1994

Contra a ideia de Renascimento

por Leon Kossovitch

Resumo

Dois “Renascimentos” distinguem-se na história das artes: o inventado, retórica, poeticamente, no século XIV, ainda vigente no XVIII; e o periodizado, nomeado no século XIX como  estilo.

É no século XIX que se corta os tempos, nomeando os estilos. O século XX recorta os cortes ou realiza novos, e efetiva os evolucionismos e formalismos. O “Renascimento” é, então, um rótulo moderno. No século XX, novas partilhas produzem-se,  os períodos subdividem-se.

O “Renascimento”, porém, não tem datação exata. Pode ser atribuído ao século XVI pela historiografia dos fins do XIX e começo do XX; pode circunscrever-se ao XV, Quatrocentos, dando-se ênfase à “representação” perspectivista, abstraída a pertença da perspectiva à simetria, preceito genérico que a esta subordina na proporcionalização de figura e cena; pode começar no XIV, quando, também atualmente, a historiografia deriva artes de letras, valorizando o “humanismo”.

Quando, na primeira metade do século XV, Alberti escreve o Da pintura, ordena, poética e retoricamente, o que se vai produzir no XIV. O “Renascimento”, como está em Alberti, exerce-se sobre os achados que as artes do século XIV propõem descontinuamente, cujas referências doutrinárias, porém, são desconhecidas. Quanto ao século XV, ao XVI, a superação, neles enunciada, dos “antigos” pelos “modernos”, é factualmente interpretada pela historiografia do final do século XIX e começo do XX..

Quando a historiografia aproxima “Renascimento” e “Humanismo”, outras dificuldades sobrevêm. Quando  o estudioso surpreende-se quando topa com a referência a autores “medievais” em textos “renascentistas”, assim, o Comentários de Ghiberti, tratando de óptica, traz autores, como Al-Hazen, sendo situado à vezes fora do “Renascimento”, no “gótico internacional” do Quattrocento. Elementos “clássicos” nunca abandonaram a história, principalmente na koiné, nem no dos textos.

A historiografia não aclara o “Renascimento” como estreitador da “Antiguidade”: valorizando o “classicismo”, restringe o “antigo”, omitindo produção vasta, silenciosamente reabilitada nos séculos XIX e XX por artistas do expressionismo.


Dois “Renascimentos” distinguem-se na história das artes: o inventado, retórica, poeticamente, no século XIV, ainda vigente no XVIII; o periodizado no século XIX como positividade estilística, hoje positivíssima. O primeiro, do qual o segundo se apropria, é da invenção: os lugares “Antigo-Moderno” e “Fortuna” ligam os tempos como “luz-treva” e “ascensão-declínio”, respectivamente. Em Petrarca, circula-se por três idades: antiga, “luz”; atual, “treva”, mediadora de futura, assim, “Idade Média”, em que se vislumbra a restituição da primeira idade de ouro. Dois séculos depois, a história, especificando-se como Vidas de artífices, alterna altos e baixos: encenando com a boeciana “Fortuna” um segundo declínio, divisado de um segundo cimo, de onde escreve, a prudência vasariana cuida de impedir-lhe o passo; funda a academia florentina do desenho, que, tendo como inflexão o alto atingido em Michelangelo, invoca Mecenas para evitar as causas do primeiro, atribuído à incúria dos “Césares” e evidenciada em relevos do arco de Constantino. Não se periodiza em Petrarca, em Vasari, pois em ambos operam topoi de invenção que, remontando à Roma imperial, republicana, nada positivam; “declínio” especifica “mediação” como roda das três artes do desenho, em que a separativa “Idade Média” ora une luzes ora as alterna: nos dois autores, trevas e baixos explicitam, como lugares, a luz perpétua. É o século XIX que, positivando “estilo”, corta os tempos, petrificando-os; o XX recorta os cortes ou efetua novos, polindo as fissuras, unindo os cheios, evolucionismos, formalismos.

Periodizado, “Renascimento” é rótulo como outros, modernos. Como estes, estampa-se nos séculos XIX e XX apropriando-se de termos, o mais das vezes descritivos e valorativos, destituídos de faculdade periodizadora. Assim, “gótico”, referido em carta de Rafael e Castiglione como consideração da arquitetura transalpina, torna-se, no XIX, período de período, de “Idade Média”, já positivada; outro rótulo, impresso no mesmo século, desprovido de uso em artes, apaga a “arquitetura de normandos”, “arquitetura de saxões”, dividindo com “gótico” a medievidade: “românico”. Novas partilhas produzem-se no grande período: “merovíngio”, “carolíngio”, “Ano Mil”, que, todavia, não operam estilisticamente. Os períodos subdividem-se, espantosamente, quando consideradas as oposições: engendra-se um “gótico clássico”, contradição nos termos relativamente aos usos comuns, em oposição, por exemplo, a um “gótico flamejante”, ou “gótico internacional”. Menos afortunado é “grego”, que, atingido o XVI, emprega-se correntemente em artes: maniera greca moderna, vituperada, em oposição a maniera greca antica, louvada como perfeita; enquanto esta se torna “classicismo” no XIX, como normatividade irrestrita, aquela traduz-se por “bizantino”, que, além de periodizar segundo longuíssima duração as artes do que se supõe seja sua área entre os séculos IX e XV, qualifica-as como cerimoniais, assim, formalistas, numa palavra, simbólicas quanto ao estilo. Tais vicissitudes atravessam o “barroco”, “maneirismo”, “classicismo” etc. que ainda se multiplicam por adição de adjetivos incompatíveis com eles, assim, “Renascimento bizantino”, “maneirismo acadêmico” etc. ou, deslocados no tempo, de “neo” que os aplicam ao XIX e XX em que foram gerados. Retroativamente, o século XX mobiliza o “barroco romano”, que regra, para os antoninos, o “barroco pergameno” do século II a. C., e que contrasta com o “classicismo (ou “aticismo”) romano” dos tempos júlio-claudianos. Em chave antiperiodizadora, pois superior à história, os rótulos se aplicam indistintamente, assim, o “maneirismo” em Curtius ou o “barroco” em D’Ors, aquele, continuado salpicadamente, este, recorrência da forma. Um e outro explicitam a distinção, operante na Retórica latina, Cícero, Quintiliano, de “ático” e “asiático”, em que este, excessivo, ora tem distinguido o ornato, ora, o movimento: “maneirismo” de deleite, “barroco” de emoção. Nessa oposição, wölfflinianamente, opõe-se um “clássico” a um “barroco”, como também um “Renascimento” a um “maneirismo”, sendo abertíssima a combinatória de rótulos e rejeitado o pensamento que, historicamente, opera nas artes. Na abertura, os rótulos excedem-se, estendendo-se das artes às letras, ciências, filosofias: será Descartes clássico ou barroco? E Leibniz, Espinosa? Questão recentemente levantada em Paris, revisitadora de conceitos, como se diz, “clássicos”; na mesma curva, Lacan, barroquizado em vida, emprega-se na barroquização do XVII, quando se faz o desejo morder a forma, obra de historiadores dos anos 80.

O que positiva a periodização é “estilo”, que se positiva. Os rótulos adjetivam “estilo”, podendo hiperdeterminar-se, não raro, admiravelmente, como seu viu: “estilo gótico clássico”, como também, com referência a outras paragens, “estilo persa medieval”. Deslocando, no século XVII, a então vituperada maniera, “estilo” dela retém as propriedades, fixadas no XVI, mas vindas de longe, de França do século XIII; “estilo” é suporte de adjetivos periodizadores e, rótulo de rótulos, positiva-se no XIX. A positividade estilística opera como unificação de traços, tornando periodizável tal ou qual arte: em Wölfflin, para se considerar obra insigne, são as categorias purovisibilistas que constroem opositivamente os supracitados “clássico” do XVI e “barroco” do XVII-XVIII; enquanto em Wölfflin “estilo” é “forma”, construto, em muitos outros, não passa de dado impensado de sulcos batidos em que se engendram consensos. Formal, “estilo” plastifica, na relação batida “forma-conteúdo”, seu correlato: “iconografia”, que, vigente em “artes plásticas”, engessa a história. Mesmo quando “estilo” é desqualificado como “motivo”, contribuição panofskiana para a historiografia, que eleva a visão à iconologia, hipóstase suprema, o “classicismo” é mantido como “antigo”, campo em que se elabora, ou como “renovação”, em que, medievalmente, pode ser disseminado sobre o fundo tenebroso de que se ausenta, ou ainda como “Renascimento”, em que torna a luzir. Supra-histórico, o “classicismo” é norma e, mais que estilo, lei, que não tem acolhida, porém, entre Plínio, o Velho, por extensão, entre o século V a. C., e Diderot. Como estilo e estilo normativo, “classicismo” monta o imaginário historiográfico de “Renascimento” como oposto às propriedades que não são suas, a ser ocupado por constelação híbrida de compossíveis, em que muito brilham “gótico”, “maneirismo”, “barroco”, “bizantino”.

“Clássico”, “Renascimento” não tem, contudo, datação certa, sendo atribuído ao século XVI pela historiografia dos fins do XIX e começo do XX; pode circunscrever-se ao XV, Quatrocentos, dando-se ênfase à “representação” (ausente do pensamento das artes do mesmo século) perspectivista, abstraída a pertença da perspectiva à simetria, preceito genérico que a esta subordina na proporcionalização de figura e cena; pode começar no XIV, quando, também atualmente, a historiografia deriva artes de letras, valorizando o “humanismo”, ignorado nos tempos concernidos por ele, pois criação do XIX e XX: “Renascimento” subordina-se a “humanismo” como se ut pictura poesis às avessas operasse na periodização ou como se a retórica “emulação”, agora positivada, exigisse, para cada poeta designado, um pintor. Faz-se, assim, corresponder Giotto a Petrarca ou este a Simone Martini, que lhe pinta Laura como Dante escreve Beatriz; embora Giotto supere Cimabue no “Purgatório”, o paralelo com Dante é desprezado, murado na “Idade Média” para que Petrarca abra os novos tempos renascentistas. O Giotto, que inaugura o “Renascimento”, deve admitir predecessor, a que negue ou que o confirme: estando em Dante, enclausura-se na “Idade Média”, calado; mas pode gritar quando a historiografia discerne “momento pré-giottano”, sorte de objeto transicional. Cimabue ora é pregado na treva, ora pisca no lusco-fusco dos anunciadores, nele germinando as sementes do espaço, este perspectivista de ponto cêntrico. Ao paralelo temporal corresponde paralelo regional, mais exatamente, municipal, cotejando-se Giotto com Duccio com o lugar-comum da rivalidade de Florença e Siena, investidas pelo estilo. Duccio é pintado como polo da “elegância”, que Simone Martini, Barna etc. personificam em Siena, enquanto Giotto e “seguidores”, Taddeo Gaddi, Maso di Banco etc. se encarregam do “plástico”.

Enquanto, por simetria, historiadores como Panofsky cotejam artífices diferentes, irredutíveis a tal eixo, outros, principalmente italianos — Venturi, Argan —, pleiteiam “Renascimento”, sempre italiano, em oposição a “Bizâncio”, logo vencida na Toscana ou na Úmbria. O “Renascimento” não se concebe sobre o fundo da pintura, que opera como koiné por muito tempo das Ilhas ao Eufrates e presente na península desde, justamente, o século IV, admitindo-se que a nova Roma, não outra Roma, nunca se exclua da historiografia. Implantada em Roma, Milão, Ravenna, Veneza, Palermo, em toda a península mais ou menos continuamente, não se pode apagar a koiné como fundo senão a partir do século XIV; é impertinente cobri-lo antes, reduzindo-o ao ouro, dito “bizantino”, como oposto à representação da natureza, assim, “naturalismo”, quando não “realismo”; o “ouro simbólico”, “esquemático”, é criação de historiografia que paga caro pelo binarismo dos anos 20, 30, que monta a opção símbolo/representação. É historiografia cortante a que, evolucionista, escande o Cristo patiens, vindo das devoções do Ano Mil com Maria-mãe, do simbolismo de Berlinghieri, que inclui a elegância em Giunta, para mesclar o símbolo e a natureza em Cimabue. Trata-se do Cimabue duplo da historiografia, preso à maniera greca moderna e dela simultaneamente emancipado como representante de representação naturalista: não é fortuito que a historiografia nele localize, singularizando-o, elementos precursores do espaço — que o “Renascimento” não concebe —, logo, da perspectiva, como se a figuração da koiné se reduzisse a um estilo, no qual o “simbolismo” fosse determinante. Não é descabido propor os elementos assim detectados no “estilo bizantino” antes da elevação de Bizâncio a segunda capital do Império. Pois, antes da figuração de “Alocução” e “Liberalidade” de Constantino no arco que dele recebe o nome, sob Cômodo surge em Roma figuração vinda das fronteiras orientais, Dura-Europo, Palmira, Nimrud Dagh. Firmada sob a dinastia parta, esta figuração, que frontaliza e axializa o corpo enquanto lhe esbugalha os olhos, entendida como cerimonial, é transformação da helênica que os sucessores de Alexandre firmam no Irã. Selêucida, a figuração helênica difunde-se também pela Ásia Oriental a partir de Gandara, da Bactriana grega e cuxana, mas é no Irã que se produz a transformação com sentido hierático. Ora, essa figuração, que não é “bizantina”, mas “romana” (e Vasari vitupera-a ao referir o declínio aos “Césares”), é patrimônio comum, sem que, por isso, seja única, como se a anterior, saída do século V a. C., estivesse entretanto extinta (não há supressão de figuração por outra, o que somente uma história de estilos imagina). Novamente, não é exclusividade de nenhum “Oriente” a figuração exata da imago que o marxiano Bandinelli estuda com brilhantismo: inscrita no cruzamento do político e do religioso, a imago republicana explicita os usos que Políbio, Petrônio, Plínio, o Velho, descrevem: alheio aos preceitos helênicos da graça, pois fiel aos moldes mortuários, o retrato pereniza, glorifica, nos traços, a seme-Ihança que confirma os sucessores em suas prerrogativas. Outro procedimento, também atribuído ao “estilo bizantino”, remonta à República, perseverando no Império: deslocando a dispositio, composição, também ela do século V a. C., a parataxe repropõe-se, pois tem antecedentes mesopotâmicos, agenciamento de figuras em que a actio é enfatizada. Diferentemente do agenciamento hipotático, em que a ação (gesto, vulto, corpo) é atenuada porquanto distribuída no conjunto (Ara Pacis, “Camafeu de França” etc.), matizando-se o gesto e o movimento, já contido nas figuras júlio-claudianas, ou arrefecido pelo todo, mesmo onde a emoção domina (sarcófago de general de Marco Aurélio, Roma), o paratático opera hiperbolicamente: no conjunto, prevalece elemento sobre outros segundo o movere, efeito que, agudamente, Bandinelli entende ser característico da “arte plebéia”, distinta da “senatorial” pela emoção intensificada que nela se produz; tampouco a proporção está considerada no procedimento plebeu. A proporção, simetria, preceito máximo da figuração dominante entre o século V a. C. e II d. C., constitui-se como hiato no horizonte de produção considerada de modo abrangente no tempo. A parataxe opera em figurações diversamente rotuladas, “otoniana”, “românica”, “bizantina”, “tardo-antiga”, sem que possa, por isso, explicitar algum “estilo”. A ênfase, movere, repropõe o Cristo patiens, em nada “esquemático” ou “simbólico”, a menos que se faça coincidir “classicismo” e “naturalismo”, o que é anacrônico. Nesses Cristos tudo conspira para o efeito emotivo, pois os elementos figurativos são selecionados hiperbolicamente, evidenciando-se o sofrimento, com efeitos geométricos no vulto e no corpo. Analogamente, no mesmo referencial histórico, Maria-mãe não explicita, como já se pretendeu, a humanização do divino, mas a mobilização: o emocional, em que pese a serenidade, quando não a ausência, é enfatizado no gesto, que, em torno do Ano Mil, prevalece sobre os demais sentidos da figuração; a relação de Maria e Filho é, embora variada, dialógica, distinguindo-se a Mãe do leite, transfiguração da figuração antiga de Ísis aleitando Harpócrates. A figuração que se segue ao século III na vertente que domina pertence ao movere, não ao delectare, o que não significa ser necessariamente enfática a visada ao espectador. Os vultos frontalizados com olhos arregalados são transposições da figuração cerimonial, a que se acresce, aqui, a processional, muito comum desde Ravenna, e que remonta às escadarias de Persépolis, nas quais também a hipotaxe fica deslocada. No que concerne às proporções, a sua ausência não basta para caracterizar figuração oposta à hipotática: na Coluna de Trajano, as cenas da campanha contra os dácios são efetuadas com o emprego de elementos muito menores, como fortificações, do que as figuras em ação; não se aproxime, contudo, esse modo de figurar aos relevos, como os assírios, em que a conquista de cidade figura os combatentes maiores do que o exigiriam as dimensões das muralhas: enquanto no século IX a. C. de Balawat a muralha é essencial à cena, na Coluna trajana ela somente situa a ação, escandindo-se a campanha de modo sucessivo; situar a ação com recurso a signos é procedimento que também se vê na pintura vascular grega e no mural de Pompéia, Herculano etc.

Não é, pois, específico da koiné o emprego de parataxe, desproporção, frontalidade, que se explicitam, no século VI, no Pentateuco de Torus ou no Vergílio Romano, como também, no Ano Mil, nos vários Apocalipse de Beatos do Norte da Espanha, estendidos à França contemporânea de Saint-Sever, em manuscritos do Sul da Inglaterra, em que se distingue Winchester, e, principalmente, em manuscritos otonianos. Nestes, mas não de modo exclusivo — há-os, o que é fundamental, constantinopolitanos —, separam-se figuras em ação de cenários; a disjunção de ação e cenário pontua a pintura e a escultura desde o Baixo Império, mas é com os otonianos e constantinopolitanos que a separação se torna sistêmica. Enquanto as proporções relacionavam as figuras em cena, assim a ação e a arquitetura, a natureza, o mobiliário, distribuía-se a emoção; a disjunção, deslocando as arquiteturas para a moldura, desinserindo as figuras de seus lugares — estar dentro ou à frente, estar sentado em, sair, entrar etc. —, a pintura, a partir de 900, monumentaliza as figuras, realça os gestos, limpando-se dos acessórios e da consideração anatômica, enfim, do verossímil poético antes vigente. Figuras flutuam desinseridas, insituáveis em relação aos edifícios, pois nem estão dentro, nem fora deles; as edificações exibem-se simultaneamente abertas e fechadas, em secção transversal que as exibe o mais das vezes vistas do interior quanto aos compartimentos e do exterior quanto aos telhados e frontões, os quais operam como se fossem, também eles, molduras da ação. Essa mudança tem relevância, pois até 1400, também na Itália, o procedimento mantém-se, independentemente de qualquer efetuação estilística.

Enquanto a disjunção prevalece na Europa do Ocidente, na koiné ela divide com a figuração dominante até o século III a pintura. Finda a Querela das Imagens em meados do século IX, a pintura distingue várias possibilidades figurativas; retenham-se, aqui, duas: a que se expôs com ênfase nos Otos e a que, longe de escandir sucessão de “Renascimentos bizantinos, retém o modo anterior ao século In; deste, refiram-se os Sermões de são Gregório Nazianzeno, dos fins do século IX, e o Saltério, que foi propriedade da rainha Cristina, dos fins do século X; não se pode omitir o Rolo de Josué, decerto constantinopolitano do século X, muito próximo de volumen anterior, o carolíngio Saltério de Utrecht, copiado, por volta do Ano Mil, em Canterbury, o qual é retomado no Saltério de Eadwine, em meados do século XI, também em Canterbury (é no Sul da Inglaterra que se copia o Psicomaquia de Prudêncio, em que, como em tantos desenhos da região no Ano Mil, o delectare prevalece sobre o movere).

Não se deve propor “Renascimento” contra o fundo da koiné: como a maior parte dos pintores da Itália central no século XIII, Cimabue pertence a ela por inteiro. Não se reduzindo ao “simbólico”, ao “esquemático”, enfim, à desproporção, Cimabue não assinala a evolução do “bizantino” ao “renascentista” ou “pré-renascentista”, cujo implícito, como se viu, é o naturalismo. Como Duccio tampouco se separa da koiné, o cotejo de ambos com Giotto é destituído de sentido. Não obstante isso, Giotto não é estranho à koiné, muito embora, sob alguns aspectos, dela escape inteiramente: as arquiteturas que figura especificam-se como italianas do século XIII, próximas, quanto aos motivos, das transalpinas; quanto à escultura figurada, a Maestà de Florença explicita o baldaquino de Arnolfo di Cambio, cujas esculturas podem ser lembradas nas alegorias de Pádua, em que a grisalha simula relevo. Como Giovanni, filho de Nicola Pisano, Arnolfo não é indiferente à estatuária transalpina, no que ambos se distinguem do mestre, ligado à figuração em que os relevos romanos prevalecem; mais que Arnolfo, Giovanni também observa relevos e, a um tempo transalpino e observador do antigo, propõe que o seu púlpito de Pistóia seja cotejado com os relevos antoninos, com ênfase no sarcófago do general de Marco Aurélio, aqui citado. No que concerne à pintura, Giotto liga-se a pintores romanos seus contemporâneos, operantes, como talvez ele (não é indiscutível a atribuição oficial a Giotto da série, que alguns críticos preferem entregar a anônimo, “Mestre de são Francisco”); em Assis, mas também em Roma, onde executa a Navicella, Giotto é aproximado a pintores romanos relevantes, Cavallini, Torriti, anônimo “Mestre de Isaac”. Não rompendo com a koiné, estes pintores têm traços comuns que os singularizam como romanos. A singularidade romana remonta ao começo do século XII, à igreja de São Clemente, que recebe mosaico à antiga, o que acontece também na Sicília normanda do tempo, em Palermo e Cefala, além da obra musiva, decerto de mestres constantinopolitanos, a igreja inferior de São Clemente exibe pintura que escapa à disjunção do Ano Mil: nos atos de São Clemente, ação e cenário não se separam, operando este como scaenae frons, sobrevivente na koiné como situador de figuras. As características da pintura de São Clemente situam-na na órbita da koiné, não na da figuração transalpina. Tal singularidade, confirmada no século XIII não pode ser verificada factualmente no sentido da fixação de algo a que se dê o nome “Escola”; todavia, no século XIII, a singularidade romana fica atestada em seus pintores. Próximo aos romanos, ligado à escultura dos sucessores de Nicola Pisano, encarregado da construção da Santa Maria da Flor, Giotto carece da unidade requerida pela historiografia dos estilos: além disso, em Pádua, na capela Scrovegni, ora se evidenciam agenciamentos firmados no Ano Mil, ora se explicitam, nos admiráveis efeitos de trompe-l’oeil, tanto das grisalhas, quanto dos nichos simulados em parede, as possibilidades do antigo mantidas na koiné. O fundo desta não pode ser apagado, contra ele se pintando a contribuição giottana. A ausência de escala, a secção que justapõe interior e exterior de edifícios, a desproporção atestam um Giotto associável tanto ao Norte, quanto à koiné; a compacidade das figuras, a referência à escultura e arquitetura contemporâneas situam-no em âmbito peninsular; a composição, assim, as possibilidades do trompe-l’oeil, evidenciando o antigo, inscrevem-no na koiné. Não é só a pintura de Duccio e Cimabue ou a dos romanos que se entendem com a koiné: Giotto, sem lhe pertencer por inteiro, nela tem os possíveis de figuração. Seria, todavia, equivocado afirmar que a koiné se constitui como depositária única do antigo: as artes suntuárias, marfins, ourivesaria, explicitam a persistência de motivos dominantes até o século III em seus desenhos; este argumento não esvazia o anterior, pois a pintura da koiné é sempre determinante.

A figuração, no século XIV, não se lineariza segundo a ordem dos progressos; não se pode opor, senão de modo didático, Florença a Siena, como se aquela fosse depositária da perspectiva e esta, da elegância. Conquanto em Simone Martini a graça ressalte, Maestà de Siena, Anunciação de Uffizi, Sagrada Família de Liverpool, em que o contrapposto antigo é exagerado em torções que operam graça, em seu contemporâneo Ambrogio Lorenzetti firma-se a composição. As figuras não são reduzidas à ação que se desenrola diante de scaenae frons, situando-se na cena, como no grande mural do palácio público de Siena, o Efeitos do bom governo. Neste, cidade e campo não se constituem como cenários independentes da ação, para o que também concorre a observação, em linhas gerais, da escala. Não é, pois, casual que de Ambrogio proceda a primeira construção perspectivista conhecida, a da Anunciação de Uffizi, em que os retângulos de pavimento concorrem em ponto cêntrico. Nisso, a distinção de Florença e Siena não se sustém, podendo admitir-se que, descontinuamente, proporções, assim, composição e suas visadas poético-retóricas impõem-se à pintura. Quando, na primeira metade do século XV, Alberti escreve o Da pintura, ordena, poética e retoricamente, o que se vai produzir no XIV.

O “Renascimento”, como está em Alberti, exerce-se sobre os achados que as artes do século XIV propõem descontinuamente, cujas referências doutrinárias, porém, são desconhecidas. Quanto ao século XV, ao XVI, a superação, neles enunciada, dos “antigos” pelos “modernos”, é factual mente interpretada pela historiografia do final do século XIX e começo do XX: positivando “superação”, essa atribui ao “Renascimento” a execução cabal do preceito máximo da “simetria”, formulado na “Antiguidade”, mas não cumprido inteiramente por seus artífices. Falta a tal “Antiguidade” o domínio da composição, pois desconhece a perspectiva de pontos, “de fuga” e “de distância”, que engendram proporções diminutivas com as distâncias: esta tese, nitidamente exposta em E. Sellers-Strong no começo do século, mantém-se em Panofsky a partir dos anos 20. Positivadora, a historiografia desconhece o sentido retórico de “superioridade”, em que o topos “emulação” implica triunfo (em outro sentido, acrescente-se que a construção cêntrica, em chave positiva, não reduz as medidas linearmente, o que significa exponencialidade, em outros termos presente em Apolônio de Perga). A partir dos anos 20, a perspectiva ergue-se sozinha nos estudos de “Renascimento”, contribui para o isolamento o horizonte cubista e abstracionista da arte contemporânea. Separa-se a perspectiva das proporções, assim, da simetria, anacronismo de historiadores alheios à Retórica: ficando-se em Da pintura, a perspectiva não é exposta nele senão como parte de parte da pintura, da “composição”, retoricamente ordenada, e não como assunto isolável, que se tenha por principal.

Quando a historiografia aproxima “Renascimento” e “Humanismo”, outras dificuldades sobrevêm, alegorizadas pelo celebrado hiato petrarquiano. Como este, contudo, não é factual, mas reproposição retórica de topos, a historiografia atola nos sulcos que ela mesma bate: o estudioso surpreende-se quando topa com a referência a autores “medievais” em textos “renascentistas”, assim, o Comentários de Ghiberti, tratando de óptica, traz autores, como Al-Hazen, pelo que paga caro. O historiador tende a situá-lo Argan — fora do “Renascimento”, ou ainda, ao lado deste, na franja quatrocentista do “gótico internacional”, destituindo-o. Avia-se, para ele, uma “medievidade” fora do tempo, insistindo-se em que as portas do batistério florentino, cuja execução supôs vitória no concurso de 1401, não são progressistas, absurdo que as próprias portas deixam de fora. Quanto ao hiato, este não se sustenta no plano das obras, pois elementos “clássicos” nunca abandonaram a história, principalmente na koiné, nem no dos textos. Considerem-se dois supérstites relevantes, pois dedicados especificamente às artes, o Hermeneia do monge Dionísio do monte Atos e o Schedula do monge Teófilo, deixando-se de lado os passos, inúmeros, que em escritos diversos mantêm o “antigo”, Suger, santo Isidoro de Sevilha, são Bernardo de Claraval etc. Os dois escritos nada têm de tenebroso, participando luminosamente na “Antiguidade”. Enquanto o Hermeneia descreve a pintura hagiográfica, detendo-se também nos materiais, o Schedula trata das três artes que ressaltam no século XII (ou XIII), quando é escrito, vidro, metal e tinta, que, operantes no templo, retêm a tinta, o metal e a pedra com que Plínio, o Velho, faz as digressões sobre as artes respectivas. Conquanto o texto de Dionísio seja datado do século XVIII, a exposição situa-o em tempo anterior, sendo considerado por isso tratado em que sobrevivem doutrinas desaparecidas. Enfatizando a descrição, o Hermeneía intercepta a ecfrase, na qual, historicamente, notícias sobre as artes sobrevivem. O elogio de pintura e pintores nos dois Filóstratos, avô e neto, o de escultura e escultores em Calístrato explicitam em III e IV d. C. — como o fazem no século VI d. C. os panegíricos de Justiniano, obras de Procópio de Gaza e Paulo Silenciário, em que o encômio do homem se faz com descrições que lhe louvam a obra, santa Sofia das luzes — gênero epidítico vindo de Luciano, referido em Da pintura, que dele retém a ecfrase da “Calúnia”. Já em outro plano, a historiografia não aclara o “Renascimento” como estreitador da “Antiguidade”: valorizando o “classicismo”, restringe o “antigo”, omitindo produção vasta, silenciosamente reabilitada nos séculos XIX e XX por artistas do expressionismo.

 

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