2009

Delicadeza

por Maria Rita Kehl

Resumo

Por que escolher a delicadeza como parte essencial da condição humana? Por não ser uma qualidade intrínseca do humano. Isso é justamente o que a faz necessária. A delicadeza não é causa de nossa humanidade. É efeito dela. Não é meio. É finalidade. O homem não é necessariamente delicado – daí a urgência de se preservar, na vida social, as condições para a vigência de alguma delicadeza.

Erra quem chama os atos repugnantes de desumanos. O homem, não o animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade, ao passo que o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que ama, sejam pessoas, coisas, lugares ou lembranças. Ao perguntar a um homem por que ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dirá algo assim: eu o fiz porque nada me impediu. O abuso da força é um gozo ao qual é raro renunciar. Além disso, o homem é capaz de indiferença, essa forma silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil do que ele – por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade –, sem perceber que com isso atropela também a si mesmo.

Pode-se usar o naufrágio como metáfora do humano hoje. Proponho acrescentar a essa a metáfora do atropelamento, que expressa perfeitamente a relação do sujeito contemporâneo com o tempo. Não por acaso a palavra já está incorporada à linguagem cotidiana para expressar os efeitos da pressa sobre a subjetividade. Diz-se, com frequência, que os acontecimentos atropelam – mas quais acontecimentos dispõem do poder de atropelar o sujeito? Aqueles em direção aos quais ele se precipita, com medo de ser deixado para trás. A sociedade é competitiva, motivo pelo qual se mede o valor do tempo pelo dinheiro que ele pode render. Por isso dizia o professor Antonio Candido que “o capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Isso é uma brutalidade. O tempo é o tecido da vida.”


Por que escolhi a delicadeza como parte essencial da condição humana? Por não ser uma qualidade intrínseca do humano. Isso é justamente o que a faz necessária. A delicadeza não é causa de nossa humanidade, é efeito dela. Não é meio, é finalidade. O homem não é necessariamente delicado – daí a urgência de se preservar, na vida social, as condições para a vigência de alguma delicadeza.

Erramos ao chamar os atos que nos repugnam de desumanos. O homem, não o animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade: o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que ama – pessoas, coisas, lugares, lembranças. Se perguntarem a um homem por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dirá: eu fiz porque nada me impediu de fazer. O abuso da força é um gozo ao qual poucos renunciam. Além disso, o homem é capaz de indiferença, essa forma silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil que ele – por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade -, sem perceber que com isso atropela também a si mesmo.

O cientista político Renato Lessa, autor nesta mesma coletânea, utilizou o naufrágio como metáfora do humano em nossos tempos. Proponho acrescentar a essa a metáfora do atropelamento, que expressa perfeitamente a relação do sujeito contemporâneo com o tempo. Não por acaso a palavra já está incorporada à linguagem cotidiana para expressar os efeitos da pressa sobre a subjetividade. Dizemos, com frequência, que fomos atropelados pelos acontecimentos – mas quais acontecimentos têm poder de atropelar o sujeito? Aqueles em direção aos quais ele se precipita, com medo de ser deixado para trás. Deixamo-nos atropelar, em nossa sociedade competitiva, porque medimos o valor do tempo pelo dinheiro que ele pode nos render. Nesse ponto remeto o leitor, mais uma vez,[1] à palavra exata do professor Antonio Candido: “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Isso é uma brutalidade. O tempo é o tecido de nossa vida.”

A velocidade normal da vida contemporânea não nos permite parar para ver o que atropelamos; torna as coisas passageiras, irrelevantes, supérfluas. Tenho grande ternura pela lembrança de meu pai, nas viagens de carro que fazíamos na minha infância: cada vez que uma mariposa se estatelava contra o para-brisas, à noite, ele lamentava o fim abrupto daquela vidinha minúscula cujo voo errático era tão desproporcional à velocidade do automóvel. Tudo que vive é sagrado?

Corremos na intenção de não perder nada e perdemos o essencial: o desfrute do próprio caminho. A vida, no entanto, não é exatamente isso: travessia? É o que dizem os versos da bela canção de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira:

Artomove lá nem se sabe se é homi ou se é muié
Quem é rico anda em burrico

Quem é pobre anda a pé

Mas o pobre vê nas Estrada

O orvaio beijando as fulô

Vê de perto o galo-campina

Que quando canta muda de cor

Vai moiando os pés no riacho

Que água fresca, Nosso Sinhô

Vai oiando coisa a grané

Coisas que pra mode vê

O cristão tem qui andar a pé.[2]

Nossa condição pedestre talvez seja uma boa medida da necessidade da delicadeza. Em uma pequena crônica de 1915, escrita por Freud a convite da Sociedade Goethe de Berlim e intitulada “A transitoriedade”,[3] o pai da psicanálise inicia suas considerações ao descrever um passeio que fizera a pé, pelas montanhas nos arredores de Viena, durante um belo verão austríaco. Durante o passeio, fictício ou verdadeiro, um poeta que acompanhava o psicanalista teria lamentado o fato de que a chegada do inverno deveria pôr fim à beleza das flores que enfeitavam o caminho. Freud inicia, então, uma série de considerações sobre a transitoriedade, não apenas das flores e das belezas naturais, mas das mais sublimes criações humanas: lembrem-se de que a Europa atravessava então a Primeira Guerra Mundial. Ao final, conclui que a transitoriedade não diminui o valor das coisas – ao contrário, acrescenta-lhes valor. A delicadeza é possível justamente nas culturas em que a perda é parte da vida. Ao contrário, os que nada admitem perder talvez desprezem tudo o que é efêmero, frágil, transitório.

“Depois de te perder/ Te encontro, com certeza/ Talvez num tempo/ Da delicadeza…”

(Chico Buarque)

A consciência da transitoriedade é a mesma consciência do valor e da delicadeza de tudo o que existe. A capacidade de amar o transitório, como no belo poema do pernambucano Carlos Pena Filho, seria um poderoso antídoto contra as paixões agenciadas pelo capitalismo: paixões de acumulação, domínio, posse.

Quando mais nada resistir que valha

A pena de viver e a dor de amar

E quando nada mais interessar

(Nem o torpor do..sono, que ..se espalha),

Quando, pelo desuso da navalha

A barba livremente caminhar

e até Deus em silêncio se afastar

Deixando-te sozinho na batalha

A arquitetar na sombra a despedida
Do mundo que te foi contraditório,
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo o que é insolvente provisório

E de que ainda tens uma saída:

Entrar no acaso e amar o transiitório.[4]

Transitoriedade, finitude, tédio e estagnação

A finitude é o modo fundamental do ser, escreve Heidegger. “Se quisermos vir a ser o que somos, não podemos abandonar a finitude ou nos iludirmos quanto a ela. Muito ao contrário, precisamos protegê-la.”[5] O filósofo cita o poeta romântico Novalis, para quem a necessidade de filosofar decorre de uma saudade da pátria, um desejo muito humano de recuperar o sentimento de totalidade – como se fosse possível sentir-se, por toda parte, em casa. Mas justamente porque somos arremessados para fora da totalidade, justamente porque nossa condição é o desterro da totalidade, que somos impelidos a pensar, a perguntar, a buscar sempre uma centelha de infinito no meio do finito.

Além da finitude, outra condição do pensamento (isto é, da filosofia) para Heidegger é o tédio, em alemão Langeweile, literalmente “tempo longo”: “No tédio, trata-se de um espaço de tempo, de uma demora, de uma permanência peculiar, de uma duração.”[6] Como Walter Benjamin, a quem devo me referir mais adiante, Heidegger valoriza o tempo dilatado do tédio, ou do ócio, como condição do pensamento. No entanto, o filósofo não se propõe a medir a extensão desse tempo longo. Ao contrário, ele questiona os critérios de medida a partir do qual avaliamos nosso uso do tempo.

Mas o tempo deve andar mais depressa: em que rapidez? Que velocidade deve ter afinal o

tempo? O tempo possui, antes de mais nada, uma velocidade? O tempo anda evidentemente em seu curso constante e uniforme, se desenrola quase como a batida constante e uniforme do pulso de um monstro intangível: em cada minuto os seus 60 segundos e em cada hora seus 60 minutos. Mas o tempo se constitui a partir de horas, minutos e segundos? Ou será que estas não passam de medidas nas, quais nós o abarcamos, porque nos movemos, enquanto habitantes da terra neste planeta, em uma ligação determinada com o sol? Será que.só precisamos destas medidas e da uniformidade constante aí envolvida para a mensuração do tempo?[7]

O tempo nos pertence – mas, de maneira geral, não somos capazes de simplesmente estar nele. Assim “nós o matamos, o dissipamos, o desperdiçamos”.[8] Ao descartá-lo como um “tempo que passa”, ao nos fecharmos para o “fluxo da duração”, acabamos por nos instalar, não no tempo do tédio, mas no da estagnação. O tempo estagnado, “fechado para o fluxo da duração”, é o tempo do presente absoluto – tempo do esquecimento, portanto. “(…) com o passado essencial caindo em esquecimento, fecha-se o horizonte possível para toda anterioridade. O agora só pode permanecer agora.”[9] Ora: o bloqueio do passado compromete também a fantasia do futuro.

“Nada pode vir porque o horizonte do futuro está desarticulado. Bloqueio do passado e desenlace do futuro não colocam de lado o agora, mas retiram dele a possibilidade de transição de um ainda-não para um não-mais: o fluir (…) Sem a possibilidade de transição, só lhe resta o subsistir: ele tem que ficar Estagnado.”[10]

Que não se imagine, portanto, que amar o transitório é o mesmo que se entregar à velocidade aparentemente irrecusável de nosso tempo, a qual às vezes nos parece não mais um dos possíveis modos humanos de apropriação do tempo, mas uma imposição do Real. A velocidade é que pede o “bloqueio do passado e o desenlace do futuro” a que se refere o filósofo. Ao contrário, o tempo longo a que chamamos tédio – será apropriada essa denominação? – é que permite a experiência subjetiva da duração. A mesma que confere algum valor a nossa breve passagem pelo reino deste mundo.

Devo fazer então algumas considerações sobre a perda da delicadeza no mundo (ao menos o ocidental, que nos é mais familiar) contemporâneo. Carlos Drummond de Andrade já se perguntara, no fim do poema “Anoitecer”,[11] escrito ao final da Segunda Guerra:

Hora da delicadeza; gasalho, sombra, silêncio; haverá

disso no mundo?
É antes a hora dos corvos, bicando em mim, meu passado, meu futuro, meu degredo

Desta hora, sim, tenho medo.

Muitas pessoas podem imaginar que ao falar de perda da delicadeza estaremos lamentando as mudanças nos costumes, o esquecimento de certos hábitos de cortesia, a chamada má educação dos jovens, etc. Não é disso que se trata. Afinal, na segunda metade do século XIXno apogeu da grande era burguesa, o jovem Rimbaud já se lamentara em versos: (…) par délicatesse, j’ai perdu ma vie.[12]

Bem antes dele, um pensador seiscentista da estatura de Michel de Montaigne escreveu que a delicadeza (no sentido da politèsse) seria a qualidade oposta àquelas que fazem um “honêtte homme”, que deve em certas circunstâncias ser capaz de se mostrar franco, direto, quando não até mesmo rude.

Não é fácil encontrar, entre os filósofos contemporâneos, quem se dedique ao tema da delicadeza. Encontrei, por exemplo, no Pequeno tratado das grandes virtudes, de André Comte-Sponville, considerações interessantes sobre uma espécie de irmã caçula da delicadeza: a polidez. Sponville escolhe a polidez como a primeira de suas “grandes virtudes” – embora a considere uma pequena virtude (“a mais pobre, a mais superficial, a mais discutível”),[13] afirma que a polidez está na origem de todas as outras.

Mas, para o autor, a polidez é um valor ambíguo, pelo menos do ponto de vista moral. Um nazista polido não é menos terrível do que um grosseirão; talvez seja até pior, escreve, invocando a “polidez insultante dos poderosos” a que se referia Diderot, à qual corresponde a “polidez servil” dos fracos: “Seriam preferíveis o desprezo sem fraseado e a obediência sem mesuras.”[14]

“Virtude formal, virtude de etiqueta, de aparato! Aparência de virtude, somente aparência! (…) É um artifício, e desconfiamos dos artifícios. É um enfeite, e desconfiamos dos enfeites.”[15]

Mas a desconsideração inicial da polidez logo se revela um artifício retórico. O autor, mais adiante, começa a defender a polidez, justamente por seu caráter artificial, ou seja: não natural. Afinal de contas, nenhuma virtude é natural. Assim sendo, “(…) já que é preciso tornar-se virtuoso, comecemos por uma virtude modesta, acessível, ‘treinável’, que faz o homem parecer, por fora, o que deveria ser por dentro.(…) Dizer por favor, desculpe, é simular respeito. Dizer obrigado é simular reconhecimento. Aí começam o respeito e o ‘reconhecimento. A moral imita a polidez, que a imita”.[16]

A polidez não se confunde com a delicadeza, mas pode criar condições para ela. Mas sabemos que um tirano pode ser polido, assim como os mais refinados sádicos também. Por outro lado, uma pessoa excessivamente adestrada nas atitudes polidas pode perder a coragem, a autenticidade, a ousadia, características que não se opõem à delicadeza. A conclusão de Sponville merece ser citada aqui, pela fineza do estilo: “A polidez não é tudo, é quase nada. Mas o homem, também, é quase um animal.”[17]

A polidez não garante, mas ao menos tenta aumentar um pouco a distância que separa o homem do animal. Voltamos assim ao ponto de partida: é por não ser uma qualidade naturalmente humana que valorizamos a polidez, assim como a delicadeza. Essa não se confunde com a minúcia, o ornamento, a firula – formas fáceis, às vezes vazias, de arremedo da delicadeza.

Busco então outro caminho de aproximação ao tema da delicadeza. O escritor Italo Calvino escolheu, para abrir o ciclo de conferências que foi convidado a proferir, em 1985, na Universidade de Harvard, sob o título “Seis propostas para o próximo milênio”,[18] o tema leveza. Não que tenha algo contra, escreve ele, o peso e a austeridade. Apenas ponderou que teria mais a dizer sobre a leveza. Para o autor, a leveza é a substância não mortal do homem. Participa do pensamento, do espírito, da criação poética, características humanas capazes de “vencer”, ou superar, a morte corpórea. Perseu, por exemplo, usou sandálias aladas para cortar a cabeça de Medusa. A leveza do gesto imaginado, no entanto, não exclui o peso do ato de decapitar o monstro.

Para Calvino, a leveza não seria a qualidade do que é vago e aleatório, mas o que é preciso e determinado – imaginemos, mais uma vez, a exatidão do ato de Perseu ao cortar com um só golpe a cabeça de Medusa antes que ela acabasse com ele. Trata-se de ser leve “como o pássaro, não como a pluma”, escreve Calvino, citando Paul Valéry.[19]

Mas a leveza ainda não é delicadeza. É uma qualidade quase estética, ou pelo menos estilística. Continuo a me aproximar de meu objeto pelas beiradas. Penso que no caso da delicadeza, a modéstia que permite a um sujeito aproximar-se de qualquer outro, da mais insignificante condição, sem uma atitude abusiva não se dissocia de certa bravura do coração. “Para dar urna volta por cima”, disse o compositor brasileiro Paulo Vanzolinni, é preciso antes ser capaz de “reconhecer a queda”. Só quem reconhece a própria queda, ou a possibilidade dela, sabe ser delicado com os que caíram? Reconhecer a queda é condição da coragem para se viver perto de abismos?

O poeta e ensaísta Octavio Paz, em Tempo nublado, dedica um ensaio ao suposto sentimento de decadência vivido pelos norte-americanos no final da década de 1980, logo após a derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Paz manifestou, nesse ensaio, a esperança de que a derrota pudesse ser o começo do fim de um ciclo de dominação da “democracia imperial” norte-americana. Não me importa hoje, quase três décadas depois, se na época o autor acertou ou não seu diagnóstico; interessam-me agora as associações que ele foi capaz de fazer entre decadência e delicadeza. Octavio Paz refere-se ao triunfo do capitalismo como uma brutalidade, um “galope incessante em direção ao reino do futuro”.[20] Ora, ora: cá estamos nós outra vez às voltas com o tempo. O futuro, escreve Paz, seria urna “terra feita de urna substância evanescente: o tempo. Tão logo é tocado, o futuro se dissipa. O progresso é fantasmal”.[21] O progresso despreza o passado e atropela o presente em nome de um único tempo que, a rigor, não existe.

O progresso é brutal e insensível, desconhece o matiz e a ironia, fala através de proclamas e “Ordens, anda sempre depressa e jamais se detém. A decadência mistura suspiro e sorriso (…) É uma arte de morrer, isto é, de viver morrendo”.[22]

Saber morrer é condição para se viver do lado da delicadeza? “Filosofar é aprender a morrer”, escreveu Montaigne. Voltamos, por linhas tortas, à finitude e seu valor para o humano como “ser para a morte”. Paradoxalmente, o ensaio de Octavio Paz nos faz pensar que o valor da finitude não é tributário da aceleração que precipita os sujeitos rumo ao futuro, isto é, à morte. Muito pelo contrário. A finitude adquire valor na medida em que o sujeito desiste de se tornar “senhor do tempo”. Uma vez que faz da vivência temporal experiência. Do contrário, observa ainda Octavio Paz, a vida perde o sentido. Por trás da enorme variedade de bens que nos fazem correr como condenados – condenados a aproveitar ao máximo nosso tempo – existe o quê? “Nada, não encontro nada. Tudo são meios, tudo serve, tudo é meio para se obter – o quê?”[23] (coisas e mais coisas que não temos tempo para desfrutar…). Eis aí mais um autor que nos leva a pensar que a delicadeza depende do uso que fazemos do tempo.

Aproveitar o tempo!

Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?

Aproveitar o tempo!

(…)

Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.

Aproveitei-os ou não?

Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Álvaro de Campos)

O artista brasileiro Sérgio Fingermann faz uma articulação entre a delicadeza, o uso do tempo e a voracidade do mercado, na mesma linha do ensaio de Octavio Paz. Para Fingermann, a delicadeza “é uma posição ética. Protege o que está à margem do mercado. A ideia do valor ilimitado da expansão (expansão de dinheiro, poder, visibilidade, objetos, etc.) produz efeitos fascistas. A delicadeza protege a memória daquilo que a expansão do capitalismo destruiu”.[24]

O valor ético e estético da delicadeza reside, por um lado, na intenção de frear a máquina que expande o poder e concentra a riqueza do capitalismo (que não será superado, entretanto, através de recursos delicados) e, por outro lado, em dar lugar ao que tende a desaparecer por ficar excluído dessa lógica. O poeta inglês John Berger assim se referiu ao que fica excluído da lógica dos meios a que se refere Paz: “Os poemas, que não lidam com desfechos de nenhuma ordem, atravessam os campos de batalha, cuidam dos feridos e ouvem os monólogos delirantes de triunfantes e derrotados. Trazem consigo uma espécie de paz. Não por qualquer virtude anestesiante ou de fácil consolação, mas por conterem o reconhecimento e a promessa de que as experiências não podem desaparecer como se nunca tivessem existido.”[25]

Delicadeza e experiência

No trecho citado, reconhecemos a relação entre a delicadeza, a transitoriedade, a poesia, a memória e o valor da finitude. Chegamos agora, não numa abordagem frontal, mas pelas margens, ao filósofo que melhor compreendeu o valor da delicadeza, assim como os estragos causados por seu desaparecimento como efeito da aceleração do tempo na modernidade: Walter Benjamin.

Em “Experiência e pobreza”, escrito no período entre guerras, na Alemanha, Benjamin analisou a impossibilidade de os soldados que voltaram do front depois da Primeira Guerra transmitirem às pessoas próximas o que tinham vivido. Depois de algumas considerações sobre a velocidade dos primeiros bombardeios aéreos da história, Benjamin estabelece uma importante diferença entre experiência (Ehrfärung) vivência (Ehrlebniz) para explicar por que os soldados, cuja vida psíquica ficara limitada durante o período da guerra à atividade de “aparar choques”, tinham ficado mais pobres, não mais ricos em experiência.

Nesse ensaio, um dos mais conhecidos de Walter Benjamin, a desmoralização da experiência está diretamente ligada à aceleração da temporalidade, nas primeiras décadas do século XX. Assim como o filósofo Henry Bergson[26] e na trilha aberta por Freud, Benjamin considera que o trabalho psíquico de aparar os choques a que a vida moderna expõe ininterruptamente as pessoas – e nesse caso, a imagem dos bombardeios seria a metáfora exata – reduziria a vida psíquica (a “vida do espírito”, no dizer de Bergson) à sua dimensão mais pobre: a das funções do sistema batizado por Freud de percepção-consciência. Tanto Bergson quanto mais tarde Walter Benjamin foram unânimes em considerar que o que chamamos propriamente de vida psíquica tem a ver com o trabalho das camadas consideradas profundas da mente – o pré-consciente e o inconsciente. Esse é o trabalho responsável pela memória, que confere ao eu um sentimento de permanência ao longo do tempo, assim como de continuidade da existência. Também o devaneio, a fantasia, todas as capacidades criativas da imaginação são gestados nos sistemas pré-consciente e inconsciente.

A experiência participa dessas atividades. Ela é o que dá sentido à vida: transmite a sabedoria de um ancião em seu leito de morte, passa de geração em geração versões fantasiosas das peripécias vividas pelos antepassados, perpetua velhas lendas narradas por um contador de histórias (o “narrador” que dá título ao texto) em volta da fogueira, e as aventuras do viajante que volta à aldeia para contar suas aventuras em lugares distantes. A transmissão da experiência através das narrativas propicia um modo de estar no tempo muito diferente do que conhecemos: o sujeito que escuta uma narrativa será o mesmo a transmiti-la posteriormente. Mas, ao contar a história, sempre há de inserir parte de sua experiência na trama. Com isso, deixa de ser o “proprietário” individual de sua passagem pelo mundo. Vive-se em uma temporalidade distendida, em que a vida de cada indivíduo se liga à de seus antepassados e à de seus contemporâneos, como elos em uma delicada corrente tecida de experiências através das gerações.

Essa corrente foi bruscamente interrompida, no século XX, por dois eventos complementares: o rápido desenvolvimento da tecnologia e a Primeira Guerra Mundial, chamada de Grande Guerra pelos que sofreram seus efeitos devastadores.

O trecho seguinte é tão importante na crítica à modernidade feita pelo filósofo, que depois de “Experiência e pobreza”[27] ele o reproduziu, sem tirar nem pôr, em “O narrador”.[28] Assim ele exprime o choque vivido por quem atravessou a guerra:

Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.[29]

Em “O narrador”, a consideração sobre o “frágil e minúsculo corpo humano” exposto ao campo de forças de torrentes e explosões encerra o capítulo 1, enquanto em “Experiência e pobreza” o parágrafo seguinte a esse começa com uma ácida consideração sobre a técnica:

“Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem.”[30]

A aparente segurança fornecida pela eficácia técnica desmoraliza a experiência. A experiência não tem a força de autoridade das tradições, por exemplo: ela depende da imaginação para se sustentar, e assim permite que cada um formule sua própria versão do que foi transmitido. Mas fornece um conjunto de referências coletivas. que ajudam os indivíduos a avaliar os acontecimentos e tomar decisões diante de novas informações. Desgarradas dessas referências, as pessoas ficam ao mesmo tempo esvaziadas de sabedoria e disponíveis para qualquer coisa que lhes for oferecida ou imposta. “Pois qual o valor de nosso patrimônio cultural se a experiência não mais o vincula a nós?”[31]

(…) e aos olhos das pessoas fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que veem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.[32]

Nesses parágrafos, Walter Benjamin articula o “desenvolvimento monstruoso da técnica”, a aceleração que ela propicia, o rompimento do elo entre as gerações que fornecia sentido e continuidade à vida e, consequentemente, a perda do valor da experiência.

Embora não empregue essa palavra, penso também que esse tenha sido o filósofo que melhor avaliou as formas de sofrimento, individual e coletivo, que a perda da delicadeza trouxe às sociedades industrializadas do Ocidente. Mesmo sem afirmá-lo diretamente, a leitura de Walter Benjamin nos permite pensar que a delicadeza não é um valor que se possa cultivar sozinho; ela depende de condições que devem estar presentes na vida social. Do contrário, só sobrevive como atitude decadentista para entediados, como ornamento ou sinal de sofisticação, quando não de pedantismo.

A não ser, é claro, na voz de alguns poetas. Como contraponto à visão pessimista de Benjamin, termino com um poema do francês Boris Vian, que expressa o obstinado apego de um condenado à morte a coisas que, para ele, são preciosas e delicadas. Com lirismo e ironia, “Ils cassent le monde” (“Eles quebram o mundo”) preserva a delicadeza diante da brutalidade, salva o sujeito da dessubjetivação que pode ocorrer em situações de perda total da liberdade e afirma o amor mundi em situações em que predominam a indiferença e o ódio.

Eles quebram o mundo

Em pedacinhos

Eles quebram o mundo

A marteladas

Mas para mim tanto faz,

Para mim, não faz diferença

Ainda me sobra muito

Sobra muito para mim

Basta que eu ame

Uma pena azul

Uma trilha de areia

Um pássaro assustado

A mim, basta amar

Um capinzinho

Uma gota de orvalho

Um gafanhoto

Eles que quebrem o mundo

Em caquinhos

Sobra muito para mim

Ainda sobra muito

Terei sempre um pouco de ar

Um filetinho de vida

Um brilho de luz no olhar

E o vento nas urtigas

E mesmo se, mesmo se

Me enfiarem na cadeia

Sobra muito para mim

Ainda sobra muito

Me contento em amar

Essa pedra gasta

Esses ganchos de ferro

Onde há sangue grudado

Eu amo, eu amo

A madeira gasta da cama

O estrado e a palha

A poeira do sol

Amo o postigo que se abre

Esses homens que entram

Que avançam e me levam

Ao encontro da cor

Amo as traves compridas

A lâmina triangular

Os senhores de preto

É minha festa e me orgulho

Eu amo, eu amo

O cesto cheio de palha

Onde hei de pousar a cabeça

Ah, eu amo para valer

Me contento em amar

Um ramo de erva azul

Uma gota de orvalho

Um pássaro assustado

Eles quebram o mundo

Com seus martelos pesados

Mas ainda me sobra muito

Sobra muito para mim, meu amor.[33]

Notas

  1. Já fiz uso dessa mesma citação em crônica para a revista Teoria e Debate, do PT (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007) e na segunda parte de meu livro O tempo e o cão – a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009). 
  2. GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA. Humberto. “Estrada de Canindé” (1950). 
  3. SIGMUND, Freud. “El perecedero”. ln: Obrad completas, vol. II. Tradução de Luis Lopes Ballesteros. Madri: Biblioteca Nueva, 1976, p. 2118-2120. 
  4. PENNA FILHO, Carlos: “A solidão e sua porta” em: http://www.revista.agulha.nom.br/cpe-nao1p.html 
  5. HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão (1929-30). Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 7. 
  6. Idem, p.116. 
  7. Idem, p. 117. 
  8. Idem, p. 147. 
  9. Idem, p. 149. 
  10. Idem, idem. 
  11. ANDRADE, Carlos Drummond de. “Anoitecer”, ln: A rosa do povo. Rio de Janeiro, Record, 2002. 
  12. RIMBAUD, Arthur: “Chanson de la plus haute tour” [Canção da torre mais alta] (1872): “Oisive jeunesse, à tout asservie, par délicatesse, j’ai perdu ma vie” [Mocidade presa; a tudo oprimida; por delicadeza; perdi minha vida]. Tradução de Ivo Barroso. 
  13. COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes, (1995). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 13. 
  14. Idem, idem. 
  15. Idem, idem. 
  16. Idem, p.17. 
  17. Idem, p. 21. 
  18. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Tradução de Ivo Barroso. O escritor morreu antes de proferir a sexta das Charles Eliot Norton Poetry Lectures. As cinco primeiras foram Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. 
  19. À p. 28. Cit. VALÉRY: “Il faut être léger comme l’oiseau, et non comme la plume”. 
  20. PAZ, Octavio. Tempo nublado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1946. 
  21. Idem. 
  22. Idem. 
  23. Idem. 
  24. Sérgio Fingermann, em conversa particular com a autora. 
  25. Agradeço ao poeta Fernando Paixão a referência, em trabalho inédito, do parágrafo de John Berger. 
  26. BERGSON, Henry. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Tradução de Paulo Neves. 
  27. BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”, ln: Obras escolhidas. Vol. 1, p. 114-119. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 115. 
  28. ______. “O narrador” (1934). ln: Obras escolhidas. Vol. 1, cit., p. 197-221. 
  29. Idem, p.198. 
  30. Idem, p.115. 
  31. BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. ln: Obras escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 115. 
  32. Idem, p.119. 
  33. Livre adaptação à tradução de Ruy Proença em: Boris Vian – poemas e canções. São Paulo: Nanquim, 2001. Edição bilíngue. 

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