca entre essas duas polarizações.

Não se trata de identificar o eu com a civilização, por exemplo, e o inconsciente com a barbárie. O que quero propor é que a relação entre civilização e barbárie pode ser pensada em correspondência com esta outra relação, entre o eu e o inconsciente. No mínimo, podemos supor uma analogia entre a abertura das civilizações modernas para o estrangeiro e a abertura do sujeito para a existência de seu inconsciente. Ou, na vertente oposta e complementar: uma relação entre a tentativa de fundar uma subjetividade com base na soberania da razão e os projetos de controle de todas as forças sociais por um Estado totalitário.

O  termo  civilização  pode  ser  aplicado  a  diversas  formas de organização social em diversas épocas, dos egípcios aos maias, dos gregos aos guarani. Não sendo antropóloga nem historiadora, vou tomar esses termos, civilização e barbárie, no sentido mais próximo ao senso comum. A relação que pretendo desenvolver entre civilização e barbárie tem como foco a modernidade — que contém, em si mesma, elementos civilizados e bárbaros — e como pano de fundo o sujeito moderno, que é o sujeito da psicanálise.

Embora o termo civilização tenha se difundido para caracterizar o que diferencia as sociedades ocidentais modernas de todas as outras, seria muita pretensão identificar a modernidade, o Ocidente moderno, com a civilização. A modernidade contém tanto “civilização” como “barbárie”. Contém os sistemas de pensamento da certeza absoluta, que produzem fanatismo, intolerância e não comportam a alteridade, e os sistemas de pensamento que não buscam a totalização e suportam a falta de uma verdade absoluta: este é o pensamento que se abre para a alteridade. A modernidade contém os dois sistemas de pensamento, da dúvida e da certeza, que vou qualificar como a civilização e a barbárie, já que são as certezas absolutas que justificam a intolerância e a violência em relação ao diferente. O nazismo, experiência-limite do enlouquecimento da racionalidade moderna, já nos ensinou que, se existe um mal absoluto, ele está justamente do lado daqueles que se acreditam, sem sombra de dúvida, autorizados a agir em nome de um bem absoluto. Este é o eixo bárbaro da modernidade.

Vou qualificar então de “tradição da dúvida” a tradição moderna que considero civilizada: aberta para o diferente, criativa e pouco autoritária. E de “tradição da certeza” a corrente moderna que busca as grandes totalizações políticas e científicas, a abolição da diversidade, a imposição autoritária de um pensamento único e consequentemente a intolerância com o estranho. No início da modernidade, podemos pensar o florescimento das artes e das ciências na Renascença como característicos de um período “civilizado”; na mesma época, consideramos “bárbaras” as práticas punitivas dos tribunais católicos da Inquisição, ou a destruição das culturas indígenas da América pelos colonizadores.

A ciência moderna, por exemplo, é civilizadora quando libera o homem de preconceitos obscurantistas e fornece parâmetros para nos libertar do jugo da natureza. Mas sua face bárbara se revela quando produz armas de destruição em massa e se afirma como potência sobre humana, acima da lei, servindo aos interesses do capital sem reconhecer  nenhum  limite  ético. Grosso  modo,  identificamos  as democracias modernas como civilizadas e os grandes sistemas políticos totalitários do século XX — nazismo e stalinismo — como casos de barbárie ocorridos em plena modernidade. Mas esses sistemas “bárbaros” foram possibilitados pela expansão da mesma racionalidade moderna que, em outra vertente, contribuiu para nos tornar mais capazes de negociar nossas diferenças religiosas e políticas, ou seja: mais civilizados.

A relação entre as contradições do sujeito e a dialética entre civilização e barbárie pode ser pensada nos seguintes termos: quanto mais o sujeito se pretende solar e soberano, mais ele rejeita as evidências do inconsciente; mas quanto mais pretende ignorar o inconsciente, mais é assaltado e dominado pela obscuridade desse “outro” que também é ele. “Eu é um outro”, escreveu Rimbaud. O que esse “outro” tem a ver com as condições modernas?

A Renascença é considerada por muitos historiadores como a incubadora da modernidade porque foi o período em que o Outro se apresentou, sob muitas faces, ao europeu que se imaginava no centro do mundo. O ciclo dos descobrimentos trouxe a notícia da existência das estranhas civilizações das Américas, da África e do Oriente. A Reforma da Igreja questionou o monopólio da verdade por parte das autoridades eclesiásticas e consolidou o individualismo cristão, segundo o qual cada um era responsável pelas condutas que atestassem sua fé. A livre circulação da palavra escrita possibilitada pela invenção da imprensa trouxe o desenvolvimento do hábito de leituras silenciosas, que contribuiu para reforçar o individualismo e democratizar as possibilidades de reflexão solitária diante de uma  diversidade de textos impressos com saberes e opiniões que a Igreja católica já não conseguia mais guardar e controlar.

O início do mercantilismo promoveu o contato entre aldeias e burgos isolados, intensificou a circulação e a diversificação das mercadorias e aos poucos unificou o sistema de trocas através da moeda, valor abstrato cuja posse tornava, de certa forma, todos os homens iguais.

O homem transformou-se em objeto do pensamento filosófico; deslocado de seu lugar no centro do sistema solar pela revolução copernicana, foi forçado a observar sua existência de um outro ponto de vista, a distância, e a indagar-se sobre quem ele é. O conceito de homem universal do humanismo renascentista, a ideia de que nossa “humanidade” é a condição compartilhada por todos os seres humanos, data desse período.

Entre todas essas transformações, quero ressaltar a importância central da Reforma da Igreja na formação do sujeito moderno. A palavra das autoridades da Igreja, que foi critério de verdade durante quinze séculos, foi recusada por um cristão. “São só opiniões”, disse Lutero ao defender suas teses de Leipzig, em 1519. Não devemos confiar cegamente nelas, pois os padres e bispos não têm nenhum acesso privilegiado à palavra de Deus. Chamado diante das autoridades eclesiásticas, Lutero recusou-se a retratar-se, porque não considerava confiável uma retratação contra sua própria consciência. Para ele, cada fiel, examinando honestamente sua consciência, deveria julgar o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, pois não existe uma verdade definitiva que possa orientar a fé de um cristão. Não existe uma palavra acima da palavra dos textos sagrados para esclarecer os mistérios contidos neles. Não existe “o Outro do Outro”, como diria Lacan.

O individualismo cristão proposto por Lutero foi o broto do individualismo contemporâneo. Todos os esforços dos teólogos e pensadores da Contra-Reforma não foram suficientes para impedir as consequências da crise aberta pelas propostas de Lutero, que hoje determinam nossa subjetividade: se somos individuais, e é nossa consciência que deve decidir o bom e o verdadeiro, nosso desamparo intelectual fica evidente; nada nos fornece uma garantia final quanto à verdade e aos caminhos da salvação. Estamos no mundo sem uma bula confiável para dirigir nossos destinos. A subjetividade característica do individualismo moderno começou a se diferenciar ali.

Observem que Lutero não propôs ideias heréticas em 1519; não colocou em dúvida a existência de Deus nem a verdade dos textos sagrados, mas apenas questionou o lugar da Igreja católica como detentora da verdade divina e dos caminhos para alcançar a salvação. A crise que se abriu a partir da Reforma foi uma crise sobre os critérios da fé, que equivaleu a uma crise intelectual e existencial para os cristãos do século XVI . As palavras das autoridades da Igreja foram, durante séculos, critério confiável de verdade — e Lutero as recusava, propondo que a consciência individual é que deveria se responsabilizar pelo caminho de um cristão. A questão da escolha ficou colocada, a partir de então, de uma forma diferente da que está em santo Agostinho, por exemplo. Não se tratava apenas de escolher entre os caminhos do bem e o do pecado, contidos nas Escrituras e revelados aos tutores das consciências cristãs; era preciso tentar discernir, individualmente, o sentido dos trechos obscuros dos textos sagrados para poder diferenciar o bem e o mal. Com isso, inauguraram-se o desamparo intelectual do sujeito moderno e a crise da verdade em que estamos mergulhados até hoje.

Essa crise coincidiu e colaborou com uma retomada do ceticismo da Antiguidade na Europa da Renascença. Hoje, estamos mais familiarizados com o ceticismo acadêmico do pensamento de Platão, representado no famoso mito da caverna, que recusa ao homem a possibilidade de encarar a verdade face a face; dada a insuficiência da razão e dos sentidos, estamos condenados a nos orientar pelas sombras projetadas na parede da caverna. A outra escola cética da Antiguidade foi inspirada no filósofo Pirro de Elis e se chamou ceticismo pirrônico: mais negativo do que o “só sei que nada sei” socrático, Pirro de Elis propunha que se duvidasse de tudo a fim de não correr o risco de julgar qualquer coisa com base em falsos valores.

O ceticismo acadêmico foi retomado por santo Agostinho, que defendia a regra da fé em oposição à pretensão de conhecer a verdade pela via intelectual. No século XVI, o ceticismo acadêmico retornou sob a forma do fideísmo, trazendo uma outra esperança para os cristãos que buscavam respostas para a crise intelectual provocada pela Reforma. Se nada podemos saber a partir de nossos sentidos e de nossa razão, o melhor a fazer é esperar, despojados de preconceitos, que Deus nos revele a verdade. A existência de Deus, sua bondade e a verdade das Escrituras não foram postas em dúvida pelos fideístas céticos. O que propunham era que os cristãos suspendessem o julgamento e a fé na razão para estar com a consciência livre de preconceitos intelectuais e o coração aberto para a  possibilidade da revelação. No final da Renascença, os fideístas propunham que os cristãos renunciassem às pretensões intelectuais propostas pelos reformadores e mantivessem somente a fé em Deus. O grande humanista Erasmo de Roterdã foi um cristão extremamente crítico diante das pretensões intelectuais dos filósofos de sua época. Recusava a pretensão de conhecer a verdade pela razão. Era preciso abrir o coração, humildemente, para a possibilidade de receber a verdade revelada.

Lutero foi um racionalista, mas não um cético. Suas teses de Leipzig desencadearam uma crise cética, mas ele apostou na busca da verdade por meio da razão. Seu pensamento inaugurou um novo tipo de sofrimento para o homem ocidental, responsabilizado por alcançar, sozinho e pela limpidez de sua mente, a verdade e o caminho da salvação.

Mas o ceticismo promoveu uma abertura para a melhor corrente da modernidade, que é a corrente da dúvida, da incerteza e da tolerância. Nesse sentido, o ceticismo é moderno e, a meu ver, civilizador. Eis um exemplo: ainda no século XVI, um filósofo de nome Servetus apoiou-se no racionalismo luterano para duvidar do dogma da Santíssima Trindade, afirmando que sua inteligência não era capaz de se convencer da validade desse dogma. Sabemos que este é um dogma central para a Igreja católica, e Servetus afirmava que sua razão não conseguia se convencer de que três seres, ainda que divinos, pudessem ao mesmo tempo ser um só. Pela heresia, Calvino e seus seguidores condenaram-no à fogueira. Depois de sua morte, teve um único defensor: Sebastião Castelius da Basiléia, que discutiu a condenação de Servetus em um livro contra o dogmatismo, De arte dubitandi  (A  arte  da  dúvida).  Nesse  livro,  Castelius argumentou que, se as Escrituras têm trechos obscuros, é impossível estabelecer uma única verdade a partir delas. Sendo assim, ninguém pode estar tão certo da verdade, especialmente em questões religiosas, ao ponto de justificar a condenação à morte de alguém que pense diferente.

Castelius tentou responder à crise cética buscando estabelecer uma base mínima e segura sobre a qual se pudesse fundar a clareza do pensamento. Entre tantas coisas duvidosas que o ambiente da Renascença trazia ao cristão, Castelius propôs alguns pontos indubitáveis: a existência de Deus, Sua bondade e a verdade das Escrituras, mesmo que a interpretação delas não fosse evidente para os cristãos. Mas Castelius já teve que incorporar à sua argumentação a inovação luterana. Em vez da obediência cega à versão da Igreja sobre a palavra de Deus contida nas Escrituras, ele escreveu que é acreditar nelas porque são “plausíveis”. Já existe certa pretensão racionalista em sua  argumentação.

O argumento da plausibilidade contido na proposta de Castelius não era forte o suficiente para responder às questões: qual o critério da fé? Como diferenciar o critério da fé verdadeira da fé nas coisas falsas? A Reforma foi eficiente em abalar a autoridade da Igreja como garantidora das coisas da fé. Nunca mais, no Ocidente, o prestígio e a força moral da Igreja católica conseguiram obturar a incerteza que se abriu com a Reforma. Mas muitos pensadores tentaram, se não fechar novamente a caixa de Pandora aberta por Lutero, pelo menos evitar que as pessoas percebessem que ela havia sido aberta. De qualquer maneira, com a divisão da Igreja, nunca mais no Ocidente uma instituição teve o poder de garantir uma verdade única para orientar todas as mentes na mesma direção.

Diante da crise da verdade, alguns céticos propunham o método de levar a dúvida até o limite em busca de uma certeza confiável. Apostavam na capacidade da mente de alcançar a verdade pelo método, desde que se partisse de uma base indubitável. Tratava-se de uma grande responsabilidade para o sujeito moderno, e apontava para um projeto de sujeito capaz de chegar à verdade pela razão — projeto que a psicanálise viria a abalar, três séculos depois. Observem a relação que se estabeleceu entre a crise da verdade teológica e o surgimento de uma proposta de sujeito centrado na razão e no pensamento, capaz de estabelecer a verdade racionalmente. Só que a fé racional dos homens da Renascença ainda não era estritamente individual; apostava na possibilidade de produzir uma verdade coletiva, estabelecida pelo senso comum. Estamos nos referindo a um período que representou a passagem da vida em comunidade para a vida em sociedade ou, no dizer de Norbert Elias, do homem coletivo ao homem individual.

Como era possível estabelecer uma espécie de verdade compartilhada por todos, um senso comum confiável, em uma cultura que, em primeiro lugar, estava se tornando individualista; em segundo lugar, começava a ser atravessada pela diferença, pela alteridade, pela diversidade de línguas, pela notícia dos povos recém-descobertos, pelas trocas de mercadorias, que movimentavam a vida das cidades europeias, fragmentando as opiniões e os saberes? A verdade é uma ilusão compartilhada — os efeitos dessa verdade sustentam o laço social e também os sujeitos. Mesmo o individualismo cristão dos séculos XVI e XVII não prescindia da base do senso comum. Mas o senso comum compartilhado já não era suficiente para livrar os sujeitos da solidão da responsabilidade individual. Quando a sociedade se torna mais múltipla e complexa, as ilusões compartilhadas se multiplicam, a questão da escolha individual se torna mais dramática — em que acreditar?

O que ameaça a estabilidade do conhecimento é a diversidade. Um exemplo disso é a reação dos teólogos diante da novidade trazida pelos descobridores: a existência das culturas indígenas das Américas. Diante da existência dessas sociedades recém-descobertas, tão diferentes do Ocidente cristão, abriram-se duas correntes de pensamento. Uma delas, minoritária, aceitava duvidar das certezas estabelecidas. Se os índios das Américas são tão diferentes dos europeus e são seres humanos, portanto, filhos de Deus, é preciso questionar se existe um único modo de viver que seja bom e verdadeiro. A outra atitude, cujas consequências conhecemos, foi a de teólogos e governantes que, motivados pelo dogmatismo religioso e por interesses mercantis, justificaram a destruição das culturas indígenas, argumentando que esses seres estranhos não tinham uma alma como a dos cristãos. Essa corrente, eu vou chamar de bárbara; a primeira, de civilizada.

A corrente civilizada do pensamento ocidental, que acolhe a incerteza e a dúvida, produziu dois tipos predominantes de sujeito do conhecimento, que vou exemplificar a partir de dois filósofos inaugurais da modernidade.

O FILÓSOFO DA DÚVIDA E O FILÓSOFO DA CERTEZA

“Cada homem leva em si a forma inteira da condição humana”, escreveu Michel de Montaigne para justificar sua empreitada filosófica. Assim sendo, propunha que seu modesto saber poderia interessar a todos os seus semelhantes. Considerando-se como um homem comum, que não teria nenhuma grande revelação divina e nenhum grande feito militar para contar — não sendo sábio, santo ou rei —, esse proprietário de terras na região de Bordeaux, na França, escreveu a obra filosófica mais intrigante de sua época. O objeto de investigação de seus Ensaios não era a busca do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Montaigne dedicou-se a descrever e investigar seu próprio eu.

Foi o mais importante representante do que estou chamando de “corrente da dúvida” na modernidade. Herdeiro da melhor tradição humanista, Montaigne mantinha vivo interesse por todos os assuntos, dos mais elevados aos mais corriqueiros, da vida humana. Foi grande conhecedor das culturas da Antiguidade, mas a notícia da existência dos povos do Novo Mundo também despertou nele um grande interesse. Mantinha em relação às civilizações das Américas uma autêntica curiosidade. Católico, viveu a maior parte de sua vida durante a longa guerra entre cristãos e protestantes que abalou a França, e costumava conversar com igual interesse com adeptos da Reforma e da Contra-Reforma.

Sua obra não pretende propor uma nova certeza; tanto que escreveu inaugurando o título de Ensaios. Como escreve Marcelo Coelho, é impossível sintetizar o pensamento de Montaigne. Típico homem culto da Renascença, queria incorporar ao seu pensamento toda a diversidade de informações e de pontos de vista que estavam abalando seu mundo, no século XVI. Homem aberto para o outro, manteve também em suspenso as conclusões de seu pensamento. Pode ser considerado um cético, em parte em função da abertura de seu pensamento, em parte por sua afinidade pelo ceticismo da Antiguidade, que ele conheceu lendo as obras de Sexto Empírico. Sua atitude cética não defendia a impossibilidade de saber qualquer coisa — o que justificaria uma liberdade moral sem limites —, mas a suspensão do julgamento: diante de questões duvidosas, é melhor colocar os dogmas e as certezas em dúvida. Nas vigas da biblioteca de mais de  mil livros, onde poderia estar contido um imenso saber, mandou escrever frases retiradas do pensamento de filósofos céticos, a começar do célebre que sais je?.

Montaigne não considerava sua erudição como garantia de saber; lia para ter companhia, para “conversar” com os autores, mas desprezava o saber livresco. No verso da medalha com seu nome e o brasão da família, fez gravar a outra máxima extraída da obra do cético Sexto Empírico: “Suspendo”, sob o desenho de uma balança, indicando a suspensão do julgamento.

Nos Ensaios, Montaigne criticou a pretensão intelectual dos filósofos e dos eruditos, assim como o sentimento de superioridade do homem em relação aos outros seres da criação. Escreveu sobre nossa ignorância e nossa insignificância, nossas semelhanças com os animais, nossa fragilidade. Como um humanista do final da Renascença, manteve a convicção de que só podemos conhecer alguma coisa a partir de nossa própria condição, ao mesmo tempo que se dedicou a mostrar como nós, que nos consideramos o “centro da criação”, somos insignificantes. Nesse ponto, Michel de Montaigne não está muito distante do Elogio da loucura de Erasmo de Roterdã.

Não foi um herético: era um humanista católico. Mas nunca recorreu a argumentos de fé ou aos dogmas para resolver as incertezas que seu pensamento levantou. “Filosofar é aprender a morrer”, escreveu (livro I, XX), sugerindo — sem afirmá-lo diretamente — que a fé não daria conta do caminho solitário de cada homem em direção à morte, daí a necessidade de um “aprendizado” pela via da reflexão. Sua atitude em relação à sua própria fé cristã provocou reações críticas, porque ele escreveu: “Somos cristãos como somos alemães ou perigodianos” — por hábito, por herança, por tradição.

Ao ter conhecimento do modo de vida dos índios do Brasil, que obedeciam a tradições muito diferentes das dos europeus, observou que a diversidade humana talvez tenha algo a nos ensinar. Afinal, aquelas criaturas de um continente distante passavam suas vidas em admirável simplicidade, “sem fé, sem lei nem rei” (como se pensava à época dos descobrimentos), mas viviam muito bem, e nada nos autoriza a recusar que fossem tão humanos como nós.

Mas o grande objeto da escrita de Montaigne é seu próprio eu; como aponta Erich Auerbach, Montaigne não se considerava especialista em nenhum assunto a não ser em si mesmo. Pode ser considerado, como escreve Luiz Costa Lima, como o pensador que consagra o indivíduo moderno. “Isto não é minha doutrina; é meu estudo; e não é lição de outrem, é a minha” (livro II,VI). Mas a observação constante e honesta dos movimentos de seu eu — um eu mutante, fluido, que não se estabiliza, que ele não consegue fixar em uma essência clara — não era para ele um deleite narcisista, como supôs Pascal no século seguinte, ao criticar “le sot projet qu’il a de se peindre”. A estrutura dos Ensaios parece corresponder a um projeto epistemológico que busca se aproximar de uma verdade que não é fixa, mas circundada pela escrita, ao longo de uma vida. O propósito de descrever todos os movimentos de seu eu mutável e incerto encerrava uma crítica às pretensões dos filósofos racionalistas. Como pensam que podem conhecer a verdade por meio da razão se não conhecem nem mesmo a si próprios? Além disso, todo saber é limitado pela inconstância e fluidez de seu objeto: tentar conhecer o verdadeiro ser das coisas seria como tentar pegar água em uma peneira. Com base nessa constatação, Montaigne exerce um pensamento aberto e antidogmático. “O homem é um tema maravilhosamente vão, diverso e ondulante. É infundado fundar nele um julgamento constante e uniforme” (livro I, I). “Não temos nenhuma comunicação com o ser”, escreveu mais adiante (livro II, XII).

A própria organização dos três volumes de sua obra afirma essa atitude: Montaigne deixa seu pensamento navegar ao sabor de suas preferências e curiosidades momentâneas, sem perseguir nenhum fio condutor a não ser o gosto de experimentar-se por escrito. Sua filosofia confunde-se com o registro minucioso e apurado desse eu que se observa em permanente transformação, tomado não como critério de elaboração de uma verdade absoluta, estável e universal, mas da verdade da experiência plasmada pela escrita.

Assim, Montaigne pretendeu ser honesto em relação a seus impulsos e suas emoções, observar os movimentos de seu eu atravessado pelas oscilações do mundo, pelas influências das leituras, pelas variações da fisiologia, pelas conversas com os outros. A experiência de si é meio de acesso a alguma verdade — mas não uma verdade que  possa valer  universalmente.  Dela também  não se  pode extrair nenhuma moral, como bem ilustra o título de um de seus Ensaios:

“Que o gosto dos bens e dos males depende em boa parte da opinião que temos deles” (livro I, XIV)

Montaigne  começou a escrever os Ensaios em 1571, com 38 anos, para superar o luto pela morte de seu amigo Étienne de La Boétie, ocorrida em 1563. La Boétie foi seu grande amigo e interlocutor, com quem viveu uma intensa relação no melhor sentido da ética aristotélica da amizade, segundo a qual a mais bela amizade seria a de duas pessoas que se juntam para, no diálogo, entender a verdade. A escrita dos Ensaios foi uma forma de encerrar o longo luto pela perda do amigo; Montaigne começou a escrever em busca de outros amigos/leitores para continuar, na retomada do diálogo interrompido, a busca da verdade. Seu propósito era estabelecer a verdade no diálogo, na horizontalidade das conversas francas entre iguais, e não na submissão à palavra dos grandes sábios ou das autoridades da Igreja.

Montaigne foi um homem que viveu no período de passagem de um eu individual ao eu coletivo. Seu interesse pela experiência de si não deve ser confundido com o que hoje conhecemos como individualismo; ele jamais se colocou como um centro isolado de pensamento. Mas afirmou: sou um homem, e trago em mim toda a condição humana; por isso posso escrever sobre todos os assuntos sem ser autoridade em nenhum deles, e minha experiência mais corriqueira pode interessar a qualquer de meus semelhantes. Este é um modo de conceber a si mesmo muito diferente do individualismo contemporâneo, em que cada sujeito tenta se acreditar separado, diferenciado e original em relação a seus semelhantes. Para Montaigne, nossa humanidade só se afirma como condição compartilhada: ser um homem é ter muita coisa em comum com todos os outros homens.

Seu método conduz à possibilidade de obter não uma verdade universal mas algumas experiências compartilhadas, confiáveis, mediante um processo de construção dialógica, a partir do qual é impossível estabelecer um dogma, justamente porque o diálogo livre e aberto sempre dá margem a novas perguntas. Não existe verdade de um homem só. “A palavra pertence metade àquele que fala, e metade àquele que escuta”, escreveu no último de seus Ensaios, um dos mais conhecidos, “Da experiência” (livro III, XXIII). O sentido da palavra só se completa em quem a escuta, por isso não existe verdade de um só. Eu só sei do que disse quando o outro me escuta e me devolve sua palavra, ou minha palavra feita palavra dele. Michel de Montaigne foi “civilizador” no melhor sentido do termo, pois trouxe o melhor da herança aristotélica para o seu pensamento. Um homem que acreditou no diálogo como método de construção da verdade. Foi um precursor do indivíduo solar, centrado em si mesmo, ao mesmo tempo que prestou testemunho da impossibilidade da solaridade, pois para ele o sujeito só se sustenta e se completa, só sabe o que diz, no diálogo com o outro. A psicanálise apoiaria esse pensamento.

O pensamento de Michel de Montaigne já anuncia as três formas de crise intelectual que viriam a perturbar o século seguinte. A crise teológica em relação à regra da fé, aberta por Martinho Lutero, aprofundou-se com o pensamento de Montaigne. O máximo que ele propunha era que é preferível aceitar a regra católica, já que é a mais próxima de nós, mas não temos como nos assegurar de que seja a melhor. “Escolher” ser um católico, ou sê-lo por tradição, já denuncia que a verdade da Igreja não é inquestionável.

Aprofundou também uma crise humanística, ao admitir a diversidade das culturas sem estabelecer entre elas uma hierarquia de valor. Com isso, instaurou o relativismo cultural e moral, que ao mesmo tempo enriqueceu e abalou o humanismo da Renascença.

Por fim, colocou o dedo na crise do conhecimento científico: como posso conhecer o verdadeiro ser das coisas? As coisas não possuem uma essência fixa. Além do mais, nós também estamos sujeitos a nos iludir: nossos desejos nos enganam, nossos sentidos são imperfeitos. Tudo isso impede de confiar na capacidade humana de estabelecer qualquer ciência segura.

Manteve essa atitude inclusive em relação ao seu eu; atravessado pelas transformações do século, afirmou que seu eu também lhe escapava. Hoje sou um, amanhã sou outro, pois não posso evitar ser modificado pelas mais diversas influências. A escrita contínua de seu livro, de 1571 ao final de sua vida, em 1592, foi o recurso que Montaigne inventou para constituir um eu: “Não fiz o meu livro mais do que ele me fez”, escreveu no ensaio final. Interessado em abrigar em seu pensamento a diversidade de informações contidas em seu tempo, não poderia esperar que seu eu fosse estável.

Os  Ensaios  de  Michel  de  Montaigne foram, de acordo com Richard Popkins, uma “incubadora do pensamento moderno”; sua atitude de dúvida e abertura — dos contornos do eu e do campo da verdade — teve enorme influência no século XVII. Se existe em Montaigne uma ética para a modernidade, ela se baseia em dois pontos: a afirmação da dúvida, não como dúvida cínica — se nada posso saber, não reconheço verdade alguma e me autorizo a fazer o que me convém —, e sim como ponto de partida para a investigação de si mesmo e para o diálogo com o outro. E a ética da alteridade, que defende uma abertura, tanto no campo do eu, que só se completa com o outro, como diante do desconhecido, mesmo ao preço da perda das mais confortáveis convicções.

Penso que hoje somos mais tributários de Montaigne do que de Descartes. Vivemos em um ambiente descentralizado, fugaz, centrífugo, que nos aproxima cada vez mais da necessidade de uma “epistemologia” como a de Montaigne. Mas não o reconhecemos, porque Michel de Montaigne não produziu uma filosofia passível de se transformar em doutrina. O pensamento de Montaigne não produziu doutrina — portanto, não produziu poder. Permaneceu como se fosse uma corrente fraca do pensamento ocidental. Ou como uma corrente subterrânea, que nos acompanha — como o desejo inconsciente — sem que a razão se aperceba dela.

O EU COMO CERTEZA PRIMORDIAL

Montaigne não é considerado o filósofo inaugural da modernidade. Este é, oficialmente, Descartes — que por sinal foi leitor dos Ensaios. É possível reconhecer, nos trechos introdutórios do Discurso do método, o mesmo ambiente epistemológico que alimentou o pensamento de Montaigne. René Descartes não viveu alheio à multiplicidade de informações e ao relativismo cultural de sua época; tendo estudado por dez anos entre os jesuítas, de 1601 a 1616, alistou-se em 1619 nos exércitos de Maurício de Nassau, a fim de conhecer o mundo e os povos distantes e com isso ir além da experiência dos livros. Dessas viagens, concluiu que “todos aqueles que têm sentimentos totalmente contrários aos nossos nem por isso são bárbaros nem selvagens, mas muitos se utilizam, tanto ou mais do que nós, da razão”. Percebeu também que as crenças e a moral dos homens variam de acordo com os costumes de seu país. Um homem, “caso seja criado desde sua infância entre os franceses ou entre os alemães, torna-se diferente daquele que seria se sempre vivesse entre os chineses ou entre os canibais”.

Assim como Montaigne, Descartes também percebeu a dificuldade de encontrar um ponto de vista seguro, já que nossas convicções são fruto do costume e do exemplo dos outros, e a pluralidade de vozes ao nosso redor não nos ajuda em nada. Em seu método, a reflexão individual se afirma como um recurso para a busca da verdade. Assim, “eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às dos outros, e me senti constrangido a empreender por mim mesmo minha orientação”. Só que René Descartes pretendeu, desde muito jovem, oferecer uma resposta para a crise da verdade que se agravou com o advento dos filósofos empiristas no século XVII. Seu objetivo foi reconstituir a regra da fé e a partir dela fundamentar uma certeza filosófica baseada no método, segundo o modelo seguro da lógica e da matemática. Tal método consistia em tentar solapar a resistência da dúvida cética, demonstrando que ela levaria o pensamento ao absurdo e à miséria de um mundo sem Deus. Em seguida, a partir de um critério mínimo de verdade, Descartes iniciou a restauração de uma certeza adequada à visão cristã do mundo, que já estava abalada no século XVII.

A modernidade em Descartes está no fato de que seu pensamento levou em conta o abalo produzido pela Reforma da Igreja. Ele seguiu a proposta luterana de basear a verdade na razão. Também não se contentou em responder com afirmações dogmáticas os questionamentos dos filósofos empiristas. Mas refutou a ideia dos céticos, dos empiristas e das práticas científicas, de que a verdade só se estabelece por probabilidade. Para ele, a probabilidade era insatisfatória. Quis nos deixar novamente seguros sobre o critério da fé.

Como matemático e lógico brilhante, Descartes foi mais longe do que os outros filósofos que tentaram combater o ceticismo. Estes contrapunham ao ceticismo os dogmas da Igreja — versões estabelecidas pelas autoridades eclesiásticas sobre as Escrituras — e com isso acusavam os céticos de heresia. Descartes resolveu levar a dúvida cética às últimas consequências. Como cristão, partiu da afirmação da existência de Deus, irrefutável para sua época, e da ideia de que sem Deus não se alcançam a verdade e o bem. Deus é a referência última, o “Outro do Outro”, pois sem Deus estaríamos na miséria total.

O método cartesiano consiste em cavar cada vez mais fundo na direção da dúvida, até que ela se torne absurda ou intolerável. Para isso, começa admitindo os argumentos céticos a fim de ir com eles até as últimas consequências. O primeiro passo, portanto, é concordar com os céticos: nada nos garante que aquilo que percebemos seja verdadeiro, ou que a razão tenha acesso à verdade. Nossos desejos podem nos iludir, nossos sentidos podem nos enganar. Assim sendo, nossa incerteza pode ir ainda mais longe: podemos duvidar até da existência do mundo; as coisas que percebemos como certas podem fazer parte de um sonho, de uma grande ilusão. O terceiro passo dá mais uma volta no parafuso: se tudo é tão incerto, por que não admitir a existência de um gênio maligno que se divirta conosco, distorcendo propositalmente nossa percepção e todas as informações que recebemos, de modo a alterar o critério de confiabilidade dos sentidos e impossibilitar um julgamento correto sobre elas?

Observem que Descartes já foi um pensador moderno; ele não se satisfez em tentar restabelecer a confiança em uma verdade revelada. Também não foi dogmático; quis seguir a convicção dos reformadores, de que é possível localizar os fundamentos da verdade na mente; se não fosse assim, poderia ter recorrido ao tradicionalismo de outros teólogos da Contra-Reforma. O quarto passo de seu Discurso do método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências, publicado em 1637, foi o que o levou a estabelecer a famosa certeza do cogito. Já que estamos tão inseguros diante da hipótese do gênio maligno, vamos tentar, para fundamentar o pensamento lógico, estabelecer pelo menos uma premissa que não seja falseável a fim de, a partir dela, obter alguma verdade através do método. Admitamos que tudo o que penetre na nossa mente sejam verdades distorcidas, o que nos permitiria ir ainda mais fundo na dúvida cética, propondo que tudo o que percebemos seja erro e ilusão. Ainda assim, existe um eu que pensa e se ilude. Se eu penso, eu existo. Enquanto eu estiver pensando, a existência de meu eu pensante é uma verdade irrefutável. É sobre essa base mínima de certeza que Descartes recomeça o trabalho de construção de uma verdade lógica.

No final da cadeia de dúvidas, que pode se estender indefinidamente, ele encontrou uma única certeza que pode servir como ponto de partida seguro para o pensamento. Valendo-se unicamente da lógica, sem buscar nenhuma certeza transcendental, o método cartesiano conduziu a uma certeza mínima, que ao mesmo tempo conforta o sujeito moderno e pesa sobre ele: a única certeza lógica em que podemos confiar é a existência do eu. O eu que pensa, existe; no final da cadeia de dúvidas sempre vamos encontrar um eu que duvida. Mas essa certeza não era suficiente para Descartes; ele precisava ir além. Se o cogito foi a etapa de seu método que mais se popularizou nos séculos seguintes, é porque contribuiu com as teorias do conhecimento adequadas à sociedade laica e individualista à qual pertencemos. Hoje, para o homem comum, a herança cartesiana resume-se ao cogito, à confiança na existência e na soberania do eu.

Descartes, com o método da dúvida, chegou à verdade do cogito, como um pequeno pedaço de terra firme onde podia pisar com segurança para prosseguir em sua busca da verdade. Essa terra firme é o próprio eu que pensa e que duvida. Trata-se de um ponto de partida muito pesado para nós, ocidentais modernos: localizar o primeiro fundamento da verdade no eu.

Descartes não era um sofista; não estava procurando uma verdade lógica baseada em uma premissa inventada, mas uma verdade que fundamentasse a reconstrução de uma regra segura para o conhecimento. Essa construção começa com o cogito, ergo sum, mas não termina aí. A continuação do cogito é: se essa coisa que eu percebo de maneira tão clara e distinta é verdadeira — a existência de meu eu —, então, posso confiar que tudo o que percebo de maneira clara e distinta seja igualmente verdadeiro. Posso confiar na capacidade de percepção clara e distinta que Deus me deu.

Mas, para ser fiel ao método, Descartes vai um pouco mais longe e propõe um quinto nível de dúvida: e se Deus for um gênio enganador? E se ele dotar o homem de uma capacidade de falsa percepção? Então estaríamos isolados de toda possibilidade de conhecer o mundo. O cogito só nos garante a verdade de nossa existência, mas não nos assegura nada sobre a existência do mundo. Se o método cartesiano só nos conduzisse até a certeza estabelecida pelo cogito, estaríamos abandonados em uma existência vazia de qualquer certeza, apoiados apenas em nosso eu inflado, perdidos em um mundo que nem sabemos se existe ou se é um delírio solitário.

Contra isso, Descartes afirma que não podemos aceitar a imperfeição de Deus. Se a existência de Deus não era refutada no século XVII nem pelos céticos, o quinto passo do método cartesiano era infalível. A bondade de Deus também não estava em dúvida. Deus é igual à ideia que fazemos dele, e essa é uma ideia de perfeição. Se Deus fosse enganador, nossa concepção da percepção de Deus estaria errada, e não poderíamos nem saber se Ele existe. Descartes não foi tão longe porque nem a cultura de seu tempo nem os céticos aos quais ele pretendeu  responder foram tão  longe. Deus, que tudo pode, tem o poder de enganar. Mas o desejo de enganar denota imperfeição e maldade, denota malícia e fraqueza. Se Deus é bom, o desejo de enganar é incompatível com nossa ideia de Deus. Partindo da ideia da perfeição divina, que é a ideia que Descartes, como homem de seu tempo, não poderia refutar, o quinto nível da dúvida não se sustenta.

A partir daí ele encontrou o caminho para reconstruir a regra da fé, com a ressalva de que a perfeição de Deus não é revelada ao homem mas pensada por sua razão, percebida pelo homem. Se Deus não quis nos enganar e nos dotou da capacidade de perceber claramente algumas coisas — e isso, sei a partir da percepção clara e distinta de que existo —, posso confiar nessa percepção para, a partir das ideias claras e distintas, estabelecer a regra da fé. Assim, o cogito volta a ser um critério de verdade firme sobre o qual se pode fundar a relação entre o eu, a mente que percebe e julga a clareza e distinção de suas ideias, e a verdade.

Embora estivesse tentando resolver a crise cética com argumentos modernos, considero Descartes menos moderno do que Montaigne, porque sua argumentação depende necessariamente da existência de Deus. O curioso é que o pensamento de Montaigne estava próximo do ceticismo fideísta, mas, para ele, a fé como possibilidade de acesso à verdade é uma aposta, não uma garantia. A fé, para Montaigne, não se impõe a partir das evidências da existência de Deus, mas está articulada à tradição na qual o sujeito se insere — ser cristão como se é alemão ou perigodiano… A estrutura fragmentada dos Ensaios revela a falta de um centro organizador de seu pensamento; em Descartes, este centro é Deus. Não que Montaigne fosse herético, ou recusasse a existência de Deus. Sua argumentação jamais se ergue contra as razões da fé, mas parece que passa ao largo delas. A ênfase de Michel de Montaigne no relato meticuloso e livre de sua experiência é tão importante que faz sombra a seu fideísmo. O que Montaigne constrói nos Ensaios é o projeto de um eu que é ao mesmo tempo centro de referência da experiência sensível e testemunho da impossibilidade de estabelecer uma verdade, porque é instável, fragmentado e centrípeto.

O método cartesiano de construção de um critério de certeza salvou os séculos seguintes da dúvida cética, mas deixou o sujeito moderno ainda mais desamparado. A modalidade moderna do desamparo consiste nisto: o homem está condenado a decidir sozinho a respeito da verdade. Desamparo, vontade de amparo e desejo de servidão coexistem no sujeito moderno — o desejo de servidão advém do medo que sentimos em relação a nossa liberdade, inaugurada por Lutero, e a nossa responsabilidade individual, afirmada por Descartes.

A modernidade é então uma época que seguiu desenvolvendo estas duas vertentes: de um lado estão as dúvidas e as incertezas que fundam nossa liberdade e nosso desamparo — se nenhuma verdade é absoluta e tenho que escolher a partir da razão, saio fora da tutela das igrejas e das autoridades filosóficas; do outro lado estão as reconstruções de grandes sistemas totalitários, de pensamento e também de poder, aos quais os sujeitos aderem espontaneamente (à maneira da servidão voluntária apontada por La Boétie), para tentar amparar-se e livrar-se da solidão da responsabilidade individual. Os modos de alienação modernos, de pensamento ou de crenças e adesões a sistemas, ou de “comportamento” (como os que são promovidos pela publicidade), são tentativas do sujeito moderno de amparar-se novamente. A responsabilidade individual e a parceria entre liberdade e alienação são vetores subjetivos próprios da modernidade desde Descartes.

Ele conseguiu, de qualquer maneira, remendar a brecha provocada pela crise cética pelo menos por mais dois séculos, até o advento dos filósofos iluministas no final do século XVIII. Não conseguiu sepultar o ceticismo, mas conseguiu estabelecer um forte argumento para aqueles que buscam certezas. Um argumento que contribuiu para insuflar o eu, e consequentemente aumentar a culpabilidade, do sujeito ocidental.

A VERDADE QUE ESCAPA AO EU

E o inconsciente, onde entra nisso tudo? Vamos dar um salto até o século XIX para mostrar como o desenvolvimento do eu inflacionado da modernidade, que se inaugurou com Descartes, conduziu ao advento do sujeito neurótico da psicanálise. O neurótico é um sujeito que sofre de uma culpa permanente: uma culpa inconsciente, escreveu Freud. Ao contrário do cristão, que sabe quais pecados tem que confessar, o neurótico moderno sofre de um sentimento de culpa por um crime, ou um pecado, que sua consciência desconhece. Para manter a soberania do eu, o sujeito moderno tem que afastar de sua mente todos os pensamentos contraditórios, todos os impulsos perturbadores que poderiam turvar a hegemonia da razão que se pretende capaz de decidir com clareza e nitidez sobre a verdade. O que ocorre é o oposto: quanto mais o homem da razão soberana se aparta de si mesmo, quanto mais ele tenta ser coerente com sua consciência e banir a desrazão, mais o inconsciente adquire poder sobre seus atos e suas representações. Se o sujeito solar da modernidade é, no dizer de Luiz Costa Lima, aquele que, além de produzir suas  próprias representações, se pretende proprietário delas — um sujeito pleno, capaz de representar a si mesmo e ao real, que ele alcança com o poder da razão —, esse sujeito é fraturado a partir daquilo que, nele mesmo, escapa ao controle racional.

Freud veio mostrar que o centro do eu não está na razão, está no inconsciente. A sede pulsante do eu acaba por decidir nosso destino, e mesmo nossos pensamentos, muito mais do que a razão. Freud veio dissociar o eu da razão, e dizer que nossas certezas sobre a verdade do mundo são alteradas, em primeiro lugar, pelo princípio do prazer e, em segundo lugar, porque o recalque das representações do desejo inconsciente leva também ao recalque das representações que, por associação, poderiam reconduzir a ele. O neurótico é um sujeito que fecha o acesso às suas próprias percepções, tentando excluir de seu campo de receptividade as informações contraditórias e as perturbações do mundo. Para satisfazer os impulsos recalcados vale-se dos sintomas e das fantasias. Ao fazer isso, em obediência às exigências de totalização do superego, perde o controle sobre aquilo que mais o afeta: o desejo inconsciente.

Lacan expressou brilhantemente essa “subversão do sujeito” ao inverter o cogito cartesiano: eu sou onde não penso, e penso onde não sou. Ele virou de cabeça para baixo o sujeito cartesiano. Esse “eu” que pensa não coincide com o sujeito do desejo inconsciente; o lugar da verdade inconsciente não é o lugar do pensamento.

A psicanálise é um dos pensamentos fortes da modernidade, sempre mal recebido porque veio dar notícia do fracasso das pretensões do sujeito cartesiano. Ao mesmo tempo, a psicanálise propõe para esse sujeito que fracassa em suas pretensões de soberania e lucidez uma abertura para o outro: tanto o outro do processo analítico, o analista na transferência, como o outro do inconsciente. A abertura para o outro que habita em nós é uma condição para a tolerância, pois uma das bases da intolerância é o mecanismo defensivo de projetar sobre o outro — meu semelhante na diferença — tudo aquilo que eu rejeito em mim mesmo. Se não quero admitir o “mal” e a contradição em mim mesmo, vou projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de que não quero saber, em mim. E, quanto mais próximo for o próximo, mais ele serve de suporte para esse mecanismo de defesa — foi o que Freud percebeu ao articular a intolerância ao “narcisismo das pequenas  diferenças”.

Uma vez revelada, na modernidade, a fratura do sujeito solar —  a evidência do sujeito do inconsciente —, todas as tentativas de negála e restaurar a totalidade (do sujeito? da verdade? do mundo?) foram, e continuam sendo, brutais.

O maniqueísmo que se agrava nos dias atuais, e que pode se polarizar em uma falsa divisão inconciliável — Leste/Oeste, ou islamismo/cristianismo etc. — me faz pensar se as sociedades que ainda diferem do Ocidente moderno dito “civilizado”, que não se incluem nos moldes da cultura globalizada, não estão sendo transformadas no “eixo do mal” porque são justamente as culturas que podem colocar em xeque o nosso paradigma capitalístico e anunciar a sobrevivência das formações comunitárias pré-modernas das quais nos apartamos — e cuja memória recalcamos — em função dos imperativos da acumulação do capital.

É importante pensar que o conflito Ocidente versus islã hoje talvez não seja um conflito entre bárbaros e civilizados, mas entre as modalidades de barbárie produzidas por ambos os sistemas, em que cada um tenta eliminar no outro os elementos que podem perturbar suas certezas de estar do lado do Bem e da Verdade, únicos e inquestionáveis.

No final da década de 1960, Susan Sontag profetizou que as sólidas convicções dos vietcongues os levariam a ganhar a guerra. Mas ela se orgulhava de pertencer a um país progressista e multifacetado, incapaz de oferecer a mesma visão segura do bem e do mal que orientou o espírito revolucionário no Vietnã. Hoje, quem tem convicções aparentemente inabaláveis é uma larga parcela da civilização ocidental. Se a melhor tradição que a modernidade produziu foi a tradição da dúvida e da incerteza, que nos permitiu conviver com a diferença e extrair disso um potencial criativo; se é isso que estou chamando de civilização, então a restauração das convicções absolutas que podem ajudar os Estados Unidos a vencer uma guerra seria sinal de uma nova barbárie.

Ao tentar convencer o resto do mundo da necessidade de bombardear o Iraque, ao tentar identificar o ditador Saddam Husseim como o “mal absoluto” e justificar uma intervenção bélica em nome do “bem”, o presidente norte americano George W. Bush vem misturando argumentos políticos com apelos religiosos em seus discursos, o que é um perigoso desrespeito à condição laica dos Estados modernos. Os cidadãos norte-americanos podem ser majoritariamente religiosos, mas o poder do Estado não se assenta sobre a vontade divina. Esta é uma conquista moderna da qual não deveríamos abrir mão, ao preço de obscurecer as decisões políticas, sobre as quais a sociedade democrática deveria poder opinar livremente.

Já a questão proposta por Susan Sontag não deve ser colocada, do ponto de vista civilizado, sobre quem há de vencer a guerra. A melhor tradição da modernidade não é aquela que mobiliza nas populações sua determinação guerreira, e sim aquela que aposta no diálogo, nas negociações e na tolerância mútua como recursos para que as guerras se tornem desnecessárias.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Pela ordem de aparecimento no texto:

Susan Sontag. “Viagem a Hanói”. In: A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Octavio Paz. “A  democracia imperial”. In: Tempo nublado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

Giuseppe Ungaretti. “Atrito” (1816). In: A alegria. Trad. Sergio Wax. São Paulo: Roswitha Kempf, 1989.

Agnes Heller. O homem do Renascimento. Lisboa: Presença, 1982. Norbert Elias. La société des individus. Paris: Fayard, 1991.

Jean  Delumeau.  “O  Renascimento  como  reforma  da  Igreja”.  In:  A civilização do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1984.

Michel Foucault. As palavras e as coisas. Trad. Selma Tannus Muchail. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1999.

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Erich Auerbach. “A humana condição”. In: Mimesis. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1976.

Georges Gusdorf. “Moi, Michel de Montaigne”. In: Les écritures du moi. Paris: Odile Jacob, 1991.

Marcelo Coelho. Folha explica Montaigne. São Paulo: Publifolha, 2002. Luiz Costa Lima. Os limites da voz. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

——. “Um par problemático: representação e sujeito moderno”. In: Giovanna Bartucci (org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

Richard Popkins. História do ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Trad. Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.

René Descartes. O discurso do método. Trad. Tereza Christina Stummer. São Paulo: Paulus, 2002.

Franklin Leopoldo e Silva. Descartes e a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 2001.

Sigmund Freud. A interpretação dos sonhos (1900). In: Obras completas, vol. I. Trad. Lopes-Ballesteros. Madri: Biblioteca Nueva, 1973.

——. Os dois princípios do funcionamento mental (1911). In: ibidem, vol.  II.

——. O inconsciente (1915). In: ibidem, vol. II.

——. O Ego e o Id (1923). In: ibidem, vol. III.

Jacques Lacan. “A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud em psicanálise”. In:

Escritos, vol. I. Trad. Tomás Segovia. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1987.

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