2011

Crença e militância: o santo combate

por Eugênio Bucci

Resumo

“Há homens que lutam um dia e são bons. Outros lutam um ano e são melhores. Outros, ainda, lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda uma vida: esses são imprescindíveis.”

O autor desses versos, que datam dos anos 1930, é Bertolt Brecht. Décadas depois, eles serviram de epígrafe para uma composição do cubano Silvio Rodriguez, Sueño con serpientes. Em 1980, em dueto com Milton Nascimento, Mercedes Sosa gravou a canção e declamou-os com tal pungência que eles ficaram inscritos em mármore na imagem que duas gerações de militantes socialistas faziam delas mesmas.

É certo que a santificação dos combatentes ocupa o centro de um imaginário que merece da nossa parte um pouco mais de reflexão.

O que significa ser santo e combatente de uma vez só? Eis aí um bom começo. Militantes são como guerreiros corajosos que se atiram de peito aberto contra o fogo inimigo. Sem prejuízo da coragem física, do vigor briguento, são também como profetas, visionários, anjos. Eles acreditam na ação armada e, mesmo assim, não cometem pecados, pois estão a serviço de um bem universal e, portanto, maior que os indivíduos e suas circunstâncias. São santos em guerra.

O essencial da mística é, com efeito, a fusão nuclear entre guerrear e transcender. Por meio dela, a esquerda incorporou um acometimento de espírito bem antigo – o gosto por dedicar a vida e a morte a uma causa – e fez dele seu maior combustível. Mártires são heróis desde tempos imemoriais, mas a figura do militante de esquerda promoveu aquele velho acometimento de espírito, a bravura grupal, indistinta, socializada. A vocação para o martírio em nome de uma causa virou, então, uma “virtude” coletiva, sem a qual a luta socialista não seria o que mais aspira ser, a saber, um “movimento de massa”. O que agora diferencia um sujeito dos outros não é mais a entrega combativa, de que muitos são capazes, mas o tempo de serviço.

Militantes podem lutar só com palavras. Nesse caso, trabalham para cooptar fiéis, exercendo um papel de catequese ou de persuasão. Podem também servir para sabotar os oponentes, os infiéis, valendo-se de força bruta. Sempre, isso é vital, seus atos se beneficiam da chancela moral da causa, outorgada pelos chefes da organização a que pertençam, incumbidos de interpretar as nuances conjunturais que a causa assume em cada contexto. Militantes fazem o que fazem em nome de algo situado além deles mesmos, o que lhes confere um mandato para impor o que é “certo” (progressista, revolucionário, avançado, coletivista). Operam em nome do bem maior, futuro. Militantes são portadores da verdade histórica – e só militam porque o resto do mundo ainda não se rendeu a essa evidência.

Nessa perspectiva, não há como vincular a atitude central do militante ao pensamento, à razão ou à ciência – e nem mesmo à política.

No militante, a servidão voluntária chega ao nível de perversão prolongada. Sua força interior vem de doar-se à causa e àquele que é o senhor e o hermeneuta da causa. Daí vem também sua autoridade para extorquir a mesma sujeição. Como a causa é universal, não pode haver alegação de ordem individual que lhe oponha resistência legítima. Em nome da causa, pode-se até mesmo militarizar a cidadania e escravizar o trabalhador. É por isso que a militância, quando posta sob pressão, tende a rejeitar a própria política, uma vez que, no seu limite, recusa o instituto do sujeito livre.

Não pode haver liberdade que se sobreponha ao que é universal — que nos entregará no futuro a liberdade plena. Daí que, mesmo quando invocam conceitos como “socialismo científico”, essa categoria totalmente anticientífica, os militantes não são agentes da razão ou do pensamento, mas de uma fé.

E talvez tenham corporificado, ao menos no nosso tempo, a forma particular de fanatismo e de alienação, cujo balanço está por ser feito.


ESCARAMUÇAS LEVES E FLORES ENGRAÇADAS

Ainda no século XIX, Friedrich Engels insistiu na existência do “socialismo científico”[1], fundando uma doutrina que encontra seguidores até nossos dias. Seguidores ortodoxos e fervorosos, é bom ter claro. Muitos deles se agastam em voz alta quando confrontados com a evidência de que, na base e no corolário do ativismo socialista, existe, bem mais que ciência, um sistema de crenças. A constatação valeria para qualquer ação política, mas, quando apontada para a militância de esquerda, desperta em seus adeptos uma indignação estrepitosa ou, bem a propósito, a ira santa. Para estes, a simples aproximação das palavras crença e militância tem o dolo de um ultraje.

Não deveria ser assim, principalmente agora, no século XXI, quando Engels já vai longe. Falar que esses militantes cultivam crenças não significa acusá-los de pertencer a uma seita exótica, como, por assim dizer, uma falange de “socialismo crente”. Crença não é a mesma coisa que crendice. Até mesmo a Ciência tem suas crenças — e não vê problemas em tê-las. Por exemplo: a certeza de que as leis naturais existem e regem a natureza desde sempre constitui uma crença; a presunção de que as leis naturais só se revelam aos praticantes do método científico, também; a premissa de que a realidade cabe num discurso objetivo que lhe seja exterior é outra. Isso não quer dizer que a ciência possa ser qualificada como “crente”. Ela não é “crente”. Para começar, porque dispõe de expedientes para duvidar de si mesma. À medida que sua linguagem e seus métodos se complexificam, ela problematiza os postulados que, antes, não podiam ser pensados como problemas, apenas como certezas. Os cientistas realizam seus experimentos, formulam hipóteses, desmontam as teorias uns dos outros, promovem colóquios, congressos e algumas intrigas. Desse modo, expandem os horizontes do conhecimento segundo procedimentos criteriosos. Eles têm crenças, reformulam suas crenças, atualizam-nas e tocam adiante. Não se incomodam.

Todos nós, cientistas ou não, temos crenças. Umas, centrais; outras, periféricas. Há crenças duradouras, ancestrais, assim como existem as efêmeras, as místicas e até mesmo as agnósticas. Elas são tantas, de tantas famílias tão persistentes que não é possível imaginar a ciência, a cultura ou a política sem crenças. Indo mais longe, não há como conceber o humano sem elas. O humano é humano porque pensa, porque esquece, porque duvida e também porque crê.

Militantes por acaso não são humanos? Se sim, eles também creem. É verdade que se esforçam por guardar um distanciamento aguerrido de qualquer forma de fé. Mesmo os movimentos sociais de orientação católica dizem agir nos conflitos terrenos sem se deixar influenciar pelo proselitismo da Igreja. Esse traço é comum entre os que se filiam a organizações comunistas ou socialistas: eles creem que não creem. Acima de tudo, creem ardentemente que nada, em seu repertório, se pareça, nem de longe, com fé. Eles creem não precisar crer, porque creem saber. Logo, creem que não erram, pois seu saber tem base científica e o futuro lhes dará razão.

Por essas e outras, o estatuto da verdade infalível — o fatalismo, o determinismo e outros ismos —, que praticamente inexiste entre os cientistas, é raivoso entre os militantes. Se alguém desacreditar dessas verdades vai agredi-los em seu brio histórico, daí que eles reagem contra essas suspeições como um pio reage à apostasia.

Recentemente, eu mesmo tive provas disso. O resumo da minha conferência em 2010, publicado no programa de A invenção das crenças, colheu votos de castigo, de danação e penitência. A cada início de palestra, alguém vinha falar comigo com ares de ofendido. Quanto a mim, escalado para o papel de sacrílego, toureava a irritação dos companheiros, mas não podia deixar de me divertir, secretamente, com o título da minha palestra, cunhado por Adauto Novaes, numa tirada de divina ironia: O santo combate.

Haja agressividade, haja santidade, haja pirraça.

Muito além do humor que nos redime, existem elos de fogo, elos trágicos, entre o imaginário militante (de fundo marxista) e a mística religiosa (cristã e, mais especificamente, católica). Não se trata de uma constatação original, como logo veremos, mas examiná-la a fundo não é exatamente um divertimento. Admito que havia passagens um tanto ácidas na síntese da minha conferência, marcadas por uma considerável escassez de reverência. Isso, talvez, tenha arranhado a boa paz da audiência. Mas não foi por mal. Aquilo foi apenas o começo. Ao longo da minha conferência, as anedotas cediam lugar a um olhar mais grave, ao qual ninguém poderia negar pertinência. E o que tinha sido protesto terminava num aplauso pensativo.

Chegaremos lá, neste ensaio, também. Antes disso, porém, para que o leitor faça um melhor juízo do que era aquele início de provocação, retornemos, ainda uma vez, ao ponto de partida. Retomo, a seguir, os pontos principais daquele primeiro resumo, que tanto melindrou os anjos.

A militância de esquerda demonstra uma inclinação a santificar seus agentes, como se eles fossem seres humanos melhores que os demais.

A síntese da minha conferência começava por lembrar versos de Bertolt Brecht, recitados por Mercedes Sosa:

Hay hombres que luchan un día y son buenos.

Hay otros que luchan un ano y son mejores.

Hay quienes luchan muchos anos y son muy buenos.

Pero hay los que luchan toda la vida: esos son los imprescindibles.

Pelo que se sabe, Brecht escreveu essas palavras nos anos 1930. Décadas depois, elas serviram de epígrafe a uma composição do cubano Silvio Rodríguez, Sueño con serpientes. A declamação de Mercedes Sosa ganhou o grande público apenas em 1980, quando ela gravou a canção de Rodríguez em dueto com Milton Nascimento e usou os versos de Brecht como epígrafe. Na voz dela, esses versos se tornaram a descrição por excelência da imagem que pelo menos duas gerações de militantes socialistas tinham de si mesmas. Aqueles militantes se viam como imprescindíveis.

No texto em que sintetizava a minha palestra, eu dizia um pouco mais que isso — e esse “um pouco mais” foi recebido como impropério:

É certo que existe a instituição da homenagem, das honrarias e da beatificação em todos os agrupamentos sociais, desde os clubes dos criadores de canários, que têm fotos dos ex-presidentes na parede, até as repartições públicas mais inexpressivas. Aqui, no entanto, a santificação dos combatentes socialistas ocupa o centro de um imaginário que merece da nossa parte um pouco mais de reflexão.

O que significa ser santo e combatente de uma vez só? Eis aí um bom começo. Militantes são como guerreiros corajosos que se atiram de peito aberto contra o fogo inimigo. Sem prejuízo da coragem física, do vigor briguento, são também como profetas, visionários, anjos do bem. Eles manuseiam espingardas, disparam contra os semelhantes e, mesmo assim, não cometem pecados: estão a serviço de um bem universal e, portanto, maior que os indivíduos e suas circunstâncias. São santos em guerra. A mística da esquerda endeusa no militante as virtudes desejadas no soldado assim como condecora sua entrega incondicional, típica dos religiosos — dos apóstolos de Cristo, de modo especial.

O palavreado da militância às vezes lembra a hermenêutica de direito canônico, ele vive de reinterpretar um rol de verdades (normas) sagradas, assim como a dedicação à causa, com toques de um “sacerdócio militar”, trai o desejo de santidade.

Voltemos ao que dizia a síntese da palestra:

A persona do militante se compõe, também, de uma habilidade discursiva que maneja rudimentos do marxismo aliados a uma retórica de convencimento, mas não está aí o seu centro de gravidade. O essencial da mística — mais essencial que a dialética transformada num jargão prêt-à-porter que lhe serve de gramática — é de fato a fusão nuclear entre guerrear e transcender. Por meio dela, a esquerda incorporou um acometimento de espírito bem antigo no humano — o gosto por dedicar a vida e a própria morte a uma causa — e fez dele seu maior combustível. Mártires são heróis desde tempos imemoriais, mas a figura do militante de esquerda promoveu aquele velho acometimento de espírito a bravura grupal, indistinta, socializada. A vocação para o martírio em nome de uma causa virou, então, uma “virtude” coletiva, sem o que a luta socialista não seria o que mais aspira ser, a saber, um “movimento de massa”. O que agora diferencia um sujeito dos outros não é mais a entrega combativa, de que muitos são capazes, mas o tempo de serviço.
Não nos esqueçamos: todos os “hombres” que “luchan un día” são “buenos”. E são incontáveis. Alguns poucos se destacam, menos pelo ato de lutar, que se massifica por “muchos hombres”, mas por lutarem ao longo de “toda la vida”. “Esos son los imprescindibles”, só esses, mas todos podem ser chamados de militantes — e são todos “buenos”. Se não militassem nada, aí, sim, seriam “malos”.

Portanto, o que define o militante, mesmo quando não imprescindível, é a “luta” — a mais gasta de todas as palavras gastas. Lutar é combater as forças inimigas (os “malos”) de forma organizada (partidária), em obediência a um ideário (princípios ou dogmas), a um programa (as metas passíveis de ser alcançadas por meio da ação planejada) e a uma disciplina (hierárquica, mais ou menos eclesiástica, mais ou menos castrense) que demarca a unidade do grupo. Militantes, nesse sentido, são sacerdotes de uma igreja que decide realizar o paraíso na Terra em oposição àqueles que não anseiam pelo mesmo tipo de paraíso. Militantes são sacerdotes agindo em falanges.

Militantes podem lutar só com palavras. Nesse caso, trabalham para cooptar novos fiéis, exercendo um papel de catequese ou de persuasão. Podem também servir para sabotar os oponentes, os infiéis, valendo-se de força bruta. Sempre, isso é vital, seus atos se beneficiam da chancela moral da causa, outorgada pelos chefes da organização a que pertençam, incumbidos de interpretar as nuances conjunturais que a causa assume em cada contexto. Militantes fazem o que fazem em nome de algo situado além de si próprios, o que lhes confere um mandato para impor o que é “certo” (progressista, revolucionário, avançado, coletivista). Operam em nome do bem maior, futuro.

Militantes são portadores da verdade histórica — e só militam porque o resto do mundo ainda não se rendeu a essa evidência.

Nessa perspectiva, abre-se um aparente paradoxo: se a militância pode ser vista como a ação que pretende dobrar a realidade e os outros sujeitos à predominância de uma doutrina, não há como notar na atitude central do militante uma conduta regida pelo pensamento, pela razão, pela ciência e, paradoxo dos paradoxos, nem mesmo pela política.

Mais um trecho da síntese:

No militante, a servidão voluntária chega ao nível de perversão prolongada. Sua força interior vem de doar-se à causa e àquele que é o senhor e o hermeneuta da causa. Daí vem também sua autoridade para extorquir aos outros a mesma sujeição. Como a causa é universal, não pode haver alegação de ordem individual que lhe oponha resistência legítima. Em nome da causa, pode-se até mesmo militarizar a cidadania e escravizar o trabalhador. É por isso que a militância, quando posta sob pressão, tende a rejeitar a própria política, uma vez que, no seu limite, recusa o instituto do sujeito livre. Não pode haver liberdade que se sobreponha ao que é universal — que nos entregará no futuro a liberdade plena. Daí que, mesmo quando invocam conceitos como — socialismo científico —, essa categoria totalmente anticientífica, os militantes não são agentes da razão ou do pensamento, mas de uma fé. E talvez tenham corporificado, ao menos no nosso tempo, a forma particular de fanatismo e de alienação, cujo balanço está por ser feito.

ALÉM DO CHISTE, O MAR DA CRÍTICA

Claro: parte da irritação que colhi era previsível. Mas o que havia de humor nas primeiras formulações que apresentei não denotava nem continha desrespeito. Em nada, em nada mesmo, o heroísmo e a grandeza dos militantes que resistiram à ditadura militar no Brasil saem arranhados de um exame crítico da mística da militância de esquerda. Do mesmo modo, o valor humanitário dos que, com seu trabalho político, conseguiram fincar na agenda pública os valores da solidariedade e dos direitos humanos permanece intacto. Não haveria justiça social no país sem a ação das organizações de esquerda. Nada disso está em questão. Nada disso será posto, aqui, em questão. O que (me) interessa é somente investigar de que modo o estatuto da crença comparece ao imaginário da militância política e, em especial, da militância de esquerda no Brasil.

Não por acaso, a origem da palavra militante resulta de um amálgama de sentidos; Igreja, de um lado, e Exército, de outro. O que deveria nos fazer pensar. Que significados ela evoca? Que fantasmas e que legados moram dentro dela?

O substantivo, que em português admite os dois gêneros, apareceu, pelas datações disponíveis, em 1413, no chamado “francês médio” (idioma que foi falado e escrito entre os séculos XV e XVII, aproximadamente). Derivada do particípio presente de militare, do latim clássico, tinha um nítido sentido bélico: designava, em princípio, aquele que está engajado numa guerra. O termo se referia a servir como soldado, mas se referia também ao militante religioso, que servia à Igreja (Católica). Assim, desde que existe, a palavra carrega essa dupla face: na primeira, refere-se àquele que integra milícias armadas; na segunda, à condição daquele que propaga ativamente uma causa ou uma instituição religiosa.

Foi somente a partir de 1907 que o termo militante associou-se ao ativista politico[2]. É esta, hoje, a acepção mais forte a nos alcançar no século XXI — uma acepção que não elide, mas inclui, os sentidos anteriores, uma vez que descende deles. O significado presente do substantivo é vertebrado tanto pela devoção dos fiéis como pela bravura dos soldados. O ativista político, inapelavelmente, é tributário dessa carga de sentidos. O que não é pouca coisa, mas não é suficiente. Se quisermos entender as reverberações dessas quatro sílabas em nossa herança cultural mais próxima, precisamos ir além da etimologia. Mas como ir além dela? Por onde começar?

Procurando tatear esse percurso, resvalei, em meu acervo de lembranças, numa entrevista que fiz há muitos anos com o professor Antonio Candido. Naquele tempo, eu mesmo me via como sendo isso, um militante socialista. Vez ou outra, tenho voltado ao registro daquele diálogo com o professor, um mestre das palavras e de seus sentidos. Ele haveria de ter alguma resposta, eu pensava. Pensava antes e penso agora.

Não seria exagero dizer que foi esse tipo de curiosidade, a natureza da militância, que mais nos motivou a pautar aquela matéria na revista Teoria & Debate, da qual eu era editor. A revista, que mais tarde passaria a pertencer à Fundação Perseu Abramo, era, naquele seu início, publicada pelo Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores, em São Paulo. Um dos integrantes do nosso Comitê de Redação, o sociólogo Eder Sader, fundador do PT, estava comigo na entrevista. Ela saiu publicada na Teoria & Debate número 2, em março de 1988. Eder morreria meses depois, no dia 21 de maio daquele mesmo de 1988, antes de completar 47 anos de idade. Ao voltar no tempo, as imagens do nosso encontro com Antonio Candido reaparecem em mim. Vejo nosso entrevistado folheando a revista Clima, da qual participou, nos anos 1940, e que nos mostrava com uma empolgação quase juvenil. Vejo Eder Sader dando risada das piadas sobre a circunspecção de certos militantes, acompanhando a elegante irreverência do professor. O humor de Eder Sader, ao menos do que pude conhecer, era leve, desapegado, afetuoso. Para mim, era como se eu estivesse perguntando aos dois, pois aos dois eu via como mestres. É como se eu questionasse a um e a outro: mas o que é que quer dizer essa palavra, militância?

O nome que demos à entrevista trazia parte da resposta: “A militância por consciência” (o cacófato é de minha inteira responsabilidade). A militância, para Antonio Candido, era fundamentalmente um dever moral. Já é alguma coisa. De posse dessa ideia, começamos a ir além da etimologia.

Eu lembro que, antes de começar a responder às perguntas, o professor tentava nos demover do projeto, com sua ironia literária disfarçada de modéstia: “Eu sou um mau político, apenas segui os meus amigos”. Para ele, um bom político não poderia ser sensível em demasia às razões do interlocutor: Bom político, ou bom militante, é quem implementa inapelavelmente a doutrina do partido. Essa visão está integralmente exposta nas respostas que serão transcritas a seguir.

Antes, um esclarecimento deve ser feito. Aquela entrevista não foi um diálogo simples, fluente, que depois pusemos no papel e mandamos para a gráfica. Antonio Candido pediu para reler a transcrição e, aí, com o nosso consentimento, reescreveu passagens inteiras, em sua própria máquina de datilografia. Por julgar que não havia prejuízos para o sentido — ao contrário, havia ganho de clareza —, mantivemos a versão final do nosso entrevistado.

Passemos, então, à transcrição de alguns trechos. De início, Antonio Candido falou daqueles que influenciaram sua formação, a começar pelo historiador, crítico de cinema e militante paulista Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977):

O Paulo Emilio, pela forma como você fala dele, foi seu principal interlocutor?

Foi. Ele foi a grande influência que sofri. Da nossa turma, era o único que tinha experiência e verdadeira consciência política. Estava ligado à Juventude Comunista quando foi preso em 1935. Em 1937 fugiu e viajou para a Europa, de onde voltou no fim de 1939. Lá conheceu novas modalidades de socialismo, ficou a par dos processos de Moscou e abandonou o stalinismo. Quando voltou e eu o fiquei conhecendo, nos contou tudo e deu livros importantes para ler. Um que me abalou foi o de Alexandre Barmine, alto funcionário que fugiu para o Ocidente e contou como era o negócio por lá. A partir de 1942 e da convivência política com ele, intensifiquei as leituras e li obras de Lênin, Stálin, Trótski, além de outras de Marx e Engels. Antes eu tinha feito uma leitura importante, ali por 1940, o livro de Henri Lefebvre, O materialismo dialético, que me revelou a importância das obras da juventude de Marx, como A ideologia alemã, que li mais tarde e foi o texto marxista do qual recebi maior influência.

O interesse pelas obras de Trótski veio por intermédio de Paulo Emílio?

Não. Os meus amigos Andradas já me tinham iniciado na autobiografia. Mais tarde recebi novo impulso por meio do Lívio Xavier, que era trotskista e tinha militado muito na mocidade. Nós íamos tomar chope num bar chamado Rütli e ele me falava longamente do bolchevismo, da Revolução, do seu mestre, expondo tudo com muito brilho. Uma vez me disse: “Você quer saber de uma coisa? Acho Trótski superior a Lênin. Lênin é um grande homem, sem dúvida, mas o Velho…-.

É curioso. Em dois momentos você abandona a política. O primeiro em 1936, quando chega a São Paulo, vindo de Poços de Caldas e fica, nas suas palavras,”deslumbrado com a grande cidade”. O segundo, quando você vai dar aula de literatura em Assis. Haveria na sua vida a clássica contradição entre arte e política?

Não. Acho que não. Para começar, um esclarecimento: em 1936 eu não abandonei a política, porque antes não tinha nenhuma atividade. Apenas me desinteressei das leituras, das conversas. Em seguida voltei a elas, e cada vez mais. Mas atividade mesmo só fui ter a partir de 1942, como contei. Acho que a explicação para minha atividade intermitente é mais psicológica: não tenho vocação política. Para mim, a participação foi sempre um dever moral, despertado pelo sentimento de justiça e a convicção de que o socialismo é a melhor fórmula para organizar a sociedade. Sempre fui grande leitor de teoria e história política, mas mau militante, porque sou pouco persistente e me chateio depressa. As reuniões são frequentemente para mim um verdadeiro suplício, e eu custo a crer que passei parte da vida nelas, sempre pensando que não ia aguentar mais cinco minutos, e ficando horas. Admiro muito os companheiros que fazem isto com prazer. Além disso, há em mim um traço pessoal que atrapalha a atividade política: o respeito pela opinião diferente. Um traço liberal, eu diria. Quem passa a vida mexendo com literatura, vendo as análises sutis do comportamento, pesando os prós e os contras, tem certa dificuldade em aceitar ou rejeitar em bloco, como é preciso fazer na hora da ação. Talvez eu não seja bom militante porque respeito demais as opiniões dos outros. Mas procuro ser fiel aos princípios e manter a disciplina, conforme comecei a aprender em 1942.

Os trechos que destaquei em negrito, na resposta imediatamente acima, ainda me espantam. Com todas as letras, Antonio Candido afirma, de modo refletido, pensado, ponderado, numa entrevista que releu e corrigiu antes da publicação, que, para ser bom militante, o sujeito não pode “respeitar demais as opiniões dos outros”. Ainda hoje, penso que ele tem razão. Sem descartar a hipótese de que, nessa sentença, exista uma alfinetada contra a ortodoxia abusiva, às vezes estúpida, dos militantes mais opacos e determinados, não há como negar que o que ele diz corresponde a um fato verificável por todos os que já passaram por organizações socialistas. O ponto difícil, porém, não é aceitar a veracidade do que ele diz: o ponto mais difícil, para nós, hoje, é entender as razões, os caminhos e descaminhos pelos quais essa concepção acabou por prevalecer na prática. Mais difícil ainda será compreender o caráter ético que essa concepção imprimiu ao trabalho social do militante. Isso não é tão banal, tão corriqueiro. O trabalho do militante resulta do compromisso que ele mesmo firma com uma verdade que julga ter descoberto (por exemplo: “O socialismo é a melhor fórmula para organizar a sociedade”). Em nome desse compromisso, para fazer valer essa verdade, ele se sente levado, quase que por dever, a não ter tanto respeito pela opinião dos demais.

Cabe, portanto, perguntar: seria essa postura condizente com a ordem do diálogo político, que lida com pontos de vista distintos e igualmente válidos, ou seria ela da ordem da fé, para a qual interessa, mais que convencer, converter o outro, para que ele experimente a mesma revelação?

A pergunta é fácil, claro. Não há dúvida de que existe, na postura do militante que tenta atropelar” a visão do outro, uma ponta de fé, uma nota, ainda que longínqua, de religiosidade. Mas não precipitemos o nosso andamento, que ainda não é hora de tratar disso. Antes, é preciso resolver outra indagação, a saber: será que a organização (ou o partido) a que pertence o militante não cobra dele o rebaixamento ou a neutralização dos agentes políticos que não se filiem à mesma organização? E, se isso for verdade, é possível supor que, ao impor esse pedágio, a disciplina interna da organização não se opõe às convenções da convivência democrática, uma vez que a fidelidade aos propósitos da organização implica o desrespeito à opinião dos agentes externos a ela?

Aos poucos, vamos nos dando conta de que a associação entre crença, de fundo mais ou menos religioso, e militância, lastreada em vínculos de lealdade e disciplina, apresenta-se como um problema próprio da vida democrática. Indo adiante, poderíamos indagar: se as organizações ou partidos de esquerda, fundados na militância de seus integrantes, são propulsionados pela ambição de expandir a certeza fundamental que lhes é própria, distinta das certezas que a circundam, haveria então um momento, uma fronteira a partir da qual o seu ativismo político — que tem na sua origem uma vocação democrática, pois que brota, histórica e conceitualmente, da democracia, e age em retorno sobre a democracia. — entraria em contradição com os cânones da própria convivência democrática, entre os quais está o respeito pela opinião dos iguais?

A partir deste ponto, é bom avançar com calma.

De início, partamos da premissa de que a democracia, a partir das liberdades consolidadas ao longo do século XX, acolhe a militância politica como prática legítima. As diversas correntes partidárias em disputa coexistem em relativa paz e dão tônus à sociedade democrática, que é tanto mais livre quanto mais fomente e abrigue as divergências. As organizações socialistas em geral brotaram desse compromisso democrático, embora alguns dos regimes que delas resultaram tenham se degradado em tiranias. Na sua origem, porém, a maioria das correntes de esquerda nos países do Ocidente, a despeito de plataformas que por vezes elogiam regimes autoritários, alcançou distinção pelos princípios democráticos que demonstrou na prática. Em nações oprimidas por ditaduras de direita, como o Brasil nos anos 1960 e 70, os socialistas sempre, sem exceção, pautaram-se pela defesa das liberdades fundamentais. Daí a pergunta: por que, às vezes, os representantes dessas correntes colidem corn o primado do respeito à opinião divergente?

A tentativa de responder a essa pergunta nos leva a divisar os dois níveis de crenças que, obrigatoriamente, comparecem à militância de esquerda no Brasil, pelo menos desde a segunda metade do século XX. Quais são esses dois níveis?

No primeiro parágrafo deste ensaio, eu falei da presença de crenças tanto na base como no corolário da militância. Agora, acrescento desdobramentos a essa ideia. As crenças de base na democracia são características do primeiro nível. As outras, que se orientam na busca da meta estratégica — ou o corolário — são as crenças de segundo nível. O primeiro nível é convergente, pois unifica; o segundo, centrífugo, pois diferencia. Vamos aos dois.

No primeiro, está a convicção de que a disputa pela opinião pública e pela direção dos movimentos sociais não apenas é legítima, como é necessária à saúde cívica das sociedades livres. Note bem o leitor: essa convicção não é outra coisa que não uma crença. Não se trata de uma lei científica, de uma verdade demonstrada por experimentos indiscutíveis, nada desse tipo. Nós simplesmente acreditamos que a democracia funciona melhor assim e a nossa experiência democrática parece reforçar essa crença, que, portanto, reside na base e, ainda que possa ser endossada pela Ciência Política, é, mais que um achado teórico, um princípio.

Nesse primeiro nível, portanto, estão as crenças que legitimam a militância. Assim como a cidadania é o direito a ter direitos, militar por uma causa legítima adquire o estatuto de um direito universal. Estamos aqui, enfim, no nível das crenças fundadoras da democracia, crenças praticamente tautológicas. Sem elas, tenhamos bem claro entre nós, a militância não existiria. A militância é, portanto, beneficiária dessas crenças.

No segundo nível, encontram-se as crenças que, em lugar de igualar a todos pelos direitos, diferenciam os grupos de interesse entre si. Ocorre que, por vezes, ao buscar se distinguir do entorno, há ações políticas que negam, mais ou menos, as crenças fundadoras da democracia. Essa possibilidade de negação pode se dar em graus variados, desde a revogação do direito que o outro tem de se expressar até a anulação do próprio sistema democrático. Ao longo desses graus variados, a militância convive com o risco de se distanciar da democracia.

De que modo isso se processa? Quais as razões? Neste ensaio, a hipótese que será examinada é a de que isso se deve, em boa medida, à presença de um imaginário religioso — e até fundamentalista — dentro do universo da militância de esquerda. Para examinar essa hipótese, serão chamados aqui, como interlocutores, militantes ou ex-militantes que atuaram nas organizações da esquerda brasileira, como é o caso de Antonio Candido. Este ensaio procurará, nesse sentido, realizar um exercício de diálogo interno ao campo e ao repertório gerado pela própria esquerda, segundo os parâmetros gerados pelos conflitos inerentes própria militância. Por método, não serão acolhidos neste texto os ataques teóricos que o pensamento de direita disparou contra a esquerda. Trata-se, repito, de uma opção de método: pensar a religiosidade dentro da militância de esquerda é um esforço que só faz sentido político se encontrar seus fundamentos críticos no interior da cultura da própria esquerda, que já refletiu sobre isso, nos seus próprios termos.

Neste trecho em particular, porém, em que trataremos com mais detalhes desses dois níveis de crença (lembrando que só o segundo nível envolve as crenças de corte mais religioso ou fundamentalista), desenvolveremos um raciocínio que solicita um pensador um pouco mais distanciado em relação a esse campo de esquerda, ainda que não possa ser tomado como alguém à direita. Numa escala rápida, como num parêntese, que investigará rapidamente as condições que nos permitem chamar de crenças algumas certezas adotadas pela sociedade em geral ou por agrupamentos em particular, recorreremos às noções desenvolvidas na Teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas. Aí, o conceito de “mundo da vida” contém elementos fecundos para uma breve descrição da natureza das crenças, notadamente as do primeiro nível.

Habermas nos ajuda a dimensionar a bifurcação que pode se abrir entre as práticas dialógicas, vocacionadas, segundo ele, para o entendimento, que são próprias da ação comunicativa — onde estariam as crenças do primeiro nível e outra ordem de práticas, esta da ação estratégica, que se vale da força dos sistemas ou subsistemas para oprimir (ou “colonizar”) o mundo da vida. Lembremos que o mundo da vida é, por excelência, o ambiente da ação comunicativa; em oposição a ele, a ação estratégica dos sistemas e subsistemas sufoca a ação comunicativa.

Nesse ponto, podemos presumir como crença uma assunção compartilhada por uma comunidade de tal modo que seus agentes ou integrantes não a tomam como passível, de incompreensões ou de sentidos divergentes. Definitivamente, há uma dimensão de crença dessas convicções “aproblemáticas” de que nos fala Habermas, aquelas convicções que todos acolhem como obviamente verdadeiras, sem perder mais tempo em examinar-lhes os fundamentos. “Ao atuar comunicativamente”, ele escreve, “os sujeitos se entendem sempre no horizonte de um mundo da vida. Seu mundo da vida está formado de convicções de fundo, mais ou menos difusas, mas sempre aproblemáticas.”[3]

Não seria descabido, então, entender as “convicções de fundo” como crenças em geral, ainda indistintas. É bem verdade que, aqui, a palavra “aproblemática” ainda resulta um tanto problemática. Percamos umas poucas linhas com isso. Com a palavra “aproblemáticas”, Habermas nomeia um atributo central das convicções de fundo: elas não se apresentam como problemas que a “ação comunicativa” tenha que se encarregar de resolver. Antes, elas fornecem a base — não problematizada e praticamente não problematizável — sobre a qual se dará a discussão acerca dos enunciados vistos, estes sim, como problemas.

Isso não significa que essas convicções não se questionem jamais, ou não sofram evoluções. A Teoria da Ação Comunicativa prevê que o mundo da vida se renova; ele se transforma à medida que se reproduz, de tal sorte que as próprias “convicções de fundo” são alteradas, pois não são pétreas nem perpétuas. O que importa, porém, para efeito do que se expõe aqui, é a percepção de que as “convicções de fundo” contêm o saber que, no ato da comunicação cotidiana, não pede problematizações: elas são críveis sem que delas se espere qualquer comprovação de veracidade. Assim, é possível pretender que as convicções de fundo subsistem porque são tomadas como verdades indiscutíveis, e aí reside a sua dimensão de crença.

Habermas oferece um detalhamento que vem a calhar: “O mundo da vida acumula o trabalho de interpretação realizado pelas gerações passadas; é o contrapeso conservador contra o risco de desentendimento que comporta todo processo de entendimento que está em curso”[4]. Em suma, as convicções de fundo unem o tecido que a comunicação cotidiana entre os agentes tende a descosturar, tende a separar, a dividir. O mundo da vida, em boa medida, vive dessas duas tensões entre o que o unifica e o que o subdivide. Depois, cada uma das partes (resultantes da subdivisão) viverá tensão análoga, ou não será uma parte organizada, diferenciada em relação ao todo.

Mas o que são essas convicções de fundo, das quais emergem estas que vejo como crenças democráticas? De um modo geral, indica Habermas, a base do mundo da vida “de modo algum se compõe somente de certezas culturais”[5]. A base do mundo da vida incorpora também “habilidades individuais, o saber intuitivo e práticas socialmente arraigadas”. Aí está o saber que não precisa se expressar com palavras, as noções que não encontraram representação na linguagem. Por isso, o autor sugere que, além da cultura, “sociedade e personalidade atuam não só como restrições, mas também como recursos” na ação comunicativa[6]. As crenças de que falamos, então, aparecem muitas vezes em práticas sociais, não traduzidas na linguagem, e o legado ancestral, feito de práticas, saberes, intuições coletivas e crenças.

Se nos dedicarmos agora ao universo da militância, mas ainda dentro do molde teórico de Habermas, podemos inferir que mesmo a prosódia do militante carrega umquantum de certezas culturais, de habilidades individuais e de saber intuitivo. Basta ver a gestualidade característica do militante, que se compõe de certa indumentária, de ritos quase imperceptíveis e de outros quase exi.bicionistas, como o modo de fingir displicência ao se desvencilhar do relógio de pulso e pousá-lo sobre o tampo da mesa antes de tomar a palavra diante do plenário (a atenção ao relógio indica um respeito ao tempo dos presentes, e de perfeito controle sobre o próprio discurso): pois essa gestualidade também inclui certezas, habilidades, intuições, crenças (como a de que o militante que controla as próprias palavras denota capacidade de controlar a ação). A começar daí, então, podemos afirmar que há crenças envolvidas na militância.

Mas o nosso problema não está aí. O nosso problema reside no fato de que, em alguma operação que ainda não se mostra com a devida clareza, essas convicções de fundo, próprias do primeiro nível, parecem deslocar o agente da militância na direção de um discurso e de uma prática que tendem à pretensão de dirigir, direcionar e, depois, subjugar e, mesmo, “colonizar” o mundo da vida. À primeira vista, esse deslocamento parece encerrar uma contradição. A noção de que a militância é uma atividade legítima na democracia, por exemplo. Ela é uma convicção de fundo, uma certeza cultural. Contudo, à medida que o partido amplia sua inserção social, essa certeza passa a conviver com outras, menos democráticas e mais estratégicas, cujo fim é silenciar as opiniões dos que não queiram aderir, apoiar ou mesmo tolerar a ação política daquele partido específico. Num dado momento de sua diferenciação em relação ao que lhe seja exterior, a militância organizada promove essa virada: aquela certeza cultural, democrática, voltada para o entendimento, dá lugar à defesa ativa da verdade oficial do partido, e esta, para se expandir, cobra o seu preço em liberdade — liberdade dos outros. Aí, a ação militante deixa de querer convencer, ela se vê inclinada a combater como inimigas as visões que lhe são contrárias. Nasce desse modo a crença de que a verdade abraçada pelo militante é superior às verdades banais dos outros, que terão de ser dobrados àquela primeira, para o bem da humanidade. O militante crê que a sua verdade encerra o bem dos que a ignoram.

A fronteira entre as crenças do primeiro nível e as do segundo nível é porosa. Talvez seja mesmo vaporosa. No primeiro nível, a militância compartilha suas convicções de fundo com o ambiente geral da democracia. Num segundo, a crença do militante entra em contradição com as crenças que embasam a democracia.

O deslocamento é intrigante: a fé nas razões da democracia termina por dar razão à fé no partido. É como se, entre uma fé (na democracia) e a outra (nas razões principistas do partido), o sujeito mobilizasse, em lugar de suas faculdades racionais e críticas, o equipamento religioso de seu psiquismo. Se é que me pode ser concedida essa licença, eu diria que, em certos casos, os neurônios e as sinapses acionados pelo devoto de uma religião, quando prega, são os mesmos que entram em atividade num combatente de uma causa política, quando discursa. A teologia de um é o programa máximo de outro. A região cerebral há de ser, mais ou menos, a mesma.

Em termos iluministas, poderíamos dizer que a fé na razão já é um deslocamento das crenças, que abandonam os totens das seitas em troca dos postulados da razão democrática. Depois, esses postulados, como objetos de crença, cederiam lugar às verdades universalizantes e totalizantes encarnadas no partido. Outra vez, o militante realizaria sua entrega à causa mais por uma questão de fé e menos pelo julgamento racional.

Ainda no século XVIII, Saint-Just, enaltecendo o humanismo, não deixava de resguardar um lugar de honra para Deus: “A Terra pertence aos homens e os padres às leis do mundo, no espírito da verdade. Esta verdade provém do eterno Deus, ela é a harmonia inteligente”[7]. Para ele, as liberdades e os direitos dos cidadãos nada mais fariam do que realizar com mais fidelidade o projeto divino para a humanidade. A verdade viria de Deus, mas apenas se manifestaria entre os homens por meio dos debates entre iguais. O debate das ideias seria a parte que caberia aos homens na revelação da verdade divina.

Para uma parte dos iluministas, Mirabeau entre eles, a verdade que se revelava na opinião pública era mesmo preexistente, ela provinha de Deus, e apenas se manifestava, em epifania, nas discussões entre os homens[8]. Já ali, no Século das Luzes, a fé na razão facilmente se desviava para seu oposto: apoiar a própria razão na fé. Iluministas de fé ou militantes da vida inteira, no dizer de Brecht, talvez se imaginem, analogamente, portadores de verdades libertadoras. Convertem-se em pregadores. Não raro, em soldados. Se o mundo estiver povoado de demônios, o mundo que seja exorcizado.

Essa transposição do objeto de fé poderá ser vista, com mais proximidade, no depoimento de um militante brasileiro. Na companhia dele, faremos o próximo trecho do nosso percurso.

A SÍNDROME DO COROINHA MATERIALISTA, SEGUNDO BETINHO

Voltemos à religião e às suas manifestações próprias. Voltamos, com isso, a dialogar com militantes brasileiros.

O leitor não terá de forçar muito a memória para perceber que a palavra “mística”, no Brasil, costuma aparecer na fala de militantes de esquerda de variados matizes. Mas poucos foram tão fundo nessa percepção quanto Herbert José de Souza, o Betinho (1935-1997). Católico de formação, ele militou um bom tempo na clandestinidade e, depois, na fase madura, após o exílio, livrou-se dos resquícios do autoritarismo bolchevique e se dedicou à causa dos direitos humanos. Sobre as relações entre militância e fé religiosa, deixou um depoimento notável, que foi publicado no primeiro volume de Brasil, 1964/19?? — Memórias do exílio.[9]

Betinho começa contando que, doente na adolescência (hemofílico), descobriu uma poderosa fonte de motivação na Igreja: “Eu tinha duas chances: ou o desânimo total, ou então o esforço de juntar as energias e criar uma disciplina. Foi aqui que entrou a religião: o esquema místico funcionou como uma ampla mobilização psicológica, como uma disposição de cura[10]”.

A mística — termo que ele retoma a toda hora — terá um desenvolvimento tanto religioso como político em sua biografia. Pela religião ele consegue se desprender do derrotismo. Na figura de Cristo, mais que um mártir, ele verá então um personagem de iniciativa, destemido, um Cristo quase fálico. A política virá mais tarde, como consequência.

Introduzi aí uma argumentação, um tipo de mística que dava uma volta na questão da figura do Cristo em relação ao sexo. O cristianismo sempre apresentava Cristo como uma figura desligada, assexuada, mística, descomprometida, ele nos céus e nós aqui na Terra a pensar. Porém, na JEC [Juventude Estudantil Católica], os assistentes apresentavam o Cristo como o macho, o forte, o homem, o cara que veio para fazer uma revolução, não uma revolução em termos políticos, mas de qualquer maneira uma revolução, pessoal, humana, de salvação. Isso continha uma mística tremendamente forte para nós. Essa era a religião que nós estávamos querendo. Isso teve um aspecto muito, muito positivo. […] Foi com esse embalo místico que chegamos à AP [Ação Popular[11]]: temos uma missão, somos uma geração com uma missão salvadora[12].

Aqui, nesse trecho, Betinho usa a palavra mística tanto no sentido de “imaginário redentor” como no sentido de “voltado para o sobrenatural”. A expressão “mística” para qualificar a figura de Cristo concentra uma oposição à politica. Nos outros casos, a mesma palavra identifica o sistema de crenças dos revolucionários, capaz de fazê-los experimentar, por meio da ação política, a transcendência.

Betinho recorda que, na visão cristã, o capitalismo era condenado “em nome dos valores morais”[13]. A recusa vinha de uma repulsa principista, não de reflexão. Era uma indignação moral. O prolongamento dessa indignação, no entanto, já se articulava segundo métodos marxistas. “O método e a forma como então se procedeu já eram marxistas[14]”. Em resumo, a relação de produção do capitalismo não estaria em consonância com o senso de justiça herdado à JEC e ao catolicismo mais à esquerda. O capitalismo era um mal: isso era princípio. O marxismo entrava aí com a ferramenta para a superação do mal que era materializado na exploração capitalista.

Com clareza espantosa, Betinho reconhece que ele e outros de sua geração não tinham como escapar: a ação revolucionária foi, para eles, uma forma de religião. Mais ainda: Jesus Cristo foi substituído, na mística que abraçaram, pelos vultos idolatrados do comunismo. Aqui chegamos ao fundo desse interessantíssimo tráfego da fé, que permuta suas divindades sem deixar de ser fé. Eis a memória de Betinho: “Ao chegarmos a adotar o maoísmo como religião em 1968-1969, tínhamos uma base para isso. Por que fomos nós e não os outros grupos? Nós saímos da Ação Católica e os outros, não. Depois de Cristo, deu-se o vazio, mas o maoísmo chegou e o camarada Mao pegou de novo a bandeira”[15].

Não obstante a iniciativa política que definiu esse novo Cristo na imaginação do jovem Betinho, e não obstante a transformação de Jesus Cristo em Mao Tsé-tung, agora sem nenhum traço piedoso, resistiu incólume a essa brutal transubstanciação o instituto católico do martírio. Martirizar-se fazia parte do itinerário dos combatentes em defesa do socialismo.

Betinho conta que, lá pelas tantas,

começa uma fase terrível e eu, dada a minha vocação cristã de sofrer no martírio, vou assumir tudo isso, aceito agora em nome da proletarização. Dizem-me que sou um pequeno-burguês, que nunca deixei de ser. Então, porque sou pequeno-burguês, tenho que passar por um processo de proletarização, o que significa purgar todas as vestes de pequeno-burguês e tornar-me operário. Se eu cumprisse isso teria condições de ser um militante revolucionário, um verdadeiro marxista-leninista-maoísta, e portanto pronto para me reincorporar na nova organização, no novo partido do operariado que tinha surgido no Brasil[16].

Há passagens cômicas na proletarização artificial de Betinho. Ele primeiro estuda a possibilidade de ser vendedor de pipoca, pois suas limitações de saúde o impediam de ser um operário de verdade. Mas a tática do pipogueiro não vinga. Finalmente, ele é admitido como empregado numa fábrica de cerâmica, onde os afazeres diários não pesariam tanto. Fez exame médico e, embora pesasse apenas 47 quilos, com 1,72 m de altura, foi aprovado e contratado. Mas, ainda da visão do ex-dirigente da AP, havia mais loucura e mistificação do que política naquela história de virar proletário do dia para a noite.

A partir de certo momento deixou-se de ser político. A realidade política desapareceu. Qualquer coisa que caía nas nossas mãos deixava de ser política; as análises deixaram de ser políticas, eram para situar você ou na esquerda ou na direita. Por exemplo, se você citava Lênin não era para discutir a realidade brasileira, mas para detectar um desvio. A literatura marxista passou a ser um reservatório da Santa Inquisição. Tinham-se coleção de citações de Mao, de Lênin, de Marx, de Engels, para acusar[17].

Mais enfático, impossível. Betinho então localiza, em sua elaboração pessoal em que acerta contas com o passado, o encontro dos dogmas do catolicismo com o sistema dogmático dás doutrinas comunistas. E sentencia: “A tendência geral da esquerda brasileira é religiosa. É equívoco pensar que a esquerda é antirreligiosa. A tendência geral da esquerda na América Latina é ser religiosa. Porque ela vem de um padrão dogmático”[18].

O POETA CURITIBANO DUE GOSTAVA DE LEON TRÓTSKI

Paulo Leminski nasceu no dia 24 de agosto de 1944, em Curitiba. Poeta precoce, rebelde precoce, o letrista e professor que também era faixa preta de judô foi igualmente precoce para morrer. Ele se foi no dia 7 de junho de 1989, aos 44 anos. Deixou uma obra extensa e, no meio dela, uma biografia do mais brilhante dos líderes bolcheviques: Trótski: a paixão segundo a revolução, publicada pela Editora Brasiliense, em 1986.

Para que o leitor visualize um pouco melhor o que foi o tempo de Leminski, é preciso que lembremos um pouco a juventude desviante que frequentava a Brasiliense. A ditadura militar estava no fim. Os militares seriam dispensados do Palácio do Planalto em 1985, com a eleição — indireta — de Tancredo Neves. Que — não custa anotar — nunca tomou posse: horas antes da cerimônia de transmissão do cargo ele foi internado num hospital e nunca mais teve alta; morreu semanas depois. Quem assumiu o governo em seu lugar foi o vice, José Sarney, que atravessou o mandato se debatendo em silêncio para não ser engolido pela inflação — que o engoliu inexoravelmente, caudalosamente — e para não ser desmoralizado pelos movimentos sociais — que o desmoralizaram, é lógico. Os movimentos sociais eram a coqueluche da intelectualidade, e a Editora Brasiliense vivia em estado de graça com os movimentos sociais, a intelectualidade e todas as formas de coqueluche.

A Brasiliense foi um centro nervoso da ebulição cultural do país que se lambuzava nas licenciosidades abertas pelos ventos democráticos. Conduzida por Caio Graco Prado — filho do fundador, Caio Prado Jr., intelectual quatrocentão e militante do PCB —, a casa editorial de três andares no centro de São Paulo se distinguia pela receita ultra-heterodoxa, que combinava esquerdismo, boemia hippie, grã-finagem e alguma literatura. No seu catálogo de títulos, toda contestação tinha lugar. A Brasiliense era a favor de ser do contra. Em poucos ambientes a expressão “esquerda festiva” fez tanto sentido. Havia também o jornal literário Leia Livros, criado por Cláudio Abramo, que tinha a sua redação de duas ou três pessoas assentada sobre um mezanino, cobrindo como um andaime metade da área do terceiro andar.

O endereço não podia ser outro. A editora de Caio Graco ficava na rua General Jardim, vizinha não exatamente da França, mas da Aliança Francesa, onde trabalhava um generoso trotskista francês que levava os camaradas para almoçar no La Casserole, no Largo do Arouche, a pouco mais de dois quarteirões. Outros vizinhos eram as boates suspeitas, o sindicato dos jornalistas, o Copan, o Minhocão. Escritores de esquerda, militantíssimos, amarravam conversas e mais conversas com alguns dos jovens jornalistas que batiam ponto no relógio instalado na porta da rua. Todos socialistas, por certo, surfando nas ondas tardias da revolução sexual que já batia contra o muro da aids. Nos domínios de Caio Graco, ser de esquerda não era incompatível com a vida de playboy, com restaurantes caros, com rodar pelas ruas com um MP Lafer conversível, com atrasar o pagamento dos direitos autorais, com rock’n’roll e SBPC. A General Jardim era uma festa.

Paulo Leminski andava por ali. Escreveu bastante para o Caio. Só de biografias, para a coleção “Encanto Radical”, que tinha seus volumes em formato de bolso, foram quatro títulos: Bashô, Jesus Cristo, Cruz e Sousa e ele, Leon Trótski[19]O mais interessante de tudo é que, mesmo aí, mesmo nesse ambiente profano, de um paganismo deslumbrado, mesmo aí a queda para a santidade nas hostes da esquerda não escapou ao olhar atento do poeta, que teve uma forte educação católica.

Leminski fala que Trótski tem “sua conversão ao marxismo” por influência de um jardineiro. E conta que foi uma “conversão fulminante”[20]. Talvez, mas isso Leminski não diz, uma conversão como a de São Paulo, que caiu do cavalo e viu a luz. Os traços de entrega total do militante, então, são bem descritos pelo biógrafo do velho Leon. “Para derrubar a máquina opressora do czarismo, a organização é a única arma. A organização exige disciplina, abnegação, negação de diferenças pessoais, em nome de uma causa e um objetivo comuns. Divisões são nefastas, e só favorecem o inimigo. A unanimidade é uma virtude[21].”

Aqui, a sensibilidade do escritor ganha relevo. Ele chama a unanimidade de virtude, pois, dentro da disciplina bolchevique do início do século XX, estava em germe o que se revelaria décadas depois como o traço distintivo não da libertação dos oprimidos, mas do totalitarismo. A abnegação do militante seria, como veremos adiante, a antessala do Estado absoluto. Leminski sabe iluminar, com seu relato, a formação dessa mentalidade sombria. “Muito das características do comunismo russo pode ser explicado pela vivência clandestina e conspiratória dos seus líderes, que viveram os melhores anos de suas vidas fugindo, na cadeia, no degredo, no exílio, desenvolvendo uma mentalidade mafiosa, de seita, sempre prontos a ver em cada colega um delator e em cada novo membro um policial infiltrado. Um dia, esse delírio persecutório tomará o poder[22].”

É então que Leminski tece o mesmo laço — entre militância e santidade — que aparece nas memórias de Betinho. Com uma distinção: por vezes fica a sensação de que, onde Betinho é ácido, Leminski é quase devoto.

Se o conceito de santidade, significando autoentrega idealista a uma causa maior, ainda faz algum sentido, bem que poderíamos aplicá-lo a esses “santos da Revolução”, heróis dedicados à mais difícil das tarefas, a transformação radical do ordenamento sócio-politico-econômico de uma sociedade. Os santos, claro, são cruéis. Suas virtudes nos colocam em xeque, eles estabelecem os limites, os recordes, os máximos do viver humano. A integridade do seu sacrifício zomba de nossa mediania[23].

A superioridade santificada do dirigente da classe operária invoca as autorizações sobre-humanas para promover violências desumanas — e Leminski vai demonstrando os meandros desse transe. Ele cita Trótski, em História da Revolução Russa: “As revoluções distinguem-se sempre pela falta de delicadeza: provavelmente, porque as classes dirigentes não tiveram o cuidado, a seu tempo, de ensinar ao povo as boas maneiras”.

Trótski se esqueceu de dizer que quem comete as atrocidades não é o povo, mas os dirigentes em nome do povo. Aí, a violência é a receita e a solução de tudo. Para documentar o que relata, Leminski inclui, como um anexo, ao final da biografia de Trótski, uma ordem do então Comissário de Guerra.

ORDEM DO DIA DO COMISSÁRIO DE GUERRA

Krasnov e os capitalistas estrangeiros que o apoiam lançaram no front de Voronej centenas de seus agentes mercenários, que penetram de diversas formas nas unidades do Exército Vermelho, onde conduzem o trabalho sujo de decomposição e incitação à deserção. Em algumas unidades pouco firmes no front de Voronej, observam-se sinais de indisciplina, covardia e mercantilismo. Enquanto em todas as outras frentes nossas tropas vermelhas perseguem o inimigo e avançam, no front de Voronej há frequentemente retiradas absurdas, criminosas e uma decomposição de regimentos inteiros.

Declaro que, de agora em diante, medidas implacáveis vão pôr um fim nesta situação.

Todo canalha que incitar a retirada, a deserção ou a não execução de uma ordem superior será fuzilado.

Todo soldado do Exército Vermelho que abandonar seu posto de combate, por sua própria conta, será fuzilado.

Todo soldado que jogar fora o fuzil ou vender partes de seu equipamento será fuzilado

Em toda a zona do front, estão estabelecidos destacamentos para dar caça aos desertores. Todo soldado que tentar opor resistência a esse destacamento será fuzilado no ato.

Quem abrigar ou esconder desertores será fuzilado.

As casas onde forem descobertos desertores serão queimadas. Morte aos mercenários e traidores!

Morte aos desertores e aos agentes de Krasnov!

Viva os bons soldados do Exército Vermelho operário e camponês!

Ass. Leon Trótski

Presidente do Conselho Militar Revolucionário,

aos exércitos do Sul.

24 de outubro de 1918

A militarização como antídoto contra a dissidência, mesmo em tempos de paz, passaria a ser, a partir dessa mentalidade, um expediente natural nos Estados autoproclamados socialistas. Foi o que se viu, por exemplo, até pelo menos a primeira década do século XXI, em Cuba, que, para esconder o dissenso, tratava seus prisioneiros políticos como se fossem prisioneiros comuns. Em Cuba e na militância de esquerda em geral, a unanimidade, como Leminski viu muito bem, virou signo de virtude. Sob os regimes autoritários ou totalitários, a virtude ganhou a consistência da concordância, do silêncio e da obediência. Ou isso, ou o banimento.

Em 1980, um discurso de Fidel Castro, durante as comemorações do Primeiro de Maio na Praça José Martí, em Havana, adotou o mesmo tom ameaçador da Ordem do Dia do Comissário de Guerra, Leon Trótski. Fidel exortou seus compatriotas a expulsar de Cuba aqueles que divergiam do governo. Naquele ano, mais de cem mil cubanos foram despejados nos Estados Unidos, em contingentes de presos comuns, doentes mentais e outros que a ditadura tachou de párias. O trecho do discurso de Fidel que será reproduzido a seguir exprime com crueza e crueldade o que significa tachar alguém de pária no discurso oficial. “Quem não tem genes de revolucionário, quem não tem sangue de revolucionário, quem não tem uma mente que se adapte à ideia de revolução, quem não tem um coração que se adapte ao esforço e ao heroísmo de uma revolução, nós não os queremos e deles não precisamos[24].”

O ditador cubano queria um povo que se adaptasse às suas sentenças. Ou os civis se rendiam à superioridade mística, santificada e armada dos militantes tornados tiranos, ou deveriam partir. Não eram socialistas, não eram revolucionários, eram sub-humanos.

Em matéria de perseguição ao diferente, Fidel foi pior do que Trótski. Por dois motivos, pelo menos. O primeiro deles é que o russo se dirigia às tropas, aos soldados, enquanto Fidel se dirigia a uma nação. Diferentemente de um exército, que é formado de militares, sujeitos às leis marciais, uma nação inclui velhos e crianças, trabalhadores e aposentados, dentistas, professores, prostitutas, burocratas, gente que não está sujeita à lei marcial, num país que não estava em guerra, mas em paz. Em sua fala de fúria, o ditador cubano foi a público para degradar, desqualificar e difamar o diferente, para carimbá-lo como um ser humano sem honra, sem virtude, e, portanto, indigno de viver em seu próprio país. O segundo motivo é que Trótski falava a seus soldados numa situação de guerra, o que gera tensões excepcionais, queiramos ou não, enquanto Fidel discursava a um país em paz[25].

UM PROFESSOR FRANCÊS ENTRE NÓS

Tanto na ordem de Trótski quanto na oratória de Castro, a truculência contra os comandados busca justificativa retórica na ameaça atribuída ao inimigo externo. Para toda tirania, o inimigo externo é o polo mais valioso. O inimigo externo é essencial na mística apavorante difundida e cultivada pelos tiranos. Em nome desse inimigo e de sua represeritação maligna dentro do discurso oficial, faz-se a unidade obrigatória em torno do comandante interno. O medo cimenta os laços de seu poder. O militante socialista revolucionário, segundo essa receita, é aquele capaz de morrer em combate para cumprir as ordens do tirano. O imaginário do militante vai desaguar, então, no totalitarismo.

Nessa passagem, ressurge a figura lúcida de Claude Lefort (1924-2010), o nosso professor francês que foi militante trotskista e, acima disso, soube pensar criticamente a sua própria condição[26] . Lefort colaborou com Sartre na revista Temps Modernes, mas, ainda nos anos 1940, rompeu com o existencialista que aderiu ao stalinismo. Ao lado de Cornelius Castoriadis, outro militante trotskista, criou, em 1949, a revista Socialismo ou Barbárie — título retirado da frase final do Programa de transição, livro de Trótski, de 1940, que conclamava os comunistas do mundo a abandonar a Terceira Internacional, controlada por stalinistas, e ingressar na Quarta Internacional. Não são poucos os intelectuais no Brasil — e na Universidade de São Paulo — que seguiram as pegadas de Lefort. É ele quem ensina: “O discurso ideológico tende a tornar-se discurso do partido[27]”. “Nada esclarece melhor esse fenômeno do que a formação de um tipo novo de agente social, o militante, em cuja figura se pode enxergar a inscrição do sujeito no discurso que se supõe falado por ele[28].”

Lefort descreve o processo pelo qual a figura do militante se descola do contexto histórico no qual tem sua origem. O militante vira um agente social à parte, um sujeito destacado dos demais, que se inscreve no discurso que ele mesmo, supostamente, pronuncia. O militante fala como quem rege a História que narra — ou o inverso, ele narra a História que rege — e, nessa apropriação discursiva que faz da História (com a licença do H maiúsculo, que aqui se faz necessário), ganha o lugar daquele a quem cabe promover as articulações de sentido (linguístico) e de direção (política). Por sinal, o mesmo Programa de transição, de Trótski, que termina com a palavra de ordem “Socialismo ou barbárie”, começa com um diagnóstico que levanta precisamente a obsessão pela direção política: “A crise da humanidade se reduz à crise de direção”. Portanto, o militante aponta o caminho a seguir e resolve a crise de direção, assim como, em sua fala, empresta sentido aos fatos, sobre os quais tem suposto poder de intervenção prática.

Nesse discurso, o militante está acima das contingências dos demais agentes sociais. Por isso, é capaz de encarnar, acima dos demais, a generalidade do social. Como Lefort cuida de explicitar:

O militante não está no partido como num meio determinado com fronteiras visíveis; ele é em si mesmo um representante do partido; bebe na fonte a possibilidade de liberar-se dos conflitos a que fica exposto por sua participação em instituições diferentes, regidas por imperativos de socialização específicos, a possibilidade de encarnar em sua pessoa a generalidade do social. Enquanto portador da representação, o militante cumpre sua função refletindo constantemente aquilo que se ordena independentemente dele no suposto sistema do social. Ao mesmo tempo, erige-se como detentor do poder e do saber; controla o operário, o camponês, o pedagogo, o escritor, profere a norma, concentra as virtudes do ativismo e encontra impressos em si mesmo o vocabulário e a sintaxe do seu discurso, de tal maneira que se constitui a si mesmo na operação da ideologia[29].

Em outras palavras, o militante é portador e enunciador do discurso com poder de se pôr e de se impor a si mesmo, como se constituísse, no nível da História, no nível da linguagem e no nível da ação política, um poder originário que prescinde de qualquer outro. Para o militante, crer na História se confunde com crer naquilo que ele próprio representa: ele concentra o universal. “Ora, o tipo do militante simplesmente leva à expressão consumada a tentativa para apagar a diferença do indivíduo e da sociedade, do particular e do geral, do privado e do público[30].”

Mais que uma crença, vai se engendrando aí uma crença de onipotência. Essa figura que se vê separada do que há de material no curso da História, pois ela se vê como consciência em estado puro, é um agente superior aos outros e superior, mesmo, às fronteiras que constrangern os demais. O militante, enfim, desde que dotado das ferramentas, das armas e da força, estaria autorizado a tudo.

A imagem princeps é a do homem sem determinação que encontra sua definição como homem fascista ou como homem comunista: um puro agente social cujo pertencimento a uma classe ou é visto apenas como fornecendo uma modalidade acidental de sua inserção na sociedade total ou, então, é mesmo expressamente recusado pela pura denegação de uma cisão interna dessa sociedade[31].

Então, Lefort extrai uma conclusão cortante, incontestável. Falando sobre o militante, ele passa a falar naturalmente sobre o que chamou de totalitarismo comunista, pois a ideologia que se cristaliza no militante leva, segundo seu juízo crítico, ao totalitarismo: “Não cabe dúvida de que, sob esse aspecto, o totalitarismo ‘comunista’ consiga explorar mais eficazmente os mecanismos da ideologia”[32].

Se o militante contém em si e para si a representação do universal e se, de sua ideologia, o Estado comunista resulta dele como a consequência lógica natural. O Estado comunista não haveria de materializar o espírito à la Hegel, nada disso: ele materializa a ideologia acima das outras ideologias, a ideologia total de que o militante é o representante supremo. Esse Estado, portanto, não pode ser outra coisa que não um Estado supremo. Total.

Como Betinho, ainda que em outro diapasão, Lefort divisa o fracasso da política, mas aqui esse fracasso não acontece pela transformação da ação política em fanatismo religioso, com o sacrifício ritual da vida “proletarizada”, e sim pelo Estado armado de ideologia totalitária, que, no limite, veta a política. Diz Lefort: “A própria tentativa para apagar a oposição entre o Estado e a sociedade civil e de tornar sensível a indivisão do político e do não político supõe que na forma das relações sociais, aqui e agora, apareça a lógica da norma, isto é, que se desdobre um sistema de articulações em virtude do qual o poder possa se multiplicar sem correr o risco de se dividir[33]“.

Para ele, então, à medida que o social desaparece e, com ele, a própria política, o terror substitui o discurso. Ou, mais que isso, o discurso se converte em terror — que funciona como discurso do Estado e da ideologia totalitária, cuja fonte teria sido o sujeito da militância.

Como ensina sobejamente a história do stalinismo, a imagem do poder como poder terrorista, como poder exorbitante, tem uma função necessária, pois é também sob seu efeito que os homens experimentam a dissolução no elemento geral do social, isto é, a contingência de toda determinação particular diante da lei proferida pelo senhor — o senhor absoluto do Estado, mas também seus representantes em todos os níveis da hierarquia e em todos os setores de atividade[34].

Com isso, Lefort expõe a lógica da “sociedade que não tolera a imagem da divisão social interna[35]“, nas quais o inimigo — ou a representação do inimigo — desempenha sua função capital, como vimos no discurso de Trótski e de Fidel Castro: “A tentativa para assegurar o domínio do espaço social sustenta-se na figuração do inimigo[36].”

Outra vez, o inimigo é aquele que, em oposição ao sujeito da militância, o sujeito cujo discurso é capaz de pôr-se e impor-se a si mesmo, ameaça mortalmente o curso da História. Destruí-lo — sobretudo destruí-lo em suas aparições internas, quando ele se infiltra no espaço social que não tolera a divisão — é necessário para libertar a própria História. O militante e seu Estado encarnam enfim o futuro, sendo a verdade e a liberdade a negação de tudo isso.

Aqui, a religiosidade em torno da militância se transubstancia em fundamentalismo fanático.

A VERDADE VEM DO ALTO E MATA O INIMIGO QUE VEM DE FORA

Da análise tristemente atual escrita por Claude Lefort, discernimos de que modo a figura do militante vai recobrir-se e também imbuir-se do sentido da História, de tal sorte que se desprende da teia social de determinações que valem para os outros sujeitos — mas não para ele. Ele atua no alto. Ele sobrevoa a luta de classes, não se inserindo sociologicamente em nenhuma classe, mas agindo em nome da classe oprimida. Por decorrência, o Estado resultante da militância buscará sua verdade em instâncias que se situam igualmente no alto, além do alcance dos cidadãos. Essa instância, aquela que está nas alturas, constitui o primeiro polo do embate que, sem ironias, poderíamos nomear, com uma pitada evidente de ironia, como uma “dialética de superestruturas”. Nessa “dialética”, o outro polo é o polo do inimigo, aquele que vem de fora — ou “o representante do fora”, no dizer de Lefort[37], que também se situa fora do alcance do cidadão. A este, não resta alternativa à tirania: se ele rompe com todo o modo de vida assegurado e imposto pelo “Estado total” — outra expressão de Lefort[38] vira pária. Para não virar pária, precisa aceitar a condenação de se dissolver no todo social, no social estatizado, perdendo-se de si.

Aí, o sistema de crenças que envolve a militância se completa e se consuma.

A Constituição da República de Cuba nos oferece uma radiografia desse sistema. Proclamada em 1976 e reformada em 1992, ela ainda estava em vigor em 2010, quando finalizei esta conferência. A Constituição de Cuba começa por louvar, em seu preâmbulo, os “patriotas que em 1868 iniciaram as guerras de independência contra o colonialismo espanhol”. Segue louvando os que venceram, em 1898, “o imperialismo ianque“, os que “fundaram os primeiros movimentos marxistas e marxistas-leninistas” (essa expressão sem valor teórico nenhum) e os que “cumpriram heroicas missões internacionalistas”. Ainda em sua introdução, homenageia nominalmente José Martí, Marx, Engels e Lênin, para então se comprometer com o encargo de levar adiante a “revolução triunfal encabeçada por Fidel Castro, com o Partido Comunista à frente”.

Nessas palavras introdutórias, a Constituição de Cuba delimita a sua instância suprema, a instância do alto, a saber, Fidel Castro e o Partido Comunista. Paralelamente, ela também identifica o inimigo superior, que é o imperialismo. A seguir, afirma que “só o socialismo e o comunismo” conduzem” à inteira dignidade do ser humano”. Pronto, a “dialética das superestruturas” está montada.

Só então o texto constitucional tem início.

No artigo quinto, ela diz: “O Partido Comunista de Cuba, martiano [de José Martí] e marxista-leninista, vanguarda organizada da nação cubana, é a força dirigente superior da sociedade e do Estado, que organiza e orienta os esforços comuns na direção dos altos fins da construção do socialismo e do progresso na direção da sociedade comunista”.

Isso significa, simplesmente, que o Estado cubano não é republicano, nem democrático. É um Estado consagrado a uma fé. Apenas isso.

Como se sabe, o Partido Comunista não é uma instância aberta a todos os cidadãos. O Partido Comunista Cubano é uma elite política fechada. Mais ou menos como um clube de elite na cidade de São Paulo, ele não aceita como sócio qualquer um que nele se inscreva. Os ingressantes no Partido Comunista são cooptados segundo determinações e aprovações sucessivas dos militantes mais antigos. Sua estrutura, portanto, não apenas não é republicana como não é pública.

Mesmo assim, cabe a ele ser a “força dirigente superior do Estado e da sociedade”. São as decisões do Partido que orientam o Estado e produzem diretrizes que valerão como lei para a sociedade. O Partido resolve quais são os modos de viver aceitáveis. Isso quer dizer que as decisões que pautam os destinos do Estado e da sociedade em Cuba não escutam nem admitem a participação de toda a sociedade, mas apenas dos militantes do PCC. Mais exatamente, apenas a cúpula do PCC. O Partido contém a verdade e mais ninguém precisa opinar. O partido representa os demais, melhor do que os demais.

Por isso é acertado dizer que o Estado cubano, com essa hierarquia entre suas instâncias decisórias, não consagra o princípio democrático de que todo o poder emana do povo. O poder, em Cuba, não emana do povo, mas do Partido, ao qual apenas poucos pertencem. Também é acertado dizer que o Estado cubano é um estado não republicano, mas religioso. Ou, numa palavra, fundamentalista. O que ficará mais claro a seguir.

A Constituição cubana também se ocupa de demarcar o lugar do inimigo. No artigo 12 está escrito: “A República de Cuba torna seus os princípios anti-imperialistas e internacionalistas, e condena o imperialismo, promotor apoiador de todas as manifestações fascistas, colonialistas, neocolonialistas e racistas, como a principal força de agressão e de guerra e o pior inimigo dos povos”.

Qualquer semelhança com uma Igreja que represente o sumo bem e combata o demônio, que traz em si todo o mal, não é coincidência. A semelhança é, mais que casual, necessária. O Partido Comunista está para o Estado cubano assim como uma Igreja está para o Estado religioso. Cuba não funciona como um Estado laico. Funciona como um Estado religioso, cujo fundamento último se situa além da cidadania, num sistema de verdades oficiais a que os cidadãos são obrigados a se submeter.

Façamos uma e apenas uma analogia. Vejamos os termos da Constituição da República Islâmica do Irã, que, declaradamente, é um regime religioso, em que Igreja e Estado não se separam. Também no Irã a verdade oficial vem de cima — e o inimigo está lá fora, além da cidadania, pronto a destroçá-la.

Adotada em 1979, a Constituição iraniana recebeu emendas em 1989 e, também, até 2010, estava em vigor. Em seus princípios gerais, no texto introdutório, ela também expõe seus cânones de fé. O primeiro deles é o monoteísmo (não há outro Deus que não Alá). Além disso, a lei fundamental do Irã expressa sua fé na “liderança das pessoas sagradas”, que, com base no Corão, apontam caminhos.

No artigo terceiro, a Constituição do Irã demarca o seu inimigo externo, ou seja, faz a sua figuração do inimigo”, nos termos de Lefort. Entre os objetivos do Estado, listam-se “a completa eliminação do imperialismo e a prevenção contra a influência externa”, e “a expansão e o fortalecimento da fraternidade islâmica e a cooperação pública entre todos os povos”.

O artigo quarto estabelece que “todas as leis civis, penais, financeiras, econômicas, administrativas, culturais, militares, politicas e outras estarão baseadas em critérios islâmicos”. O mesmo artigo assevera que “os sábios do Conselho Guardião serão os juízes dessa matéria”. O 11º artigo, citando o Corão, afirma as bases de um internacionalismo islâmico (ainda que a expressão possa soar como um oximoro), lembrando que “todos os muçulmanos formam uma só nação, e o governo da República Islâmica do Irã tem o dever de formular políticas para cultivar a amizade e a unidade entre os povos muçulmanos”. O 13º artigo esclarece a hierarquia entre religião e assuntos mundanos: o presidente é a autoridade máxima no país, estando abaixo, apenas, da autoridade religiosa, que paira acima da gestão do Estado.

À medida que comparamos as duas cartas magnas, vemos, em ambas, uma estrutura retórica e lógica nitidamente comum: o que o comunismo é para Cuba o islamismo representa no Irã, o imperialismo é o inimigo numa e noutra, nas duas constituições, os sábios — em conselhos religiosos ou no comitê central do Partido Comunista, instâncias de que participam apenas os escolhidos segundo critérios não públicos — devem tomar as decisões mais graves em lugar dos cidadãos. Em ambas, aflora sem meios tons a fisionomia do Estado que não é laico nem republicano: é um Estado religioso, como já foi dito, um Estado fundamentalista. Nos dois casos, a verdade está no alto, o inimigo vem de fora e o cidadão se dissolve na sociedade estatizada que não admite divisões.

Se isso não é um sistema de crenças, e de crenças totalitárias, o que mais poderia ser? Com sacrifícios, chegaremos todos ao Céu, ao Paraíso, seja ele o idílio comunista ou a fraternidade supranacional do Islã.

E O ENTREVISTADO DISSE MAIS, POIS MAIS LHE FOI PERGUNTADO

Naquele ano de 1988, Eder Sader e eu fizemos outras perguntas a Antonio Candido. Conforme ele expunha que, para ele, a militância dependia de disciplina e de senso do dever, voltada a vencer a opinião do outro, nós questionamos o professor sobre a cristalização desses principios num Estado autoritário. Como fecho deste ensaio, reproduzirei as respostas que ele nos deu.

Antonio Candido, naquela conversa, nunca deixou de merecer minha admiração e meu respeito. Naquela nossa conversa, demonstrou clareza sobre suas próprias crenças e também sobre o preço que poderia ser chamado a pagar por elas. Consciente de que suas ideias chocavam seus “amigos de mocidade, com certeza mais apegados às formas habituais de democracia”, ele defendeu, ao final do nosso diálogo, até mesmo a censura. Segundo sua avaliação na época, os excessos autoritários poderiam ser justificados pela grandeza da causa, o socialismo.

Foram palavras duras. São palavras duras ainda hoje. Desvelam, sem nenhuma ambiguidade, as consequências que podem resultar da militância fervorosa e de seu Estado fundamentalista. Dizem que a fé move montanhas. Mas e as montanhas da fé, montanhas feitas de chumbo, quem haverá de movê-las?
Com a palavra, o professor Antonio Candido, em 1988.

Você é a favor da luta armada?

Prefiro propor a questão do seguinte modo: a violência não é essencial, ela é uma possibilidade constante e uma necessidade eventual de qualquer ação política, e a de esquerda não é exceção. O problema é saber quando e como deve ser usada — e aí é que se avalia a capacidade do político. Sou contra a violência romântica e individualista, contra a violência pela violência. Frequentemente, a luta armada pertence a uma dessàs categorias. Mas é claro que, quando ela se baseia numa concepção revolucionária correta e se traduz pela organização adequada, pode ser fator decisivo e necessário. Aqui no Brasil houve casos disso, que não tiveram o êxito possível. Fora, basta citar o grande exemplo dos cubanos. O que me assusta é o amadorismo e a tendência brasileira para ver “condições maduras” a toda hora. Em resumo, aceito plenamente a violência revolucionária se ela for necessária, inclusive como defesa da revolução.

Mas a violência posterior à tomada do poder não pode sacrificar a revolução? Pode. Não há revolução sem risco e este é um deles. Mas aí a opção pode ser a seguinte: ou uso a violência para defender o que consegui para assegurar depois a vida democrática, ou não uso a violência e certamente perderei o que consegui, perdendo também a possibilidade de vida democrática. São opções e resoluções terríveis, mas são elas que definem o verdadeiro revolucionário. Trótski dizia que as decisões mais graves do homem eram as de desencadear a guerra e a revolução.
Você então seria a favor da censura?
Nesses casos, sou.
Mas como impedir a censura de censurar um romancista?
Não sei. Estou pensando nos momentos excepcionais em que uma situação transformadora precisa se consolidar e se defender. Mas mesmo em situações normais a censura é inevitável, porque toda sociedade define quais são os seus padrões e como eles devem ser respeitados. Não há argumento que justifique, por exemplo, passar uma fita como O império dos sentidos [filme nipo-francês, de 1976, dirigido por Nagisa Oshima, com cenas explícitas de forte apelo erótico] no horário da tarde, quando crianças estão de Tv ligada vendo desenhos animados. É preciso não dar extensão absoluta à posição atual e justa contra a censura mesquinha e desonesta da ditadura militar. O que é odioso é a censura que procura manter padrões e atitudes obsoletos ou impedir a expressão do pensamento e da arte. No entanto, voltando aos momentos excepcionais, devo dizer que aceito a própria censura se for indispensável para a construção de uma sociedade socialista.
Você não tem medo de ser censurado?
Posso ter. Mas estou disposto a correr este risco.
E o partido único?
Imagino que numa sociedade revolucionária deva haver licença para o funcionamento de todos os partidos democráticos e não para os que têm intuito restaurador. A liberdade será construída dentro de algumas violentas negações. O partido único é horrível, mas até ele é aceitável se for para promover uma verdadeira construção do socialismo, como é o caso de Cuba. Não é uma boa solução, mas é admissível. No entanto, em Cuba há práticas negativas que são devidas com certeza a este fato. E o pior é que são desnecessárias e só se explicam pelo constante estado de alerta em que vivem os cubanos, que têm o inimigo ali na porta, e mesmo dentro de casa, em Guantánamo. Lá não se publicam os nomes de certos escritores contrários à Revolução, por exemplo, e eu já fiz a experiência disto numa entrevista que dei em Havana no ano de 1979. Acho que isso é um temor excessivo e uma consequência negativa da censura, que, no entanto, é necessária em certos setores para evitar a infiltração do inimigo. Por causa desse modo de ver eu sempre choquei os meus amigos de mocidade, com certeza mais apegados do que eu às formas habituais de democracia. Mas o fato é que estou preparado para aceitar uma sociedade onde haja restrições provisórias à liberdade, inclusive de pensamento, se isso for indispensável para se chegar à justiça social e à verdadeira democracia. Contanto que não surja daí uma sociedade bárbara, como foi a do stalinismo na Rússia durante muito tempo. Não é o caso de Cuba, onde já estive três vezes e é uma sociedade profundamente humana apesar das desarmonias e lacunas.

Não façamos julgamentos aos princípios defendidos pelo professor Antonio Candido. Não ataquemos as montanhas da fé, que são montanhas de chumbo. Por agora, basta-nos voltar outra vez ao Betinho, no instante em que, no seu depoimento histórico, pressente a conquista de sua própria liberdade, a sua própria libertação da teologia, em que se convertera o materialismo doutrinário. Nessa hora, ele se despede do sacerdócio marxista e abandona o hábito. Finalmente, decide cair na vida, ou, como prefere dizer, cai na cidadania. “A primeira coisa que descobri foi a perda do sentido missionário. Olha, eu não sou nenhum dos 12 apóstolos, nem o décimo terceiro. Descobri que eu sou mesmo um cidadão comum e corrente. Que não tenho a missão e dever de convencer ninguém a entrar para o meu apostolado”[39] .

Notas

  1. Na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico, de 1880. 
  2. Douglas Harper, Online Etymology Dictionary, disponível em <http: / /www.etymonline.com/index.php?search=militaNT&searchmode=none>. Acesso em 25 ago. 2010. 
  3. Jürgen Habermas, Teoria de la acción comunicativa, Madri: Taurus, 0987, V. I, p. 104. 
  4. Idem, v. 1, p. 104. 
  5. Idem, v. 2, p. 192. 
  6. Idem, ibidem. 
  7. Conforme citado em Milton Meira do Nascimento, Opinião pública e revolução, São Paulo: Edusp/Nova Stella, 1989, p. 147. 
  8. Idem, p. 61. 
  9. Memórias do exílio (volume a: De muitos caminhos). Obra coletiva dirigida e coordenada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos, sob o patrocínio de Paulo Freire, Abdias do Nascimento e Nelson Werneck Sodré. Publicado originalmente em Portugal, em 1976, o livro seria impresso também no Brasil, em São Paulo, pela Editora e Livraria Livramento Ltda., em 1978. 0 depoimento de Betinho começa na página 69. Não se trata de obra rara, mas muito pouco conhecida e difícil de encontrar. Tive notícias desse livro graças à recomendação de Humberto Werneck, que me emprestou um exemplar. 
  10. Pedro Celso Uchôa Cavalcanti, Jovelino Ramos (org.), Memórias do exílio (volume 1. De muitos caminhos), São Paulo: Livramento, 1978, p. 70. 
  11. Pedro Celso Uchôa Cavalcanti, Jovelino Ramos (org.), Memórias do exílio (volume 1. De muitos caminhos), São Paulo: Livramento, 1978, p. 70. 
  12. Idem, pp. 70-71. 
  13. Idem, p.71. 
  14. Idem, p. 72. 
  15. Idem, p. 72. 
  16. Idem, p. 82. 
  17. Idem, p. 88. 
  18. Idem, p. 101. 
  19. As quatro foram reunidas depois da morte do autor, em um volume único: Paulo Leminski, Vida — Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski, Porto Alegre: Sulina, 1990. 
  20. Idem, p. 242. 
  21. Idem, p. 246. 
  22. Idem, p. 247. 
  23. Idem, p. 257. 
  24. Este trecho exato, com imagens reais do pronunciamento de Fidel, aparece no filme Antes que anoiteça, baseado no livro homônimo de Reinaldo Arenas, dirigido por Julian Schnabel (Estados Unidos: Fine Line Cinema, 2000). O discurso original está disponível em: <http: / /www.cuba.cu/gobierno /discursos/1980 /esp /foto58oe.html>. Acesso em to out. 2010. 
  25. Houve diversas modalidades de perseguições em Cuba, inclusive aquelas baseadas em preconceitos contra modos de vida. Uma das mais perversas foi a que se abateu contra os homossexuais, acusados de “contrarrevolucionários”, logo a partir dos primeiros anos do regime. Eles eram enviados a campos de trabalhos forçados, eram presos, isolados. Sistematicamente. Mais tarde, em 2010, Fidel Castro assumiu pessoalmente a responsabilidade pela homofobia oficial em Cuba. Em entrevista concedida a Carmen Lira Saade, publicada no jornal mexicano La jornada, de 31 de agosto de 2010, página 29, ele lamenta essa perseguição e diz: “Se alguém foi o responsável, sou eu”. Disponível em <http://www.jornada.unam.mx/2010/08/31/index.php?section=mundo&article=o26eimun> 
  26. A obra de Lefort me foi sugerida pelo jornalista Marcelo Coelho, que enxergou, com a sensibilidade inteligente que é sua característica, a proximidade entre o projeto de minha conferência e o pensamento do professor francês. 
  27. Claude Lefort, As formas da História, São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 327. 
  28. Idem, ibidem. 
  29. Idem, pp. 327-328. 
  30. Idem, p. 328. 
  31. Idem, ibidem. 
  32. Idem, ibidem. 
  33. Idem, p. 329. 
  34. Idem, p. 332. Logo adiante, nessa mesma página, fala em “culto da personalidade” acerca do stalinismo, como a função de descarregar o excesso de poder sobre a racionalidade. 
  35. Idem, p. 333. 
  36. Idem, ibidem. 
  37. Idem, ibidem. 
  38. Idem, p. 330. 
  39. Memórias do exílio (Volume 1. De muitos caminhos), p. 102. 

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