2010

Da morte do sujeito à invenção de si (experiências do pensamento e exercícios espirituais estoicos a partir de Michel Foucault)

por Frédéric Gros

Resumo

O filósofo Michel Foucault proclamou, em meados da década de 1960, a morte do homem e do sujeito. Na ocasião, a notícia causou alvoroço. Ele queria anunciar, então, a era do estruturalismo, uma experiência de um pensamento novo, no qual nem o homem, nem o sujeito contavam. O sentido era produzido por máquinas abstratas, e os indivíduos fabricados por sistemas cegos. Tudo o que antes constituía fundamento humano (a exemplo do “logos”, do espírito e do ego) não era, para o estruturalismo, mais do que simples efeito ou resultado. Puro produto. Assim, Foucault pode declarar, em 1966, os fins do humanismo clássico e do idealismo.

Das manipulações genéticas às nanotecnologias, as últimas transformações vieram então integrar essa anunciação de uma desumanização do mundo, de um colapso das referências tradicionais. Hoje mais do que nunca, o homem corre o risco de se tornar escravo de suas máquinas, produto de suas técnicas.

Entretanto, no inicio da década de 1980, quase 20 anos depois de suas primeiras teses, Foucault, ao estudar a sabedoria antiga e reexaminar a espiritualidade dos pensadores gregos e latinos, redescobre, repentinamente, o poder da liberdade, da criação e da resistência. Ora, essas noções são problematizadas, na filosofia antiga, como técnicas – de si ou da existência –, em tudo contrárias às técnicas atuais. Não se tratava – claro esteja – de produções de objetos e signos, mas de éticas que se voltavam para os sujeitos ou para as relações deles com eles mesmos, esculpindo-os. Elaborações antigas e esquecidas, capazes de, através de novas experiências do pensamento, salvar o homem de sua própria destruição.

Por isso a importância de reelaborar algumas dessas técnicas sempre relacionadas ao corpo, ao prazer, à riqueza e à morte, e, com elas, também as grandes práticas espirituais mediante as quais é possível tornar-se o artesão de si mesmo, tais como a prática do último dia, a da gratidão, a da decomposição material… Tudo isso presente nas grandes escolas das filosofias helenísticas e romanas, a exemplo dos estoicos, dos epicuristas e dos céticos. É preciso também, afinal, evocar os movimentos sociais que puderam acompanhar essas técnicas. A pobreza, por exemplo. Tanto para os cínicos da Antiguidade quanto para os franciscanos do final da Idade Média, ela representou uma escolha voluntária de existência da qual se esperavam efeitos de liberação. Enfim, será preciso indagar se não há nos artistas exigências de transformação de si que também fazem da arte uma técnica espiritual.


Eu gostaria de compartilhar com vocês uma série de “experiências de pensamento” que foram descritas, codificadas, inventadas pela filosofia, particularmente pela filosofia estoica.

Porém, antes de começar, preciso responder a três interrogações legítimas. Primeiro, o que significa uma experiência de pensamento? Segundo, por que a filosofia teria uma relação privilegiada com as experiências de pensamento? Terceiro, por que ter escolhido como guia a figura de Michel Foucault para apresentar essas experiências de pensamento?

Uma “experiência de pensamento” não é uma doutrina ou um sistema intelectual. Não se trata de um conjunto de conhecimentos. A diferença entre uma “experiência de pensamento” e uma “teoria” reside no que poderíamos chamar de “efeito de volta para o sujeito”. Quero dizer com isso que há “experiência de pensamento” quando o fato de pensar isso ou aquilo, de efetuar dentro de nós mesmos determinada operação mental, de nos dar determinada representação, transforma o modo de ser do sujeito pensante, levando-o a proceder na sua vida a mudanças de comportamentos ou de hábitos. Não se trata de pensar para conhecer melhor, mas para produzir efeitos na sua própria vida e no seu comportamento. Fala-se em “experiência de pensamento” quando aquele que pensa é modificado, transformado no seu ser pelo que ele está pensando.

A segunda questão é a da relação com a filosofia. Acredito que a filosofia pode ser concebida de duas maneiras muito diferentes. Ela pode ser definida como uma construção especulativa, como uma tentativa racional de conhecimento do mundo, como um sistema de verdades fundamentais, como um conjunto de respostas a perguntas fundamentais. Mas ela também pode ser considerada como uma sabedoria, ou seja, como a definição de uma arte de viver, como a determinação de uma maneira peculiar de existir, como um empreendimento de transformação de seus hábitos, de sua maneira de existir. Nesta segunda vertente, a filosofia pressupõe todo um programa de exercícios que almejam dar uma certa forma, um certo estilo à nossa vida. As experiências de pensamento que pretendo evocar são justamente exercícios espirituais, isto é: operações mentais codificadas, meditações que se desenrolam de acordo com determinadas regras e têm como função dar uma certa forma à existência. Esta filosofia enquanto sabedoria concreta está presente sobretudo nos grandes pensamentos dos períodos helenístico e romano, que se desenvolveram entre o século III a.C. e o século III d.C, a saber: a sabedoria epicurista, a sabedoria cética, a sabedoria cínica e a sabedoria estoica. A rigor, portanto, poderíamos dizer que a filosofia é animada por dois ideais: um ideal epistemológico, que consistiria em descobrir e definir uma gramática da verdade do mundo; e um ideal ético, que consistiria em propor ao sujeito exercícios para transformar sua maneira de ser, definir uma arte de viver, um estilo para sua existência.

A última pergunta antes de começar diz respeito à relação entre a experiência de pensamento e a obra de Michel Foucault, filósofo francês contemporâneo. Por que escolhê-lo como guia nesta reflexão? Não pretendo nem um pouco apresentar o conjunto de sua obra – provavelmente uma das mais importantes do século XX -, limitando-me a considerar uma reviravolta que me parece muito significativa no seu percurso.

Intitulei esta conferência “da morte do sujeito à invenção de si”. Nos anos 1970, de fato, Michel Foucault anunciara o que ele chamava “a morte do homem”. Durante muito tempo, com efeito, acreditamos que para entender o mundo era preciso primeiro entender o homem, já que ele estava na origem de qualquer conhecimento. Toda uma tradição filosófica (que podemos designar pelo termo técnico de idealismo transcendental) fizera do sujeito o fundamento último de qualquer construção cultural, a verdadeira raiz de qualquer ser. Segundo esta filosofia, nada podia fazer sentido ou ser real sem partir de um projeto humano, de uma fundação subjetiva.

Ocorre que Foucault tentou naquela época mostrar a importância dos sistemas nos quais estamos inseridos: os sistemas linguísticos, produtivos; os sistemas de troca, de poder, de comunicação, de crenças. E o sujeito humano, a interioridade subjetiva, seria simplesmente o produto, o efeito, a projeção desses sistemas. A tal ponto que não é o sujeito que dá sentido e realidade a um sistema, mas é o sistema que define o lugar, a função, a natureza dos sujeitos. Falar da morte do sujeito e da morte do homem para Foucault significava então reencontrar e descrever os sistemas anônimos (sistemas de sinais ou de poder), essas numerosas matrizes da realidade.

Acontece que no início dos anos 1980 Michel Foucault redescobre a filosofia antiga. O que lhe interessa nessa filosofia, no entanto, não são as doutrinas, não é a teoria, não são os elementos de conhecimento, mas o que ele chama de “técnicas de subjetivação”. Isto é: ele encontra na sabedoria antiga procedimentos pelos quais o sujeito é convidado a se construir a si próprio, como se a própria vida devesse ser para cada um de nós um material que fosse preciso trabalhar e moldar. A filosofia se entende neste caso como o empreendimento pelo qual cada um é convidado a dar uma forma à sua liberdade e, consequentemente, a se inventar. Passamos então do tema da produção do sujeito pelas máquinas cegas ao da autoprodução do sujeito por ele mesmo.

Como eu estava dizendo, é por meio de exercícios que o sujeito se constrói e se inventa. Estes exercícios são justamente “experiências de pensamento”, e eu gostaria de lhes apresentar algumas destas experiências de pensamento antes de questionar o propósito de voltar hoje em dia a tais técnicas de subjetivação antigas.

As experiências de pensamento que vou apresentar foram descritas pela escola estoica de filosofia. Evocarei somente no fim do nosso percurso experiências de pensamento pertencentes a outras sabedorias, como o epicurismo ou o ceticismo.

Vocês provavelmente sabem que a ética estoica é uma ética do controle perfeito de si. O sábio estoico é descrito como um indivíduo que, ao ser confrontado com os infortúnios e as grandes fatalidades da existência, permanece imperturbável. Ele aguenta tudo sem dar um pio, permanece sereno no meio das tempestades. O ideal ético da sabedoria estoica pode ser resumido pelo termo grego ataraxia, que significa ausência de distúrbios, tranquilidade interior. O equivalente em latim da ataraxia será a securitas. É interessante notar aqui que na cultura ocidental o sentido original da palavra “segurança” não é político, mas sim espiritual. O termo “segurança”, nos seus primeiros usos, não define um ideal político, mas um ideal filosófico. Ele não significa a ausência de perigos nem a implementação de sistemas contra ameaças eventuais, nem a presença de forças policiais para garantir a ordem pública. A segurança, na cultura ocidental, significou primeiramente o estado mental do sábio que, no meio dos perigos e das ameaças, mantém a calma e a tranquilidade. Um bom meio de obter essa segurança seria evidentemente manter-se afastado do mundo, permanecer à margem da sociedade, não aceitando nenhuma responsabilidade, conservar-se escondido, longe da agitação e da multidão. De certa forma, podemos dizer que, para chegar a essa serenidade interior, os epicuristas e os céticos praticavam um certo distanciamento e se mantinham à margem do mundo (podemos aqui nos lembrar do adágio epicurista: Para viver feliz, é preciso viver escondido!).

A grande especificidade dos estoicos consistirá no seu envolvimento no mundo. Eram homens de ação: senadores, conselheiros do Príncipe, magistrados. Eles ocupavam funções políticas. Isso significa que essa segurança interior terá que ser conquistada no contato com o mundo, no meio das rivalidades e das ambições, das intrigas e dos jogos perigosos do poder. O aço da segurança interior se forja no fogo da ação política. O estoicismo será, por conseguinte, uma ética da serenidade na ação, o que vai requerer coragem e perseverança. No meio da insegurança generalizada do mundo exterior, será preciso manter uma segurança interior absoluta.

A tranquilidade absoluta da alma não é inata para ninguém. Ela é alcançada seguindo um programa de exercícios espirituais que terão de ser praticados com aplicação, constância e regularidade. Os estoicos vão distinguir quatro grandes áreas que designarão as fontes possíveis de perturbações, preocupações ou angústias.

Existem, em primeiro lugar, os eventos externos. Numa só palavra: são todos os dramas e as catástrofes que podem ocorrer. Temos que encontrar uma experiência de pensamento que possa nos ajudar a lutar contra o distúrbio surgido da representação do infortúnio. Porém, não são apenas os eventos externos que nos desestabilizam, há também movimentos internos: os desejos, os temores, as esperanças e as vontades. Será preciso encontrar uma experiência de pensamento para controlar estes movimentos da alma que me levam a desejar isso, a desesperadamente querer evitar aquilo, a buscar com paixão uma terceira coisa.

Os estoicos definem uma última área: a ação. Enquanto cidadão, enquanto trabalhador, enquanto intelectual, eu ajo, empreendo, construo. O que então ameaça minha estabilidade interior é o fracasso dos meus empreendimentos, o colapso dos meus projetos. Será necessária uma experiência de pensamento que me permita não ficar perturbado pelas derrotas.

Finalmente, a última fonte de angústia será constituída pela perspectiva da morte, este nada que me aguarda inexoravelmente. Pois mesmo que eu consiga não me deixar mais impressionar pelas minhas representações, não ser mais frustrado nos meus desejos ou não ficar desanimado nos meus empreendimentos, a morte parece ser o derradeiro obstáculo.

Portanto, a ética estoica vai consistir na construção de quatro grandes seguranças: segurança da representação, segurança do desejo, segurança da ação e, enfim, segurança diante da morte. A construção destas seguranças internas, a edificação do que os estoicos chamam de “fortaleza interior”, vai exigir exercícios espirituais que correspondam a essas tantas experiências de pensamento.

Os estoicos vão elaborar uma primeira série de experiências de pensamento para neutralizar a violência das representações exteriores. Quando uma representação dramática nos é trazida de fora (os exemplos tomados são sempre os mesmos: o luto, a catástrofe, a ruína), os estoicos dizem que precisamos controlar o discurso interior que se forma na ocasião desta representação. O que é chamado aqui de “discurso interior” é o conjunto dos julgamentos com os quais eu qualifico o que me acontece. Ocorre que, para os estoicos, meu estado afetivo depende na verdade destes julgamentos. Se estou infeliz, é porque julgo: “o que me acontece é uma desgraça”; se estou angustiado, é porque penso: “o que acabei de saber é terrível”; se estou com medo, é porque acredito: “o que me ameaça é perigoso”. É por isso que é preciso controlar tais julgamentos implícitos que estão dentro de mim por meio de uma experiência de pensamento, pois são eles o verdadeiro gatilho, a verdadeira causa dos meus ânimos. É preciso conseguir substituir ao julgamento “é um infortúnio” outro julgamento, como por exemplo: “isso não depende de mim, então não é uma coisa ruim”. A distinção entre “o que depende de mim” e “o que não depende de mim” é muito importante em Epíteto. Ela não deve ser entendida no sentido fraco, mas no sentido forte. Temos de nos perguntar: o que depende completamente de mim e o que independe? Precisamos reconhecer que tudo o que acontece no mundo depende de um concurso de circunstâncias que me escapa. Minha saúde está à mercê de um vírus ruim, meu corpo nunca está fora de alcance de um acidente. Minha reputação está nas mãos dos outros, que hoje me bajulam, mas podem me trair amanhã. Minha sorte depende de inúmeros imponderáveis. Finalmente, meus parentes próximos também são vulneráveis e mortais. Qualquer coisa, afinal de contas, na medida em que é levada pelo grande turbilhão do mundo, é frágil e perecível. Dinheiro, saúde, honrarias, relações sociais: nada disso tudo depende nem um pouco de mim.

Mas o que depende completamente de mim é o sentido que vou dar ao que me acontece. Acordo com uma febre ruim; fico sabendo que estão espalhando sobre mim rumores insultantes, o tempo está ruim hoje, roubaram-me objetos que me eram caros. Nada disso tudo depende de mim, mas o que depende totalmente de mim é a exclamação: “que infortúnio!” Se não controlamos o que acontece conosco, somos os mestres absolutos do sentido que damos ao que acontece conosco.

Qual é justamente o sentido que se pode dar às catástrofes que ocorrem, aos infortúnios que nos afligem? É um ponto importantíssimo, pois provoca uma ruptura radical na interpretação do estoicismo. Se a experiência de pensamento se restringe a substituir o julgamento: “é um infortúnio” o julgamento; “isso não depende de mim, então é indiferente”, ela é um pouco decepcionante. Se nada depende de mim, por que continuar agindo, lutando pelos outros, combatendo a injustiça? Será que essa experiência de pensamento leva à resignação, como pensam muitos críticos do estoicismo? No entanto, como já falamos, os estoicos eram homens de ação. Mas para que se envolver e lutar se acho que tudo o que ocorre comigo é indiferente? Existe na verdade um recurso secreto nessa experiência de pensamento.

O que depende totalmente de mim, como dissemos, é o sentido que dou aos eventos. Recuso-me a dar ao que acontece comigo o sentido de um infortúnio, de uma catástrofe. Tampouco vai significar um desprendimento, um desinteresse. Não se trata de dizer: não se pode dar nenhuma importância aos eventos exteriores, porque de qualquer jeito eles não dependem de mim. É preciso conseguir inverter o sentido dos eventos e dizer a si próprio: o que acontece comigo não é um infortúnio, mas um exercício; não é uma catástrofe, mas um desafio. Para explicar este ponto capital da experiência de pensamento estoica, podemos evocar aqui uma imagem frequentemente usada: a do professor de ginástica.
Um professor de ginástica logo distingue entre seus alunos os que são incapazes e os que têm talento. Dos primeiros, ele quase nada exige e os deixa de bom grado devanear à beira do estádio. Os segundos, no entanto, ele os treina todo dia, é deles que ele vai exigir os exercícios mais dificeis. Então, temos que pensar que Deus é para os homens como um professor de ginástica. Isto é: àqueles que podem realizar com perfeição a perfeição ética da humanidade, ele vai enviar infortúnios para exercitá-los e testar sua resistência. Quando um incidente ocorrer, portanto, em vez de exclamar: “que infortúnio!”, tenho que dizer: “é um bom teste que me é proposto, vamos ver agora se estou à altura”.

Epíteto tomava o exemplo da famosa varinha de Hermes, que transformava tudo o que tocava em ouro. Igualmente, o sábio transforma as misérias da existência em ocasiões para treinar e endurecer. Ele então pode exclamar: “Tragam-me o luto, inflijam-me doenças, façam com que eu tenha reveses, com que eu sofra injustiças. Aguardo, firme e forte, prontinho para levantar a cabeça de novo, e assim tornar-me-ei mais forte, mais justo, mais humano, mais sólido”.

Considerei até então antes as representações negativas, mas posso me deixar impressionar também com imagens radiantes que me remetem à minha própria mediocridade. A beleza de certos rostos pode fazer com que eu fique desesperado com minha própria imperfeição; a ascensão social dos meus vizinhos pode me passar uma imagem triste da minha condição. Como se sabe, a glória de uns sempre faz o desespero de outros.

Contra todos esses ressentimentos da existência, para se defender das paixões derivadas do ciúme e da inveja que podem turvar a tranquilidade interior, os estoicos, e mais especificamente Marco Aurélio, elaboram uma experiência de pensamento que podemos chamar de “decomposição das representações”. Nesta experiência, trata-se na verdade de analisar as coisas que me fascinam, me perturbam, os seus componentes materiais mais elementares, e de antecipar os processos de corrupção que os roem secretamente. Forneço alguns exemplos para tornar as coisas mais claras.

Por exemplo, diz Marco Aurélio, se você cruzar com um notável que carrega na toga uma fitinha vermelha simbolizando uma distinção honorífica (como a laticlave, que é o equivalente romano da condecoração francesa Légion d’Honneur), não se deixe invadir pelo ciúme ou pela inveja. Pense que o que você está vendo não é o símbolo de sua inferioridade social. O que está vendo é um pedacinho de tecido vermelho. O quê, exatamente? Pelos de carneiro tingidos com o sangue de uma concha. Pense também que a lã vai desfiar, que a cor vai desbotar. Então, será que é realmente razoável ficar com ciúme de alguns pelos de carneiro? E se você passar em frente a mesas cheias de pratos deliciosos aos quais você não tem direito, mas que excitam seu apetite, em vez de se deixar levar por uma vontade ruim, pense apenas: o que está aí nessa mesa são corpos de pássaros mortos, cadáveres de mamíferos, carcaças de peixe em plena decomposição. Se você avistar um corpo magnífico que de repente lhe devolve uma imagem de um ser feio e imperfeito, pense que o que você está vendo não é nada além de um saco de lama e de sangue; lembre bem que o corpo é um processo orgânico que se recompõe o tempo inteiro e acaba se esgotando; procure representar o esqueleto e o crânio, assim como a feiura repugnante dos órgãos que o mantêm vivo. Nestas experiências de pensamento descritas por Marco Aurélio, trata-se, consequentemente, de ir além do brilho colorido da representação para proceder à análise de seu conteúdo, um conteúdo decomposto na sua definição material e que detalha os componentes elementares das coisas. Trata-se também de antecipar um processo de decomposição que está em curso em qualquer coisa, e de se representar antecipadamente o apodrecimento, a decomposição, a corrupção.

Consegue-se assim despir finalmente a representação das paixões objetivas que lhe davam seu brilho. Só resta diante de nós, em vez de símbolos deprimentes, uma valsa triste das moléculas elementares. Festins, belos rostos, corpos magníficos, cenários de sonho: tudo nessa experiência de pensamento de fato se dissolve, tudo se deixa decompor em partículas, em elementos dispersos.

O que é particularmente interessante nessa experiência de pensamento é o papel ali desempenhado pela ciência natural. Para desmistificar a representação, o sábio vai procurar a ajuda de todo um saber dos processos naturais, das composições químicas e do ciclo dos elementos. Quero dizer assim que estamos muito longe da psicologia contemporânea. O que a psicologia propõe a cada um como ajuda para superar ressentimentos, decepções, preocupações, é o questionamento com base nas histórias pessoais, recolocando o sujeito na perspectiva de suas alegrias ou de seus pesares infantis, reproblematizando a partir de uma ciência da interioridade e do desejo íntimo.

Nos estoicos, para superar a perturbação que nasce das representações, o conteúdo destas não é interiorizado, pelo contrário, exteriorizado. Não se analisa o conteúdo das representações tentando retomá-lo a partir de sua própria história interior, mas reinscrevendo-o no seu destino material e num ciclo cósmico dos elementos. Com isso terminamos a primeira área.

A segunda grande série de exercícios agora diz respeito ao desejo. Trata-se desta vez de trabalhar não mais sobre representações que me vêm de fora, mas sim sobre afetos internos que me conduzem, estes movimentos me levando a desejar determinadas coisas ou a temer outras, nestas paixões que me envolvem. Estas procuras, estas buscas podem ser frustradas, pois sua satisfação nunca é garantida.

Neste ponto, podemos distinguir duas experiências de pensamento diferentes. A primeira consistirá em se livrar de todos os desejos medíocres que invadem a existência e cuja satisfação é vã. Para tanto, os estoicos praticam o exercício do último dia. Trata-se simplesmente de nos darmos conta da pobreza de muitos dos nossos desejos, obrigando-nos a pensar todo dia como o último de nossa vida. Esta perspectiva da nossa morte iminente que nos forçamos a adotar pode nos parecer deprimente e angustiante. Mas os estoicos asseguram que, pelo contrário, ela permite intensificar a vida e desejar apenas coisas essenciais. Uma das maneiras de pôr ordem na sua existência e de se concentrar no essencial seria me perguntar, no momento em que me deixo levar por este ou aquele desejo: “Você aceita morrer desejando isso, você está pronto para aceitar que isso seja seu último desejo?”.

Precisamos entender que não se trata absolutamente de um exercício mórbido. Praticar o exercício do último desejo é aceitar fazer a triagem entre os desejos acessórios, fúteis, vãos e os desejos essenciais; significa discernir em si o que constitui seu projeto fundamental de existência e querer se fundir nele. Ao desejar determinada coisa, preciso falar para mim cada vez: “Vão dizer de mim: ele morreu desejando isso”. Se meu desejo passa no teste com sucesso, é porque ele exprime uma verdade mais autêntica.

Uma segunda experiência de pensamento consiste em acoplar cada um dos meus, desejos a uma verdade fundamental. Retomarei aqui a fórmula de Epíteto: “Cada vez que você deseja determinada coisa, que você teme determinada outra, diga: desejo determinada coisa, mas quero, sobretudo, que as coisas aconteçam como elas acontecem”. Aí, de novo, é preciso tomar cuidado para não interpretar este preceito rápido demais. Não se trata de aceitar de antemão se submeter com resignação à fatalidade. Os exemplos tomados por Epíteto nos permitem entender melhor esta nova experiência de pensamento. Epíteto diz: se você tem uma paixão pelas cerâmicas, diga mesmo ao olhar para elas: “eu gosto de cerâmicas, ou seja, de objetos frágeis que se quebram com facilidade”; se você é particularmente apegado ao seu filho, diga mesmo: “aquele que amo é um ser humano, ou seja, um ser mortal e vulnerável”. Temos, portanto, em Epíteto, o exercício seguinte, bastante incrível e que pessoalmente considero cruel: “Cada vez que você beija um ser amado, diga para você mesmo: amanhã, você vai morrer”. No entanto, não se trata com esta experiência de se desprender de seus desejos e de seus objetos, como se eles fossem ruins. Afinal de contas, a paixão pelos belos objetos ou o amor pelos seus filhos não são em si perigosos ou condenáveis. Trata-se exatamente de trazer seus desejos à razão. Não são nossos desejos que são ruins; porém, o objeto de nossos desejos é, por natureza, simplesmente perecível e frágil. Então posso muito bem desejar que os seres que eu prezo gozem de boa saúde, que os objetos aos quais sou apegado durem o maior tempo possível. Contudo, desejar que os seres que amo sejam completamente protegidos contra todas as doenças ou que os objetos que me são caros sejam absolutamente garantidos contra qualquer alteração é desejar o impossível – e não é justo, porque a fragilidade e a vulnerabilidade fazem parte de sua definição.

Para permanecer sereno, é preciso então desejar que determinado objeto esteja em determinada relação comigo, mas esse desejo tem de ser baseado numa vontade mais fundamental: desejo que determinado ser esteja nesta ou naquela disposição, mas, racionalmente, quero que lhe aconteça tudo o que está em conformidade com sua natureza.

A terceira grande área de experiência de pensamento tange ao domínio da ação. Qual experiência de pensamento vai permitir que eu permaneça calmo e tranquilo no meio das responsabilidades que caem sobre mim quando preciso tomar decisões importantes e graves que comprometem o futuro ou quando estou numa situação de concorrência para conseguir um cargo? Os estoicos se ativeram particularmente a definir exercícios de pensamento relativos a esta área, porque, mais uma vez, eles não viviam retirados da sociedade, mas participavam das grandes lutas políticas de sua época.

Um dos primeiros exercícios propostos é chamado de “exercício matinal”. Todo dia de manhã, ou quando um longo dia de trabalho se apresenta, através deste exercício se representa muito claramente o que a gente pretende realizar, mas sobretudo garante-se que esta exposição seja acompanhada de todos os aborrecimentos imagináveis que podem surgir, de todos os empecilhos que podem aparecer.

Registro aqui uma série de exemplos encontrados em Epíteto ou Marco Aurélio: se você for às termas, pense que vai respingar água em você; se você for para a rua, você aceita que esbarrem em você; se você deve participar de uma reunião importante, prepare-se para enfrentar a perfídia de seus adversários; se você tomar uma decisão, aceite a ideia de que pessoas ficarão descontentes. Trata-se de antecipar sistematicamente as dificuldades encontradas na ação. Os estoicos falam em “presunção dos males” (praemeditatio malorum em latim). É preciso entender que essa antecipação comporta dois aspectos: trata-se de dizer a si mesmo, a cada ação empreendida, que as dificuldades são ao mesmo tempo possíveis e inevitáveis.

Representar-se uma dificuldade como uma possibilidade e preparar-se para ela funcionará como uma prevenção antecipada contra o efeito surpresa. Todavia, é preciso se representar as dificuldades como inevitáveis, porque a sociedade é composta de gente ignorante, sem educação, covarde, ambiciosa, egoísta ou perversa, e não se pode exigir de um egoísta que ele prefira o bem comum ou de um covarde que se mostre corajoso: cada um realiza sua natureza. Além disso, a sociedade é um conjunto complexo e sou obrigado a fazer escolhas arbitrárias ou a tomar decisões cujos efeitos me escapam. Está, portanto, na ordem das coisas que qualquer ação seja emperrada, impedida, desviada, deformada. Graças a esse preparo mental, ao deparar com uma dificuldade, tratar-se-á então de dizer a si próprio ao mesmo tempo: “Eu previra isso”, mas também: “Está na ordem das coisas”.

Encontramos em Sêneca uma versão interessantíssima desta experiência de “presunção dos males” que revela um recurso secreto. Um de seus discípulos, Lucilius, escreve-lhe explicando que está aguardando o resultado de um processo cujo desfecho é incerto e que esta espera o faz mergulhar na ansiedade. O mestre estoico responde propondo-lhe uma experiência de pensamento: ”Você precisa dizer a si mesmo que você já perdeu o processo e permanecer muito tempo nesta representação”. Vocês podem ver que nessa experiência um fracasso é representado não somente como possível, mas como desde já seguro e certo. Nesta nova versão do exercício, é preciso agir como se o pior já tivesse acontecido.

O propósito deste exercício é duplo. Primeiro, ao me representar o pior, dou-me conta de que a medida do meu fracasso é uma medida finita e que a imaginação do fracasso é mais terrível que o fracasso real. Represento-me friamente meu processo perdido e todas as suas consequências. Será que por causa disso o céu perdeu sua cor ou meu coração parou de bater? Nunca é o fim do mundo. Segundo – e é o que eu chamava de recurso secreto desta experiência de pensamento -, uma vez bem preparado a perder tudo, ou melhor, uma vez convencido de que eu já perdi, aí posso batalhar, com maior lucidez. De fato, meu espírito não estará mais perturbado pelo temor e pela esperança, meus julgamentos não estarão mais alterados pela angústia da perda, e não me precipitarei então nas armadilhas preparadas para minha preocupação. Convencido de antemão de ter perdido, disporei de uma energia pura. A verdadeira força, para os estoicos, sempre está do lado de quem está disposto a perder tudo. Os olhos secos do desespero são os mais clarividentes. Estando preparado a perder tudo, tenho as melhores chances de ganhar.

Uma segunda experiência de pensamento muito importante na área da ação é aquela do “papel”. Os estoicos propõem a seguinte experiência: quando você estiver no Congresso, não diga que você é senador, mas que você desempenha este papel; quando você estiver com seus filhos, não diga que você é o pai deles, mas que você desempenha o papel de pai; quando você estiver com o imperador, não diga que você é conselheiro, mas que você desempenha o papel de conselheiro. Essa experiência de pensamento na qual você sempre precisa dizer a você mesmo no meio da ação que está desempenhando um papel, que você é um personagem, porém, em nenhum momento se identifica com sua função, tem como objetivo produzir três efeitos diferentes.

Primeiro, ela permite separar totalmente o dever ligado à função do interesse pessoal. Encontramos assim nas Entrevistas de Epíteto a evocação de vários diálogos encenando um senador estoico durante o reinado de um imperador tirânico e sanguinário. Seu colega lhe diz: “Não vá para o Congresso hoje, a convocação é uma armadilha, o imperador quer exigir de nós que demos falsas declarações”. O estoico responde: “Eu vou, porque faz parte do meu papel e direi a verdade”. Seu colega replica: “Mas o imperador vai prender você, ou pior, mandar executá-lo”. Ao que o senador retruca: “Se ele considera que faz parte do papel dele prender ou mandar executar magistrados honestos, é problema dele; no que me diz respeito, cumprirei os deveres ligados à minha função”. Numa outra ocasião, um colega lhe pergunta: “Você vai à festa de hoje à noite oferecida pelo imperador?”. O estoico responde: “Impossível, visto que o imperador nos força a fazer palhaçadas que insultam a dignidade de nossa função. O papel que tenho no Estado me impede de participar de tais cerimônias grotescas”. “Mas”, contesta o outro, “o imperador vai ficar magoado e se vingará de você”. E o estoico: “O que ele me fará sofrer é outra história; se meu papel fosse o de uma dançarina ou de um cômico, eu iria a essa festa; no entanto, a dignidade do papel que desempenho me impede de ser ridículo”.

O que é notável nesses diálogos relatados por Epíteto é que o problema nunca é: quais serão para mim as consequências, benéficas ou nefastas, da ação, mas: “Será que esta ação faz parte do papel que me foi atribuído no jogo social?”.

O segundo efeito dessa experiência de pensamento é justamente um deslocamento da atenção: não nos concentramos mais no resultado da ação, mas na sua forma. Este exercício, de fato, nos leva a nos considerar como o ator de nossa própria existência, e não como seu autor. Se digo para mim mesmo que estou desempenhando um papel, empenho-me sobretudo em interpretá-lo da melhor maneira possível. Quaisquer que sejam os resultados de minha ação, devo me preocupar unicamente em saber se estou desempenhando corretamente o meu papel. Os estoicos estão dizendo: “No fundo, você não é responsável pelo texto, somente pela interpretação”. A maneira como as coisas evoluem, como os eventos vão se transformando, as consequências diretas e indiretas de nossos atos, tudo aquilo depende demais de circunstâncias externas. Minha única responsabilidade é de estar à altura do papel que aceitei e de cumprir os deveres ligados a cada função: mostrar solicitude quando estou no papel de pai de família, franqueza quando estou no papel de conselheiro, rigor quando estou no papel de magistrado.

O último efeito desta experiência de pensamento é que ela torna as mudanças de estatuto mais fáceis para mim. Apartir do momento em que não me identifico mais totalmente com minha função, considero que, se a vida me obrigar a mudar de profissão, não devo me considerar como esvaziado de minha identidade. Em vez de se dizer: “Eu era tudo e não sou mais nada”, é preciso se dizer: “Estou mudando de papel, vamos ver se estarei à altura do próximo e se eu saberei interpretá-lo corretamente”.

Parece que estamos preparados para qualquer coisa agora e que mais nada pode perturbar nossa serenidade. Todos estes exerácios espirituais, todas estas experiências de pensamento vão, com efeito, no mesmo sentido: para entendermos que, diante da grande insegurança do mundo, a única segurança possível é interior e que as únicas verdadeiras muralhas possíveis contra as ameaças são fortalezas espirituais.

Continua a existir, todavia, uma última causa de perturbações que pode parecer irremovível: a morte. Que experiência de pensamento poderia fazer com que a dominássemos? Uma primeira maneira, muito clássica, consiste obviamente em neutralizar essa representação horrível, rejeitando a morte para o lado de uma fatalidade superior que nos escapa inteiramente. Nossa angústia se revela então irrisória e vã, a morte sendo a lei universal da vida contra a qual seria idiota se insurgir. O corpo é corruptível e, ao se apagar e se dispersar, ele realiza sua essência. A morte é uma necessidade natural.

Ocorre que esses argumentos são conhecidos e podem ser encontrados em várias sabedorias. A especificidade estoica consiste em transformar a morte numa cúmplice da nossa segurança interior em vez de numa ameaça. Encontramos de fato uma experiência de pensamento na qual a morte vai ser retratada como um refugio, um socorro. A ideia do “papel”, lembremos, exigia que cada um se comportasse antes como um ator que como um autor de sua vida. Mas o que vai propiciar à alma uma segurança superior é a possibilidade a todo instante de poder sair de cena, de deixar o teatro do mundo, o que significa: se matar. Se eu achar realmente meu papel difícil ou humilhante demais, sempre é possível fazer a reverência e sair matando-me. Nos estoicos, portanto, o suicídio será pensado como esta possibilidade constante e tranquilizadora de poder acabar com a comédia de máscaras quando quiser. A morte então não é mais aquele grande buraco negro terrível cujo horror precisamos controlar graças a um trabalho de representações, mas se torna uma segurança contra o horror da própria vida. Sêneca, em muitas cartas, evoca esta segurança da morte: uma neutralidade imóvel, uma eternidade tranquila que nos é sempre oferecida.
Porém, existe ainda nos estoicos uma última experiência de pensamento, realmente impressionante, na qual se trata desta vez de adotar, dentro da vida, a própria perspectiva da morte, de poder lançar sobre nós mesmos e sobre o mundo um determinado olhar: o olhar vertical, absolutamente sereno e nítido, da morte eterna, de olhar para nós mesmos, portanto, com os olhos da morte e de adquirir com este espetáculo uma serenidade definitiva. Essa experiência de pensamento pode parecer um pouco enigmática e eu gostaria de desenvolvê-la um pouco aqui. Que olhar vertical é esse afinal?

O que chamo aqui de “olhar da morte” se adquire pela aprendizagem das ciências da imensidão e do infinito. Os exercícios que evoquei há pouco (decomposição material) convocavam um saber dos processos moleculares ínfimos (era o exemplo da condecoração que era apenas pelos de carneiro tingidos com o sangue de uma concha). Conseguíamos então desmistificar as representações decompondo-as nos seus constituintes primordiais por meio de uma análise microfisica. Desta vez, serão as ciências cósmicas, os saberes dos espaços infinitos e das eternidades estelares que vão ser convocados. Por exemplo, diz Sêneca nas suas Questões naturais, é preciso praticar de maneira assídua ós saberes do infinitamente grande, aprender a formação da Terra, dos oceanos e das montanhas, apreender a gênese dos universos, a fim de entrar num tempo que não é mais na medida do homem: o tempo imenso das revoluções estelares ou das formações geológicas. Vivenciar este tempo é sentir então que nossa existência é um grão de areia, que este mundo que nos cerca é um movimento de pálpebra. Elevemo-nos acima de nós mesmos e do mundo e tudo nos parece microscópico e pueril. Mas este olho desde o qual olhamos para nós mesmos, partícula ínfima, e para este mundo, agitação minúscula, participa de uma eternidade branca: este olhar vertical é o olho da eternidade e da morte. Sêneca faz desta experiência espiritual muito peculiar uma descrição completa nas suas Questões naturais, e ele descreve longamente este olhar que sobe vertiginosamente acima de si e do mundo: olhar sereno, desprendido do mundo e de si mesmo, desprendido da vida, e encontrando na eternidade imóvel um elemento de segurança definitiva.

Escolhi expor aqui as experiências de pensamento estoicas, porque são as mais elaboradas. Tomei muitos desses exemplos emprestados da aula que Michel Foucault ministrou em 1982 (na obra A hermenêutica do sujeito, em excelente tradução para o português de Salma Tannus Muchail e Marcio Alves da Fonseca) e do conjunto de escritos de Pierre Hadot sobre a filosofia antiga. Outros exemplos foram construídos diretamente dos textos de Sêneca, de Epíteto ou de Marco Aurélio.

Como indiquei no início desta conferência, as outras escolas de filosofia propunham experiências de pensamento com um estilo muito diferente. Os céticos, por exemplo, praticavam o que eles chamavam de suspensão do julgamento (epokhê em grego) e que consistia em nunca se pronunciar sobre a verdade ou a falsidade do que podiam pensar, ver ou sentir. Para ser feliz, achavam, é preciso nunca ter certeza de nada. A infelicidade começa com a afirmação de uma verdade.

Os epicuristas, por seu lado, vão elaborar experiências de pensamento diferentes. A grande ideia de Epicuro é a da simplicidade da felicidade. A verdadeira felicidade é infinitamente simples, diz Epicuro, visto que se encontra no puro sentimento de existir. Porém, é esta simplicidade que a torna frágil, já que a pura plenitude do sentimento de existir é logo encoberta por falsos prazeres que nos condenam a uma corrida infernal, porque a satisfação destes gera uma nova frustração. As experiências de pensamento dos epicuristas vão assim tentar assegurar esse puro prazer de existir, tornando-o indefinidamente acessível. Podemos nos interrogar sobre o propósito de voltar hoje em dia a essas técnicas antigas, que podem parecer totalmente defasadas no nosso mundo contemporâneo.

As revoluções nas técnicas de comunicação e de troca de informações e de imagens, as grandes revoluções da informática e da telefonia celular, a multiplicação dos jogos de vídeo transformaram as relações humanas. Seu uso intensivo produziu no mundo ocidental desenvolvido uma nova cultura e novos valores, que favoreceram o surgimento de novas subjetividades. Quero dizer com isso que estamos assistindo hoje a uma mutação muito profunda na maneira como os indivíduos contemporâneos se relacionam consigo e com os outros, constituem sua identidade, se representam sua própria história e a dos outros.

O sujeito da ultramodernidade é um sujeito essencialmente permeado por fluxos: fluxos de informação, fluxos de imagens, em permanente renovação. Estes fluxos são plurais, múltiplos. Eles se organizam, se diferenciam, se encontram em redes. A identidade do indivíduo ultracontemporâneo se define pela sua participação em uma certa rede de fluxos. Um banqueiro, um professor, um artista, um arquiteto, uma enfermeira: todos são conectados e todos participam de redes, mas de redes diferentes. A fórmula da ultramodernidade é: diga-me quais são as tuas conexões e te direi quem és. Os grandes sistemas de distribuição de mercadorias e de imagens procuram fazer com que nós participemos desses movimentos e procuram acelerar em cada um de nós a circulação desses fluxos.

O risco desta ultramodernidade é que daqui a pouco o indivíduo se torne apenas um ponto de passagem, um simples nó da teia e que ele então se liquefaça totalmente. Em outras palavras, ele pode vir a ser apenas um ponto de passagem e de redistribuição desses diferentes fluxos, e sua própria identidade pode se tornar fluida.

Se resolvi evocar essas experiências de pensamento peculiares que são os “exercícios espirituais” acertados pelas sabedorias antigas, é porque me parece que elas constituem justamente uma possibilidade de resistência contra as possíveis derivas das sociedades ultramodernas. Pois essas experiências de pensamento têm como função essencial dar ao sujeito uma certa consistência, uma certa espessura. Um exercício espiritual é primeiro e antes de tudo uma maneira de estar presente para si: que forma e que sentido você quer dar para sua existência, quais são os hábitos que você quer adotar e os de que quer se livrar? Esses exercícios continuam sendo maneiras de parar, de reter, de barrar. O exercício espiritual serve de barragem ao fluxo das representações, ao fluxo das emoções: para questioná-las, analisá-las, triá-las. Diante do fluxo incessante do mundo, trata-se de manifestar uma capacidade de retiro dentro de si mesmo. Entendemos bem também a que ponto essas experiências de pensamento privilegiam a lentidão, a paciência, a regularidade, a repetição, a memória, todos estes elementos sendo contravalores para o mundo contemporâneo. Os exercícios espirituais de transformação de si pressupõem de fato um esforço continuo, uma progressão lenta, uma disciplina impecável. O sujeito que se constrói assim é um sujeito sólido no que Zigmunt Bauman chama as “sociedades líquidas”. No mundo contemporâneo, tudo é movediço, tudo se transforma sem parar, nada dura. É uma corrida ininterrupta e sem fim.

Neste mundo da circulação globalizada, neste turbilhão generalizado de imagens, informações, mercadorias e sinais, os exercícios espirituais constroem um ponto de estabilidade, uma consistência ética. O sujeito é aquele que resiste ao mundo.

Referências bibliográficas

AURÉLIO, Marco. A soi-même pensées. Paris: P. Maréchaux, Rivages Poche, 2003.

EPÍTETO. Entretiens. Paris: E. Bréhier, Gallimard, 1993.

.Manuel. Paris: P. Hadot, Livre de Poche, 2000.

FOUCAULT, M. L’herméneutique du sujet. Paris: F. Gros, Gallimard, 2001.

HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Albin Michel, 2002.

SÊNECA, L. A. Entretiens, Lettres à Lucilius. Paris: P. Veyne, Robert Laffont, 1993.

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