2007

Devemos temer a morte?

por Francis Wolff

Resumo

Apenas uma filosofia teve como objetivo principal curar o homem do medo: o epicurismo. Para Epicuro, a filosofia não teria sentido se o homem não fosse dominado por medos vazios. O medo vazio é como o desejo vazio. No medo vazio, espera-se um mal que não existe, tenta-se a todo custo fugir de um mal imaginário. No desejo vazio, tenta-se a todo custo alcançar um bem ilusório, espera-se um bem que jamais se alcança: deseja-se ser rico, mas jamais se pode sê-lo uma vez que sempre se pode ser mais rico ainda; deseja-se ser poderoso, mas não há limites para a potência e, portanto, é desejo sem fim. O desejo vazio é o desejo inquieto de desejar; é o desejo que se nutre a si mesmo ao infinito e jamais se satisfaz com objeto algum. Atingido o objetivo, eis que surge a decepção: ele não o quer mais, ou ele quer mais ainda, ou quer outra coisa.

O mesmo acontece com os medos vazios. Tais são o medo da morte e o medo dos deuses. Esses medos são vazios não porque os deuses – ou a morte – não existam, mas justamente porque os deuses – e a morte – existem!

Porque a morte é a morte, apenas morte, e porque os deuses são deuses, verdadeiramente deuses. Quem entendeu o que eles são (a morte é privação absoluta de consciência, os deuses são absolutamente sensatos) entendeu também que eles nada são para nós, que a morte nem os deuses nada podem por nós nem contra nós. Quando estamos aqui, a morte não está, quando a morte chega, não existimos mais. Se os deuses pudessem interferir na nossa vida, não seriam deuses; se eles são felizes, não podem querer se misturar com nossos negócios.

O medo da morte é, pois, tão irracional quanto o desejo de desejar: nada há a temer na morte, nada a desejar no próprio desejo. Esta é a lição de Epicuro. Pode-se contentar com isso? O filósofo quis provar que “a morte nada é para nós”, mas o medo da morte persiste. Seria bom saber que a morte não é nada, mas isso não muda em nada. É este nada que tememos. Este “nada” que seremos depois da morte não chegamos a imaginá-lo semelhante ao que fomos antes de nascer. Seríamos, pois, seres irracionais?

Nada é simples. Porque o medo da morte é, sem dúvida, irracional, vão e danoso à existência de cada um; mas é “bom”, útil e racional na vida de todos. Porque o medo nos protege desde a infância. Permite-nos evitar as armadilhas e fugir dos perigos. Sem ele, o indivíduo e a espécie não teriam sobrevivido durante muito tempo.

Finalmente, acontece com o desejo vazio o mesmo que acontece com o medo. Não seria graças a esse desejo que se nutre de si mesmo e deixa nossa existência sempre insatisfeita que desejamos viver e viver ainda? Esse desejo, por irracional e funesto que pareça, é tão racional e feliz quanto o medo da morte. O medo do nada e o desejo do nada são apenas, um e outro, o outro nome da vida.


O MEDO UNIVERSAL

Já que vamos falar do medo, quero falar realmente sobre isso. Quero, então, falar do medo mais humano, do mais constante, do mais universal de todos os medos: o medo da morte. Num sentido, é o medo menos político, ainda que, evidentemente, as desigualdades sociais sejam, às vezes, mais óbvias diante da vida e da morte, fazendo com que ele, o medo da morte, varie, como todas as outras coisas, segundo os regimes e os Estados. É também o medo menos histórico, ainda que não seja independente dos fatos históricos: certos períodos, como o da Idade Média, parecem obcecados pelo medo da morte, outros, como o nosso, parecem sobremaneira preocupados em dissimulá-lo, em uma espécie de falso pudor hipócrita. Falamos abertamente de doenças, de sofrimentos, de assassinatos, de massacres, de terror, mas da própria morte só falamos de maneira camuflada, e do medo que ela inspira — do medo que nossa própria morte nos inspira — não falamos absolutamente nada: é como se existisse uma indecência, hoje, no fato de confidenciarmos que sentimos medo de morrer, enquanto foi justamente a partir desse medo que todas as grandes religiões e uma grande parte das obras da humanidade se edificaram. Curiosa modernidade. Curioso individualismo moderno construído sobre a noção de “direitos individuais” e sobre o apaziguamento dos medos seculares. O medo da morte não tem mais direito de cidadania. Com efeito, é possível que não exista um homem sequer que não tenha sentido esse medo, qualquer que seja sua nacionalidade, sua classe social, seu sexo, sua idade.

A própria criança, na verdade, começa um dia a pensar na morte, na morte dos outros e, às vezes, infelizmente, um dia, na sua própria morte. Muitos adultos se surpreendem, então, quando ouvem seus filhos opinar, falar e se angustiar com a morte. Ah, sim: a criança pensa mais na morte do que o adulto ou até mesmo do que o idoso. Isso parece chocante: a morte não está mais próxima de um idoso do que de uma criança? No entanto, não. Pois, se o idoso está mais próximo de morrer do que a criança, a criança está mais próxima da ideia da morte. Para o idoso, a morte já é uma velha ideia que nada mais tem a lhe ensinar, é uma velha companheira com a qual ele já está bem acostumado. Para a criança, morrer está longe, mas a ideia está próxima, e um dia ela a descobre de modo assustador e desconfortável. Já que ela aprende, no exercício da razão, que morrerá, que morrerá um dia, que morrerá necessariamente. É uma ideia nova para ela, e pela qual ela se transforma em adulto. Ela pára de viver na despreocupação do momento, de um momento sem dimensão, sem passado nem futuro; ela começa a existir, quer dizer, ela começa a tomar consciência de ser, mas um ser precário e frágil, que ela não sabe de onde veio, que um dia lhe será retirado. Ela começa a pensar: “eu”. E pensar “eu” é pensar “eu sou”, “eu sou hoje”, “eu sou de maneira acidental, temporal, contingente, incerta”, o que quer dizer: “eu não estive sempre, houve o mundo antes de mim, haverá o mundo depois. Um dia eu não estarei mais. Um dia, morrerei”. E essa consciência repentina, essa nova ideia, esse novo medo, o medo da morte, de sua própria morte, torna-a provavelmente mais fraca (por se saber mortal) uma vez que, em sua despreocupação de criança, ela se achava invencível, protegida por toda a eternidade de todos os perigos, protegida por sua mãe, por seu pai; mas ao mesmo tempo esse medo a deixa mais forte, faz com se que torne adulta, consciente de si mesma.
O mesmo acontece com o homem de maneira geral. Quando o homem tornou-se “homem”? Quando a espécie humana parou de ser uma espécie hominídea como as outras, um grande macaco mais ou menos hábil, mais ou menos inteligente, para tornar-se homo sapiens? Sempre podemos falar sobre isso: seria o advento da técnica (ferramentas), da arte (as pinturas nas cavernas), da religião (os ritos) a indicar de maneira precisa a presença dos homens? Mas, se existem ferramentas, isso mostra que paramos de viver apenas o momento, isso indica que provisões são acumuladas, víveres, roupas, para um futuro que se crê incerto. Se existem as representações artísticas é, provavelmente, antes de tudo, para invocar o além, para evocar os ancestrais. E, se existem ritos religiosos, são, antes de tudo, ritos funerários, destinados a sepultar os defuntos ou a celebrar os mortos. De modo que, seja o homem, por definição, criador de ferramentas, ou artista, ou religioso, ele o é porque está, em primeiro lugar, destinado a morrer. Atrás de toda forma de expressão técnica, artística ou religiosa, está desenhada a ideia da morte. O homem é, então, o animal mortal que, como dizia Hegel, deixa de ser animal quando se lembra que é mortal. É verdade que o animal tem medo quando se sente em perigo: talvez ele tenha medo, mais ou menos consciente, em relação à sua vida, ele sabe ou sente confusamente que sua vida está ameaçada, mas não sabe, para ser mais preciso, que pode morrer. Ele não sabe então do que sente medo, exatamente. O medo da morte não é apenas um medo humano universal, mas também um medo propriamente humano, aquele que alça a animalidade do homem acima da animalidade.
É um fato. O homem, todo homem, porque é homem e desde quando é homem, tem medo da morte. Por que, entretanto, ter medo da morte? E o que é o medo da morte? Mas primeiro: o que é o medo?

DO MEDO EM GERAL

O medo é uma emoção. Isso significa que é uma experiência que se obtém, passivamente, fora de qualquer controle, que não depende de nós. Mas não é apenas uma sensação. Diferentemente de uma sensação (que nos informa passivamente sobre nosso meio ambiente, mas de maneira neutra), uma emoção nada nos informa sobre o mundo, ela nos afeta positiva ou negativamente. A emoção tem como conteúdo essa afeição subjetiva própria a ela mesma, a meu estado — e não o conteúdo informacional sobre o que objetivamente existe no mundo. Nesse sentido, ela se aproxima de uma paixão. Mas, diferentemente de uma paixão (como o amor ou o ódio), emoção é uma afeição brusca e geralmente de curta duração. Existem emoções positivas, agradáveis, outras negativas, desagradáveis. No que diz respeito às emoções positivas, podemos citar a alegria, o desejo, o contentamento, a admiração etc. Quanto às negativas, a tristeza, a raiva e, justamente, o medo. O medo é, portanto, uma emoção negativa, que é acompanhada de sofrimento.
Qual o conteúdo disso? O medo é um sentimento negativo engendrado não por alguma coisa relacionada ao presente, como a cólera, mas por alguma coisa ligada ao futuro. Temos medo, por definição, não do que acontece no presente, mas daquilo que vai acontecer, ou melhor, daquilo que pode acontecer, daquilo que pode nos acontecer — o medo sempre contém algo de incerto, ou até de desesperador, como diz Descartes. Ter medo é sentir no momento presente um desconforto em relação à ideia de que sofrerei — talvez — mais tarde de algum mal. O medo é um sentimento negativo presente causado pela ideia de um sentimento negativo futuro ou potencial.
Visto de fora, considerado friamente, o medo parece um sentimento estranho: provamos de uma dor (já que o medo é desagradável, doloroso, às vezes insuportável) enquanto nada existe, naquele momento, que possa causar essa dor. Apenas uma dor potencial — até mesmo uma dor ilusória. Por conseguinte, para que, vamos perguntar, uma dor imaginária (a dor presente causada pelo medo) que se soma a uma dor que ainda não se faz presente (aquilo que receio), e que jamais se fará? Os filósofos estóicos raciocinavam dessa maneira. O medo é uma paixão inútil, pensavam. O medo faz sofrer duas vezes. À dor que virá, ele soma uma dor presente. Por que, então, o futuro nos afetaria? Por que aquilo que é apenas potencial nos afetaria mais do que o real? Apenas o presente é real, apenas o presente deveria nos afetar. De modo que o medo é duas vezes vão: provamos, no momento presente, realmente de uma dor sem causa realmente presente, da ideia de uma dor que não é real, uma vez que não se faz presente e nunca se fará. Então, nada mais irracional do que o medo: por que a natureza inspirou no animal um sentimento negativo do futuro e do futuro em potencial? Compreendemos por que a lição de todas as filosofias terapêuticas (como a de Epicuro) será: devemos nos reconciliar com o indicativo e com o presente. Em particular, nem o medo, nem a morte nos indicam nada que seja propriamente presente.

Do MEDO DA MORTE

Com efeito, até onde se pode remontar o questionamento filosófico, o medo é uma meditação sobre a morte, um consolo para a morte. Os filósofos ou os moralistas (e mesmo os artistas) sempre disseram mais ou menos duas coisas opostas: “Lembre-se de que você deve morrer!” — o memento mori — e “Não tema a morte!”. Enquanto os homens em geral se comportam como avestruzes e preferem não pensar nisso, e sim em “divertir-se”, como diz Pascal, os moralistas (Sêneca, Epicuro, Montaigne, o próprio Pascal e outros) chamam-lhes a atenção: pensem nisso, pensem em sua própria morte; é um chamado à humildade, um chamado à nossa condição precária e efêmera, ao pó que um dia fomos e ao qual voltaremos. O moralista religioso se aproveita disso para nos fazer pensar menos em nossas alegrias terrestres e mais na preparação da nossa salvação. Mas, ao mesmo tempo, os filósofos e os moralistas nos repetem à exaustão: não se deve temer a morte. O que prova que todos os homens, espontaneamente, a temem.
Temem o que, na verdade? Há no temor da morte quatro paradoxos que fazem dele algo completamente singular e que lhe dão seu conteúdo, seu teor, sua cor particular.
Não existe medo, dizíamos anteriormente, sem incerteza: se tivermos a certeza absoluta de um mal futuro, já não se trata mais de medo, mas de desespero. Ora, a ideia da morte tem isso de particular, que é misturar uma certeza absoluta com uma incerteza também absoluta. É totalmente seguro que um dia morrerei, e absolutamente incerto quando (e onde? e como?). É isso que determina o conteúdo das primeiras angústias da criança com relação à morte: “um dia, eu também vou morrer”, ela diz. Tudo está aí. Nessas poucas palavras. Uma certeza: “eu também”; uma incerteza: “um dia”. Certeza absoluta de um fato que está por vir, incerteza absoluta de sua data. É isso que assusta: menos do que a própria morte (nem o fato, a minha morte, nem o estado, estar morto, dos quais podemos ser facilmente convencidos de que ambos não nos farão sofrer), essa absoluta certeza na incerteza. Se não estivéssemos certos de morrer, teríamos sempre a permanente esperança de prolongar indefinidamente esta vida. Inversamente, se soubéssemos que morreríamos em uma certa data, nos prepararíamos para isso sem medo e sem ilusões; e não teríamos de recear mais nada, pois, de todas as maneiras, saberíamos quando chegaria a nossa hora. É essa mistura de certeza com incerteza que só o sentimento da morte nos pode dar.

Segundo paradoxo: a ideia (assustadora) da minha morte é um pensamento extremamente simples no seu conteúdo, mas impossível na sua forma.

Estar morto, aparentemente nada mais simples de imaginar: é o mundo sem mim; tudo continua como estava, exceto pelo fato de que aqui não mais estou. Mas se eu tentar dar forma a essa ideia, não conseguirei: já que o mundo está sem mim, isso quer dizer que eu, do meu lado, estou sem o mundo. Não posso, entretanto, ser sem o mundo, uma vez que ser, para mim, é estar no mundo. E assim podemos sentir uma vertigem: eu imagino que… não estou aqui. É essa mistura singular de uma ideia muito simples de conceber racionalmente com algo totalmente impossível de imaginar que constitui a ideia da morte — e talvez seu caráter assustador. Vamos voltar a falar sobre este segundo aspecto.

O terceiro paradoxo do medo da morte é que, em um sentido, ele é arquetípico, a razão de ser de todos os medos, o medo por excelência, e em outro sentido ele é o único que parece ser vazio de si próprio. Por exemplo: se sentimos medo de altura, é porque sentimos medo de cair, de morrer por causa da queda. Se os gauleses tinham medo de que o céu lhes caísse sobre a cabeça, era porque isso poderia matá-los. Se temos medo de viagens de avião, é porque temos medo dos acidentes aéreos, que são sempre fatais. Se temos medo de determinada doença grave, logicamente é porque tememos os sofrimentos ou as dores que ela pode trazer, mas sobretudo é porque pensamos que ela pode ser fatal. As piores doenças são as chamadas fatais, como os piores pecados. Atrás do menor de nossos medos reside justamente o maior deles — o do maior dos males, a morte. Se não houvesse a morte nem o medo dela, nós ainda teríamos muitos medos? Da dor, do sofrimento, talvez, de nossos próximos; mas esses medos são tão terríveis que chegam a ser fatais. O medo da morte parece, então, estar presente em todos os medos. No entanto, nele próprio, não há conteúdo. Em relação a todas as outras coisas que tememos, ele é o princípio; quer dizer que ele é aquilo que torna assustadora a maioria das coisas que consideramos como tais; porém nele mesmo, de maneira crua, na sua pureza, quer dizer, independentemente de tudo aquilo que leva a ele (sofrimentos, doenças, acidentes), não se percebe nada de assustador. Como pode acontecer que esse mal apareça, num sentido, como o pior dos males, que faz com que coisas más se tornem más, e que, no entanto, não é um mal por si só? Curioso princípio que parece desnudado do caráter que ele confere às outras coisas. Como pode acontecer, aliás, que a maioria das coisas que receamos (sofrimentos, doenças, acidentes) pareçam temerárias, na medida em que elas podem levar à morte, mas que, inversamente, a morte não apareça temerária nela própria, senão apenas nas coisas que justamente podem levar a ela (sofrimentos, doenças, acidentes)? Curioso círculo de princípios e de consequências.
O quarto paradoxo do medo da morte é que ele constitui, ao mesmo tempo, aquilo que desperdiça nossa vida e aquilo que a protege. O medo da morte, diz Lucrécio, “perturba desde os fundamentos, intimamente, a vida humana, tudo penetra na cor da morte e não deixa prazer algum límpido e puro”. Não se trata da própria morte, que para Lucrécio não é um mal, mas sim do medo da morte, que, ele sim, é um mal. Assim seja. Então suponhamos um ser completamente sábio e absolutamente racional que teria vencido dentro de si todo o medo vazio e vão, que teria se desvencilhado de qualquer emoção ou reação irracional. Um homem que não tivesse de forma nenhuma medo da morte, nem em pensamento, nem em atos, nem na sua alma, nem no seu corpo. Esse homem, evidentemente, não viveria muito tempo. Pois o medo da morte é apenas a face negativa (e afetiva) do instinto de sobrevivência. Se a natureza (ou a evolução) dotou os animais superiores com o sentimento do medo, foi para protegê-los. Uma fuga diante do perigo, aí está uma conduta racional e adaptada. O medo da morte é, então, útil, e para toda espécie viva, uma emoção saudável. O mesmo servindo para a dor fisica por excelência, a dor. Sem ela, nenhum homem sobreviveria por muito tempo; imaginemos a precariedade da vida de uma criança que sofre de analgesia congênita e que olha, fascinada, o espetáculo de sua mão no fogo. O medo e a dor são os males da vida que nos protegem da morte. A superioridade do medo humano da morte, em relação ao instinto animal de sobrevivência, consiste no fato de que ele (instinto) emprega o perigo de não mais viver de um conteúdo “representativo”: a morte — ainda que isso seja uma representação sem conteúdo. Vemos, então, a ligação intrínseca que une o sentimento de medo à ideia de morte: se o homem é um ser de medo, quer dizer, de medo consciente e não apenas de instinto de sobrevivência animal, é porque ele sabe que vai morrer, é porque ele sabe que certamente vai morrer em determinado dia. O medo consciente, humano, não tem outro conteúdo a não ser o da morte, que, ela própria, é sem conteúdo. Novo duplo paradoxo: o homem é um ser que sente medo justamente para não morrer; porque ele sabe que deverá morrer. E a emoção mais negra para cada um de nós (o medo da própria morte) é a outra face do instinto o mais saudável para todos (sua sobrevida).

Essas são as singularidades do medo da morte. É preciso, então, colocar o problema de uma maneira puramente racional, independentemente de todo sentimento, de toda emoção, de toda afeição: devemos temer a morte? E, uma vez que o medo é a espera de um futuro ruim e ilusório, será necessário perguntar-se simplesmente: o medo é um mal verdadeiro?

O MEDO É UM MAL?

Para responder serenamente a essa questão, convém, primeiramente, eliminar três sentimentos parasitas que não correspondem, corretamente falando, ao medo da morte.
Há o medo da doença, do sofrimento, da dificuldade, da decadência, coisas que, indiscutivelmente, podem preceder ou causar a morte e que, igualmente, são males, mas que não são a morte. É sensato temer esses males; a questão é saber se é sensato temer a morte por si só, e não aquilo que pode, às vezes, precedê-la ou causá-la.
Há também o medo (ou esperança) da imortalidade. É verdade que aquele que crê na sobrevivência da alma (ou do eu), talvez não tenha a mesma relação com a morte do que aquele que não acredita nisso. Mas, das duas coisas, só pode haver uma. Vejamos: para o crente, há uma certeza absoluta, pois ele não acredita de forma alguma na morte, naquilo a que eu chamo, aqui, de morte, quer dizer, o fim da vida, a suspensão absoluta de toda experiência, o fim do mundo “para mim”: alguma coisa continua para mim, ou melhor, é o inverso, sou eu que continuo fora do mundo. Esse crente “absoluto” não tem nenhum motivo para sentir medo da morte, uma vez que ele simplesmente não acredita nela. No máximo ele pode esperar essa outra vida, desconhecida, com uma mistura de medo e de esperança em proporção instável. O crente perplexo, ou simplesmente dubitativo, talvez sinta medo da morte apenas por causa dessa incerteza. Seria preciso também levar em conta o tipo de fé de um e de outro, e ela é infinitamente variável segundo os mitos e as religiões. Cremos na continuidade da alma (que alma? Qualquer alma? Toda alma?), na ressurreição dos corpos, na reencarnação, na transmigração, etc.? Cremos nas recompensas e nos castigos post-mortem (como em muitas mitologias populares)? Eu o digo claramente: não acredito em nada disso. Mas, de qualquer forma, crer ou não nisso tudo pouca coisa muda em relação ao problema. Aquilo que chamo medo da morte não é o medo do além (se existir o além), é o medo de, simplesmente não viver mais. É disso que eu falo aqui, tão-somente. E parece-me óbvio que essas crenças (religiosas ou populares) na alma, na imortalidade, na vida após a morte, na ressureição, na reencarnação, etc. são formas de negação da morte e remédios universais, ainda que diversificados, contra o medo da morte. Elas têm também uma outra origem da qual voltaremos a falar.
Vou partir do axioma de que a morte é a morte total e permanente, que ela é realmente o fim irreversível da vida do corpo, consequentemente também da “alma” ou do “eu”, e não existe nenhuma forma de experiência do postmortem. Em todo caso, é esse medo que estou analisando. Notemos, entre parênteses, que a questão de saber se a própria morte, tomada nesse sentido estreito, é um mal ou não, não é eliminar o interesse daqueles que crêem na imortalidade, uma vez que a atitude que se tem com relação a ela depende, talvez, em grande parte, da posição diante da própria morte: quanto mais medo da morte tivermos, mais acreditaremos na imortalidade. Acho que a recíproca também é verdadeira, já que é quanto menos acreditarmos na imortalidade, menos deveremos temer a morte. É isso o que eu gostaria de mostrar.
O terceiro medo do qual eu não falarei é o da morte dos outros. Quando digo a morte “dos outros”, não quero falar apenas da morte dos outros de maneira geral, de todos os que um dia estiveram vivos, de todos esses anônimos que estão ou estarão um dia vivos: essa morte, tomada em bloco, não passa de um fenômeno natural, até mesmo necessário, apenas para que a vida deixe um lugar para a vida e, primeiro, para a nossa. Também não quero falar da morte de pessoas próximas, daqueles a quem amamos, daqueles que são os “nossos”. Não falarei nem dos mortos “na terceira pessoa” (do fato de que se morre), nem dos mortos “na segunda pessoa” (o mal que faz com que tu morras). Vou me perguntar sobre a morte “na primeira pessoa”: é um mal para mim o fato de que eu morra? Para os mortos na segunda pessoa, que são indiscutivelmente um mal, e talvez até um dos maiores males dos quais possamos sofrer aqui embaixo, o silêncio vale normalmente mais do que as palavras. As únicas palavras que valem são as palavras de amizade e de amor. Notemos apenas o seguinte: ainda neste caso, o fato de saber se a morte é um mal para aquele que morre não é sem consequência para a aflição dos próximos. Se a morte não é um mal para aquele que morre, mas apenas para nós que sobrevivemos a ele, isso serve, então, para nós, como um verdadeiro consolo — o único racional: uma vez que não temos nenhum motivo sensato para chorar por ele. Só podemos nos afligir em relação a nós mesmos, a nossa própria dor (aquela que vivemos), a perda em nossa vida, não a perda da vida dele — e aquilo de que sofremos não é o mal da morte (um mal assim talvez não tenha sentido), mas o mal do amor.
Depuramos, assim, nossa questão de tudo aquilo que ordinariamente a deixaria estagnada: o medo da decadência, o medo do além-vida, o medo da morte dos nossos próximos. Finalmente estamos diante do problema nu: devo temer a morte, quer dizer, o fim definitivo e irreversível da minha vida e de qualquer experiência? Ainda que esta questão esteja depurada, ela tem como resultado, contudo, duas respostas opostas. Pode acontecer a cada um de nós passar de uma dessas opiniões à outra: ora a morte nos surge como o maior dos males, ora ela nem sequer surge como um mal. Em um sentido,[1] uma vez que a vida é tudo o que temos, ou melhor, tudo o que temos depende do fato de estarmos vivos, já que sem a vida nada teríamos, a perda da vida é a maior perda que se pode sofrer. Em outro sentido, essa suposta perda da vida não priva ninguém, já que é o próprio sujeito possuidor que está perdido; essa morte não é algo de mal que acontece a alguém, ela é um simples nada, não tem valor nenhum, nem positivo nem negativo.
Esta segunda posição foi magistralmente defendida pelos epicuristas. É ela que precisamos expor, antes de nos perguntarmos se pode ser refutada e se a posição adversa é suportável.
O primeiro argumento é célebre, radical. Ele parece inevitável.
Epicuro o constrói como um silogismo: “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo o mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade”.[2] Dito de outra maneira, das duas, uma: ou sentimos alguma coisa e, por hipótese, estamos vivos; ou estamos mortos e, por definição, nada sentimos. Nos dois casos, nada há que se temer da morte: no primeiro caso, porque ela não está presente; no segundo, porque não estamos presentes. Nunca existe, então, relação entre nós e a morte. Quando estamos aqui, ela não está; quando ela está, nós não estamos. Ou é ela ou nós. Jamais os dois!

É o argumento fundamental para o qual será necessário sempre voltar. Ele é justo? É convincente? O argumento é racional e talvez irrefutável. Mas acredito que seja um tanto ineficaz contra o medo da morte. Antes de ver como podemos criticá-lo, é preciso examinar um segundo argumento, que caminha no mesmo sentido, que é de Lucrécio. É o argumento da simetria entre o passado e o futuro:

E como não sentimos dor alguma quanto ao tempo passado, quando os cartagineses acorreram de todos os lados para o combate […] assim também, quando não existirmos, quando houver a separação do corpo e do espírito, cuja união forma a nossa individualidade, também a nós, que não existiremos, não nos poderá acontecer seja o que for, nem nos impressionar a sensibilidade, mesmo que a terra se misture com o mar e o mar com o céu.[3]

É justo este argumento? Absolutamente, não. É eficaz? Não muito. Há vários modos para tentar refutá-lo.

Primeira tentativa de refutação

Podemos, inicialmente, tentar construir um silogismo simétrico ao de Epicuro. Diríamos: consideremos a primeira premissa de que a vida é uma coisa boa, prova disso é o fato de que todo mundo — ou quase — deseja viver e continuar a viver. Se a vida é boa, mais vida é melhor do que menos vida. Ora, a morte, qualquer que seja o momento da vida em que ela apareça, quer na juventude, quer na velhice, tem sempre como efeito encurtar a vida. Então a morte é sempre um mal, porque ela priva aquele que está vivo de continuar a ter o bem. E quanto a isso não se pode responder que são a mesma coisa estar morto e nunca ter nascido, já que existe uma grande diferença entre uma privação e um nada: não é a mesma coisa ser privado de algo que se teve e nunca tê-lo tido; isso nada tem que ver com o fato de não mais ser amado (de perder um amor) e de nunca ser amado.

Este raciocínio parece forte. Ele ressoa em cada um de nós. Sim, a morte, necessariamente, nos privará de mais vida. Sim, cada um deverá pensar por si só, em algum momento próximo à morte: “Mais!”, “Um pouco mais”, “Só mais um pouquinho” etc.

A esse argumento, o que poderia responder um epicurista imaginário?Tudo depende da maneira pela qual compreendemos o argumento, e se ele é tomado, anonimamente, na terceira pessoa, ou, singularmente, na primeira pessoa.

Pode-se desejar tomá-lo de maneira impessoal, como uma condenação do que representa em geral a morte para um vivo, o fim, ao mesmo tempo necessário e imprevisível de sua existência. Como podemos sempre imaginar que um vivo, quem quer que seja, poderia ter vivido um pouco mais do que viveu, por mais velho que tenha morrido, sempre com a morte aparecendo, forçosamente, como uma privação de vida. Contudo, isso é apenas condenar a condição de mortal, e, de modo geral, reclamar da própria definição de vida como consagrada à morte, pleiteando pela imortalidade. Mas justamente não se pode dizer que os mortos estejam privados de vida: a humanidade, em geral, sendo mortal, não pode se autodenominar privada de imortalidade; isso é absurdo, é a condição natural da espécie: dizer que o homem está privado de um sentido que ele não tem, por exemplo, o da orientação por radar da qual dispõem os morcegos; ele simplesmente não a tem, não se trata de uma falta, assim o homem foi concebido.

Podemos tomá-lo de modo pessoal, na primeira pessoa /a morte, quando ela chegar, privar-nos-á de mais vida. A isso, o epicurista pode facilmente responder com uma só palavra: Quando? Quando ainda estivermos vivos ou quando estivermos mortos? Nem um nem outro. Jamais seremos privados de vida, nem enquanto estivermos vivos, pois “possuiremos” a vida, nem quando não mais estivermos aqui, e então de nada seremos privados. É assim que o epicurista pode varrer a objeção.

Segunda tentativa de refutação

Então o adversário pode, e deve, refinar a defesa. Ele pode retomar o argumento epicurista e tentar refutar uma de suas premissas. Lembremo-nos do silogismo: “Todo bem e todo mal é sentido por aquele para quem existe o bem e o mal; ora, por definição, a morte é, para alguém, uma falta de sensação; então a morte não é nem bem nem mal para aquele que está morto”.

A segunda premissa é a definição da morte no sentido em que decidimos compreendê-la. Mas a primeira premissa não é incontestável: não é sempre e necessariamente verdadeiro que só podemos sentir o bem e o mal quando os experimentamos; ou que alguma coisa só pode me dizer respeito quando eu a provo? É óbvio. Vejamos: quando provo uma dor, um sofrimento, uma mágoa, uma tristeza, um desgosto, é um mal para mim. Porém a recíproca é verdadeira? Não existem males que me dizem respeito mas que não chego a provar?

É a pergunta que o filósofo norte-americano contemporâneoThomas Nagel[4] faz, tentando refutar a argumentação epicurista. Ele mostra que é possível existir males que nos concernem sem que os provemos. Certamente a morte (tanto o fato “morte” quanto o estado “estar morto”) nunca poderá nos abalar; mas, ele diz, podemos sofrer de males que, no entanto, não nos atingem, quer dizer, dos quais não temos diretamente consciência e que não são, portanto, desagradáveis. Mais tecnicamente e de maneira geral dir-se-á: existem propriedades que dizem respeito a um sujeito sem afetá-lo de forma causal, mas modificando o que é objetivamente uma verdade dele. Tomemos uma série de exemplos: suponhamos que a pessoa que amamos nos trai, fingindo de maneira negligente que ainda nos ama, suponhamos, aliás, que todos saibam, menos nós. Está claro que isso significa uma infelicidade para nós, todos estão de acordo! Mesmo se não sofrermos diretamente com isso. Está claro que, para medir um infortúnio ou uma infelicidade, não se pode apenas se pôr no presente, mas no que acontecerá, no seio de uma história. Uma pessoa, uma existência, trata-se de uma dinâmica, não de um estado; é também um conjunto de potencialidades, não apenas de um conjunto presente de sentimentos positivos e negativos, praze­res e dores. Uma vida se mede não somente no presente do indicativo, mas também no condicional e no futuro. Suponhamos ainda (o exemplo é deThomas Nagel) que, depois de um derrame cerebral, um homem volte à infância, exatamente no estado em que estava quando tinha 3 anos, sem nenhuma lembrança de seu passado. Não está claro de que se trata de uma infelicidade? E não apenas para os outros, que foram atingidos, que sabem o que ele era e no que se transformou, mas também para ele, para ele próprio, que nada sente com relação à sua própria história, que nada sabe acerca de seu “triste destino”. Está claro que não temos nenhuma razão para nos queixarmos de uma criança ser o que ela é, com suas limitações, mas todas as razões para nos compadecermos de um adulto reduzido a esse estado. Dito de outra maneira, uma infelicidade se mede não somente por aquilo que se ressente presentemente, mas também por aquilo que se é realmente, levando em conta, de um lado, aquilo que fomos e, de outro lado, aquilo que poderíamos ter sido. E isso, segundo Thomas Nagel, se aplica perfeitamente aos mortos: lamentamos os mortos, não partindo de seu estado presente, mas relacionando-os com seu passado (“e dizer que ele estava tão alegre e confiante na semana passada!”) e com seu potencial não realizado (“ele poderia ter aproveitado mais, ele tinha ainda tanta coisa para fazer!”): suas esperanças e desejos frustrados. Somos nós — os vivos — que provamos tudo isso e, no entanto, é dele que nos lamentamos, e não de nós mesmos dessa vez (como na morte que eu chamo de “segunda pessoa).

O que poderia responder a este argumento o epicurista? Uma pergunta, e apenas uma: quem deve lamentar, quem está infeliz? Não nós mesmos, que estamos vivos. Nem o próprio morto, ao menos não enquanto morto. Aquele por quem nos lamentamos é o morto enquanto estava vivo, ou enquanto alguém que poderia estar vivo. E essa pessoa justamente não existe, ela apenas existe em nós mesmos, na nossa imaginação. Dito de outra maneira: se temo morrer, se considero uma infelicidade, para mim, ser amanhã impedido pela morte de realizar potencialidades que ainda sinto dentro de mim, estou falando da minha morte, na primeira pessoa, não na segunda (tua morte, a morte de um parente), nem na terceira (a morte anônima dos outros em geral). No entanto, considero-me a mim mesmo na terceira pessoa. Penso em mim como um outro, considero-me de fora, exatamente como outros poderiam objetivamente medir minha infelicidade, que justamente não seria minha infelicidade, pois eu não mais aqui estaria como sujeito dessa suposta infelicidade. Mesmo se for verdade, objetivamente, que o adulto do exemplo anterior no estado de infância está privado de sua inteligência e de sua memória, enquanto, subjetivamente, não tem consciência disso, não se pode dizer da mesma maneira que, objetivamente, a morte está privada de potencialidades não realizadas. Pode-se talvez comparar, objetivamente ou a partir de apenas um e mesmo ponto de vista, os estados ou as propriedades de dois sujeitos (a criança e o adulto que voltou à infância), mas não se podem comparar os estados ou as propriedades de um sujeito real (o adulto vivo, com seus desejos) com aqueles de um sujeito que existe apenas na imaginação de outros sujeitos (esse mesmo adulto podendo realizar seus desejos). Não existe um ponto de vista geral e objetivo, falando sinceramente, pois o homem não é imortal. Tampouco há um ponto de vista particular, subjetivo, já que não há sujeito que esteja frustrado com qualquer coisa que seja: é o próprio sujeito que está ausente. Aqui, ainda, o epicurista pode varrer a objeção.

Terceira tentativa de refutação

Podemos nos ater ao argumento lucreciano da simetria. Lembrando-o: está claro que não nos sentimos privados, retroativamente, da existência pré-natal que não tivemos, mas que nos sentimos privados da existência futura que não teremos. É verdade que aquilo que nos assusta não é o fato de o filme ter começado há muito tempo antes de nós, e sim de o filme continuar depois de nós, quer dizer, sem nós. Segundo Lucrécio, isso não é racional: uma vida que se estendesse indefinidamente no passado seria tão longa quanto uma vida que se estendesse indefinidamente no futuro. Vamos prestar muita atenção nisto: se um dia dispusermos de uma lâmpada mágica e de um gênio que nos permita fazer um pedido, não vamos simplesmente pedir “uma vida longa”. Não podemos nos esquecer de especificar: “no futuro”.[5] Caso contrário, o gênio seria capaz de nos atribuir uma longa vida no passado; e, em vez de projetos esperançosos, ficaríamos sobrecarregados de lembranças. E ainda: desde que tivéssemos bastante memória. (Notemos no entanto que ter atrás de nós uma vida infinitamente regada de glória poderia nos dar muita alegria, portanto muito mais do que estar no presente).

Mas essa assimetria entre passado e futuro, por mais irracional que seja, não seria ela razoável? Não, é claro, porque vivemos voltados para o futuro: viver é agir, agir é desejar, desejar é ter objetivos. Uma vida, ao menos uma vida ativa, uma vida de participação no mundo, não de contemplação, é então assimétrica.

Uma vida ativa é desejo de perpetuar-se. Uma vida ativa é, portanto, desejo de imortalidade. Apenas uma vida contemplativa, exclusivamente contemplativa, poderia considerar no mesmo nível, ou talvez até num nível superior, aquilo que ela (a vida) foi e o que ainda não foi. Somente o sábio que se retirou do mundo pode se satisfazer de sua consciência presente, alimentada de lembranças, sem se ocupar da inquieta consciência de projetos futuros.

O que responderia Epicuro? Ele concederá, por um lado, que o verdadeiro sábio deveria se concentrar ao máximo em seu estado presente e alimentá-lo conforme a necessidade de sua memória, sem tentar se sobrecarregar de desejos.[6] Ele deverá, por outro lado, mostrar a inanidade do desejo de imortalidade. O desejo de se tornar imortal é o próprio tipo do desejo vazio: sempre mais, sem nunca estar satisfeito, sem nunca alcançar o objeto. É o desejo que se entretém com ele mesmo infinitamente, exatamente como os desejos de ser rico ou de ser poderoso. São desejos perversos, desejos naturais corrompidos. No começo, é natural que se queira ter apenas o necessário de riquezas para que não sinta falta de nada, e apenas o necessário de poder para se sentir seguro e não se tornar escravo de ninguém.[7] Mas esse desejo natural se corrompe, o desejo pelos meios torna-se um fim em si mesmo: aquilo que queremos é ser ricos, ser poderosos. Mas esse desejo é indefinido por definição. Pois quando somos ricos ou poderosos? Nunca, já que podemos sempre ser mais ricos, mais poderosos. Acontece o mesmo com o desejo de imortalidade, que é o arquétipo do desejo vazio. Quando estamos satisfeitos por viver? Nunca, uma vez que podemos sempre viver mais, e sempre desejar viver mais, e ainda desejar viver sempre, até o infinito. O desejo de imortalidade é, então, o arquétipo do desejo vazio, sem objeto, o simples desejo pelo desejo, e não o desejo de ter, ou melhor, de hoje ser. Ser basta. Desejar ser é parar de estar no presente, é buscar não mais se satisfazer. Corolariamente, o medo da morte é o arquétipo do medo da vida. O desejo de imortalidade e o medo da morte são um mesmo nada de objeto: receamos alguma coisa, a morte, que nada é (portanto, não é um mal) porque somos nós que a tememos, e desejamos alguma coisa, a imortalidade, que nada é (portanto, não é um bem), ou simplesmente o futuro, enquanto só podemos estar no presente.

Eis o que se pode dizer do desejo de imortalidade, analisado do ponto de vista do desejo. Vejamos, contudo, as coisas mais friamente, analisando-as do ponto de vista da imortalidade. Achar que a morte é um mal não é achar que seria bom não morrer? Mas isso é realmente desejável?

Notemos, primeiramente, que é impossível imaginar uma vida imortal. Aquilo que sempre imaginamos é uma vida longa, muito longa, uma vida que não cessa aqui, nem lá, nem agora. Isso nós desejamos, porém com um desejo puramente negativo: é o desejo de que isso não cesse, ou melhor, de que isso não pare por enquanto, não agora, porque é muito cedo — sempre é muito cedo. Mas, positivamente, uma vida propriamente imortal seria uma coisa boa?

Sem a morte, o que valeria a vida? Suponhamos, por um instante, que sejamos verdadeiramente imortais. Nada daquilo que faríamos, experimentaríamos, teria o mesmo sentido. Um animal imortal, por exemplo, não saberia se reproduzir. Para que reproduzir um outro, uma criança, se posso reproduzir a mim mesmo infinitamente, se somos eternamente para nós mesmos nossa própria descendência? Um animal procria porque morre. Ele sobrevive na sua descendência. Um animal que não procria é ainda capaz de amar? É capaz de desejar? Somos ainda capazes de desejar qualquer coisa que seja se soubermos que, no infinito do tempo, tudo pode acontecer, e mesmo porque tudo deve necessariamente acontecer, cedo ou tarde? E a ação perde seu sentido se o desejo perder seu sentido: para que agir, querer mudar o mundo, se basta esperar: tudo forçosamente irá acontecer, mesmo sem mim, no infinito do tempo.

Entretanto, vamos mais longe. Num belo texto de 1910, Métaphysique de la mort,[8] o sociólogo e filósofo alemão Georg Simmel observava: aquilo que distingue um corpo orgânico de um corpo inorgânico é que a forma que limita e define o corpo inorgânico é determinada de fora (a forma do rochedo é determinada pela erosão, a da lava pela solidificação), enquanto a forma do corpo vivo é determinada por dentro: “ele dá a si próprio sua forma”. “Ora, esse limite não é apenas espacial, é igualmente temporal”. E acrescenta que, para compreender o sentido da morte, é preciso se livrar da ideia, segundo a qual ela vem romper bruscamente a linha da vida que existia até então e que continuava a existir, “como se a morte impusesse um limite à vida no mesmo sentido em que ocorpo inorgânico pára porque há um outro corpo com o qual em si mesmo ele nada tem que ver, vai de encontro a ele e determina sua forma, quer dizer, o limite de seu ser”.[9] A maioria das pessoas faz essa ideia da morte, como uma profecia sombria pairando sob a vida. Não, a vida e a morte estão intimamente ligadas. Na verdade, a morte “está contida na vida. A cada instante da vida, somos seres que iremos morrer e esse momento seria completamente outro se esse não fosse o nosso destino, inato e, de qualquer modo, atuante no presente”.[10] A morte é para a vida “um fator de forma” que dá “colorido a todos seus conteúdos”. Não é a morte que é a negação repentina da vida, é a vida que é a negação permanente da morte. A morte é, então, aquilo que dá forma interna à vida. Se não fosse o caso, a vida seria absolutamente, inconcebivelmente, outra. Ela não seria a vida. Não é então apenas insensato desejar ser imortal. É contraditório.

Epicuro, então, tem razão: a morte não tem nenhuma relação conosco, não temos nenhuma relação com ela. Ela não nos privará de nada, nem mesmo de vida, já que ela não nos privará nem quando estivermos vivos, nem quando mortos. Ela só pode ser um mal na terceira pessoa, aquela que não somos e que jamais seremos. Recear a morte, por si só, é pensar-se como um outro, é desejar a imortalidade, que é o mais vazio e contraditório dos desejos.

E, NO ENTANTO, O MEDO…

Epicuro tem absolutamente razão. A morte não é um mal. No entanto nada muda, nada mudará, três vezes triunfará a razão, três vezes minha imaginação será mais forte. Continuo a me imaginar morto como privado da vida (de acordo com o primeiro argumento), eu me imagino privado, pela morte, de potencialidades que tinha dentro de mim (conforme o segundo argumento), eu me imagino viver sempre e sempre desejar viver (conforme o terceiro argumento). Três vezes racionalmente sei que a morte não é um mal e nada muda, serão três vezes que terei receio dela na imaginação.

Por quê? Existem duas razões para isso: a estrutura do pensamento humano e a estrutura da ação humana.

É a própria estrutura do pensamento humano que faz com que eu não consiga imaginar que estar morto não quer dizer nada. A própria língua é um impedimento: dizemos “estar morto”, como “estar vivo”; como se fossem dois estados, dois modos de estar. Mas, na verdade, existe apenas um modo de estar para um vivo, que é o de estar na vida. Estar morto não é estar, é não estar, não é nada. A imaginação repudia tanto o meu próprio não-ser quanto a língua. Lucrécio já notava esse fato:

Quando se vir um homem lamentar-se sobre si próprio por lhe acontecer, depois de morto, ou que apodreça o corpo abandonado, ou desfaça com as chamas ou com as mandíbulas das feras, pode-se concluir que não são palavras sinceras (…) embora ele próprio negue acreditar que tenha alguma sensibilidade depois de morto […] não se tira, não se arranca radicalmente da vida, e acha ele próprio que alguma coisa de si lhe sobreviverá […] não vê que na morte verdadeira não há outro eu que possa vivo chorar a sua perda, e, ficando de pé, doer-se de que o lacerem ou o queimem.[11]

Eis aí, pois, o trabalho da imaginação. No medo da morte, desdobramo-nos imaginariamente. Existe aquele que sou, atualmente, aquele que sente medo, que está vivo, e aquele que imagino, a mim morto, e é isso, é ele, sou eu, aquele eu que me assusta. Desdobro-me entre um eu vivo e um eu morto. Sem o primeiro, real e presente, não poderia imaginar nada — nem sentir medo —, sem o segundo, imaginário e futuro, não haveria nada do qual eu pudesse temer. Logicamente, há contradição entre os dois: a prova de que nada há a temer com relação ao fato de estar morto é que eu temo — e por conseguinte estou vivo!

Tal é a obra necessária do pensamento. É a experiência corolária do cogito cartesiano: penso, e o simples fato de que eu penso prova suficientemente que existo; não posso pensar que eu não sou, porque o conteúdo desse enunciado é imediatamente contraditório ao fato de que penso nisso. É por isso que a morte, minha morte, é impensável. Seria necessário pensar “eu não sou”, seria preciso poder, ao mesmo tempo, pensar que sou (uma vez que penso que sou eu quem sofre) e que não sou (já que não sou mais). Mas o pensamento “não sou,’ se tornou tão impossível pelo simples fato de pensar nisso, que o pensamento “eu sou” tornou-se necessário por esse mesmo fato. Não é apenas que minha morte seja inimaginável, porque minha imaginação seria limitada, ou destinada ao erro, é simplesmente que ela é impensável, dada a própria estrutura do pensamento naquilo que ele tem de necessário e essencial. Ante essa impossibilidade, minha imaginação está condenada a um estranho desdobramento. Se eu tentar me imaginar morto, quer dizer, privado do mundo, não posso me impedir de imaginar o mundo sem mim. Entretanto, esse mundo que imagino sem mim, é preciso que eu esteja nele para imaginá-lo. A não ser que eu absolutamente não esteja mais no mundo, que eu cesse de agir nele, de participar do seu avanço; com o mundo distante, sou relegado aos bastidores; se imaginar que estou, por exemplo, no céu (imagem do lugar elevado de onde se observa sem participar). Tal é a origem da maioria dos mitos sobre a continuidade da alma. Estou no espetáculo. O que sobra então de mim? O olho da testemunha. Esse olho não pode desaparecer, é o olho do meu pensamento presente, é o cogito que sempre me acompanha enquanto eu existir, é meu pensamento atual que não se pode pensar não ser e que deixa subsistir de si mesmo esse ponto de consciência muda.

É o que dizia Alain:

Estar vivo e pensar que se está morto, mais do que insuportável, é impossível. Se eu meditar todos os dias diante de uma tumba, nunca vou conseguir pensar que eu não penso mais. Sempre eu me suponho vivo. Tento pensar no que será o mundo dentro de cem anos, mil, sem mim; mas me suponho sempre como espectador, no próprio momento em que digo a mim mesmo que não assistirei a esse espetáculo. Eu me faço invisível aos outros, ausente de todos os olhares; mas não posso estar ausente para mim mesmo. A chama que me clareia o mundo, eu a levo comigo a todos os lugares, em diferentes espaços e momentos.[12]

Essa mesma ideia da permanência do eu espectador, que torna o pensamento da morte impossível, é analisada por Freud:

Todas as vezes que tentamos representar nossa própria morte, percebemos que assistimos a isso como espectadores; é por isso [pode-se dizer] que, no fundo, ninguém acredita na própria morte, ou, o que dá no mesmo, no inconsciente, cada um está convencido de sua própria imortalidade.[13]

A crença mítica de que a alma nunca morre é apenas a contrapartida imaginária do fato de que o pensamento jamais pode se considerar não-existente.

Eis porque resistimos ao argumento epicurista. Ele é justo, é verdade. Mas meu pensamento não pode admiti-lo completamente, porque não posso me pensar não mais pensando; não posso, portanto, me imaginar morto. Sou sempre eu que penso. O pensamento não pode pensar sua própria aniquilação. Necessariamente eu me penso pensando; é por isso que me penso obrigatoriamente como sempre pensando.

Acontece o mesmo com o processo da ação e do desejo. O desejo de imortalidade é vazio; certamente Epicuro tem razão. Se considerarmos o desejo como falta de uma satisfação, de um vazio a preencher, então, quanto menos desejarmos, mais viveremos. O sábio, portanto, não tem desejo. Mas há um outro modelo do desejo, que não é negativo (a necessidade, que deve ser satisfeita), mas positivo, como o conatus espinosista, o desejo de continuar a ser aquilo que somos, o desejo de ser, que se confunde com o próprio ser. Ser para um ser vivo, para um animal, para um homem é o desejo de ser, quer dizer, ser mais, ser sempre. Esse desejo positivo se confunde com a vida. O sábio sem desejo está, no fundo, morto, ou quase. Viver é desejar sempre mais, desejar outra coisa, e isso infinitamente. Assim como não se pode pensar que não pensamos, não se pode viver sem se projetar para o futuro. O presente do pensamento é um presente necessário, o presente da ação é um presente potencial, tanto um quanto outro são arrancados do presente puro. Não que verdadeiramente nos desejemos imortais, mas acontece que o desejo é, hipoteticamente, desejo de se imortalizar, desejar a imortalidade. E é por isso que o temor à morte, por mais irracional e vazio que seja (pois a morte nada significa para nós, é verdade), o medo da morte por mais vazio que seja… a vida é, com todas as suas forças, resistência à morte, desejo de matar a morte, desejo de viver sempre.

Como concluir? Voltemos à criança, de onde partimos. Voltemos ao seu temor à morte, à primeira vez que ela o expressa. Ela diz: “Quando morreremos?”. A questão parece evidentemente sem resposta. No entanto, existe uma forma de resposta, aquela que sugeriu um dia a psicanalista infantil Françoise Dolto, a quem se perguntava qual seria uma boa resposta; é preciso responder à criança: “a gente morre quando pára de viver”. A resposta parece uma boutade, uma simples tautologia. “Evidentemente, morremos quando paramos de viver, pois, por definição, a morte é o fim da vida”. É, no entanto, a resposta mais profunda que conheço. Já que o que nos assusta, a nós adultos, assim como às crianças, aquilo que nos assusta desde sempre e para sempre, é justamente morrer antes de ter terminado de viver. Temos o sentimento de que jamais terminaremos de viver, uma vez que sempre haverá algo para viver ou desejar. Tememos, então, não a própria morte (o fato ou o estado), depois da vida, mas a morte na vida. Tememos estar mortos, enquanto ainda estamos vivos, tememos estar ao mesmo tempo vivos e mortos, estarmos fora do mundo enquanto ele avança, em conformidade com o próprio processo do pensamento e do desejo. Mas há algo absolutamente reconfortante: sim, morremos forçosamente quando paramos de viver, somente quando paramos de viver. É uma verdade poderosa, absoluta, na qual temos tanta dificuldade em acreditar.

Mas isso Epicuro não sabia também, no fundo? Talvez ele o pressentisse. Analisamos seus argumentos, mas talvez tenhamos nos esquecido de uma palavra essencial: “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós”. Esquecemo-nos sempre desse dizer. Acreditamos que Epicuro se contente em falar que a morte não é nada para nós, aquilo que no fundo já sabíamos. Devemos, pouco a pouco, dificultosamente, progressivamente, nos habituar a essa ideia, tão pouco natural, de que a morte jamais nos atingirá. O difícil não é saber disso, mas acreditar nisso. Pois o medo nos é natural.

Tradução Marcelo Gomes

Notas

 

[1] É a alternativa proposta por Thomas Nagel, “Death”, e, Mortal Questions (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), p. 1.

[2] Cf. Epicuro, Lettre à Ménécée, parágrafo 124. Ver também Maxime capitale 2.

[3] A tradução das citações de Epicuro e Luc’rcio foram tiradas de Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio, ColoçãoOs Pensadores, vol. 5 (São Paulo: abril Cultural, 1998).

[4] Thomas Nagel, “Death”. Cit.

[5] Exemplo de Steven Luper, Enciclopédia Stanford de Filosofia, 2002, “Death”.

[6] Cf. Epicuro, Maximas capitales IX, XVIII, e XX; Lúcrecio, De la nature, III, 957-9588: “Mas, como sempre desejas o que está longe e desprezas o presente, passou-te a vida incompleta e sem gosto…”. Ver também Sêneca, Lettre à Lucillus 15, 10: “A vida do insensato é sem alegria (ingrata) e inquieta: ela está completamente voltada ao dia seguinte”. Marco Túlio Cícero, De finibus, livro I, XVII, 62: “Eis como nos é representado por Epicuro, o sábio sempre feliz: ele tem desejos limitados, não se preocupa com a morte, experimenta coisas verdadeiras sem nenhum receio a respeito dos deuses imortais, está pronto para sair da vida se assim for melhor. Equipado dessa maneira, ele sempre vive no prazer. Pois ele não tem nenhum momento em que não prove mais prazer que dor. Com efeito, ele se lembra prazerosamente das coisas passadas, torna-se mestre das coisas presentes, tomando consciência do quanto e do como elas são agradáveis; ele não depende das coisas futuras, mas as espera…”

[7] Cf. Lucrécio, De la nature, V, 1113-1135.

[8] Georg Simmel, “Zur Metaphysik des Todes”, em Das Individuum und die Freiheit (Berlim: Wagenbach, 1984), pp. 29-35; tradução francesa em La tragédie de la cultura (Paris: Rivages, 1988), pp. 169-178.

[9] Ibid., p.170.

[10] Ibid., p. 171

[11] Lúcrécio, De la nature, III, cit., pp. 870-885.

[12] Alain, Propos d’un normand, vol I, 1º de março de 1090 (Paris, Gallimard, 1952), pp. 318-319.

[13] Sigmund Freud, “Notre atitude à l’égard de la mort”, em Essais de psychanalyse (Paris, Payot), pp. 253-254.

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