Civilização sem guerra
Resumo
A civilização e a guerra se opõem, mas de que maneira? Quando Thomas Hobbes (1588-1649) se referiu, no Leviatã, à “guerra de todos contra todos”, ele falava da guerra civil que o Estado devia evitar, mas admitia, dentro da lógica mercantilista, a guerra externa como fator de riqueza e poder. Para Hobbes não existe, como em Rousseau, um “estado de natureza”. Há apenas um homem mal socializado. As causas da guerra são a ganância e o receio (racional e preventivo) de ser prejudicado pelo outro. Não há justiça ou bondade antes de haver Estado, e o problema da guerra (interna) é ser devastadora, enquanto a externa, como o comércio, é produtiva. (Eis aí a matriz da associação, em nossos tempos, de civilização e progresso tecnológico com gastos bélicos.) Para Hobbes o fundamental não é quem governa, mas que o poder não seja dividido. Historicamente, porém, não foi isso que aconteceu. A existência de lados opostos no poder (instituições, partidos, separação ou equilíbrio de poderes) provou a possibilidade de administrar os conflitos. Mesmo no marxismo há luta, não guerra de classes. Sai mais caro destruir do que negociar. Foi assim que a Europa, depois de duas guerras mundiais, tornou-se uma força capaz de se contrapor à hegemonia americana. A guerra sempre tem um saldo negativo e é preciso levar para as relações internacionais o que se conquistou nas domésticas. Caso contrário haverá apenas conflito generalizado, como o conduzido hoje pelos fundamentalismos americano ou radical islâmico.
São bastante complexas as relações entre civilização e guerra. À primeira vista, uma é o contrário da outra. A civilização cresce com a paz — ela depende, mesmo, da paz. Um filósofo como Thomas Hobbes (1588-1679), por exemplo, brande diante de nós o espectro da guerra como aquela situação na qual não há nenhuma das comodidades que dão valor à vida e, mais que isso, como a condição em que nossa vida é solitária, pobre, sórdida e breve.[1] Este, aliás, é um dos pontos em que esse pensador — geralmente associado à defesa do absolutismo dos reis — expressa uma convicção que vai muito além de suas simpatias pessoais, no caso, monárquicas.[2] A civilização e a guerra se opõem, diz ele. E, se passarmos de Hobbes a um sociólogo de nosso tempo, Norbert Elias, que foi o grande estudioso do papel dos costumes na construção de uma vida socializada, cortês, educada, notaremos também que a civilização estará ligada a uma série de vitórias, pequenas, talvez, mas eficazes, sobre a violência e a guerra.
Hobbes trata mais da macropolítica — e por isso mesmo o que contraria a civilização, em seu pensamento, é a guerra de todos contra todos. Elias trata mais, digamos, da microssociologia, ou melhor, trata da sociedade como um todo, mas partindo do micro — e por isso mesmo seus grandes exemplos são garfos e facas. Garfos: no começo do segundo milênio, uma princesa de Bizâncio se casa com um doge de Gênova e leva em sua bagagem um garfo. Os italianos se indignam com algo que lembra o tridente do demônio; eles comem com as mãos; a princesa é acusada de ter parte com o diabo; há sermões, até de um futuro santo, contra ela; morre de desgosto. Facas: ao longo de toda a Idade Média e ainda na Renascença, os europeus usavam facas pontudas nas refeições, facas que eles próprios traziam de casa e levavam presas ao cinto, parecidas com as que ainda hoje utilizamos nas churrascarias. Foi o cardeal de Richelieu, na França da década de 1630, quem mandou substituí-las pelas atuais facas de comer, de ponta curva. Seu objetivo era reduzir a violência às refeições. Pois era frequente, exaltando-se os ânimos, que um conviva matasse o vizinho usando, como arma, o que deveria ser um pacífico utensílio reservado à alimentação. E note-se que Richelieu adota essa medida ao mesmo tempo que proíbe, sob pena de morte, o duelo — isto é, quando está empenhado em reduzir a violência privada e em reservar ao Estado (ao rei) o monopólio weberiano da violência legítima. Isso ocorre poucos anos antes de Hobbes escrever suas principais obras (é interessante imaginá-lo chegando à França, em seu périplo continental da década de 1630, e deparando com a novidade das facas rombudas, expressão tangível da ideia hobbesiana de que a busca da paz fosse assegurada pelo poder reforçado do Estado) e manifesta a mesma preocupação de eliminar uma violência difusa e descontrolada.
Portanto, o óbvio é que a civilização e a guerra se opõem. Mas, olhando mais de perto, não é bem verdade. O próprio Hobbes distingue implicitamente, dois tipos de guerra. Uma é a que podemos chamar de guerra civil (ele usa o termo “guerra de todos contra todos”), em que cada um está por si e não há sociedade ou Estado. Essa é fatal para o homem, e é contra ela que Hobbes escreve. (Na verdade, ele não usa o termo guerra civil, pela simples razão de que — a seu ver — ela desfaz toda associação humana e, com isso, deixa de ter sentido falar em conflito doméstico — ela é o conflito por excelência.) Mas há também outra guerra, que é a externa, isto é, aquela que um Estado trava contra seus inimigos. Não há problemas maiores nessa, segundo nosso pensador. É claro que ela pode terminar liquidando um Estado, mas ao mesmo tempo é ela que faz um Estado viver e mesmo crescer. Em suma, se o homem estiver sozinho ou limitado à sua família, ele vive em guerra com o resto da humanidade, e sua condição é péssima; mas, se participa de uma sociedade mais ampla (cujo tamanho preciso Hobbes jamais sugere, apenas dizendo que deve ser grande o bastante para dissuadir um eventual agressor, retirando-lhe a expectativa de uma vitória fácil), a guerra deixa de ser tão perigosa e pode, até, tornar-se enriquecedora.
Esse, o paradoxo da guerra em Hobbes. Ela é fatal se deixa cada indivíduo isolado, mas se revela positiva se comporta — se suscita —, grupos, sociedades. Dá para explicar essa aparente contradição. A economia é compreendida por Hobbes ao modo mercantilista, isto é, como um capitalismo que privilegia as trocas internacionais ou o comércio exterior.[3] O decisivo é a balança de negócios favorável, pela qual um país exporta mais valor do que importa. O excedente, geralmente acumulado sob a forma de metais preciosos, é a riqueza. Por isso um país deve se empenhar ao máximo em só importar matérias-primas e só exportar manufaturados. A Inglaterra, por exemplo, não deve mandar para fora a lã não trabalhada, mas apenas roupas já tecidas com ela. Em compensação, deve importar metais em estado bruto, que ainda não tenham passado pelas mãos do ferreiro ou do ourives. O valor agregado pelo trabalho industrial constitui assim um fator decisivo de riqueza e, portanto, de poder.
Pode parecer estranho que eu chame a “guerra de todos contra todos” de guerra civil, até porque ela é apresentada, nas obras de Hobbes, como acontecendo antes de haver Estado ou sociedade.
Duas notas a respeito. Primeira, já sustentei que nunca existe, em Hobbes, um “antes” da sociedade.[4] Não há o assim chamado “estado de natureza”, mas sim a “condição natural da humanidade”, isto é, o modo como viveríamos se não houvesse poder de Estado para coibir nossa tendência ao conflito generalizado. Por isso, é impróprio perguntar como se dá a “passagem ao” Estado político, porque ela nunca ocorreu nem poderia ter ocorrido: sempre se pensa o estado de natureza como uma hipótese (uma “inferência feita a partir das paixões”), não como um ponto de partida. Assim, quando se imagina o que seríamos nós sem a polícia, o que se faz é um exercício de political fiction, desenhando-se uma ficção; Hobbes nunca afirma que os homens tenhamos vivido assim, em outros e priscos tempos. O estado de natureza é — bem o mostrou Macpherson[5] — a condição do homem civilizado (Hobbes, etnocêntrico, diria: do homem) uma vez que se retirem dele os controles que são o Estado, diz ele, a polícia, acrescenta, irônico, Christopher Hill (“o burguês sem a polícia”). Segunda, a guerra de todos contra todos é o que Hobbes, desde pelo menos 1638, antevê — e na década seguinte constata — na Inglaterra de seu tempo. Na verdade, não é uma guerra entre seres ainda não socializados. É a degradação completa das relações sociais. Todas as paixões mobilizadas nela são de homens que conhecem e prezam (mas de maneira ambígua) o outro. Temos aqui o contrário do estado de natureza de Rousseau, no qual o homem ainda não foi socializado. O homem natural hobbesiano é integralmente socializado, só que mal socializado. Quer os bens do outro, e mata se não os tiver. Teme que o outro o roube ou mate, e mata por medo disso. Quer o reconhecimento do outro, e mata-o se esse não vem. São essas, aliás, as três principais causas de guerra de que fala. Todas elas supõem uma socialização dos sentimentos e percepções. (Aliás, é o que permitirá que tanto Rousseau como Macpherson digam que o homem de Hobbes não é o homem natural.)
Vamos, então, desenvolver cada uma dessas causas de guerra, como aparecem no capítulo 13 do Leviatã.
A primeira consiste na vontade de tomar o que é do outro. Já presume, portanto, se não a propriedade, pelo menos a posse. É o olhar do ganancioso. Mas os ávidos, os gananciosos, constituem minoria. O problema é que podem, de minoria, converter-se em perigo para todos. Se concentrarmos o foco nessa causa, como fez Macpherson, consideraremos Hobbes como um pensador da aquisição. É o que leva C. B. Macpherson, cuja leitura de Hobbes teve bastante importância na década de 1960, a falar em “teoria política do individualismo possessivo”, para designar o que prefiro chamar de foco aquisitivo.[6]
A segunda causa é a que considero decisiva. É a prevenção da primeira. Na verdade, é uma causa que só existe em função da primeira. É o receio de que haja, de que funcione, de que prevaleça a primeira. O problema da primeira — o desejo amoral de adquirir o que é do outro — não está tanto nela mesma, mas no espectro, no fantasma, na imagem que dela se tem. São poucos os que agem segundo um desejo sem limites; são poucos os que invadem o outro; mas ninguém sabe, do outro, se ele é um dos gananciosos. Ninguém sabe como o outro, em função de seu desejo, agirá. Por isso, a segunda causa é a que diz ser racional temerem, os outros, que eu queira esbulhá-los. Ou, para expressá-lo melhor, trocando o sujeito eu pelo sujeito outro(s): passa a ser racional eu, e cada eu, imaginar que cada outro me queira esbulhar. Daí que um ataque preventivo se torne racional. Daí que, para impedir esse roubo ou furto, “eu” (qualquer eu) possa atacar preventivamente e até matar.
Mudou, portanto, o sujeito por cujos olhos se lê a guerra. Na primeira causa, o foco é o do ambicioso, do ganancioso. É ele o predador, aquele de quem diz Hobbes que compartilha a paixão animal por excelência, a predação, com os animais de rapina. Por isso mesmo, ele está nos antípodas do homem, já que se é tanto mais humano quanto menos ganância e mais curiosidade se tem: o conhecimento é uma paixão anti-rapace. Até porque permite acumular, sim, até mesmo ampliar o estoque do que se tem, mas sem precisar da posse física do objeto. Em suma, a primeira causa está aferrada ao indivíduo dominado por suas paixões bestiais. Ela já permitiria, sim, sozinha a guerra (qualquer das três causas é suficiente para gerá-la), mas em pequeno alcance. Seriam guerras locais. Não seria, ainda, a guerra de todos contra todos. Sempre haveria a possibilidade de isolar esses maus-caracteres.
Porém, com a segunda causa tudo muda de figura. Com ela, o foco passa a ser, em primeiro lugar, o da vítima potencial. Não se está mais no olhar do sem-terra, do bandido; é o do fazendeiro, do homem de bem, daquele que planta, semeia, constrói ou possui um lugar — a Seat, uma sede — de boa qualidade:
Enquanto um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único homem, [já] se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de se esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.[7]
E além disso é esse o olhar do homem racional. A guerra deixa assim de derivar-se da ganância ou da bestialidade. Passa a ser o ato racional de um homem racional, que se precavê do ganancioso ou bestial. Poderíamos ligar essas duas causas a uma passagem de Locke,no Segundo tratado sobre o governo, capítulo 2, em que o pensador liberal, tão diferente de Hobbes, fala da lei natural e de como lidar com quem não a respeita. Esse infrator deve ser punido, diz ele, se necessário for, com a pena capital. Na verdade, nem é preciso o “se necessário for”: toda pena tende à pena capital.
E, dizendo isso, Locke distingue claramente quem viola a lei natural ou racional, que é a lei da propriedade — ou seja, o personagem de nossa primeira causa —, e quem o pune — juiz e carrasco esse que seria o personagem de nossa segunda causa. Fica assim muito bem definido quem é o criminoso e quem é o justo. Mas, para fazer isso, Locke precisa pressupor que a lei natural seja claríssima, transparente, a nossos olhos. Não pode haver nenhuma opacidade. Tem de ficar meridianamente claro quem cumpre, e quem viola, a lei natural.
Ora, nada disso aparece em Hobbes. O grande problema, que governa e mesmo suscita a segunda causa, é que o personagem dela — o proprietário justo, digamos — não sabe quem é seu outro. Não sabe se o outro é honesto ou desonesto, se o vai agredir ou não. Posso, eu mesmo, até saber-me[8] justo; mas não tenho como saber se os outros também o são, por queridos e próximos que sejam. Isso torna razoável ele, o personagem da segunda causa, que antes chamei de “eu”, sempre atacar.[9]
É o que poderíamos chamar a situação do serial killer. Suponhamos que numa sala qualquer — nesta, em que falo, ou em que falei, se o leitor lembrar que este texto foi em certo momento oralizado como uma conferência — desconfiemos que há um assassino em série. Qual será a atitude mais racional para cada um de nós, ainda mais se formos conviver por um longo período de tempo, expondo-nos assim, fracos, no sono,[10] uns aos outros? Será cada um de nós tentar matar todos os outros. Daí vem que a suspeita se realize, ou seja, que, mesmo não havendo nenhum serial killer por natureza, todos nos tornemos tais. Não somos assassinos em série, tornamo-nos.
Por que insistir nesse ponto? Porque é fundamental, se queremos entender a guerra de todos em Hobbes, saber que ela não decorre de uma natureza humana belicosa. Não é preciso predicar nenhuma violência constitutiva da psique humana, para produzir a guerra. É inteiramente desnecessário, e equivocado como hipótese, supor que haja assassinos por natureza. Mais ainda, é desnecessário até mesmo supor que haja uma natureza humana rica em conteúdos precisos (e, portanto, pobre em diversidade); Hobbes faz sua uma psicologia que vem de Aristóteles, ou devemos dizer de Teofrasto, que é a dos caracteres, dos tipos, ou seja, da diversidade psicológica. Embora assim disponhamos de uma psicologia hobbesiana até mesmo fina, e embora nosso filósofo atribua grande importância às paixões, e embora até fosse possível gerar a guerra a partir de algumas delas, o fato é que Hobbes deriva a guerra não de paixões gananciosas, mas da razão. E, se a razão é o instrumento que permite inferir a guerra, o lugar em que esta se dá é o das relações entre os homens.
Essas considerações são decisivas para compreender o que é a guerra. Ela se generaliza não quando o mau ataca, mas quando o bom (o personagem tradicionalmente chamado de bom)[11] o faz. A guerra é aquela situação em que o agressor não é apenas o velho personagem detestável da filosofia — o ateu, que disse que em seu coração não há justiça nem Deus,[12] o amoral etc. etc. —, mas também o bom personagem, o herdeiro do justo, esse bom com quem tendemos a nos identificar, que chamei de “eu”, este personagem, portanto, que também pode ser chamado de “o leitor”. É essa a força da guerra hobbesiana: que os homens de bem também ataquem, e ataquem antes da provocação, e ataquem de modo a matar e destruir. Se a violência estivesse do outro lado, estaríamos ainda ligados a uma velha imagem da filosofia e do pensamento, bastante tranquila: o mal lá, o bem cá. Por um lado, a guerra de conquista, por outro, a guerra justa. Seria esse o velho mapa católico, tomista, cristão. Mas, e se os justos também iniciarem a guerra? E se os justos também conquistarem? Essa exposição pode soar estranha. Utilizo categorias como justo e injusto, bom e mau, e isso tratando de um capítulo de Hobbes no qual ele, explicitamente, diz que nada pode ser predicado quanto à bondade ou à justiça antes de haver Estado. Faço-me assim réu de anacronismo, ou pelo menos de má cronologia lógica. Contudo, isso é proposital. Nunca será demais insistir: em Hobbes, não há nunca um antes em relação ao Estado. Hobbes diz, do contrato que cria o Estado, que é “como se” cada um dissesse a todos os outros. Jamais insinua, sequer, que tal contrato tenha de fato ocorrido. É necessário presumir que sim, mas essa necessidade somente produz uma ficção — um como se.
Aliás, para sermos precisos, há casos, sim, em que a dominação surge de contratos historicamente atestados. Nem sempre, portanto, é um “como se”. Tais casos remetem mais de perto à experiência histórica — são de dois tipos, a dominação do pai (ou mãe) sobre o filho e a guerra de conquista. Esta última se dá quando venço alguém e, não o matando, ele contrata obedecer-me. A situação é complicada, e não precisamos repetir aqui uma análise detalhada de uma parte menor da obra hobbesiana.[13] O que importa é só uma coisa: que a dominação historicamente atestada é inferior, em importância, no pensamento de Hobbes, à instituição imaginada de um poder comum. Tanto é assim que Hobbes deriva todas as obrigações relativas à vida social a partir da instituição (do como se imaginado), e somente depois afirma, e sem dar razões para isso, que isso também vale para a dominação historicamente mais fácil de atestar. O que é fecundo teoricamente é o “como se”, não o “assim foi”. Além disso, embora Hobbes não use palavras fortes como propriedade e proprietário ao descrever as causas de guerra — e isso, concordo, porque ainda não mostrou advir a propriedade, que depende de um poder estatal —, ele já fala em bens, em posse.
Assim, se fôssemos radicais no exigir que antes da página em que Hobbes faz surgir o Estado não aparecesse a propriedade, deveríamos possivelmente também impor que não houvesse, ainda, posse minimamente estável — e, no entanto, há. Macpherson nunca teve tanta razão como quando explicou que no estado de natureza o homem hobbesiano conta com todas as características que sociologicamente definem o homem em sociedade.
O homem natural hobbesiano não é — como será o homem natural rousseauísta, o homme de la nature — a antítese do homem socializado. Ele é sua caricatura, ou melhor, ele mesmo, uma vez retirado tudo o que o contém e refreia. Na verdade, o que Hobbes está fazendo é exatamente isto: mostrar o que é o homem social (ou simplesmente o homem, pois ele não conhece outro) sem o Estado.
Não podemos rousseauizar Hobbes, isto é, não podemos atribuir-lhe uma ideia de homem que passe pela transformação, pela história; isso, nele, não existe. Daí que, ao falar em estado de natureza (expressão que no Leviatã ele já largou, em favor de natural condition of mankind), ele entenda por isso algo muito diferente do que Rousseau. Digamos que em Rousseau o estado de natureza nega a própria sociedade, enquanto em Hobbes nega sobretudo o Estado (que, claro, para ele é condição para haver sociedade). Daí que o homem natural de Rousseau possa ser equilibrado, e seu homem social, depravado — ao passo que em Hobbes é exatamente o contrário: o homem natural é o que perdeu o controle, e com isso se degradou.
A terceira causa de guerra é a glória, que antes — assim como Keith Thomas — eu considerava ser a principal das causas. Na verdade, porém, hoje considero que a principal é a segunda, porque é ela que torna a guerra generalizada. Thomas utiliza as referências de Hobbes à glória, à fama, à reputação para mostrar como o filósofo continuaria ligado a uma imagem dos tempos pré-capitalistas, para os quais a aquisição monetária ou monetizada não é o mais importante, e sim a imagem pública que se tenha: na famosa expressão segundo a qual o valor de um homem é, como o de qualquer outra coisa, his price, essa palavra remeteria mais à ideia de “apreço” do que à de “preço”. No mesmo espírito, uma das teses de Ao leitor sem medo afirmava a importância dessa causa. Continuo mantendo as conclusões que retirei dessa leitura, a saber: a glória é uma causa importante em Hobbes, e nada justifica que parte da bibliografia, por vezes ao discutir se o filósofo era ou não burguês, a esqueça; tanto é importante que o clero, o grande inimigo da filosofia hobbesiana, age movido por ela, mais do que por qualquer outro anseio; e inversamente, o ideal hobbesiano de homem (o que tem noção justa de seu próprio valor e se pauta não pelo temor, mas pela medida adequada de sua própria glória — o leitor sem medo, do título de meu livro) é inspirado pelas qualidades da verdadeira nobreza, como esta aparecia em Erasmo, por exemplo. Há assim uma glória justa, geradora de paz, e uma glória vã, fecunda em guerras, fecunda em infecundidades.
Mas, com tudo isso, é possível pensar em dois cenários alternativos para a gestação da guerra. Um deles acentua os fautores de guerra, uns que são ambiciosos de bens materiais (a primeira causa), outros que são movidos pelo desejo de fama e prestígio (a Terceira causa). Têm eles em comum, portanto, partir do eu, não diríamos belicoso ou de natureza guerreira (evitemos acentuar demais a natureza humana em Hobbes — nosso autor não precisa dela tanto assim), mas cujos desejos gananciosos podem resultar em guerra. E o outro cenário é o da generalização da guerra. Este se encontra na segunda causa.
Ou, para dizer de outro modo, podemos pensar nos poucos sujeitos que enviam à sociedade um discurso que conduzirá à guerra: causas primeira e terceira. Ou na recepção que esse discurso acaso tenha, e que é o fator crucial para que, dos anseios locais por guerra, se passe à sua universalização: a causa segunda. Ora, fica assim claro que a recepção é o chão fértil do qual vai brotar a devastação. Sem ela, a guerra seria sempre local. Seria, sempre, lockiana: isto é, saberíamos quem são os gananciosos (ou os sequiosos de prestígio) e poderíamos delimitá-los, circunscrevê-los — enforcá-los.[14] A paz assim se engendraria, partindo-se de um recorte muito preciso, mas cuja condição é que seja evidente e transparente, entre seres humanos dignos de tal nome e de viverem, e outros que não merecem a humanidade, e portanto podem e devem ser extirpados. A genialidade de Hobbes está em não ter dado esse passo, que foi o de Locke. Se o desse, não passaria de um ideólogo. Justificaria um recorte social, que no caso de Locke separou os proprietários dos não-proprietários, ou dos inimigos da propriedade privada dos meios de produção. Na verdade, Hobbes não estava longe desse recorte. A simples consideração das duas primeiras causas suas para a guerra permite dizer, da primeira, que ela verbera o invasor da posse alheia, em linguagem brasileira atual, o movimento dos sem-terra, reduzido a um amálgama de atacantes do que os outros valorizaram e tornaram produtivo; e, da segunda, que ela autoriza o proprietário a atacar, preventivamente, quem lhe pareça vir a constituir ameaça a seus bens. Não se trata, portanto, contra um Locke intransigente, defensor da propriedade privada e do enforcamento sistemático com que ela foi sustentada na Inglaterra whig,[15] de criar o mito de um Hobbes simpático aos não-proprietários.
É verdade que Hobbes coloca o direito à vida acima do direito à propriedade, e com isso corta a justificativa principal para a chacina dos inimigos da propriedade privada dos meios de produção, cometida na Inglaterra até a reforma das leis penais, em torno de 1830, quando começa a recuar a tendência a castigar enorme quantidade de crimes no patíbulo. Mas, feita essa ressalva, que evita inferirmos de algumas passagens hobbesianas[16] um possível socialismo ou política social de nosso autor, o fato é que Hobbes não chega, de sua preferência pelo foco proprietário, a uma defesa tão sistemática, como a lockiana, da criminalização e do massacre dos não-proprietários.
Mas vamos ao que realmente importa aqui: Hobbes, como os mercantilistas, separa a guerra interna e a externa. (Há pelo menos um autor da época, aliás, que curiosamente não vê grandes males na guerra civil, porque nela as riquezas são transferidas dentro do território nacional, o que é menos grave do que serem levadas para o exterior.) Isso vem junto com a distinção entre comércio interno e externo. Em Hobbes, cada um desses é tratado num capítulo distinto do Leviatã. O comércio interno está entre aquelas coisas que o soberano regula. Hobbes sugere que o governo o controle o mínimo possível, deixando aos súditos ampla liberdade de contratar, mas é claro que essa é apenas uma sugestão,[17] que aparece no capítulo 21 do Leviatã, quando está em cena a discussão sobre a liberdade dos súditos diante do soberano. Já o comércio externo é tratado no capítulo 24, que trata da alimentação e crescimento do Estado, ou seja, da economia. A aquisição de riquezas no exterior, mediante a balança favorável, constitui o principal ingrediente — além, é claro, da conservação da paz interior — para que cresça um Estado.
Não há, então, um comércio só, que se bipartiria em comércio nacional e internacional. Há, sim, dois comércios bem distintos, sendo que o interno é bem inferior, em importância, ao externo. O comércio internacional é o que enriquece um país. Se lembrarmos que para os mercantilistas a guerra (externa) e o comércio (exterior) obedecem a uma mesma lógica, que faz a pilhagem e o enriquecimento caminharem juntos, veremos que essa distinção entre os dois comércios: de algum modo remete à diferença entre as duas guerras. Em suma: a guerra externa é produtiva, a interna é devastadora. De novo, a seguirmos os nomes que Hobbes dá, a diferença parece inoportuna; porque o que chamamos de guerra interna, ou doméstica, ou civil, para ele se caracteriza pela dissolução do Estado e, portanto, sua volta ao mesmo estado em que um indivíduo se defronta com todos os outros. Por isso mesmo, aliás, ele pode comparar essa condição à de guerra entre as nações. Mas é nosso dever ir além do jargão específico de nosso autor, e compreender as figuras que ele monta para nós; e tudo mostra que a guerra de todos contra todos é a caricatura — mais uma vez, pensamos o filósofo como caricaturista — da guerra civil suscitada pelo clero, ou seja, da Grande Rebelião, se quisermos lembrar o nome que lhe deram os monarquistas, ou da Revolução Puritana, para a chamarmos pela denominação que terá no século XIX. E por isso a guerra pode ser fecunda se conduzida além das fronteiras, tanto quanto será nociva, se travada só no interior do território de um Estado.
O que dissemos exige matizar o que o próprio Hobbes afirma no capítulo 13 do Leviatã, ao proclamar que a civilização tem vínculos fortes somente com a paz. Porque ele mesmo aceita a guerra externa, tão produtiva para o mercantilismo quanto é ameaçadora, para os Estados da época, a detestável guerra civil. Na verdade, a civilização é contra a guerra interna, mas prospera com a guerra externa. E isso explica por que fizemos toda esta leitura minuciosa de um autor velho de quatrocentos anos: ele nos dá a matriz — uma, pelo menos — de toda uma gestão da violência, de uma gestão produtiva da violência em nossos tempos.
Por aí, entende-se a situação que, ao longo do século XX e da centúria que se inicia, faz o avanço econômico — eixo do que se chama, hoje, “civilização” — estar ligado às despesas bélicas. Boa parte do progresso da ciência e da tecnologia se deve a investimentos militares, como se sabe. O que poderemos discutir é como se deu essa fusão entre repressão à divergência interna (denominada guerra civil), promoção da guerra externa, progresso e civilização — e como fazer para divorciar esses atores. Romper esses elos é a condição para que possamos reconhecer o direito à dissidência interna, produzir a paz entre as nações e recuperar termos como progresso e civilização, emancipando-os de suas fortes conotações eurocêntricas.
O primeiro passo para dissolver esses elos está no enfraquecimento da diferença entre guerra interna e externa. Na verdade, sempre houve uma assimilação das duas, mesmo no tempo de Hobbes: o dissidente interno era assimilado ao inimigo externo. Daí que fosse legítimo punir o crítico como traidor, e que expressões que hoje passam pelo correto exercício da linguagem democrática fossem tidas, então, como sacrílegas e merecedoras da pena de morte.
Por isso, é bom notar que a distinção hobbesiana não se dá no plano propriamente da legalidade, mas no da economia. Legalmente, a guerra de todos contra todos e a guerra externa, a conflagração doméstica e o conflito de conquista, não se distinguem. Aliás, o ponto essencial hobbesiano, no tocante ao direito internacional, está exatamente aí: na assimilação das relações externas ao conflito que lavra no estado de natureza. Por isso, a diferença com que estivemos trabalhando é menos jurídica do que econômica. Ela se dá antes no plano do efetivo funcionamento do Estado — sua nutrição, diz Hobbes, sua dieta — do que no das relações de direitos e deveres, no das obrigações.
Ora, o que vai suceder em nossos tempos é que os conflitos internos serão tidos por administráveis, enquanto os externos passarão por mais severos. É a lição — entre muitos outros — dos Azande, estudados por Evans-Pritchard, capazes de enfrentar-se internamente de maneira vigorosa, mas que se unem contra as figuras da exterioridade. Em outras palavras, o conflito interno deixa de ser fatal e letal. Talvez aqui esteja o grande fracasso de Hobbes, seu grande erro na leitura da história — não da história que o precedeu, porque não estamos dando nota ao filósofo como se ele fosse um retratista, mas da história que a ele se sucedeu, que ele previu mal, e que assim encontrou mestres de política melhores, no sentido de mais eficazes, do que nosso filósofo.
Para Hobbes, o Estado deveria ser um todo sem fissuras. Qualquer falha nas suas juntas constituiria uma brecha pela qual a doença e mesmo a morte se infiltrariam. Daí, um ideal de consistência bastante elevado. Daí, também, que — em contraste com uma filosofia marcadamente empirista como a britânica, e aqui digo empirista no duplo sentido tanto de inspirar-se na experiência como até de sacrificar a ela, eventualmente, o rigor dedutivo e mesmo conceitual — Hobbes tenha sido o filósofo mais rigoroso, pelo menos em seu país, a tratar da política. Poderia alguém, aliás, comparar Locke a ele, em termos de qualidade?
E no entanto Locke teve mais sucesso. Não penso aqui no êxito de público (que inegavelmente foi maior para Locke) ou no de crítica (que valorizou mais Hobbes, sobretudo em tempos mais recentes, menos receosos de seu vigor e lucidez, que os contemporâneos chamaram de “ateísmo”), mas no êxito no plano das coisas, das instituições, da política. Locke ajudou não só a pensar, como a construir o novo mundo do capitalismo. Hobbes permite pensá-lo, sim, criticamente, mas tem menos serventia para sua construção. E o eixo em que a sociedade se desviou de Hobbes foi exatamente aqui: no modo de pensar a contradição, o conflito, a filosofia.
É comum dizer-se, nos séculos XVI e XVII, isto é, no período em cujo meio nasce Hobbes, que a constituição inglesa requer o acordo entre rei, lordes e comuns. Se qualquer desses atores nega seu aval a uma medida, a política emperra. Na verdade, isso sucede mesmo é com os quatro primeiros Stuarts, em especial com Carlos I, Carlos II e Jaime II. Outros monarcas, antes e depois deles, não viveram esse problema. Hobbes vê, na ausência de uma moldura institucional que dê conta do impasse possível entre os três principais atores, o princípio de dissolução do Estado. Se o clero é o fator de corrosão, agindo por baixo, infiltrando-se entre o soberano e os súditos, o fator que permite tal corrosão é a indefinição institucional.
Será preciso, então, definir com precisão quem manda na Inglaterra. Hobbes defende aqui a causa do rei, mas até pode — por alguns anos — acatar a autoridade de Cromwell como legítima, porque está em jogo um princípio filosófico e político, e não uma simpatia pessoal. E da mesma forma poderia admitir a autoridade de um regime aristocrático ou mesmo parlamentar, desde que este detivesse a soberania sem a partilhar com mais ninguém.
O fundamental não é portanto quem governa, mas sim que o poder não seja dividido. O perigo não é a democracia, mas a mistarquia, como ele chama, maldosamente, um poder misto de monarquia, aristocracia e democracia, que era defendido por vários contemporâneos seus. Os defensores de um Estado popular na Inglaterra são assim perigosos não pelo que defendem, mas porque com isso subvertem a ordem vigente. Um monarquista seria igualmente nocivo, numa democracia.
Ora, o que aconteceu historicamente foi que teve êxito, precisamente, aquilo que Hobbes queria evitar. Sua análise revelou-se prospectivamente equivocada. Seu diagnóstico e seu prognóstico falharam. A existência de lados opostos mostrou-se produtiva, em vez de destrutiva: eis a chave que fez a mistarquia funcionar. O modelo anglo-saxônico da não-soberania é francamente mistárquico, se me permitem um adjetivo tão feio, na medida em que as próprias instituições inglesas eram, e as norte-americanas são, forçadas a conviver e a negociar. Já o modelo de soberania que vingou na Europa continental é moderadamente mistárquico, na medida em que admite partidos em conflito e a alternância no poder. A Grã-Bretanha, até ocorrer a primazia irrestrita da Câmara dos Comuns, na década de 1910, tem um regime no qual convivem — e se contrapõem — forças distintas: essa, a chave da mistarquia, essa, a rejeição da soberania. Na Europa continental, ao contrário, desde a Revolução Francesa se coloca a soberania como fundamental: quem detém o poder em última análise, o rei ou o povo? É essa a questão que atravessa o século XIX e somente se resolve, em favor do povo, no século XX, e isso nos mais diversos países, e isso ainda que por vezes a solução seja mais jurídica do que real (ou seja, várias vezes o povo é apenas nominalmente o detentor da soberania, que é apropriada por um partido ou por uma classe dominante; mas, mesmo assim, no plano do direito, extingue-se a legitimidade de um poder que seja de um só).
O curioso, nesse jogo, é que é como se houvesse uma troca de doutrinas e de países: triunfa no continente, a começar pela França, uma concepção da soberania que teve seu maior teórico no inglês Thomas Hobbes, ao passo que prevalece, na Grã-Bretanha pré-1910 e nos Estados Unidos desde sua fundação, uma doutrina do poder que teve como seu maior formulador o francês Montesquieu, e que é conhecida como a da separação ou equilíbrio dos poderes. A chave do equilíbrio montesquiano e anglófono entre os poderes é que o conflito se revelou rico, e não empobrecedor. Na Inglaterra, assim, enquanto o rei e os lordes ainda tinham poder efetivo (ele, até os três primeiros reis Jorge, no século XVIII, da dinastia alemã, ou, quando muito, até subir ao trono a jovem Vitória, em 1837; eles, até as leis de reforma do Parlamento, no começo do século XX), justamente o poder de veto que cada um dos três atores políticos tinha no jogo era o que levava cada um deles a moderar-se e a negociar com os outros. É exatamente isso o que sucede, hoje em dia, no processo legislativo norte-americano. E é por essa razão que temos aí — funcionando bem — regimes francamente mistárquicos, aqueles mesmos que Hobbes consideraria fragílimos.
Já o continente europeu adotou o princípio da soberania — mas, mesmo assim, há uma moderada e indireta mistarquia. Essa não aparece exatamente nas instituições do Estado, às quais falta geralmente um jogo tão claro de pesos e contrapesos, mas nos partidos, e mesmo nas organizações em geral da sociedade. A alternância mediante eleições estabelece uma grande limitação a quem seria o detentor do poder. E aqui está o mesmo espírito mistárquico que Hobbes repudiaria. Lembremos que ele nada tinha contra a soberania ser investida numa assembleia — mas exigiria que esta preenchesse as vagas que surgissem mediante cooptação. Não sendo assim, se fossem eleitos os membros da assembleia, o poder seria dos eleitores, e não do órgão representativo.
Em suma: o que estamos dizendo é que Hobbes falhou, prospectivamente. Macpherson explica isso dizendo que ele não percebeu a coesão de que é capaz uma classe social.[18] Hobbes percebera que a sociedade estava fraturada em classes e que era preciso soldar essas fraturas, mas com isso não notou que elas, longe de dissolverem o tecido social, são o que lhe dá densidade. (Eu corrigiria essa formulação, que aliás não estou citando literalmente, observando que as “classes” em que está dividida a sociedade nada têm a ver com as classes sociais como a sociologia mais tarde as definirá; não remetem à posição no aparelho de produção, nem sequer a um único critério; os sujeitos em que se reparte a sociedade são uns econômicos, outros políticos, outros religiosos, e por aí vai.)
Tudo isso para definirmos como a guerra pode deixar de rondar o interior de uma sociedade. A grande ideia-chave da ciência política, e da prática política, nas últimas décadas — ou seja, a ideia de que é possível administrar os conflitos — é a negação do projeto hobbesiano. À medida que, mais que isso, se percebe que o conflito é produtivo, é fecundo, enterra-se Hobbes, pelo menos aquele Hobbes cuja ideia-matriz era que os conflitos seriam mortíferos. E veja-se como no próprio marxismo essa mudança se dá. Se lemos com atenção Marx e Engels, vemos que eles falam em luta de classes. Trata-se de um conflito forte, irredutível, antagônico, que leva à supressão dos termos opostos em favor de uma nova e superior síntese — mas eles não usam, pelo menos privilegiadamente, a expressão guerra de classes. Quem falará em “guerra de classes” serão, em certas fases de sua história, os partidos stalinistas. Sem entrarmos no detalhe da questão, o significado central disso é que mesmo o marxismo, a família de pensamento que considera o conflito como mais amplo e profundo, reluta em pensá-lo, hobbesianamente, sob o modelo da guerra. Ou, se não quisermos ser muito radicais: Hobbes pode até haver vencido, ao se construir uma sociedade e um Estado sem a guerra, só que esse caráter pacífico das relações internas se dá com base precisamente naquilo que, para ele, era o cerne da guerra.
Será então a guerra deportada para o exterior das sociedades? As civilizações parecem ter se construído, ao longo dos tempos, excluindo a guerra de seu interior, mas dependendo dela no exterior.
Vimos que a exclusão interna significava o silenciamento das oposições, uma paz de cemitérios. Expressões hoje usuais na discussão política, ou que se ouvem em cada esquina, de qualquer pessoa, na crítica aos governos, durante milênios levaram a uma morte cruel e ignominiosa. (Talvez essa constatação constitua o maior elogio que se possa tecer à sociedade democrática de nossos dias.) Vimos também que foi possível aumentar o teor de conflito dentro de uma sociedade e, mais que isso, torná-lo fecundo. Mas, e quanto à guerra externa?
Durante o mercantilismo, a apropriação de excedentes pela guerra, ou a pilhagem ou o comércio, constituía uma forma aceita e mesmo elogiada de enriquecimento dos sujeitos econômicos, que seriam os países. Contudo, uma doutrina formulada em termos assim amplos vale não só para o mercantilismo, mas para quase todas as épocas e sociedades. Talvez somente na modernidade essa forma de constituição de riquezas se torne, e ainda assim gradualmente, inferior a outras. É Benjamin Constant quem expressa essa ideia, em sua célebre conferência de 1819 sobre a liberdade dos modernos comparada à dos antigos. Diz ele que o comércio visa o mesmo fim que a guerra de saque: tornar nosso o que pertence aos outros. Mas no saque isso se faz pela violência, ao passo que no comércio se oferece — e se dá — um pagamento ao outro. O comércio é, diz então Constant, a homenagem que se presta à força da outra parte, ou seja, a constatação de que, tudo somado, sai mais caro pilhar do que comprar. Está implícito assim que sai mais caro destruir do que negociar, ou que sai mais caro o triunfo do que a cooperação. E essa é a chave da construção da paz, em nosso tempo.
É claro que Constant errou, se pensou que ingressávamos numa era de paz. Cento e vinte anos depois de sua palestra, uma enorme guerra de conquistas foi deflagrada pela Alemanha nazista. Mas o que se fez em 1945, encerradas as hostilidades, para impedir que elas ressurgissem? A Primeira Guerra Mundial engendrara talvez a segunda, ao impor a uma Alemanha bem menos detestável do que a nazista uma paz humilhante. Não houve Versalhes em 1945, embora tenha havido Nurembergue.[19] Alguns territórios foram expropriados da Alemanha — o Sarre, pela França, por dez anos (tinha-o sido por quinze, depois da Primeira Guerra), findos os quais optou por plebiscito pela volta à Alemanha, e no Ocidente isso foi tudo. (A leste, a Alemanha perdeu muito mais territórios, especialmente para a Polônia e a União Soviética — e é significativo que esses ganhos físicos a médio prazo tenham sido muito menos úteis, para os antigos inimigos que deles se beneficiaram, do que o ganho econômico e político que teve o Ocidente, e de que falaremos agora.)
Poucos anos após o fim da guerra se concebe uma Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, isto é, se constrói entre Alemanha e França, principalmente, um entrelaçamento de interesses em torno da siderurgia, a indústria pesada por excelência, ou mesmo a indústria por excelência, porque é ela que tem a primazia no período industrial, isto é, aquele que antecede nossos dias de uma economia cada vez mais voltada para a inteligência e a informática, e que por isso mesmo iria reduzir na economia a dimensão do que é físico. Assim, começando pelos negócios — começando, poderíamos dizer, marxistamente pela economia —, o capital europeu se integra, de modo a tornar praticamente impossível uma guerra. Daí se passa ao Mercado Comum Europeu, movido pelo mesmo espírito, e depois à União Europeia, que acrescenta à ampla circulação de mercadorias e à integração dos mercados, a das pessoas. Nunca poderemos elogiar o suficiente esse processo. Foi essa talvez a maior história de sucesso político na segunda metade do século XX, mais — pelo menos por enquanto — do que o importantíssimo processo de independência dos países da África e da Ásia, os quais provavelmente só darão seus resultados esperados (e que serão brilhantes — um dia) um dia ainda por vir. Não é à toa que assim a Europa unida, em primeiro lugar, se tornou a única força capaz de se contrapor aos Estados Unidos, e em segundo se constituiu num enorme polo de atração gerador de paz e de riquezas. Lá onde, no mesmo continente, grassam guerras, a União Europeia funciona como promessa de prosperidade.
O que isso quer dizer? Começamos esta palestra afirmando que, ao longo dos tempos, a civilização — ou a cultura, ou a riqueza, ou o progresso — se construiu distinguindo-se um espaço de paz, internamente à sociedade de que se falava, e um de guerra, nas relações externas. Mostramos que essa paz interna não nos satisfaria mais, hoje: era a paz do silêncio, da não-democracia. Exigimos hoje, como o ar que respiramos, relações democráticas que incluam, pacificado, algo do que antigamente se chamaria guerra — ou subversão, insubordinação, rebelião. Exigimos nosso quinhão de revolta.
Também vimos que as relações exteriores montadas na guerra se tornaram menos defensáveis. Ainda não dá para dizer que Constant tenha, ou terá, razão. Continuam sendo movidas guerras pelo ânimo da pilhagem. Muitos pensam que a anunciada, à época em que escrevo, guerra dos Estados Unidos contra o Iraque se inspira essencialmente no desejo de se apoderarem, aqueles, de mais petróleo. E as guerras secundárias, que ao longo de toda a segunda metade do século XX conviveram com uma paz central (paz entre os territórios das principais potências, guerras nos confins do Terceiro Mundo), tiveram muito de saque nas suas causas.
Mas há sinais — crescentes — de que esse quadro pode estar mudando. Afinal, se fizermos rapidamente um jogo de soma zero, veremos que uma guerra sempre dá somas negativas. Idealmente, uma pilhagem poderia resultar na passagem de toda a riqueza expropriada de um para as mãos de outro, e assim, feitas as contas, o resultado seria zero. Tudo o que um perdesse, o outro ganharia.
Ou, mesmo, se o vencedor fizesse melhor e mais produtivo uso dos bens assim adquiridos, o produto poderia ser positivo. Mas o que se constata é que, da maior parte das guerras, o resultado é francamente negativo. Para obter-se algo, destrói-se muito mais. O que o derrotado perde é muito mais do que o vencedor leva para casa. (E em boa parte Versalhes, em 1919, assim se explica: a todo custo, queriam os vitoriosos compensar seus gastos com a guerra; mas não perceberam devidamente que essas despesas jamais poderiam ser ressarcidas! Mesmo com indenizações leoninas, não havia como saírem do vermelho. Como não aceitassem esse fato, impuseram à Alemanha uma paz que só piorou as coisas. A sorte do mundo, em 1945, foi que, por várias razões, não se repetiu esse cenário estúpido.) Se estivermos aprendendo com isso, nas relações internacionais, poderemos finalmente construir um mundo sem guerras.
Terminemos este artigo com um final auspicioso. Hoje é muito difícil formular qualquer previsão. Podemos estar à beira de um conflito terrível e talvez mundial. Entre a redação destas páginas e sua publicação, muito pode ocorrer. Mas o fato é que se opõem atualmente duas lógicas. Uma é a que se foi construindo ao longo dos últimos séculos e sobretudo décadas: trata-se de levar para as relações internacionais o que conquistamos nas domésticas. Assim como fomos capazes de domesticar o conflito e de aceitar a divergência nas relações com nossos próximos, com os concidadãos, deveremos ser capazes de substituir a guerra e seus avatares nas relações internacionais. Outra lógica, porém, é a do conflito generalizado, da guerra conduzida pelos fundamentalismos de ambos os lados, norte-americano e radical islâmico. Não sabemos qual delas há de vencer. Mas pelo menos acreditemos que instituir um mundo de diálogo e de respeito recíproco depende de nós — e lutemos para que prevaleça o ânimo da paz.
Notas
[1] Ver Leviatã, cap. 13.
[2] Sobre o pouco cabimento de associar Hobbes à defesa do absolutismo régio, ver Renato Janine Ribeiro. A última razão dos reis.
[3] Ver Leviatã, cap. 24.
[4] Quando não indicar outra referência de trabalhos anteriores meus sobre Hobbes, trata-se de Ao leitor sem medo (2ª ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999).
[5] Ver Macpherson. Political theory of possessive individualism, de preferência no original (Oxford University Press, 1962, várias reimpressões).
[6] Embora meu principal livro sobre Hobbes — Ao leitor sem medo (1984; 2ª ed., 1999) — adote uma interpretação do filósofo muito diversa da de Macpherson, o meu interesse por Hobbes deveu-se sobretudo à leitura que fiz da Teoria política do individualismo possessivo, em 1969. Macpherson se interessa em comparar as descrições hobbesianas da política com as historicamente existentes; procurei, então, ampliar o leque de estruturas com as quais cotejar as criações de Hobbes. Foi a partir dessa inspiração que cheguei a conclusões muito diferentes, mas basta notar um fato: em Hobbes se distinguem o poder por instituição (que é o estudado de modo geral) e outro que ele chama “por aquisição”, para designar o poder do genitor sobre o filho ou o do conquistador sobre os vencidos. Procurei estudar este segundo. É curioso que Macpherson, tão voltado para a posse, não se tenha debruçado sobre esse poder aquisitivo ou adquirido.
[7] Leviatã, cap. 13, São Paulo: Abril, 1973, p. 79; Leviathan, Harmondsworth: Penguin, 1968, p. 184.
[8] Ou imaginar-me? Concedamos até que eu não imagine apenas, mas que eu saiba, isso apenas para facilitar a argumentação.
[9] Um filme ilustra bem esse ponto: Pridge’s honor, ou A honra do poderoso Pridge. O casal apaixonado divide-se e opõe-se justamente porque cada um antevê o que o outro irá fazer; e, com isso, a previsão se realiza, se cumpre.
[10] Ver “O sono do rei”, em meu A marca do Leviatã, 1ª ed. São Paulo: Ática, 1978; 2a ed. São Paulo: Ateliê Editorial, no prelo.
[11] Hobbes nega que haja, em si, o que é bom ou mau. Mais uma vez, aqui emprego termos que não são os dele. Mas o importante é que nesse ponto ele recicla o personagem convencionalmente chamado de bom. Se até o bom da tradição atacar inocentes, se até ele for levado a matar — eis a situação em que a guerra se generaliza.
[12] Ver a passagem inicial do cap. 15 do Leviatã, em que Hobbes retoma os salmos 14 (ou 13) e 53 (ou 52, dependendo da versão), nos quais o “fool” diz em seu íntimo que não há Deus — sendo portanto desnecessário cumprir a palavra dada.
[13] Querendo-se o detalhe, veja-se meu Ao leitor sem medo.
[14] Locke, cap. 2 do citado Segundo tratado do governo. São Paulo: Martins Fontes. Hobbes, Behemoth. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
[15] Ver, por exemplo, Whigs and hunters. Harmondsworth: Penguin, 1977 (Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987). Ver também Albion’s fatal tree. Harmondsworth: Penguin, 1977.
[16] Como a preocupação de que o Estado cuide dos inválidos (ver Leviatã, cap. 30, p. 210), o que para Locke faria pouco sentido.
[17] Não poderia ele, súdito, falando a um soberano, ir além da sugestão.
[18] Consultar sua introdução à edição citada do Leviathan. Duas diferenças.
[19] Duas diferenças. Não houve uma paz duríssima imposta à Alemanha, ao contrário de 1919, mas houve — o que tampouco se viveu após a Primeira Guerra — julgamento e execução dos principais líderes alemães. Em suma, não se castigou o povo, mas os chefes. E isso porque a Primeira Guerra ainda foi pensada dentro de uma lógica do conflito entre os Estados, ou da guerra de conquista, na qual se penaliza o país, o Estado, o povo, mas não o governante — ao passo que a Segunda Guerra teve em seu cerne a convicção de que se lutava por princípios. E por isso substituo, na primeira frase desta nota, a adversativa mas por um porque: em 1945, não houve uma paz duríssima imposta à Alemanha, ao contrário de 1919, e isso porque houve — o que tampouco se viveu após a Primeira Guerra — julgamento e execução dos principais líderes alemães.