2013

Dialética na imobilidade da mens momentanea à imobilidade do instante

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

De nossa civilização já se disse ser ela a única da História que não se orienta por nenhum valor transcendente. Desaparecimento da dimensão do sagrado, perda da aura e da auréola do poeta selam o fim do papel filosófico e existencial do conhecimento.

Fim da cultura teórica e da dimensão estética da existência, o tempo se plasma, torna-se pura mens momentanea, carente de recordação: “nada traduz melhor este presente sem saída e sem descanso como a antiga sentença que gira em círculo sobre si mesma, construindo-se letra por letra como um labirinto de que não se pode sair, de tal forma que nela coincidem a forma e o conteúdo da perdição: Im Girum Imus nocte et consumimur igni. Nós rodamos em círculo na noite e somos devorados pelo fogo.” (Guy Debord).

Presente perpétuo da “mobilização infinita”, ele é o resultado da cultura pós-behaviorista da contemporaneidade, baseada no fetiche da inovação e na ideologia das performances, dos resultados e da busca de recordes, que difundem a crença em um progresso indefinido e uma perfectibilidade ilimitada, mas sem qualquer ideal de “espírito”.

Trata-se, assim, de refletir sobre uma nova economia do tempo que se libere dos constrangimentos da “sociedade de projetos” e da ilimitação. Sua contrapartida é a “dialética na imobilidade” à maneira de Benjamin e do Neutro barthesiano, que, cada um a sua maneira, consideram o “instante anterior” de um acontecimento decisivo que evoca o kairós, para romper com a “lógica do pior”. Dante, no canto XV do Paraíso, a ele se referiu, ao lembrar a antiga Florença: “as casas não estavam desertas […]. Sardanapalo ainda não tinha vindo mostrar tudo o que se pode fazer dentro de um quarto.” O tempo em suspenso, ataráxico, atualiza o ideário da metafísica da impermanência, da lei do efêmero, da vanidade das coisas e da grandeza do instante.


“Experiência da pobreza e pobreza da experiência” é o diagnóstico de Benjamin sobre o moderno. Pobreza do vivido significa não apenas sua carência, mas também sobrecarga e saturação. Para superá-la, procuram-se vivências novas e sempre mais veementes, em vez de se dispor de tempo para convertê-las em experiência. A novidade se transforma rapidamente em rotina, provocando o “tédio do sempre novo e do sempre igual”.

Experiências são vestígios de tempos heterogêneos que permanecem na memória inconsciente, onde se aloja a aura do tempo. Experiência primeira, as canções de ninar. Porque a delicadeza é a matéria desses cantos, seus versos breves possuem a potência miraculosa de metamorfosear angústias e desejos em sono e sonho. Unindo corpo e alma, ela é a experiência ética que se encontra na base de uma verdadeira arte de viver. Embalar e cuidar exigem tempos longos, propiciadores dos primeiros laços de afeto entre mãe e filho. Ligando o adulto e a criança que ele foi, a canção de ninar é um halo de proteção que acompanhará o recém-nascido pela vida toda. Neste sentido, Benjamin anotou: “Natureza da mãe: fazer com que não haja sucedido o que sucedeu, lavar a vida no fluxo do tempo”[1]. A canção infantil é um talismã contra a desventura.

Eis por que a aceleração do tempo é a “comoção da tradição” que não orienta mais um saber viver[2]. Para Benjamin, no mundo moderno, materialista e mecanizado, o homem é afetado por estímulos, fluxos e intensidades crescentes. Por isso, ele o concebeu na figura de um autômato inerte e sem identidade, um boneco vestido à turca que posiciona peões em um jogo de xadrez, mas que é ele mesmo conduzido por fios com os quais um anão corcunda movimenta as peças: “Conhecemos a história de um autômato construído de tal forma que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contra-lance que lhe assegurava a vitória. Um fantoche […], com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche”[3] • Para Benjamin, o indivíduo moderno é mecanizado, conduzido por leis que o dominam e que ele não mais controla, como o mercado mundial, a ciência, a técnica, a política. Por isso, necessita-se da teologia – de transcendência em relação ao mundo autonomizado – para movimentar os fios do boneco vestido à turca. Da mesma forma, suas experiências não parecem lhe pertencer, a história impulsionada por forças invisíveis que operam sob a superfície dos acontecimentos. Deles se desconhecem a gênese e seus desenvolvimentos, só se apreendem os resultados. O futuro não é, pois, senão o que já está acontecendo agora.

O mundo sem experiência, produzido pelo mercado, pela automação e pela ciência, marca o fim da tradição humanista fundada na cultura teórica, no tempo livre e no conforto do espírito. Mundo pós-behaviorista, a sociedade denominada da comunicação, associada à sociedade da informação e à sociedade de projetos, substitui a busca do sentido do conhecimento e do “aperfeiçoamento de si” pela inovação que cria profissões voltadas ao “desenvolvimento pessoal”, indústrias da “imagem de si” com seus dispositivos advindos das ciências cognitivas e das neurociências. Sobre isso, Carlo Mongardini anotou: “O rápido progresso da cultura material de nossa época se viu acompanhado de uma regressão generalizada da cultura não material […]. Quando as normas se tornam inseguras, e a moral, problemática, ressurge o medo, e a vida coletiva retrocede a formas primitivas”[4]. Neste sentido, o futuro do capitalismo é seu passado. A precarização do trabalho e a flexibilização das leis procedem da lógica do mercado e de suas contingências que, no ritmo da obsolescência programada, aceleram o tempo, como se ele estivesse atrasado com respeito a si mesmo e à História. Época tardia e retardatária, a modernidade é a posterioridade, afetada pelo sentimento de uma perda do tempo, sem que se saiba o que se perdeu. Por isso, ela é uma temporalidade depressiva, distante da Melancolia criativa e heroica do passado clássico e da Renascença[5]. Porque pobre em meditação, a modernidade esquiva-se de seu vazio interior para esquecê-lo, preenchendo o tempo com hiperatividade e entretenimentos para “matar o tempo”[6].

As revoluções científicas, como também as sociais, têm pois o sentido de recuperar um tempo perdido, para avançar mais e ir sempre além, segundo a crença em um progresso indefinido da ciência e na perfectibilidade ilimitada do homem. Desconfiando do próprio progresso, a modernidade inaugurada pelas Luzes e pela Revolução Francesa foi o pathos do novo: du passé faisons table rase, nos versos da Internacional. tabula rasa significa recusa do savoir faire e do saber viver legados pelas experiências de outrora, a invenção se impondo como divisa maior: “A invenção torna-se um ramo dos negócios, e a aplicação da Ciência à produção imediata determina as invenções, ao mesmo tempo que as solicita”[7]. Por isso, a tabula rasa é permanente, uma vez que a lógica do moto-perpétuo e do descartável se estabelece como ideal da civilização: “A monotonia”, anota Benjamin, “se nutre do novo”[8]. Seu cenário é o da “queda do valor espírito” e da “alta na cotação” do dinheiro. Os saberes são proletarizados porque sem experiência. O intelectual tradicional, instruído e culto, é substituído pelo expert, que dá conselhos sem experiência. A Schulung, em vez da Bildung, promove o treinamento e não a formação. No curriculum dos artesãos das antigas profissões, ao contrário, um aprendiz era iniciado por sete anos nos volteios das mãos de seu ofício antes de apresentar uma obra como companheiro. O compagnonnage, associação de operários para fins de formação profissional e de solidariedade, e o compagnon designavam o artesão que já não é aprendiz e ainda não é mestre. Até meados do século XIX era costume esses jovens profissionais fazerem o tour de France empregando-se em oficinas de várias cidades, com o objetivo de completarem sua formação. Um companheiro se aperfeiçoa em sua arte por cinco ou dez anos suplementares e apenas ao final de 12 a 18 anos de aprendizados e exercícios ele pode pretender realizar uma obra-prima: “O que então se denominava gênio era somente a alusão a casos de encurtamento espetacular do tempo de exercício médio”[9].

A cultura da formação e do exercício cedeu à distração (Zerstreuung) e ao entretenimento, características próprias de uma classe social entediada, “para a qual tudo o que ela toca se converte em estímulo”[10]. Em “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin mostra que a incitação de todos os sentidos se desenvolve com tal velocidade que não resta nenhum espaço entre eles para o menor grau de “contemplação”. A recepção distraída é condicionada pela dinâmica da tecnologia moderna, pela rapidez nas transações econômicas, pelo apelo das mídias, pela pressão das mercadorias e pela lógica do consumo. A inovação elevada à categoria de principio da economia industrial dissolve o tempo do deferimento, que é o espaço da atenção e do pensamento. O saber fazer, substituído pela performatividade, corresponde à mutação da atenção em “atenção distraída”, que, constrangida pela pressa, é aniquilamento do conhecimento. Com efeito, até há pouco, a educação se encarregava de “formar a atenção” para a concentração. Difere a atenção profunda da hiperatenção, a primeira é imersão em seus objetos de reflexão, a segunda “caracteriza-se pelas rápidas oscilações entre diferentes tarefas, entre fluxos de informação múltiplos, buscando um nível superior de estimulação, e tendo uma tolerância muito tênue para o tédio”[11]. Esta hiperatenção é um estado próximo ao de espreita dos animais que vivem em meio a perigos. Hiperestimulação da atenção é, melhor dizendo, déficit de atenção, uma infra-atenção, descontínua e dispersa.

Na sucessão rápida de acontecimentos, o novo desaparece antes de envelhecer. Razão pela qual a modernidade, é, para Benjamin, o esquecimento do passado recente: “O desenvolvimento das forças produtivas fez cair em ruínas os símbolos do desejo do século anterior, antes mesmo que desmoronassem os monumentos que os representavam[…]. No século XIX, esse movimento emancipou da arte as formas de construção […]. O início é dado pela arquitetura enquanto obra de engenharia”[12]. Esse veloz desaparecimento do passado e a percepção distraída afetam o aparelho psíquico do citadino, encontrando-se na base do fenômeno do déjà vu, “o lugar clássico de uma teoria do esquecimento”[13], um desejo prematuramente esquecido pela carência de tempo para vivê-lo. Metafísica do falso reconhecimento, o déjà vu assimila o presente ao passado, o atual desaparece em um já sido e, de maneira complementar, faz renascer para o presente um passado inexistente. Experiência fantasmática, empobrecendo o presente e enriquecendo o passado, ela produz um “morto-vivo”, um já sido que retorna em um “é” que já passou. A dispersão em lugar da atenção se fixa em um presente imóvel enquanto imagem do já vivido: “[a lembrança, sendo uma duplicação da percepção], não tem condição de apreender o que quer que seja de novo e, produzindo uma barreira ao futuro, é sintoma de renúncia à existência, de busca de um conforto na repetição do passado[14]. A repetição, fazendo do desconhecido algo familiar e próximo, evita a angústia, com o que o transtorno do déjà vu provém do sentimento de não haver uma saída para o futuro: “Neste espanto se introduz um sentimento diverso que, no entanto, se aparenta com ele [com o déjà vu]: o sentimento que o futuro está fechado, a situação se desprende de tudo, mas nós estamos presos a ela”[15].

Não se trata, pois, da percepção da passagem do tempo e da transitoriedade de tudo – como na Melancolia 1 de Dürer, que tem a seus pés a ciência, nas mãos o compasso, ao lado a ampulheta e, atrás de si, no horizonte, um sol amplo e aterrador que escurece o céu. Esse Anjo feminino de compleição masculina, prostrado em uma meditação metafísica, tem seus instrumentos de medição do espaço e de controle do mundo, que lhe são inúteis. Se nos almanaques da Idade Média os acidiosos estão sempre adormecidos, sua alma se extraviando de Deus e fechada ao que a cerca, o Melancólico, ao contrário, em sua apatia criativa, medita, reflete, concentra-se. Não por acaso, os séculos XVI e XVII trazem de volta as máximas do Eclesiastes[16]. Na poética sapiencial do Antigo Testamento, a incerteza dos fundamentos do saber e a fragilidade de seus princípios anunciam a instabilidade das formas do mundo e a ausência de unidade, evocando a relatividade de todo conhecimento e o ceticismo moral. Porque tudo viu e experimentou, o Eclesiastes conclui que nada tem valor, pois tudo está encerrado em um círculo perpétuo sob o domínio da fugacidade e da morte. O Eclesiastes reconhece na realidade sua inconsistência, volatilidade e inconstância, “como a neblina que, na aurora, dissolve-se ao sol […], a nuvem pelo vento […], a gota de orvalho evapora no calor […] e tudo desaparece de repente”. Vazio dos vazios, tudo é vazio, fumaça, vento. Sentimento melancólico do curso do tempo, a caducidade priva o mundo de inteligibilidade, o homem é reduzido ao vazio que o espera. Quanto à natureza, ela assiste indiferente ao desaparecimento das criaturas: “Uma geração vai, uma geração vem. Mas a Terra para sempre permanece. Nasce o sol e o sol se põe, e apressa-se e volta ao lugar de onde nasceu. O vento vai para o sul e dá voltas [para o norte]”. Aqui a formulação heraclitiana: “Todos os rios vão para o mar/ contudo o mar nunca se enche/ ainda que sempre corram para lá/ para lá voltam a correr”[17]. A transitoriedade se associa ao desânimo de tudo: “Todas as coisas traem o cansaço. O homem não é capaz de descrevê-las/ os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir/[…]. O que foi tornará a ser/ o que foi feito se fará novamente/ não há nada de novo sob o sol. […] Haverá algo de que se possa dizer: Vê! Isto é novo? Já foi nos séculos passados que foram antes de nós. […] Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e aflição do espírito […]. Tenho visto tudo que é feito sob o sol; tudo é inútil, é correr atrás do vento!”[18]. A vida não passa de um momento: são “dias contados, os poucos dias de vida que Deus nos deu”, “os dias de vida fugaz que Deus concedeu sob o sol”. Mas “também esta sabedoria é vaidade”, tudo é “vaidade e um cingir o vento”. Das coisas, magnânimas ou desprezíveis, nada permanece e têm apenas um valor relativo – exceto Deus: “Porque nunca haverá mais lembrança do sábio que do tolo/ porquanto de tudo nos dias futuros, total esquecimento haverá. E como morre o sábio, assim morre o tolo”. Repetição, evanescência, não senso e círculo desacreditam a alternância das gerações e o mundo. Tempo histórico e tempo natural se reúnem em uma mesma indiferença. De onde o superlativo “vaidade das vaidades”, “vento dos ventos” manifestar a incomensurabilidade da Vanidade de tudo. Por isso, o príncipe em sua sabedoria[19] não se esforça em mudar o curso do mundo.

O pessimismo filosófico e a tristeza moral do Eclesiastes encontram-se nas análises de Benjamin[20] do tempo paralisado das especulações de Blanqui sobre a eternidade pelos astros: “Misantropia de Blanqui: ‘As variações começam com os seres animados que têm vontades, dito de outra forma, caprichos. Desde que os homens fazem intervenções, a fantasia intervém com eles. Não que eles possam afetar muito o planeta… Sua turbulência jamais perturba seriamente o andamento natural dos fenômenos físicos, mas desequilibra a humanidade. É preciso, pois, prever esta influência subversiva que […] dilacera as nações e arruína os impérios. É claro que essas brutalidades acontecem sem sequer arranhar a epiderme terrestre. O desaparecimento dos perturbadores não deixaria vestígios de sua presença, que eles julgam soberana, e seria suficiente para devolver à natureza sua virgindade muito pouco atingida”‘[21]. Quanto ao trabalho, ele não enobrece o homem. Nenhuma grandeza, pois, do homo faber, apenas cansaço da repetição que provoca o tédio. Citando Schlegel, Benjamin observa: “Hércules também trabalhou, mas o objetivo de sua carreira sempre foi um nobre ócio e por isso chegou ao Olimpo. Não foi o caso de Prometeu, o inventor da educação e do Iluminismo… Por ter induzido os homens ao trabalho, ele também tem de trabalhar, queira ou não. Ele ainda sentirá muito tédio e nunca se libertará de suas correntes”[22]. No trabalho humano e em seus esforços, retorna o Eclesiastes, que só reconhece no labor o suor, o vazio, a fumaça, o Nada: “E olhei todas as obras que fizeram minhas mãos, como também para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito/ e eis que tudo era vaidade e aflição do espírito, e que proveito algum há no que se faz debaixo do sol”, “tudo é movência do vento, tudo vai para um mesmo lugar: tudo vem do pó, tudo volta ao pó”. Razão pela qual as Vanitas[23] representam objetos inertes, esqueletos, relógios, vasos frágeis de cristal, livros que não são lidos, flores; e as glórias mundanas passageiras são coroas, cetros, joias, círios, taças de ouro e metais brilhantes e luxuosos. Tudo é fugaz, e a vida, tênue como a chama de uma vela; o homem, destinado ao desaparecimento como qualquer objeto inanimado, sua existência é sem objetivo final. Neste sentido, Benjamin cita Nietzsche e a Vontade de Potência: “Pensemos este pensamento em sua forma mais terrível: a existência, tal como ela é, sem sentido ou objetivo, porém, repetindo-se inevitavelmente, sem um final, no nada: ‘o eterno retorno'[…]. Negamos objetivos finais: se a existência tivesse um, este já deveria ter sido atingido”[24].

A sociedade da “mobilização infinita” produz a exaustão, constrangendo permanentemente a se ter opinião formada sobre tudo: “O mundo atual”, anota Barthes, “está repleto de exigências de tomadas de posição (intervenções, manifestos, abaixo-assinados etc.), por isso é tão cansativo”[25]. “Cultura da arrogância”, a “tirania da visibilidade” dá ordens, está repleta de cominações, de desafios, de terrorismos, sendo um ininterrupto “querer capturar”, “apoderar-se”, “dominar”. Temporalidade do curto prazo e da não reflexão, ela dissipa a capacidade do projetar, o tempo se fechando sobre si mesmo, em um presente saturado de “comunicação”. O “cansaço de existir”[26] pesa sobre o presente: ”As noções de projeto, motivação e comunicação dominam nossa cultura normativa. São o código de nossa época. Ora, a depressão é uma patologia do tempo (o deprimido é sem futuro). E uma patologia da motivação (o deprimido não tem energia, seus movimentos são vagarosos e sua palavra, lenta). O deprimido dificilmente formula projetos. Falta-lhe energia para tanto. Inibido, impulsivo ou compulsivo, comunica-se mal consigo mesmo e com os outros. Sem perspectivas futuras e sem projetos, deficiente na comunicação, o deprimido é o avesso exato de nossas normas de socialização”[27]. A exaustão produz um tempo fechado sobre si mesmo e estagnado.

A mobilização infinita e a ideia de revolução permanente têm por infraestrutura o movimento perpétuo do capital, sua lógica de acumulação e circulação ininterruptas. Ao analisar o capitalismo e seu modo de produção, Marx escreveu: ”A burguesia só pode existir revolucionando constantemente os instrumentos de produção, o que quer dizer as relações de produção, isto é, todas as relações sociais. O mantenimento sem mudanças do antigo modo de produção era, ao contrário, para todas as classes sociais anteriores, a condição primeira de sua existência. O transtorno contínuo da produção, este constante abalo de todo o sistema social, esta agitação e esta insegurança eternas, distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações sociais, tradicionais e rígidas, com seu cortejo de concepções e de ideias antigas e veneráveis, dissolvem-se. Aquelas que as substituem envelhecem antes de se cristalizarem”[28].

Até o século XVIII, progresso indicava desenvolvimento gradativo, baseado nos valores da prudência e da virtu, do equilíbrio entre paciência e impaciência, característico da formação clássica e humanista. Enquanto os Antigos procuravam trazer o homem “extravagante” ao meson[29] ao justo meio, o homem moderno considera os progressos como não progressivos, dissimuladores de sua lentidão, vindo mesmo a significar “perenização do status quo”. O ativismo converte-se no imperativo ético de “derrubar todas as condições sociais em que o homem é rebaixado, submetido, abandonado, desprezível[30]. Na modernidade, o trabalho e o dinheiro, que até então não ocupavam nenhum espaço na vida moral, vieram a constituir o tecido mesmo da existência do indivíduo e das Nações, universalizando o tédio: “O trabalho na fábrica como infraestrutura econômica do tédio ideológico das classes superiores[31]. O trabalho mecanizado e as novas tecnologias incidem na economia do tempo, destituindo a cultura teórica e o savoir faire: “Michelet faz uma descrição muito inteligente e piedosa da condição dos primeiros operários especializados por volta de 1840. Eis o “inferno do tédio” nas tecelagens: “Sempre, sempre, sempre é a palavra invariável que retumba em nosso ouvido com rotação automática, que faz tremer o assoalho. Ninguém jamais se habitua a isso”. Muitas vezes as observações de Michelet (por exemplo aquelas sobre o devaneio e os ritmos dos ofícios) precedem intuitivamente as análises experimentais dos psicólogos modernos”[32]. Longe se está do trabalho repetitivo do artesão, a que não faltavam a marca pessoal e a espontaneidade. O artesão, em sentido filosófico, é aquele que domina uma techné profissional e cotidiana. Quando esta se torna rotina, o trabalho cai na dimensão do trivial, o que, entre os gregos, degradava o artesão à condição de banausoi, de “ignorantes”, pela ausência de mechané – de habilidade -, desaparecendo assim o “esmero”, a mais-valia espiritual da obra.

A diferença fundamental entre o mundo antigo e o moderno se encontra em que o moderno mobiliza todas as forças do homem sob o signo do trabalho e da produção, enquanto são antigas aquelas que se elaboram sob o princípio do exercício e da perfeição. Neste sentido, a Idade Média cristã não representou uma transição entre a Antiguidade e a Modernidade, mas, apesar de sua coloração cristã, não foi pós-antiga ou anteantiga, visto que foi muito mais uma época de exercício espiritual e de vita contemplativa que de trabalho, durante a qual se cruzavam essas tradições. Nesta perspectiva Benjamin anotou: “definitivamente a imagem da inquietação petrificada […] é uma imagem histórica. Ela mostra as forças da Antiguidade e do Cristianismo subitamente paralisadas em sua disputa, petrificadas em plena batalha, quando esta ainda não fora decidida. Em seu poema ‘À musa doente’, Baudelaire, em versos perfeitos – que nada revelam da natureza quimérica de seu desejo -, forneceu uma imagem ideal da saúde da musa justamente naquilo que é uma formulação do distúrbio dela: ‘Quisera eu que teu sangue cristão se derramasse na cadência/ das antigas sílabas de uníssona frequência/ quando reinavam Febo, o criador das cantigas, e o grande Pã, senhor do campo e das espigas’”[33].

Mundo clássico e Idade Média confundidos significam que a Idade Média, como o mundo grego, não compreende a atividade como produção, pertencendo ao regime da valorização do tempo livre. Nestes termos, “mesmo o labora beneditino, tido por vezes como uma concessão requisitada às orações, no espírito do trabalho, não era outra coisa senão uma extensão do exercício da meditação no uso material das mãos”[34]. Na afinidade entre trabalho e contemplação, mesmo o preceito “ora et labora” aproximava monges e laicos da vida artesanal, como o atesta a passagem regular de artesãos pelas oficinas dos mosteiros. Deste modo, os ateliês não são apenas lugares de produção de objetos de qualidade, mas o espaço de uma forma de subjetividade que se constrói entre a produção e a contemplação[35]. Com efeito, “o princípio artesanal funda-se na coincidência entre fabricação e exercício. Quem defende os artesãos toma simultaneamente sob sua proteção o aprendizado repetitivo, com sua lentidão e suas distâncias com respeito à originalidade[36].

No mundo moderno, o trabalho de longa duração foi substituído por aquele temporário e sem experiência. Diferentemente das performances antigas[37], que se orientavam pela finalidade natural e pelo ideal de perfeição – não se podendo ultrapassar os limites da natureza do homem-, a performance moderna é um traçado inacabado e em aberto que culmina na ambição de se superar a si mesmo, a fim de “otimizar” o humano na busca de recordes: produzir sempre mais e em menor tempo, correr mais depressa do que os predecessores, saltar mais alto, levantar pesos mais pesados. Recusando a reflexão sobre os fins últimos e· o sumo Bem, o progresso é sem direção. Eis por que Benjamin o representou na figura de um Anjo arrebatado pelo vento, arrastado às cegas, de costas para o futuro[38], diante de uma paisagem de escombros e destruição. Cenário da Primeira Guerra Mundial que se prolonga no presente, ela foi a associação da velocidade e da técnica, cânones do futurismo em seu culto da máquina e dos engenhos de aceleração vertiginosos como símbolo por excelência da modernidade. Rejeitando a inércia, os museus e as bibliotecas, o futurismo prefere a estética do automóvel, da locomotiva e dos “aviões bombardeiros”[39]. O céu do guerreiro não é mais um cosmos ordenado, mas aquele de onde um novo Deus – o piloto de guerra – destrói o mundo: “No piloto de um único avião carregado com bombas de gás concentram-se todos os poderes – o de privar o cidadão de luz, do ar e da vida – que na paz estão divididos entre milhares de chefes de escritório. O modesto lançador de bombas, na solidão das alturas, sozinho consigo e com Deus, tem uma procuração de seu superior, o Estado, gravemente enfermo, e nenhuma vegetação volta a crescer onde ele põe a sua assinatura”[40]. O firmamento das estrelas fixas e dos astros errantes que a Antiguidade contemplou não é mais o da beleza e perfeição misteriosa, mas sim, como o caracterizou Baudelaire, a “cúpula ‘spleenática’ do céu” que, como uma “tampa”, pesa sobre o mundo. E isto porque a História nas mãos dos homens escapou ao controle racionalista; e a economia, aliando-se à técnica, formou um poder que a razão não consegue mais gerir. Sobre a modernidade barroca, Benjamin anotou: ”As ações humanas foram privadas de todo valor. Algo novo surgiu: um mundo vazio!”[41]. Devastação das guerras, o progresso são as catástrofes em permanência.

Por isso Benjamin refere-se à teoria da repetição e ao eterno retorno dos astros em sua trajetória: “Sobre L’Éternité par les astres [de Blanqui]: neste texto está disposto o céu no qual os homens do século XIX veem as estrelas”[42]. Do cosmos antigo, cujo silêncio enchia Pascal de angústia e pavor, emanavam os eflúvios de Saturno, que tornavam o homem refinado e sensível, ao mesmo tempo que moroso e indeciso, desesperado e inconsolável: desse céu restam o tédio e o Eterno Retorno. Benjamin encontra esta percepção do tempo em Proust: “O sentimento de uma ‘imperfeição incurável’ (Cf. Les Plaisirs et les jours, cit. na homenagem de Gide) ‘na própria essência do presente’ foi talvez para Proust o motivo principal de procurar conhecer a sociedade mundana até suas últimas dobras, e talvez seja até mesmo um motivo fundamental das reuniões sociais dos homens em geral”[43]. Conhecer os entretenimentos desta sociedade é saber como ela se defende do tédio.

O homem moderno refutou a doutrina dos humores e as influências de Saturno, regente dos melancólicos e contemplativos porque astro da “viagem interior”, o cosmos tornando-se um assunto banal, assunto de especulações que nada comportam de admiração, pois são mera meteorologia: “Como as forças cósmicas têm apenas um efeito narcotizante sobre o homem vazio e frágil, é o que revela a relação dele com uma das manifestações superiores e mais suaves dessas forças: o tempo atmosférico. É muito significativo que justamente esta influência, a mais íntima e misteriosa exercida pelo tempo sobre os homens, veio a se tornar o tema de suas conversas mais vazias. Nada entedia mais o homem comum do que o cosmos. Daí resulta a íntima ligação, para ele, entre o tempo e o tédio. Um belo exemplo de superação irônica desta atitude é a história do inglês ‘spleenático’ que, certa manhã, desperta e dá um tiro na cabeça porque lá fora chove”[44]. Benjamin evoca, também, a pintura de Giorgio de Chirico, que afirmava “só em Paris ser possível pintar. As ruas têm tantos tons de cinza…”[45] Nas paisagens urbanas de De Chirico a vida é cristalizada e imóvel, como uma natureza-morta, repetindo indiferente e para sempre as mesmas sombras crepusculares, os mesmos arcos e a mesma estátua da Melancolia, enigmática em seu cansaço e em sua espera inútil. A Melancolia, Anjo visionário e de Imaginação alada da Renascença, decai em tédio no mundo em que tudo passa a ter um valor mercantil: “A existência, tal como é, sem significado e sem objetivo, mas retornando inevitavelmente sem-fim ao nada: o eterno retorno”[46].

Benjamin reconhece em Baudelaire a percepção desse tempo estagnado e patológico, que converte o “palácio de cristal” do consumo capitalista, em suas passagens e galerias feéricas, em labirinto sem saída, um tempo espacializado, plasmado numa mens momentanea, sem passado e sem futuro, sem experiência[47]. Inspirado no fragmento dos Pensamentos de Pascal dedicado à Vaidade, Baudelaire reúne o tema da Miséria do homem na condição de criatura ao Tédio. No poema “O abismo”, lê-se: “Pascal em si tinha um abismo se movendo/ Ai, tudo é abismo! sonho. Ação, desejo intenso/ Palavra! E sobre mim, num calafrio eu penso/ Sentir do medo o vento às vezes se estendendo./ Em volta, no alto, embaixo, a profundeza, o denso/ Silêncio/ A tumba, o espaço cativante e horrendo/ Em minhas noites, Deus, o sábio dedo erguendo/ Desenha um pesadelo multiforme e imenso/ Tenho medo do sono, o túnel que me esconde/ Cheio de vago horror, levando não sei aonde/ Do infinito, à janela eu gozo os cruéis prazeres/ E meu espírito ébrio afeito ao desvario/ Ao nada inveja a insensibilidade e o frio/ Ah! Não sair jamais dos Números e dos Seres!/ O Ser e os números inteligíveis, não sujeitos à degradação temporal, contra o aniquilamento e o Nada”[48]. Em As flores do mal, Benjamin encontra no tédio o Nada moderno, sua pré e sua pós-história. O tema do tédio converte o ornamento do mundo – as flores – em natureza-morta:

“A aparição da flor posteriormente no Jugendstil tem significado para o título Les Fleurs du mal. Esta obra estende o arco que vai do taedium vitae dos romanos ao ]ugendstil”[49]Taedium vitae, o “desgosto de viver”, é esse mal-estar imotivado e impreciso, nem doença, nem estado de penúria material ou moral, que se espalha, porém, por toda a existência. Esta crise interior de difícil identificação é o sentir-se mal no mundo e consigo mesmo[50]. O desconforto de viver e a cultura tecnológica das inovações ligadas à produção e ao consumo reúnem-se. O Jugendstil, com seus ornamentos florais, dissimulando a técnica e a matéria sem vida nas ondulações do ferro, é vegetação que não dá frutos porque é natureza-morta.

No Jugendstil Benjamin assinala uma doença que é um emblema social: “Os doentes têm um conhecimento muito particular do estado da sociedade; neles, o desencadear-se das paixões privadas se transforma em certa medida em um faro inspirado para a atmosfera na qual os contemporâneos respiram. Mas a zona desta mudança radical é a ‘nervosidade’. Seria importante estabelecer se a própria palavra não se tornou moda no Jugendstil. Os nervos, em todo caso, são fibras inspiradas, assemelham-se a estas fibras que serpenteavam, se estreitando frustradas, em sinuosidades febris à volta do mobiliário e das fachadas”[51].

Decoração, por assim dizer, histérica, as flores do mal são também as prostitutas, cocottes, grisettes, hirondelles, lorettes, ornamento de janelas e esquinas, de ruas e fachadas, todas elas saturadas de maquiagem e adereços. Algo semelhante se manifesta nos interiores burgueses, que Benjamin descreve, citando Kierkegaard, de Adorno: “Todas as figuras espaciais do intérieur são mera decoração; estranhas à finalidade que representam, desprovidas de valor de uso próprio, produzidas apenas a partir da moradia isolada[…]. Imagens arcaicas desabrocham no intérieur: a imagem da flor como a da vida orgânica, a imagem do Oriente como a da pátria nominal da saudade, a imagem do amor como a da própria eternidade. Pois a aparência à qual as coisas estão condenadas por seu momento histórico é eterna”[52]. Neste sentido, Benjamin analisa os interiores burgueses de Luís Filipe e Napoleão III observando como neles exorbitam enfeites, espelhos guarnecidos de dourados, paredes revestidas de tecidos cintilantes com desenhos florais, tapetes orientais, mobília em forma de naves e cadeiras góticas, de onde “o burguês via o mundo”, com o ilusório sentimento de segurança no mundo do capital[53]. “O intérieur do século XIX. O espaço se disfarça, assumindo a roupagem dos estados de ânimo como um ser sedutor. O pequeno-burguês satisfeito consigo mesmo deve experimentar algo da sensação de que no aposento ao lado pudessem ter ocorrido tanto a coroação do imperador Carlos Magno como o assassinato de Henrique IV, a assinatura do tratado de Verdum ou o casamento de Otto e de Teófano. Ao final, as coisas são apenas manequins, e mesmo os grandes momentos da História universal são apenas roupagens sob as quais elas trocam olhares de conivência com o nada, com o trivial e o banal. Semelhante niilismo é o cerne do aconchego burguês […], o intérieur dessa época é, ele mesmo, um estimulante da embriaguez e do sonho. Aliás, esse estado de espírito implica uma aversão contra o espaço aberto, por assim dizer, uraniano, que lança uma nova luz sobre a extravagante arte decorativa dos espaços interiores da época. Viver dentro deles era como ter se enredado numa teia de aranha espessa, urdida por nós mesmos, na qual os acontecimentos do mundo ficam suspensos, esparsos, como corpos de insetos ressecados. Essa é a toca que não queremos abandonar[54]. Interiores historicistas, eles reproduzem um passado para uma época que necessita simular uma história de que ela mesma é carente, por ser um tempo sem experiências. Esses interiores sufocantes são também uma clausura do tempo. Tempo em huis clos, é Baudelaire quem o compreende na modernização da cidade de Paris e seus progressos técnicos. “Teologia do inferno”, nela o tédio é contemporâneo das filosofias do progresso, que instituem o reino secular de objetos mortos e regras arbitrárias em um mundo sem transcendência ou esperança de salvação.
Nos Carceri de Piranesi encontra-se a inspiração da onirocrítica baudelairiana[55]. No delírio da malária, o arquiteto veneziano e gravurista das ruínas da Roma antiga concebeu suas prisões-calabouço, figurações do fechamento do mundo moderno e da patologia do presente. Partindo dos vestígios das edificações de Roma, de Pompeia e Herculano, Piranesi desloca o sentido da arquitetura clássica, descobrindo na beleza das medidas e das perfeitas proporções os fantasmas que delas emanam, envolvendo a lógica e a clareza das “Vistas e antiguidades de Roma” em neblinas insólitas e crepúsculos inquietantes. Contrastando o equilíbrio da geometria de arcos e colunas, suas escadarias e túneis, mosaicos estilhaçados e abóbadas inclinadas em assimetrias diagonais sugerem desmoronamentos. No recôndito de seus salões, máquinas inidentificáveis e perturbantes, roldanas e polias, gruas e cabos técnicos se transformam. Esses simples objetos convertem-se em instrumentos de tortura. Correntes aderidas às paredes como uma vegetação silvestre são reminiscências arqueológicas da degradação do tempo e dos homens. Nesses interiores, o tempo, como o ar, está parado. Se nas ruínas de Roma ressoava a harpa eólea, e na vegetação campestre, o rumor do vento, há nas prisões um ameaçador silêncio, repentinamente atravessado por um suspiro das diminutas personagens perdidas nessas vastas galerias de pedra. Escadarias de nada valem para uma fuga porque pelas claraboias não passa nenhuma luz. Em tais perspectivas, o irracional não procede de inclinações inesperadas e falta de medida – pois nelas há geometria e exatidão -, mas de cálculos cujas proporções são falsas – as minúsculas personagens nas galerias parecem separadas umas das outras por horas de caminhada. Nos salões imensos mas confinados em retângulos, as saídas se deparam com paredes, um trompe-l’oeil que agrava o pesadelo de um espaço recluso e, simultaneamente, sem centro, fechado e em expansão, como se o espaço fosse matematicamente infinito[56]. Juízo Final, Inferno, Dies Irae, nessa “teologia do inferno” nenhum Deus prescreve o lugar ao condenado. Universo fantasmagórico, com audácias demoníacas, ruínas clássicas se agregam nesses palácios transfigurados em prisão, de que derivam reações psíquicas de angústia e pânico. Depressão e stress, portanto, que se condensam no tédio moderno[57]. No poema “De profundis Clamavi”, o “universo é morno e o horizonte plúmbeo”, com a “fria crueldade de um sol que congela”: “Por seis meses um morno sol dissolve a bruma/ E durante outros seis a noite cobre o solo/ É um país bem mais nu que o desnudo polo/ Nem bestas, nem regatos, nem floresta algumar/ Não há no mundo horror que comparar-se possa/ À luz perversa desse sol que o gelo acossa/ E à noite imensa que no velho Caos se abriu/ Invejo a sorte do animal mais vil/ Capaz de mergulhar num sono que enregela/ Enquanto o Dédalo do tempo se enovela”[58].

Dédalo, o construtor do palácio de Cnossos, concebeu a régua e compasso o labirinto de onde o Minotauro não conseguisse sair. Esse labirinto espacial se converte, agora, em labirinto do tempo, no tempo espacializado em que se enreda o próprio fio de Ariadne. Pesadelo do presente, Baudelaire assim o descreve em sua “Interpretação de sonhos”, “Onéirocritie”: “Sintomas de ruínas. Construções imensas, pelágicas, uma sobre a outra. Apartamentos, quartos, templos, galerias, escadas, becos sem saída, belvederes, postes de luz, fontes, estátuas. – Fendas, rachaduras. Umidade proveniente de um reservatório situado perto do céu[…]. Bem no alto uma coluna estala e suas duas extremidades se deslocam. Nada ainda desabou. Não consigo encontrar a saída. Desço, depois subo. Uma torre. – Labirinto. Nunca consegui sair. Morarei para todo o sempre numa construção que vai desabar, uma construção afetada por uma doença secreta. – Calculo, mentalmente, para me divertir, se uma tão prodigiosa massa, pedras, mármores, estátuas, paredes que vão se chocar umas contra as outras, serão infectadas por essa multidão de cérebros, de carnes humanas e de ossadas trituradas. Vejo coisas tão terríveis em sonho que gostaria algumas vezes de não mais dormir, se tivesse certeza de não me fatigar demais”[59]. Eternidade negativa, esse tempo doentio é um labirinto repleto de ruas, arcadas, escadarias e cadáveres.

O labirinto do século XX, diversamente, é a céu aberto. Razão pela qual Benjamin contrapõe a “rua” ao antigo caminho: “Os dois são inteiramente diferentes no que diz respeito a sua natureza mitológica. O caminho traz consigo os terrores da errância. Um reflexo deles deve ter recaído sobre os líderes dos povos nômades. Ainda hoje, nas voltas e decisões incalculáveis dos caminhos, todo caminhante solitário sente o poder que as antigas diretrizes exerciam sobre as hordas errantes[60]. Entretanto, quem percorre uma rua parece não precisar de uma mão que o acompanhe e guie. Não é na errância que o homem sucumbe à rua; ele é submetido, ao contrário, pela faixa de asfalto, monótona e fascinante, que se desenrola diante dele. A síntese desses dois terrores, no entanto – a errância monótona [o risco de perdição e a monotonia] é representada pelo labirinto”[61]. O labirinto é prisão em que a infinidade do espaço coincide com seu fechamento. Fantasmagoria do espaço e de privação do espaço, o labirinto identifica-se com a fonte de todas as perversidades e também da ânsia por novidades.

Na Paris do século XIX, Benjamin procura passagens e saídas: “Sentimos tédio quando não sabemos o que estamos esperando. O fato de o sabermos ou imaginar que o sabemos é quase sempre nada mais que a expressão de nossa superficialidade ou distração. O tédio é o limiar de grandes feitos. Seria importante saber: qual é o oposto dialético do tédio?[62]. Se o tédio é o tempo que se cristalizou, sua contrapartida é a Dialektik im Stillsand, não o tempo parado, mas em “estado de repouso”. A “dialética na imobilidade” é a suspensão do tempo em relação ao continuum do progresso, de suas agitações e intranquilidades, indicando um presente que não é transição entre passado e futuro, mas que “para e se imobiliza”[63].

Movimento e interrupção do movimento, Benjamin os encontra em considerações etimológicas: “Os franceses dizem ‘allure’ [postura, posição, velocidade], nós [alemães] Haltung [atitude, comporta­ mento, parada, o deter-se], as duas palavras prendem-se à ideia de ‘andar’. Mas, para designar a mesma coisa – e esta observação mostra bem em que sentido restritivo é a mesma coisa-, o francês fala do próprio passo – allure [de aller, ir] -, o alemão de sua interrupção – Haltung [parar, deter-se]”[64]. Esse tempo em estado de repouso é um “movimento imóvel”[65] uma unidade indiferente à sucessão temporal e histórica, é mônada que suspende seu curso: “Pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização”[66].

A “dialética na imobilidade” reconduz à questão da ação e do não agir na História. Da vita contemplativa da Grécia e da Idade Média passou-se para a vita activa da Renascença, o que se transformou no imperativo de mudar o mundo pela intervenção da vontade do homem. No passado, a Filosofia contrapunha-se em parte a isso, o ideal de tranquilidade da alma suscitando a questão acerca da ação do homem no sentido de uma “arte de viver”. Ideal de tranquilidade e exigência de ação se associam e se mesclam, pois se trata da saúde da cidade e daquela do indivíduo. Eis por que a tranquilidade se encontra à distância de dois excessos opostos, a ociosidade e a preguiça (argia), por um lado, a intriga e o ativismo, de outro (periergia). O bom cidadão é, mesmo na democracia ateniense, um apragmôn, um não ativo e não atarefado, pois a tranquilidade é um ideal comum de toda a cidade. A tranquilidade é aqui “repouso” e “inação”, mas inclui indivíduos que são, ao mesmo tempo, tranquilos ativos, isto é, os que trabalham para conhecer, para saber: “[um] princípio comum às diversas escolas é a identificação da felicidade com a tranquilidade da alma. Entre as muitas razões que justificam esse dado histórico[…] destaca-se que o ócio e o ideal de tranquilidade correspondem à emergência, na Idade Clássica, de um novo modo de vida: o intelectual”[67].

Constrangimentos do ativismo democrático sobre cidadãos tranquilos e destes sobre os ativos, da Atenas democrática sobre a Grécia dos filósofos e sábios, constituem um novo modo de vida e de pensamento. Contra sicofantes e “promotores públicos”, “amadores de querelas”, contra seu “excesso de curiosidade” e seu gosto da intriga, a scholé vem significar o tempo livre, o “nada fazer”, nem trabalho, nem ação política, para agir bem e se consolar. Parece ter sido uma exceção no passado, a Lei de Sólon, que “privava de direitos o cidadão que, em caso de guerra civil, não tivesse se engajado em um dos dois lados”. Nas Vidas paralelas, Plutarco se refere à perplexidade de Aristóteles com tal lei, uma vez que esta designa a política como conflito frontal e não como abertura a situações não previstas na Lei, lei que é a interdição deliberada de qualquer outra possibilidade ou alternativa”[68].

A injunção de só haver uma escolha traz consigo a ideia de destino. Por isso, a importância de suas pausas. Em “Destino e caráter”, Benjamin interroga o tempo contínuo da predeterminação, a partir de Heráclito, que afirmou: “O caráter de um homem é seu destino”, a fim de compreender se o destino é algo constante e previsível, ou se há futuro e indeterminação. Se o conjunto de disposições naturais interiores e das circunstâncias exteriores, se caráter e caráter adquirido – ethos hexis”[69] – bastassem para determinar um destino, a situação seria a do tirano platônico[70] que, ao renascer, repetirá a tirania, seu caráter do passado tendo determinando um destino. Quando se acredita em destino, buscam-se os adivinhos. Para Benjamin, grafólogos, quiromantes, astrólogos, cartomantes não possuem um saber antecipado de nossas vidas, apenas imagens de nós mesmos e desse eu movente, que nos são apresentadas como máscaras: ”A pretensa imagem interior que nós trazemos em nós de nossa própria essência é, a cada minuto, pura improvisação. Ela se orienta por inteiro pelas máscaras que lhe são apresentadas. O mundo é um arsenal de tais máscaras[…]. A [um] jogo de máscaras aspiramos como a uma embriaguez, e é o que faz viver até hoje as cartomantes, os quiromantes, os astrólogos. Eles sabem nos colocar em uma dessas pausas silenciosas do destino, nas quais só mais tarde se nota que elas continham o germe de um destino completamente outro do que o que nos foi reservado”[71]. Assim, a pausa do destino é a presença do acaso, do fortuito, do aleatório, como no jogo: “O que é o jogo senão a arte de viver num segundo as mudanças que o destino geralmente só produz ao longo de muitas horas e mesmo de muitos anos; a arte de acumular num só instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos?[…]. O jogo é um corpo a corpo com o destino”[72].

Benjamin separa destino e caráter na personagem do flâneur parisino. Por seu comportamento errático, contingente e acidental, sabe enfrentar o destino desastroso com a incerteza de seu andar sem sentido ou finalidade precisa. Como no materialismo antigo, para o flâneur o mundo é “uma imensa maquinaria construída fortuitamente”, que só tem o acaso por agente e máscaras como escolhas. Citando Flaubert, Benjamin anota: “Vejo-me com muita nitidez em diferentes épocas da história… Fui barqueiro no Nilo, cáften em Roma no tempo das guerras púnicas, depois orador grego em Subura, onde fui devorado pelas pulgas. Morri durante uma cruzada, por ter comido uvas em excesso nas praias da Síria. Fui pirata e monge, saltimbanco e cocheiro, talvez também imperador no Oriente”[73]. Mesmo reconhecendo a analogia entre o flâneur e a mercadoria na sociedade capitalista[74], o flâneur tem lá sua maneira de escapar do tédio e ao destino, desenvolvendo um caráter extremamente resistente ao clima chuvoso e ao cinzento da cidade, às predições astrológicas e à irracionalidade de ações, ao eterno retorno e ao sempre igual. Caos e ordem não o impressionam muito, porque não se orienta por um trajeto em linha reta, mas pelos decursos do caminhar: “O labirinto é a pátria de quem hesita. O caminho daquele que teme chegar a um fim desenhará facilmente um labirinto”[75]. Guiado por sua curiosidade aleatória, sua irresolução desloca a força do destino e a do caráter: “A singular indecisão do flâneur. Assim como a espera parece ser o estado próprio do contemplador impassível, a dúvida parecer ser o do flâneur. Em uma elegia de Schiller, lê-se: ‘a asa indecisa da borboleta’. Isso remete à correlação entre a eufórica leveza e o sentimento da dúvida, tão característica da embriaguez no haxixe”[76]. Tal como o inebriamento do vinho em Baudelaire, o haxixe produz uma embriaguez sutil que apura os sentidos e o espírito, uma “embriaguez sóbria” que torna as faculdades cognitivas mais clarividentes, o oposto do entorpecimento.

Mais próxima da tradição do ceticismo antigo que do hedonismo, a dialética na imobilidade permite contemplar imperturbável a agitação das coisas e as miragens ao redor. Em seus “Escritos autobiográficos”, Benjamin descreve a ataraxia pelo haxixe: “Eu muitas vezes me perguntei se esta disposição pacífica particular não se prendia a este espírito de contemplação a que faz aceder o uso das drogas[…]. Um sentimento que não me é inspirado por nenhum sentimento de pânico agudo, mas que, tão profundamente ligado que ele esteja ao cansaço da luta que levo em minha vida no front econômico, não seria no entanto possível sem o sentimento de ter vivido uma vida da qual os anseios mais caros foram satis­ feitos, votos de que, a bem dizer, só agora eu reconheço o texto original, texto de uma página recoberta em seguida pela escrita de meu destino”[77]. Ao entorno turbulento – a Primeira Guerra Mundial, a hiperinflação, os enfrentamentos sangrentos entre comunistas e fascistas, a ascensão do nazismo, a emigração para Paris, a Segunda Guerra Mundial – Benjamin propõe uma “ausência”, a “dialética em estado de repouso” ou “paralisação”, o que permite, ainda que por breves instantes, escapar ao destino. A suspensão do tempo é um limiar: “O primeiro transe [do haxixe] fez-me comparar a hesitação ao adejar de uma borboleta; a hesitação repousava em mim como uma indiferença criadora. Na segunda tentativa, as coisas é que pareciam irresolutas”[78]. Esta hesitação acerca de si mesmo ou das coisas corresponde ao anjo da dúvida, a esperança de escapar ao fado. Sobre o anjo da esperança, de Andrea Pisano, no portal do batistério de Florença, Benjamin escreve: “A Spes está sentada e, impotente, estende os braços para um fruto a que não pode aceder. E no entanto ela tem asas. Nada é mais certo”[79].

Movimento imóvel, ela suspende o ato, desviando-se assim do ardor da ação, entregando-se à tranquilidade, em estado de atenção distraída do Outro, mas também de si mesma.

Esta suspensão é a faculdade de ser livre em qualquer momento, mesmo nos mais pungentes, como o gesto do jogador, sempre começando do zero suas apostas: “Sobre o jogo: quanto menos um homem é preso nas malhas do destino, tanto menos ele é determinado por aquilo que lhe é mais próximo”[80]. Há, pois, um elo entre o calor da ação e a calma da inação, entre a inquietação e a serenidade, no interior de um mesmo instante. Na tese X de “Sobre o conceito de História”, lê-se: “Os objetos que as regras claustrais assinalavam à meditação dos monges tinham como função desviá-los do mundo e de suas pompas. Nossas reflexões partem de uma determinação análoga”[81]. As pompas barrocas, exorbitantes em suas procissões, carruagens, adereços, suas igrejas recobertas de querubins que revoam, turbilhões de personagens em levitação extática, falsas colunas, todas as glórias hipnóticas do mundo formam a contraparte da cela despojada e solitária do monge. Mas afastar-se das pompas do mundo significava menos a recusa da vanidade das coisas do mundo e mais a percepção da instabilidade e impermanência de suas leis. Se a dialética na imobilidade reconhece afinidades entre as drogas e a graça divina é pela estreita relação entre contemplação e apatheia, o que exclui perturbação e medo. Afastar o santo do mundo e de suas pompas[82], a suspensão do tempo, o analgésico dos antigos imersos no caos saturante do alvoroço do mundo em guerra, esta époché[83] libera do excesso de exterioridade e dispõe à quietude da distração com respeito aos fatos. Sentimento de segurança inconsciente e suavidade de uma estabilidade íntima, a dialética em estado de repouso é o esquecimento de si, da mesma forma que liberar o tempo é liberá-lo de seu fechamento e clausura[84]. Nesta pausa do destino, não se trata apenas de espera, mas de uma inversão do que se configurava como um destino. Suspender o tempo é desviar-se de dogmatismos: “Aspereza, arrogância e farisaísmo são traços que só se encontram raramente em viciados”[85].

Neste sentido, movimento e repouso não se opõem, porque o devir não é um continuum abstrato do tempo que não cessa de passar. O panta rei de Heráclito é: “O movimento que se transformando repousa”[86]. A doutrina da impermanência alcança outro patamar, pois cada momento traz em si mesmo o índice da redenção, cada momento que repousa é sua plena realização, sem passado nem futuro, como no jogo: A noção de jogo consiste nisso… que a partida seguinte não depende da precedente… O jogo nega energicamente toda situação adquirida, todo antecedente… que faz lembrar ações passadas e é nisso que ele se distingue do trabalho. O jogo rejeita… esse peso do passado, que é o apoio do trabalho e que constitui a seriedade, a preocupação, o planejamento do futuro, o direito, o poder… Essa ideia de recomeçar… e de fazer melhor… acontece muitas vezes no trabalho infeliz: mas ela é vã…”[87]. Momentos descontínuos do tempo são, para Benjamin, um fim em si mesmos, não subordinados a nenhum continuum ou direção, liberando-se da inibição do tempo. A dialética em estado de repouso é a “familiaridade com o não ser”[88], é não querer sair desta “toca”. Esta suspensão do tempo é o instante em que nada ainda aconteceu. Dante, no canto XV do Paraíso, a ele se referiu, ao lembrar a antiga Florença: ”As casas não estavam desertas[…]. Sardanapalo ainda não tinha vindo mostrar tudo o que se pode fazer dentro de um quarto”[89].

Em A morte de Sardanapalo, Delacroix figura a calma do último rei assírio. Sitiado pelas tropas de Arbakés, decidiu-se pelo suicídio e incendiou Nínive. A fumaça inunda a alcova do rei que, ordenando a seus oficiais o massacre de suas concubinas, eunucos e cavalos, permanece imóvel recostado no seu leito, abandonado a seus pensamentos. Rodeado de crimes, languescido em almofadas macias, dobrou uma perna para ficar mais confortável. Tirano efeminado, enfatiza a lenda, Delacroix não descuida de enfeitar cada um de seus dedos com brilhantes anéis. Efeminado mas que, no coração da catástrofe, consegue um desprendimento viril em uma impassibilidade ausente e distraída. Nada poderia aumentar ou diminuir a dor do rei. Levada ao paroxismo, a violência do massacre não poderia perturbá-lo em sua calma interior que nasce dessa indiferença ao mundo e do repouso em si mesmo. Nem os gritos das mulheres, os lamentos dos agonizantes ou o relinchar de seus cavalos importam a esta indolência meditativa, ao espírito que divaga em quietude. Por isso, também seu olhar ausente, dirigindo-o para fora da cena na qual se encontra. Aqui se trata de serenidade e não de tédio. Benjamin opõe ao tédio “a tranquilidade da alma”, escrevendo: “Tédio nas cenas de cerimônia nos quadros históricos e o dolce far niente dos quadros de batalha, com tudo que reside na fumaça de pólvora”[90].

Em meio aos tormentos, o tempo ataráxico atualiza o ideário da metafísica da impermanência, da lei do efêmero, da vanidade das coisas e da grandeza do instante, que Benjamin identifica em Focillon. No tempo estético da “vida das formas”, o classicismo alcança esse momento de estabilidade e segurança que encontra solidez no próprio movimento, para além dos meandros do tempo. Este movimento imóvel representa o “breve instante de plena possessão das formas [que] se apresenta não como uma lenta e monótona aplicação das ‘regras’, mas como uma rápida felicidade, como a akmê dos gregos: o fiel da balança não oscila senão levemente. O que espero, não é de logo vê-la novamente pender, menos ainda o momento da fixidez absoluta, mas, no milagre desta imobilidade hesitante, o leve tremular, imperceptível, que indica que ela vive”[91]. Instante preciso em que se reabrirá o tempo, nem cedo demais nem tarde demais[92], ele nada tem em comum com agendas e relógios. Muito antes da invenção do calendário, os gregos conheceram o kairós, o instante feliz, bem escolhido ou ofertado pelos deuses, o momento justo da ação. Se hoje é difícil reconhecê-lo e o apreender na multiplicidade dos momentos que se sucedem é porque o tempo qualitativo se perdeu sob as pressões da aceleração de um tempo homogêneo com tendências conformistas. O just intime é a degradação do kairós, e o timing é gerenciamento do tempo. Diversamente da espera descansada do bom momento, o timing constrange o tempo pelo planejamento, pelo cálculo, pela força ou pelo terror. A dialética na imobilidade, ao contrário, delineia uma Idade de Ouro, como a dos príncipes das narrativas taoistas. Conta-se que “nos primeiros tempos do reino, os súditos mal se davam conta de terem um príncipe, a tal ponto sua ação era discreta, tão suave era a presença dos antigos soberanos”[93].

Utopia política do pudor e do discreto, a dialética na imobilidade não suprime o tempo, pois “há tempo até mesmo na eternidade, mas não é um tempo terreno e mundano… Ele não destrói nada, ele completa [tudo]”[94]. Tempo da delicadeza, a dialética na imobilidade é a espera do momento oportuno, quando o tempo volte a se abrir.

Notas

  1. Walter Benjamin, Haxixe, trad. Flávio de Menezes e Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 123. 
  2. A canção de ninar [é][…] um dos primeiros objetos culturais com valor literário a que o ser humano é exposto”. Cf. Sílvia Pinheiro Machado, “Canção de ninar brasileira: aproximações”. Tese de Doutorado, Departamento de Teoria Literária-USP, 2012. 
  3. Cf . Walter Benjamin, Tese de “Sobre o conceito de História”, Obras escolhidas, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, p. 222. O autômato benjaminiano diferencia-se daquele cartesiano e do de Edgar Allan Poe. A referência desta tese é o conto “O jogador de xadrez de Maezel”, de Edgar Allan Poe, que expõe os arcanos da técnica, seus efeitos de terror e maravilhamento. Diferentemente do autômato cartesiano, que tem em si mesmo o princípio de seu movimento – como o mecanismo dos relógios -, para Poe a máquina imita o humano e assim depende dele, uma vez que ela joga sempre de maneira cega, desconsiderando todas as peças do tabuleiro, só reagindo à peça do jogador. Já o autômato de Benjamin requer a teologia. 
  4. Cf. Carla Mongardini, Miedo y Sociedad, trad. Pepa Linares, Alianza Editorial: Madri, 2007, p. 18. 
  5. Cf. Giorgio Agamben. Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale, Turim: Einaudi, 1977. 
  6. Cf. Walter Maser, “Mélancolie et Nostalgie: affects de la Spatzeit”, Revue d’Etudes Littéraires, v. 31, n. 2, 1999. 
  7. Cf. Karl Marx, Fondements de la Critique de l’Économie Politique, Paris: Anthropos, 1968, p. 220. 
  8. Cf. Walter Benjamin, Passagens, trad. Irene Aron e Cleonice Mourão, Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 151. 
  9. Cf. Peter Sloterdijk, Tu dois changer ta vie, trad. Olivier Mannoni, Paris: Libella, 2011, p. 418. Diferentemente do trabalho sem qualidades, em que o trabalhador é um apêndice da máquina e no qual Marx identificou a condição propriamente proletária, o trabalho do artesão representou o aprimoramento da capacidade artesanal até alcançar o estatuto de atividade artística, cujo emblema foi o saleiro fabricado em muitos anos, provavelmente entre 1540 e 1544, por Benvenuto Cellini, para o rei da França Francisco I. Entre as personagens mitológicas, Cibele e Netuno, a deusa da terra e o deus do mar, há um pequeno barco onde se colocaria o sal, figuração do encontro entre o mar e a terra. Esferas de marfim incrustadas sob o pedestal permitem deslocar o saleiro na superfície da mesa para todos os comensais. O saleiro, que mede 35 centímetros de comprimento e 25 de altura, é uma obra feita de filigranas de ouro de tal modo admirável que não poderia mais servir de uso cotidiano, a admiração se integrando a sua forma. 
  10. Cf. Walter Benjamin, “O autor como produtor”. Não há um sentido unívoco para o conceito de «dispersão” ou, “atenção distraída”. No ensaio “Teatro e rádio”, de 1932, e em “O autor como produtor” de 1934, Benjamin diferencia o “teatro épico” do teatro das grandes cidades, o “teatro de convenção”, neste havendo funções complementares entre cultura e entretenimento (Zerstreuung). No teatro épico, o “treinamento” se estabelece em lugar da “cultura” (Bildung). O efeito de distanciamento crítico – pela interrupção da sequências nas cenas e de intermitências através da repentina intrusão de uma canção, do uso de cartazes explicativos etc. – permitiria imaginar algo diverso do que a sequência esperada na encenação. Já em fragmentos das Passagens, em ”. Alguns temas em Baudelaire”, dispersão e embriaguez têm algo em comum, como também no ensaio sobre “O Surrealismo, último instantâneo da inteligência europeia”, ambas associadas nas “iluminações profanas”. Neste sentido, a interrupção e o choque a que está sujeito o indivíduo na metrópole moderna determinam a dispersão, mas ao mesmo tempo também uma intensificação da atenção e da vigilância de que se necessita para enfrentar o trânsito das grandes cidades, a movimentação das ações na bolsa de valores ou a improvisação de um grupo de jazz. O desvio de atenção é tanto fragmentado como concentrado. Há ainda um outro sentido da distração como distração com respeito a si mesmo e aos eventos traumatizantes, como se verá na sequência do ensaio. 
  11. Bernard Stiegler, Prendre soin de la jeunesse et des générations, Paris: Flammarion, 2007, pp. I44 e ss. 
  12. Walter Benjamin, “Paris, capital do século XIX”, Passagens, op. cit., p. 51. 
  13. Carta de Benjamin a Adorno, 7 de maio de 1940. 
  14. Remo Bodei, La sensation du déjà vu, trad. Jean-Paul Manganaro, Paris: Seuil, 2007, p. 73. 
  15. Cf. Henri Bergson, Le souvenir du present et la fausse reconnaissance, Paris: PUF, 1959, p. 928 (Œuvres Complètes). 
  16. Sobre a autoria do livro e a personagem histórica por detrás do nome “Qohélet, o hebraico, Eclesiastes na tradução grega”, cf. José Vtlchez Líndez, Sapienciales III. Eclesiastés o Qohélet, Navarra: Verbo Divino, 1994. 
  17. Eclesiastes, Bíblia Sagrada, Petrópolis: Vozes, 2002. 
  18. Cf. Eclesiastes, op. cit. 
  19. Sobre o idioma em que foi escrito o Eclesiastes, se o aramaico, o hebraico ou se uma língua de transição entre o hebraico clássico e o hebraico do Eclesiastes, um dos discípulos do Eclesiastes anotou Qohélet, ademais de ser um sábio, instruiu permanentemente o povo; e escutou com atenção e investigou, compôs muitos provérbios; Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto”(12,9-10). Sobre ser o Eclesiastes um aristocrata ou alguém de classe abastada, se era solteiro ou não, pouco se sabe, apenas que sua profissão era instruir em sabedoria. Mas, diferentemente de um pensamento conservador que repetia argumentos da sabedoria tradicional da sabedoria de Israel como “Isto é o que se disse até agora”, ele é o «mestre do inconformismo”, uma vez que ele substitui a realidade transparente que com facilidade encontra Deus por “um universo que ao homem permanece mudo”. Cf.José Vilchez Líndez, op. cit. 
  20. Sobre a atualidade do Eclesiastes e sua influência nos pensadores modernos até Heidegger, cf José Vilchez Líndez, op. cit. 
  21. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 153. 
  22. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo J, 87ª, I, p. 425. 
  23. A expressão “natureza-morta” aparece pela primeira vez na pintura holandesa dos anos 1650, “Stilleven” significando ” modelo inanimado”. Frutas, banquetes, matadouros, caçadas, animais empalhados, livros inúteis, artesanato em metais brilhantes e luxuosos, tudo é ” natureza imóvel”. As riquezas acumuladas não significam nada, o esqueleto é a advertência do contemptus mundi que lembra a caducidade de tudo: “Tudo é só orgulho” e a vida não passa de sono e sonho, como em Calderón. Cf. Les Vanités dans la peinture au XVII siècle: méditation sur la richesse, le dénuement et la rédemption, sous la direction d’Alain Tapié, Paris: Musée du Petit Palais, 1991. 
  24. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 155. 
  25. Cf. Roland Barthes, Le Neutre, Paris: Seuil, 2002, p. 45. 
  26. A etimologia da palavra “fadiga” reconduz ao campo semântico de labor, lassitudo, fatigati: “Labor (trabalho penoso, palavra principalmente rural, envolvendo todo o corpo). Sem dúvida, labor – deslizar de maneira a cair (cf. lapsus) é o peso sob o qual se titubeia. Labor: gênero animado, força atuante. Lassitudo, cf. lassus: que se inclina, que cai para a frente, talvez laedo: ferir, lesar, usar, imagem geral do abatimento, do enfardamento sob alguma coisa. Fatigo: estafar os cavalos. Cf. em francês crever: estar morto de cansaço. Pode-se reconstituir sem dificuldade sua imagem: “desmoronar” por um golpe ou pressão, na sequência de um desenchimento lento, progressivo; crever: plenitude que se esvazia, tensão de palavra que se descontrai. Crever: a imagem típica do pneu furado que murcha […]. Na própria imagem, uma ideia de duração: que não para de se inclinar, de esvaziar. E o infinito paradoxal da fadiga: processo infinito do fim”. Cf. Roland Barthes, op. cit. pp. 42-43. 
  27. Alain Ehremberg, La Fatigue d’être soi. Dépression et société, Paris: Odile Jacob, 1998, pp. 250 e ss. 
  28. Cf. Karl Marx, L’Idéologie allemande, Œuvres, t. III, Paris: Gallimard, 1982, pp. 33-52. Manifeste du Parti Communiste, Paris: Sociales, 1966, pp. 33-52. 
  29. No Filoctetes, Sófocles condensa a tradição da Grécia arcaica e clássica que praticou um modo de organização política baseada na isegoria, o direito de expressão de todos os cidadãos. Na tragédia, Odisseu diz a Neóptemo: “Filho de nobre pai, também eu quando era jovem tinha a língua preguiçosa e pronto o braço. Hoje, com a experiência, vejo que, entre os mortais, são as palavras e não as ações que conduzem tudo”. Cf. Filoctetes, trad. de José Ribeiro Ferreira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. 
  30. Cf. Karl Marx, Contribution à la critique de la philosophie du droit de Hegele, trad. Jules Molinor, Paris: Allia, 1998, p. 25. 
  31. Walter Benjamin, Passagens, op cit., p. 146. 
  32. Walter Benjamin, Passagens, op cit., p. 150. 
  33. Cf. Walter Benjamin. Passagens, op. cit., arquivo J, 78a, 2, p. 412. 
  34. Peter Sloterdijk, op. cit., p. 303. 
  35. Eis por que a visão de Hannah Arendt segundo a qual a vita activa correspondia à ação política, hierarquicamente superior ao simples trabalho, pode ser questionada. Cf. Hannah Arendt, A condição humana, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro: Forense Universitária,1983. 
  36. Cf. Peter Sloterdijk, op. cit., p. 417, e Richard Sennett, The crafstaman, New Haven e Londres: Yale University Press, 2008. 
  37. Cf. Isabelle Queval, S’Accomplir ou se dépasser, Paris: Gallimard, 2004. 
  38. Cf. Walter Benjamin, Tese IX de “Sobre o conceito de História”, Obras Escolhidas, op. cit. 
  39. Cf. Philippo Tommaso Marinetti, Manifesto Futurista, Milão: Feltrinelli, 1983. 
  40. Cf. Benjamin, “Teorias do fascismo alemão”, Obras escolhidas. trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo – Brasiliense, 1983, p. 72. 
  41. Cf. Teses, e VII de “Sobre o conceito de História”, Obras escolhidas, Origem do drama barroco alemão, op. cit., p. 131. Trata-se do mundo moderno e do desencantamento da cultura sob os efeitos da Reforma e da secularização, que privaram o homem da transcendência do divino, da dimensão da intimidade da alma pela exposição pública de si, estado de luto pelo desamparo agora cósmico. Na perspectiva benjaminiana, a redenção depende de um boneco mecânico manipulado por um anão metafísico, ou de um anjo que contempla atônito as ruínas que se amontoam na devastação do vendaval chamado progresso. 
  42. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 152. 
  43. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 146. 
  44. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo D, DI, 3, p. 1242. 
  45. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 143. 
  46. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo O, 81. 
  47. Joseph Gabel compreende o tempo patológico no mundo do capital a partir da transformação da qualidade em quantidade, da espacialização da duração e da queda da qualidade dialética do vivido. Cf. La fausse conscience, Paris: Minuit, 1962. 
  48. Conceito de origem e significados incertos, não se dispõe, até o sécuIo XVIII, de nenhuma designação para a ausência absoluta, o Nada: “Da Grécia a Descartes não há nomeações para o Nada, a não ser aproximativas, em que se encontram Vacuum (vazio), Nihil (Nada), Inannis (sem vida): como explicar que esta palavra da quase-indiferença tenha podido em menos de dois séculos [a partir do século XVIII elevar-se a uma grande centralidade? Tornou-se alternadamente a evidência dos moralistas, em seguida dos filósofos, antes de se impor, a partir de meados do século XVIII, à fala popular. Como explicar sobretudo que sua acepção até então neutra tenha se tornado tão fascinante, […] entre a categoria física do vazio e o julgamento moral [da vaidade]?” David Range, Les Territoires du néant, Paris: Parangon, 2011, pp. 5-8. 
  49. Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo J,J7, 6, p. 286. 
  50. taedium vitae dominou a elite romana durante as guerras civis ao final da República e início do Império. Ao descrever no século I a atmosfera depressiva generalizada de toda a cidade antiga, Lucrécio anotou: “Se pelo menos os homens, que têm, parece, o sentimento do peso que oprime seu espírito e os aflige com seu fardo, pudessem compreender a origem deste sentimento, de onde vem esta imensa massa de infelicidade que comprime o coração, não mais levariam esta vida na qual, o mais das vezes, nós os vemos, ninguém realmente sabe o que quer, cada um procura o tempo todo mudar de lugar como se assim agindo fosse possível se desfazer da carga que pesa sobre nós. Um, muitas vezes sai de uma ampla residência para voltar sem demora, descobrindo que não se sente melhor lá fora. Ei-lo correndo apressado para a casa de campo, como se voasse para o socorro de seu domicílio em chamas! Assim que toca a soleira, ele boceja ou mergulha em sono profundo, na busca de esquecimento – a não ser que retorne incontinente à cidade que demora a chegar. E assim que cada qual foge de si mesmo, e este ser de quem nos é impossível fugir, ao qual, apesar de tudo, continuamos presos, se o odeia – se está doente e não se compreende a causa de seu mal”. Todos os que refletiram sobre o taedium vitae como Sêneca, indicam, apesar de muitas variações, esta profunda desafecção da vida, o descontentamento de viver. Cf. Da natureza das coisas, trad. Agostinho da Silva, São Paulo: Abril, 1978 (Coleção Os Pensadores). Sêneca, A tranquilidade da alma, trad. Lúcia Rebello e Itanajara Neves, Porto Alegre: LPM, 1999. 
  51. Walter Benjamin, Écrits autobiographiques, trad. Christophe Jouanlanne e Jean-François Poirier, Paris: Christian Bourgois, 1994, p. 206. 
  52. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 254. 
  53. Para analisar a obsessão do século XIX de habitar interiores, a tal ponto o mundo externo se tornara inseguro e ameaçador, Benjamin anota uma citação sobre flores e decoração: “O burguês que ascendeu com Luís Filipe faz questão de transformar a natureza em intérieur. No ano de 1839, realiza-se um baile na embaixada inglesa. Encomendam-se duzentas roseiras. ‘O jardim’ – assim relata uma testemunha ocular – ‘estava coberto por um toldo e parecia um salão. E que salão! Os canteiros, cheios de flores perfumadas, tinham se transformado em enormes jardineiras , a areia das alamedas desaparecia sob tapetes deslumbrantes, em lugar de bancos de ferro fundido foram colocados canapés revestidos de tecido adamascado e seda; uma mesa redonda expunha livros e álbuns; o som distante da orquestra ecoava dentro desse imenso boudoir. […] Como uma odalisca, em um divã de bronze reluzente, a orgulhosa cidade alonga-se pelas tépidas colinas do vale sinuoso do Sena, cobertas de vinhedos[…] O século XX, com sua porosidade e transparência, seu gosto pela vida em plena luz e ao ar livre, pôs um fim à maneira antiga de habitar. […] O Jugendstil abalou profundamente a mentalidade do casulo [o viver como que em um estojo protegido]. Hoje isso desapareceu, e as dimensões do habitar estão cada vez mais reduzidas”‘. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 255. 
  54. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 251. 
  55. Cf. Georges Poulet, Etudes sur le temps humain III: Le Point de Départ, Paris: Plon, 1964. 
  56. Desenhados pouco antes da Revolução Francesa, os cárceres de Piranesi não evocam os horrores do poder que, na França, contribuíram para o assalto à Bastilha, não há qualquer sinal precursor de uma rebelião pré-revolucionária; ao contrário, os prisioneiros convertem-se em criminosos em vez de mártires. Cf. Marguerite Yourcenar, Le cerveau noir de Piranese, Paris: Du Chêne, 1989. 
  57. Do ponto de vista linguístico, o conceito de tédio – Ennui (de “nuire”, prejudicar) – é o que fere, que causa dano. Em francês a palavra ennui vincula-se de início à noção de cansaço, de sofrimento. Ao final do século XI, o ennui aparece na Chanson de Roland, nomeando a preocupação, o sofrimento, e no início do século XII, o cansaço. Apenas no século XVII adquire o sentido atual: “O tédio nasce da uniformidade”. Em alemão, a palavra Langeweile, “longa duração”, surge ao final do século XV, mas como adjetivo; é ainda utilizada no século XVII no sentido de ‘longo’: doenças prolongadas, viagens a lugares distantes. Somente no século XVIII impôs-se definitivamente o sentido atual de tedioso. Em inglês a palavra spleen, no começo do século XIV, tem um sentido próximo ao de tédio, mas ainda designava o baço: “No início do século XVIII, Swift, em seu Gulliver, utiliza spleen no sentido de mal de viver que atormenta ·os vadios, os debochados e os ricos”‘. Cf. Lázló Földenyi, Mélancolie: essai sur l’âme occidentale, trad. de Natalia-Huzsvai e Charles Zaremba, Paris: Actes Sud, 2012, pp. 177-178. E Lars Svendsen, em sua Filosofia dela noia, observa:” Usualmente as palavras que designam o tédio e os sentimentos similares nas diferentes línguas têm uma etimologia relativamente incerta. O francês ennui e o italiano noia, pela mediação do provençal enojo, evocam sua raiz latina inodiare (ter em ódio ou detestar), que provém diretamente do século XIII. Estes termos são estreitamente ligados à acídia, à melancolia e a uma tristeza generalizada. O mesmo vale para o inglês spleen, que comparece a partir do século XVI […]. Neste ensaio, escolhi referir-me sobretudo aos termos boredom, Langeweile […], que aparecem quase no mesmo período e são de modo geral sinônimos. Mas, é claro, entram em uma rede conceitual mais ampla cujas raízes se encontram nas profundezas da própria história”. Lars Svendssen, La filosofia della noia, trad. Giovanna Paterniti, Parma: Ugo Guanda, 2004, p. 24. 
  58. Cf. Charles Baudelaire, Poesia e prosa, trad. Fernando Guerreiro, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 534. 
  59. Nadar, Charles Baudelaire Intime, Œuvres, v. II, Le spleen de Paris, Notas. 
  60. Errância e viagem evocam a palavra alemã Eifharung e a latina Experiência, que contêm em sua etimologia a ideia de “viagem” (Fahren, viajar, o prefixo “Er” é ir além ou para fora de um perímetro). Por isso, a viagem implica a noção de risco de extraviar-se nos amplos caminhos a que faltavam mapas. A modernidade baudelairiana é desorientação e extravio. Se para Baudelaire a modernidade é o “desaparecimento no mundo dos vestígios do pecado original” é pela perda do céu metafísico e das esferas divinas, revelando-se o fim do cosmos grego e da natureza religiosa, quando cosmos e natureza faziam da Terra um todo ordenado e belo, em que o homem tinha seu lugar e seu pensamento era o olhar que contempla o espetáculo do universo inteiro. Para mediar o céu e a terra havia o daimon grego e os anjos bíblicos. Sócrates tinha seu daimon, escutava a voz que lhe dava conselhos; Tobias, na Bíblia, seguia em companhia de seu guardião e anjo protetores. No “tempo de Tobias”, anotava Rilke, o homem era o habitante da civitas terrena, e não havia desterro. Tempo da delicadeza, o anjo Rafael, o mais “resplandecente entre todos”, para não assustar o jovem Tobias e acompanhá-lo em sua viagem na Terra, se transformara ele também em um jovem, pois o anjo das hierarquias celestes descera tornando-se “pássaro da alma”. Esse tempo, o da delicadeza, diz Rilke, para sempre, passou. Abandonado em um mundo sem transcendência, a fragilidade do homem e das coisas retorna no tema das Vaidades, como a Tauromaquia de Toulouse-Lautrec, mas também as pinturas de Picasso, que se expressam na violência de um olhar de derrisão sobre o mundo, e de Braque, que representa as Vaidades e o efêmero na paz da vida silenciosa dos objetos. Depois da destruição de populações inteiras na Primeira Guerra Mundial, a fragilidade se expõe na mancha de sangue da capa vermelha do toureiro no chão. Toulouse-Lautrec opõe o crânio do toureiro e o do touro, mas ao mesmo tempo enlaçando-os, assim dando a ver o heroísmo vão e a tênue fronteira que separa a vida da morte. 
  61. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo P, P2, I, p. 560. 
  62. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., p. 145. 
  63. Walter Benjamin, Tese XVI de “Sobre o conceito de História”, Obras escolhidas, op. cit., p. 230. 
  64. Cf. Walter Benjamin, Écrits autobiographiques, trad. Christophe Jouanlanne e Jean-François Poirier, Paris: Christian Bourgois, 1994, p. 179. 
  65. Cf. Henri Focillon, La vie des formes, Paris: Alcan, 1970. 
  66. Cf. Tese XVII de “Sobre o conceito de História”, Obras escolhidas I, op. cit., p. 231. A dialética na imobilidade ou em suspensão se aproxima do Neutro barthesiano. Porisso, em seu Roland Barthes: uma biografia intelectual, Leda Tenório da Motta reconhece no Neutro a presença do ceticismo antigo e considera Barthes um “cético moderno”, op cit., São Paulo: iluminuras, 2012. 
  67. Cf. Silveira, Paulo Henrique, Medicina da alma: artes do viver discursos terapêuticos, São Paulo: Hucitec, 2012, p. 97. 
  68. Cf. ainda Paul Demont, La cité grecque archaique et classique et l’idéal de tranquilité, Paris: Les Belles Lettres, 2009. 
  69. Cf. Walter Benjamin, “Kurze Schatten”, Illuminationen, Frankfurt: Suhrkamp, 1981, p. 58. 
  70. Cf. Platão, A República, livro X, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. Segundo a doutrina platônica da metempsicose, cada alma terá múltiplas possibilidades de escolha. Não obstante nenhuma forma de vida ser imposta às almas, há um certo determinismo, uma alma que na existência anterior conheceu o que é o bom e o bem será atraída por uma vida virtuosa, enquanto a alma que levou uma vida anterior de vícios será muito atraída para o vício. O primeiro a escolher é o tirano, que escolhe uma vida de tirano. Uma vez sabedor dos males que o esperam e dos sofrimentos futuros que infligirá aos outros e a si mesmo por sua alma intemperante, maldiz o acaso e os demônios, não a si mesmo. Uma das filhas da deusa Necessidade, Lachesis, diz: “Palavra da virgem Lachesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, eis o começo de um novo ciclo que para uma raça mortal será portador de morte. Não é um demônio [o daimom, o gênio que, após o sorteio, passará a acompanhar a alma] que tirará a sorte, mas sereis vós a escolher um demônio. Que o primeiro a sortear escolha como primeiro a vida à qual ele estará ligado pela necessidade. Da virtude ninguém é o mestre; cada qual, segundo a honre ou a despreze, receberá uma parte maior ou menor. A responsabilidade cabe àquele que escolhe. O Deus, quanto a ele, não é culpado”. 
  71. Cf Walter Benjamin, “Kurze Schatten”, llluminationen, Frankfurt: Suhrkamp, 1981. 
  72. Cf Walter Benjamin, “‘Jogo e Prostituição”, Passagens, op. cit., arquivo o, 4ª, p. 539. 
  73. Cf. Walter Benjamin, Passagens, arquivo M, M17a, 5, p. 492. 
  74. O labirinto é o caminho seguro para aqueles que de todas as formas chegam a tempo a seu destino. Esse destino é o mercado.” Walter Benjamin,”Parque Central”, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 162. 
  75. Cf. Walter Benjamin, Charles Baudelaire, op. cit. 
  76. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo M4a,I. 
  77. Walter Benjamin, Écrits autobiographiques, op. cit., pp. 174-175. 
  78. Walter Benjamin, Haxixe, op. cit., 1984, p. 52. 
  79. Walter Benjamin, “Souvenirs de viagem”, Rua de mão única, São Paulo: Brasiliense, 1987. 
  80. Cf. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo O, O, 14, 3, p. 555. 
  81. Cf. Walter Benjamin, Tese X, de “Sobre o conceito de História”, Obras escolhidas I, op. cit., p. 227. 
  82. Com efeito, o exercício do silêncio, do jejum, da castidade deveriam conduzir à apatia, à anestesia, à insensibilidade, liberando os monges das sensações físicas e de perturbações da mente. Evagro, na solidão do deserto de Alexandria, vê na anesthesia “o mais alto estado de oração, o estado que define o êxtase: ‘Bem-aventurado é o intelecto que, no momento da oração, conseguiu uma perfeita insensibiidade”‘. Cf. Lexique du désert, Spiritualité Orientale, n. 44, Abbaye de Bellefontaine, 1986, p. 86. 
  83. Em um de seus significados na astronomia, époché designava “o obscurecimento da luz no eclipse lunar e seu bloqueio, sendo pois a medida da sombra. É um momento de “distanciamento”, uma zona de separação, de suspensão. 
  84. A dialética na imobilidade evoca a droga que acalma a dor na Odisseia. Medicação antitristeza, o nepeuthes produzia o esquecimento de todos os males, bastando para que nenhuma lágrima fosse vertida, quer se acabasse de perder pai e mãe. O nepenthes oferecido por Helena aos guerreiros concedia o esquecimento das penas e de suas causas: “Trata-se, sem dúvida, do ‘perdão’ com respeito aos outros, da ausência de ressentimento ou ódio […]. A insensibilidade aos males supõe, em contrapartida, a ausência de si ao mundo”. Jackie Pigeaud, Melancholia, Paris: Payot, 2008, pp. 77-78. 
  85. Walter Benjamin, Haxixe, op. cit., p. 40. No mesmo experimento com haxixe de que participava Benjamin, Ernst Joel nota: “Às vezes eu tinha a sensação de que precisava servir de intermediário para conciliar Benjamin e Frannkel, embora não soubesse de nenhum conflito entre eles” (p. 69). Este estado de repouso é benevolência hiperbólica. 
  86. Fragmento 82 Héraclite. Fragments, Paris: Flammarion, 2002. 
  87. Cf. Émile Chartier Alain, Les idées et les ages, apud Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo O, O, 12, 3, p. 553, 
  88. Walter Benjamin, Haxixe, op. cit., p. 50. 
  89. Cf. Dante, La Divina Commedia,Trieste: Einaudi, 1975. 
  90. Cf. Walter Benjamin, “O tédio e o eterno retorno”, Passagens, op. cit., O, 2a, 8, p. 147. 
  91. Henri Focillon, apud La vie des formes, Benjamin, GS, V. I, T. 3, Frankfurt: Suhrkamp, 1974, p. 1229. 
  92. Das personagens literárias deslocadas em seu tempo, que perderam o kairós, pode-se lembrar o Misantropo de Molière, de quem Lukács dizia ser ele o protótipo do revolucionário que chegou cedo demais. Antígona, por sua vez, chegou tarde demais, tendo já passado o tempo do matriarcado. Cf. Lukács, Problemas do realismo, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 
  93. Roland Barthes, Le Neutre, Paris: Seuil, 2002, p. 60. 
  94. Walter Benjamin, Passagens, op. cit., arquivo O, 13ª, 4, p. 555. 

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