1998

Direito natural e direito das gentes. A refundação moderna, de Vitoria a Suárez

por Jean-François Courtine

Resumo

A Conquista espanhola da América e a defesa dos índios por missionários como Bartolomé de Las Casas desencadearam discussões, nos séculos XVI e XVII, que terão por resultado a separação do direito e da teologia. Diante das mudanças históricas da época, que envolvem também a Reforma protestante e o fortalecimento das monarquias, autores como Francisco de Vitoria e Francisco Suárez passam a considerar, em oposição à tradição tomista, a pluralidade de povos, Estados e religiões. Para Vitoria, toda comunidade política é sujeito de poder e isso vale tanto para os cristãos quanto para os pagãos. Príncipes cristãos não podem privar os infiéis de seu poder a não ser que estes cometam injustiças. E se eles podem comerciar com os bárbaros é com a condição de não prejudicá-los. Vitoria defende os índios e sua autonomia, mas mantém a necessidade da evangelização e da guerra justa, assim como o “direito de tutela” semelhante ao que os pais têm sobre os filhos. Suárez, por sua vez, vai afirmar que o essencial da lei é a ordenação da razão. A lei só pode emanar de um organismo soberano (o que anuncia o positivismo jurídico e o absolutismo de Estado). O Bem Comum tomista se circunscreve agora a um horizonte histórico. Os direitos das gentes são particulares, embora precisem de uma “supracomunidade” para que haja relações de paz e justiça (o que em certo sentido antecipa o direito internacional). As considerações de Suárez, como as de Vitoria, lançam as bases do que será a Escola moderna do direito natural.


Dezembro de 1511, terceiro domingo do Advento, na igreja da Trindade, na ilha de Hispaniola (Haiti). O padre dominicano Antonio de Montesinos sobe ao púlpito e, em nome da ordem inteira, dirige-se ao povo dos colonos e conquistadores, sobre o tema ego vox clamentís ín deserlo:

Essa voz… vos grita que estais todos em estado de pecado mortal, que viveis e morreis nesse estado, em razão da crueldade e da tirania de que dais prova com relação a esses povos inocentes. Dizei, com que direito e em virtude de que justiça mantendes esses índios em tão cruel e tão horrível servidão? Quem vos poderia autorizar a fazer todas essas guerras detestáveis contra gentes que viviam tranquilamente e pacificamente em seus países, e a exterminá-los em número tão infinito, por assassinatos e carnificinas inauditos? Essas gentes não são homens? Não têm uma alma, uma razão? Não estais obrigados a amá-los como a vós mesmos? […] Estai persuadidos de que, no estado em que estais, não construireis vossa salvação mais do que os mouros ou os turcos que ignoram ou desprezam a fé de Jesus Cristo.[1]

Janeiro de 1539, Universidade de Salamanca. Francisco de Vitoria, dominicano, lente de prima, pronuncia sua primeira lição pública [Relectío] sobre os índios recém-descobertos, para interrogar-se sobre a legitimidade dos títulos da Conquista. Em novembro do mesmo ano, Carlos V dirige-se ao prior do convento de San Estebán em Salamanca, lá mesmo onde reside Vitoria, para lhe pedir que apreenda o texto de todas as lições nas quais religiosos trataram dos direitos da Coroa da Espanha sobre as Índias Ocidentais.

Agosto de 1550, Valladolid. Carlos V, que acaba de suspender todas as conquistas na América, reúne uma Junta na qual, diante dos melhores juristas e teólogos – Melchior Cano, sucessor de Vitoria em Salamanca; Domingo de Soro, confessor do imperador, teólogo imperial nas primeiras sessões do Concílio de Trento; Bartolomé Carranza de Miranda, que se tornará, sob Filipe II, arcebispo de Toledo e primaz da Espanha; Bernardino de Arevalo, franciscano, aos quais o imperador associara uma dezena de juristas e administradores -, confrontam-se o grande humanista, tradutor da Política de Aristóteles, Juan Ginés de Sepúlveda, historiógrafo do rei, intérprete, em seu Democrates alter- cuja publicação acaba de ser proibida na Espanha – das justas causas da guerra contra os índios, e Bartolomé de Las Casas, bispo de Chiapas, infatigável defensor dos índios.[2]

Janeiro de 1610, o papa Paulo V manda pedir a Francisco Suárez, professor na Universidade de Coimbra, que prossiga, depois de muitos outros, e notadamente do cardeal Roberto Bellarmino, a controvérsia que o opõe a Jaime I da Inglaterra desde 1606, por ocasião do juramento de fidelidade que este último exige de todos os seus súditos católicos. Suárez, que já dera em 1601-2 um curso consagrado às leis (De Legibus ac deo legislatore), redige uma Dejensio fidei, cujo livro VI é inteiramente consagrado à questão do Juramentum fidelitatis. O De Legibus é publicado em 1612 em Coimbra, a Defensio fideia parece no ano seguinte.

O espaço de tempo que separa o Sermão de Montesinos das controvérsias da Santa Sé com a primeira expressão teórica do absolutismo clássico-moderno[3] permite seguir a elaboração conjunta da noção moderna ou pré-moderna de direito natural e a determinação nova do direito das gentes, compreendido como direito internacional interestatal. O corte histórico; assim como a acentuação da guinada nas problematizações, constituem aqui as preliminares indispensáveis a todo enfoque doutrinal. As dificuldades metodológicas próprias a toda história das ideias, a partir do momento em que se trata de estatuir sobre uma continuidade ou rupturas, aí são, com efeito, particularmente sobredeterminadas, em razão do movimento geral da retrospecção que faz de Las Casas, por exemplo, um precursor dos direitos do homem e, por que não, da teologia da libertação[4] ou de Vitoria o pai do direito internacional.[5] Outras dificuldades estão ligadas desta vez à defasagem constante entre as discussões jurídico-teológicas e as “realidades” da Conquista: na Espanha, discute-se, bem depois, o direito ou no máximo o “sentido” de um fato consumado: a Descoberta e os transtornos progressivos que ela induz, no plano político, econômico ou geopolítico. Para apreender o que o “efeito americano” ou, bem mais tarde, a defrontação de Estados soberanos absolutos comportam de verdadeiramente inédito, os teólogos-juristas recorrem a esquemas de pensamento que se poderão dizer “arcaicos”. Com efeito, eles têm de retomar e, por certo, deslocar um corpo de doutrina tradicional, essencialmente transmitido por Tomás de Aquino. Sempre se poderá então, como o fazia de bom grado Michel Villey, denunciar desvio doutrinal ou infidelidade, ou mesmo apontar o “abismo” que separa tal comentário de Vitoria do ensinamento do Doutor Comum.

Ater-nos-emos, na falta de espaço, apenas ao exame das doutrinas, ou melhor, de alguns pontos de doutrina, quando seria preciso, aqui mais do que alhures, considerá-los sempre também em seu contexto histórico concreto, o que o próprio Vitoria encorajava, declarando: “O dever e a tarefa do teólogo são tão vastos que nenhum assunto, nenhuma discussão, nenhum domínio parecem estranhos ao discurso e ao projeto teológicos”. Mas, antes de examinar a maneira pela qual Vitoria primeiro e Suárez em seguida, redefinem a articulação entre direito natural e direito das gentes, devemos relembrar brevemente as peças essenciais do dossiê tomista que não cessará de alimentar a reflexão dos teólogos-juristas que nos interessam.

O PANO DE FUNDO TOMISTA

Não se poderia sublinhar em demasia a importância desse pano de fundo, tanto no que se refere à Escola de Salamanca, da qual Vitoria (1492-1546) é o verdadeiro instituidor, quanto no que se refere, um pouco diferentemente, ao ensino na Companhia de Jesus. Vitoria está, como se sabe, na origem de uma profunda renovação do tomismo nas universidades espanholas e, em primeiro lugar, em Salamanca, onde ensina a partir de 1523, ali introduzindo uma importantíssima inovação pedagógica, já empregada no fim de seu ensino parisiense no convento dominicano de Saint-Jacques: substituir o comentário das Sentenças de Pedro Lombarda pelo da Suma teológica.[6] Tratando-se dos jesuítas, sabe-se também que a ratio studiorum recomendava sustentar sempre a opinião comum, pautando-se de preferência pela tradição aristotélica e pelo ensinamento tomista.

Tomás terá fornecido, assim, as peças principais do dossiê jurídico­político discutido durante todo o século XVI na escolástica espanhola. Trata-se, no essencial, de dois tratados conexos com a Sunza teológica: o tratado das leis (Ia, IIae qu. 90-7) e o tratado de justiça (de justitia et jure, IIa IIae qu. 57-79), aos quais convém acrescentar as questões relativas aos “infiéis” (na IIae, qu. 10 – de infidelitate in communi – e qu. 12 – de apostasia). Evidentemente, não nos cabe aqui expor por si mesmo esse corpo de doutrinas e, menos ainda, tentar situá-lo na economia geral do pensamento tomístico. Em compensação, o que nos importa sublinhar de imediato é, a uma só vez, a defasagem evidente entre os dados histórico­políticos sobre os quais raciocina Tomás – em uma palavra, os da Respublica Christiana – e os de nossos autores (a Descoberta do Novo Mundo de um lado, a pressão turca do outro e, enfim, além da Reforma protestante, a instalação das monarquias absolutistas pluriconfessionais), e ao mesmo tempo a extraordinária maleabilidade da doutrina tomista, que permite, à custa de inflexões mais ou menos violentas, às quais precisamente nos ateremos, aplicar as teses tomistas e suas distinções a realidades heterogêneas. O quadro doutrinal que devemos relembrar brevemente é constituído pela articulação bastante complexa, em Tomás de Aquino, entre direito natural e direito das gentes. Como se sabe, nele o direito natural é sempre referido ao “justo” – ele próprio considerado ex natura rei-, cuja apreensão é dada ao homem anteriormente a todas as leis humanas. Nesse sentido, o direito natural confunde-se com o que, em termos modernos, chamar-se-ia a consciência da lei natural, ela própria sempre concebida como uma participação na “lex divina”, entendida como a razão divina que preside a ordenação do mundo.[7] Contudo, os comentários de Tomás de Aquino não estão isentos, sobre esse ponto, de oscilações e de ambiguidades que se devem, antes de tudo, à mudança de sentido dos conceitos fundamentais do direito romano utilizados por ele.[8] Na Suma teológica (Ia IIrae), Tomás de Aquino considera em primeiro lugar a lei humana na questão 95, cujo artigo 4 é consagrado à divisão. Ele aí propõe uma primeira articulação entre direito natural e direito das gentes ao examinar a incoerência, pelo menos aparente, das distinções propostas por Isidoro de Sevilha (Etymología, cap. 6 e ibidem., cap. 4):

Parece que Isidoro apresenta uma divisão inadequada das leis humanas e do direito humano (jus humanum). Sob esse direito, de fato, ele compreende o direito das gentes (jus gentium), assim chamado porque “quase todas as nações (gentes) fazem uso dele”. Mas, como ele próprio o diz, “é o direito natural (jus natura/e) que é o direito comum a todas as nações (commune omnium nationum)”. Portanto, o direito das gentes não está contido sob o direito humano positivo, mas antes sob o direito natural.

O Respondeo assinala claramente o princípio fundamental de subordinação que comanda todo o tratado das leis: a lei humana, precisamente enquanto é lei e conforma-se, portanto, à ratio legis, deriva da lei natural (lex naturae), que constitui por sua vez a primeira regra da razão, em função da qual se definem o “direito” (rectum) e o justo (justum). É portanto em função de sua relação respectiva – mas sempre fundamental – com a lex naturae que é preciso distinguir e situar o direito civil e o direito das gentes, que constituem ambos o direito positivo (jus positivum ):[9]

[…] por sua definição, a lei humana deve derivar da lei de natureza. E, desse ponto de vista, dividir-se-á o direito positivo (Jus positivum) em direito das gentes (jus gentium) e direito civil (jus cívíle), segundo as duas maneiras pelas quais um preceito pode derivar da lei natural.

Com efeito, como o mostrou Tomás no artigo 2 dessa mesma questão, a derivação de que se trata aqui, e que implica sempre uma participação, pode tomar duas formas diferentes: a que relaciona as conclusões aos princípios, segundo o modelo aristotélico da demonstração científica, e a que relaciona as determinações a regras gerais, no sentido em que um arquiteto, por exemplo, deve aplicar o tipo comum “casa” a tal habitação concreta a ser construída. É em função dessa distinção das formas possí­ veis de derivação que Tomás pode estabelecer uma conexão direta, como das conclusões a seu princípio, entre direito das gentes e lei natural:

Ao direito das gentes ligam-se os princípios que derivam da lei natural ao modo de conclusões derivadas dos princípios; tais como as justas vendas e compras e outras coisas semelhantes, sem as quais os homens não poderiam ter nenhuma vida social (ad invicem convivere); o que está, contudo, enraizado na lei natural, pois o homem é por natureza um animal social.[10]

Então, se o direito das gentes vem classificar-se sob a rubrica mais geral do direito humano, contradistinguido aqui não tanto do jus divinum quanto da lei de natureza ou lei eterna, e se ele é por isso da alçada do direito positivo, é direito positivo tomado no sentido mais amplo do termo, na medida em que permanece enraizado na lei natural, e se separa, portanto, do direito positivo no sentido estrito, o jus civile. Este não é de modo algum conclusão ou derivação direta a partir dos princípios, mas sim determinação, sempre particular, contextual, levando em conta o que caracteriza propriamente cada cidade ou Estado definidos e, portanto, suscetível de variações históricas, o que não parece dever ser o caso do direito das gentes, mesmo que este implique sempre o tempo de sua descoberta, que coincide com o da explicitação completa da natureza humana considerada em sua sociabilidade intrínseca. O que confirma mais uma vez o argumento ad primum, em resposta à tese que tende a separar radicalmente direito positivo e direito das gentes, sob o pretexto de que o direito verdadeiramente comum a todas as nações (gentes) é o direito natural. Com efeito, se para santo Tomás o direito das gentes pode, em um sentido, ser considerado como “natural”, é na medida em que é próprio ao homem enquanto criatura racional e se apresenta como uma conclusão suficientemente próxima dos princípios para que todos os homens possam pôr-se de acordo a seu respeito:

O direito das gentes é, de alguma maneira, natural ao homem, enquanto este é um ser racional, porque esse direito deriva da lei natural como uma conclusão que não está muito afastada dos princípios. Por isso os homens puseram-se facilmente de acordo a seu respeito. Contudo, ele se distingue do direito natural estrito, sobretudo daquele que é comum a todos os animais.[11]

É preciso lembrar, com efeito, que a lei natural propriamente dita não concerne apenas ao homem em sua diferença específica (como animal dotado de razão), mas é comum a todos os animais tomados enquanto tais. A generalidade maior pertence, então, à lei natural, cujos preceitos impõem-se tanto aos homens quanto a todo o resto dos animais ou dos seres vivos. A ater-se apenas a essa generalidade da lei natural e das inclinações essenciais que ela imprime em toda criatura, pode-se portanto considerar como positivo tudo o que não depende simples e diretamente de sua regulação. Não é menos verdade que, se se procura definir mais precisamente a situação do direito das gentes, é preciso considerá-lo então como intermediário entre a lei natural e o direito positivo no sentido estrito instituído por cada cidade a título de determinação sempre particular. Um processo contínuo de especificação, e depois de aplicação, conduz, assim, da lei natural ao direito positivo, passando pelo direito natural e pelo direito das gentes. Tal esquema mostra claramente que a doutrina tomística nunca chega a fazer do direito das gentes um equivalente ou mesmo uma antecipação de um direito internacional interestatal. Sua função é quase a priori, está diretamente ligada à sociabilidade fundamental do ser humano e, nesse sentido, é sempre pressuposta pela instituição do direito civil ou, melhor, da pluralidade dos direitos civis, mutáveis e adaptados a cada cidade ou a cada comunidade política. O que significa dizer que ao direito das gentes não poderia incumbir a tarefa segunda de ordenar por um bem comum superior as diferentes comunidades políticas.

Está claro que, sobre esse ponto, a doutrina elaborada por Vitoria, segundo a qual cada Estado ou República (Respublica) é parte de um mundo que é preciso também considerar em sua inteireza (tatus orbis), na medida em que ele comporta um fim próprio e geral que transcende o de cada “República” ou de cada “Província”,[12] não poderia valer-se diretamente do ensinamento tomista, sem dúvida porque, para Tomás de Aquino, o bem comum que transcende a pluralidade das comunidades políticas jamais se deixa definir em termos puramente políticos, mas comporta de imediato uma dimensão cosmoteológica. Além dessa consideração verdadeiramente nova – apenas esboçada em Vitoria e desenvolvida explicitamente em Suárez (1548-1617) – que associa cada vez mais claramente direito das gentes e direito internacional, um outro elemento importante na redefinição conjunta do direito natural e do direito das gentes, no próprio seio da escola tomista e de seus representantes mais fiéis, como Banez (1528-1604)[13] ou Soto (1495-1560), deve-se ao fato de que se esfuma progressivamente, até desaparecer inteiramente, o princípio da divisão entre humanidade e animalidade, sobre o qual se pautavam os jurisconsultos romanos. O direito natural (jus naturale) – cada vez menos diretamente ligado à lei de natureza aplicável a todo o universo e nele, mais precisamente, aos vivos, considerados em função de tudo o que é necessário à sua conservação e reprodução (conjunctio, procreatio, educatio)[14] – baseia-se não mais em disposições ou em inclinações que o homem compartilha com os outros animais, mas em conhecimentos ou noções inatas que são próprios à sua natureza racional. É o que sublinha notadamente Domingo de Soto, quando opõe o direito natural, inscrito em nosso espírito – e por isso imediatamente acessível a cada um sem que seja necessário desenvolver qualquer raciocínio que seja (ahsque ulla ratiocinatione)-, e o direito das gentes, que deve ser extraído a partir de um raciocínio natural (naturalis ratiocinatio). Ao insistir no caráter natural desse raciocínio, Soto exclui expressamente toda instituição do direito das gentes fundada na reuniào e na deliberação dos homens entre si. Para extrair-lhe os preceitos, basta raciocinar e concluir com base em princípios conhecidos por si. Se a lei natural impõe-se universalmente a todos, por­ que os primeiros princípios deixam-se reconhecer imediatamente, em compensação, as conclusões que provêm de um raciocínio sempre podem ser obnubiladas.[15]

Mas voltemos a Tomás de Aquino. No artigo 3 da questào 57 da IIa IIae (artigos 2 e 3), ele examina novamente a questão de uma possível identificação entre direito das gentes e direito natural, partindo desta vez da determinação mais geral do direito: jus sive justum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aequalitatis modum.[16]A proporção ou a comensuração que tende ao ajuste[17] encontra meio de realizar-se de duas maneiras diferentes: segundo se considerem absolutamente e em si as coisas que têm uma medida comum, ou então segundo sejam consideradas relativamente às suas consequências. Se o primeiro modo depende diretamente da natureza da coisa – ex ipsa rei natura [dou tanto para receber na mesma proporção] -, o segundo modo de adequação ou de comensuração depende não mais da própria coisa, mas de uma convenção ou de um comum acordo (ex condicto, sive ex communi placito). O que importa sublinhar aqui é que essa distinção coincide por sua vez com a divisão da animalidade, capaz de apreender direta e absolutamente o ajuste ou a proporção, e da racionalidade humana que, além da simples apreensão, está apta a considerar alguma coisa comparando-a às suas consequências.[18]

Distinguir-se-ão, portanto, um direito natural comum ao homem e aos outros animais, reduzido à apreensão imediata de alguns princípios abstratos e gerais, e um direito próprio ao homem, mas que não é menos natural, na medida em que é a razão natural que descobre o justo considerado em suas consequências. Esse direito natural, especificamente humano, enriquecido pelo trabalho da razão com base em princípios imediatamente apreendidos, pode ser caracterizado como jus gentium. E Tomás retoma aqui, à sua conta, a célebre definição de Gaius (Digeste, I, I, tít. 1, 9): “O que a razão natural estabelece entre todos os homens, eis o que todas as nações observam e que se chama direito das gentes”.[19] O direito das gentes assim definido não é da alçada do direito positivo, tampouco resulta de um consenso, mas antes representa como que umprolongamento do direito natural comum. A instituição desse direito cabe imediatamente à razão natural.[20] Como se vê, a posição tomista permanece, ao que parece, bastante oscilante quanto à situação respectiva do direito natural, do direito das gentes e do direito positivo (civil): ora, na Ia IIae (qu. 95, art. 4), o direito das gentes é considerado como um direito positivo – aquele que se deduz do direito natural, por via de conclusão, com base nos princípios – ora, na Ia nae (qu. 57, art. 3), o direito das gentes é distinguido do direito natural com base na diferença que existe entre a adequação imediata a um outro (que define em princípio o justum), e essa mesma adequação com relação às suas consequências.[21]

Nossos autores vão tentar diversamente remover essas ambiguidades para adaptar os considerandos ou as principais disposições da doutrina tomista a uma situação histórica radicalmente modificada em suas dimensões políticas, culturais, religiosas. Com a descoberta das Índias Ocidentais, a ideia da unidade cristã, com efeito, estilhaçou-se e deve progressivamente dar lugar à de uma irredutível diversidade plural de povos, de Estados, de religiões. Ao mesmo tempo, é também o conjunto das relações conflituosas da cristandade com seus “outros” que vai encontrar-se afetado, trate-se dos turcos, dos mouros ou dos judeus. O resultado bastante paradoxal dessa necessária adaptação é que são os teólogos- juristas[22] que vão contribuir para separar o direito da teologia: o direito torna-se objeto de uma ciência autônoma na qual a própria noção de direito natural vai encontrar-se radicalmente modificada.

VITORIA

Uma das peças centrais na reflexão jurídico-política de Vitoria – aquela que sustenta o edifício, solidamente estruturado, da Relectio de lndis[23] – é a análise da comunidade política como comunidade perfeita perseguindo um fim próprio e suficiente; análise central na primeira lição pública, a Relectio de Potestate civili, pronunciada no fim do ano de 1528, na estreia de seu ensino em Salamanca.[24] Vitoria está muito consciente do que está em jogo nessa determinação de um fim próprio e quase imanente à comunidade política, sem que esta deva ser ordenada de imediato por um fim superior. A teoria do Estado (respublica), desenvolvida na primeira Relectio, constitui o fundamento último da reflexão de Vitoria sobre o jus gentium interpretado doravante como “jus inter gentes”. Definir a respublica como uma instituição de direito natural que detém, em sua ordem própria, a soberania (summa potestas),é antes de tudo tomar posição contra os que sustentam que ela nasce muito simplesmente da vontade humana: “[…] cidades e repúblicas […] são, por assim dizer, obra da natureza que forneceu aos homens esse meio de proteção e de conservação”.[25]

Proteção e conservação são aqui necessidades imperiosas em razão da condição original do homem, que a natureza deixou “frágil, fraco, desprovido e sem força, privado de todo socorro, carente de tudo, nu e sem pelagem”. A sociedade é, assim, não apenas o que permite ao homem prover às suas necessidades, mas também humanizar-se, se é verdade que a amizade e a comunidade de vida são traços fundamentais da humanidade.[26] Ao afirmar que o Estado é de direito natural, Vitoria entende pautar­se pela palavra do Apóstolo (Rm 13, 1): non est enim potestas nisi a Deo, mas se a origem do poder reconduz a Deus como sua causa eficiente, esta determina antes de tudo uma natureza e uma condição que implicam necessariamente a sociedade e a socialidade. Se o poder vem de Deus, é, portanto, no sentido muito geral em que “o que é natural a todos os homens vem sem nenhuma dúvida de Deus, o autor da natureza”. Vitoria poderá afirmar então, a uma só vez, que a comunidade política, a Respublica, é o sujeito imediato do poder[27] e, isto, de direito natural, ou de direito natural e de direito divino. O mesmo se dá, por via de conseência, com os poderes públicos, pois se os homens devem reunir-se e agrupar­ se para garantir sua segurança, “nenhuma sociedade pode manter-se sem uma força e um poder que a governem e velem por ela”, o que faz com que o poder público seja absolutamente tão útil e necessário quanto a comunidade ea sociedade. Não temos de entrar aqui no exame da questão do regime monárquico nem na crítica implícita das teorias do contrato social que, aos olhos de Vitoria, levam a instituir um poder político de maneira artificial, como se ele proviesse dos homens e não mais do direito natural. Em compensação, a definição de princípio do Estado em sua autonomia como comunidade perfeita é absolutamente essencial a seu propósito, e é sobre esse ponto que insistirá mais uma vez a Relectio de jure belli.[28] Retenhamos simplesmente o ponto que nos interessa para a sequência deste estudo: se acontece de o Estado ser o sujeito imediato do poder, suscetível de transferir sua autoridade a um soberano, isso vale tanto para Estados pagãos quanto para Estados cristãos. Sendo a comunidade política de direito natural, nenhum Estado, sob pena de desaparecer enquanto tal, pode ser privado de seus poderes públicos.[29] Essa é uma necessidade de essência que não é afetada de maneira nenhuma pela divisão fiel/infiel, como o sublinha ainda a Relectio de Indis, 1, 1, 4: “A infidelidade não impede ninguém de ter um poder verdadeiro “.[30] Vitoria não deixa aqui de se referir a Tomás: “A infidelidade, diz santo Tomás, não suprime nem o direito natural nem o direito humano. Ora, os poderes são de direito natural ou então de direito humano. Portanto, eles não são abolidos quando falta a fé”.[31] Daí a conclusão de Vitoria: “Nem o pecado de infidelidade nem os outros pecados mortais impedem os bárbaros de possuir um poder verdadeiro, tanto público quanto privado”.[32] A Lição sobre o poder político tirava-lhe já todas as consequências com relação à questão da Conquista: “Os príncipes cristãos, leigos ou eclesiásticos, não poderiam privar os infiéis de seu poder nem de sua autoridade pela única razão de que são infiéis, a menos que tenham cometido de outro modo uma injustiça”.[33] Os povos infiéis possuem normalmente, tanto quanto os povos cristãos, as prerrogativas jurídicas decorrentes da sociabilidade humana.

A pluralidade das comunidades políticas assim reconhecida deixa-se integrar, contudo, segundo uma nova ideia diretriz, a de uma civitas maxima: comunidade de direito público cujo bem comum é uma finalidade superior, mas cuja definição não é mais intrinsecamente teológica. Pois a sociedade política (respublica), por completa e perfeita que seja, não é uma realidade última: está integrada em uma comunidade que a ultrapassa e ultrapassa também a cristandade, a sociedade universal (tatus orbis). Essa comunidade internacional, e os membros que dela fazem parte, são já expressamente tematizados na Lição De potestate civili:

[…] cada Estado é uma parte do mundo inteiro e cada província cristã, uma parte do Estado inteiro. Portanto, se uma guerra é útil a uma província ou a um Estado, mas traz prejuízo ao mundo ou à cristandade, penso que ela é injusta por esse fato mesmo.[34]

Definindo, assim, um bem comum superior ao dos Estados, o bem comum próprio ao mundo inteiro (tatus orbis) considerado como tal, Vitoria introduz um princípio fundamental de igualação entre todas as comunidades políticas a partir do momento em que são reconhecidas em sua personalidade jurídica. Mais uma vez aí, o que está em jogo na aplicação de tal princípio ao Novo Mundo aparece imediatamente. As duas Lições de 1539, Sobre os índios e Sobre o direito de guerra vão tirar todas as consequências dessa primeira reflexão consagrada à comunidade política de direito natural e à sua inscrição na comunidade internacional. Desde 1537, em sua Lição sobre a temperança, Vitoria exprimira-se sem ambiguidade a propósito da debatida questão da Conquista e de seus títulos legítimos:

Qualquer que seja o motivo pelo qual se faz a guerra contra os índios, não é lícito fazer mais do que tem o direito defazer um príncipe cristão em guerra justa contra um outro príncipe cristão, o qual não está autorizado por essa guerra a tirar-lhe seu reino mesmo. Daí se segue que não é lícito despojar os índios de seus reinos e de seus bens […]

E, ao modo do raciocínio hipotético que caracteriza sua exposição de 1539, Vitoria dá mais um passo absolutamente decisivo na perspectiva da igualação das diferentes comunidades políticas: se um príncipe cristão se encontrasse reinando legitimamente sobre pagãos,

ele não poderia levar em consideração o interesse de outros súditos, como os espanhóis, mas apenas o interesse dos pagãos, de maneira que estes conservem seus bens e não sejam despojados, em benefício de outros, de suas riquezas e de seu ouro […] A república dos índios não é parte da Espanha, mas ordenada por si mesma.

Para que haja verdadeira comunidade política, importa, com efeito, que o Príncipe leve em consideração apenas o interesse de seus súditos, ainda que sejam pagãos ou infiéis, se é verdade que o poder político assume a autoridade transmitida pela comunidade e faz as vezes do cuidado com a defesa e conservação que pertence de direito a cada homem.[35]É valendo-se de tais premissas que Vitoria pode enfrentar, em sua Lição sobre os índios, a questão fundamental da legitimidade da conquista europeia, em seus aspectos políticos, jurídicos, éticos,religiosos.

Se os há, quais são os títulos jurídicos da conquista e da guerra? Essa questão é instruída com base na tese fundamental: os índios descobertos pelos Conquistadores não são selvagens ou bárbaros que permaneceram ã margem da história do mundo, mas sim povos constituídos em Estados, aos quais conviria fazer justiça em uma comunidade mundial. Esse é um ponto sobre o qual Las Casas, por sua vez, insistirá incansavelmente: os índios dominam técnicas, têm cidades, governos (a coisa é cada vez mais clara depois da descoberta do México e do Peru, 1532-33). Em outros termos, a questão de princípio, que obriga a colocar com novos esforços a justificação ou a crítica da Conquista,[36] é a de saber o que é um povo, ou melhor, o que faz de um povo um povo.[37] Questão que se reencontrará no centro do Principatus Politicus de Suárez.[38]

O tratado de 1539 é organizado em torno da discussão de sete títulos impróprios e ilegítimos e de outros tantos títulos legítimos. Vitoria examina em primeiro lugar os títulos não legítimos: a soberania mundial do Imperador; a soberania mundial do Soberano Pontífice; o jus inventionis [a descoberta]; a recusa do cristianismo; os crimes bárbaros; o pretenso livre acordo ou consentimento dos índios; a missão especial divina definida pelas bulas alexandrinas. Importa notar de imediato que certo número de títulos considerados como não legítimos serão retomados, transformados e assumidos nos títulos legítimos; é notadamente o caso da propagação do cristianismo, do direito de intervenção e de proteção. Foi em razão dessa estrutura argumentativa que Carl Schmitt[39] pôde insistir com justo motivo no que chama “a imparcialidade, a objetividade, a neutralidade” do autor, cuja argumentação não parece mais medieval, mas moderna.[40] O mesmo Carl Schmitt sublinha ainda a profunda novidade da tese central de Vitoria, em seu comentário do primeiro título legítimo da “dominação dos espanhóis sobre os bárbaros”,[41] o do direito natural de “sociedade e de comunicação” (I, 3, 1). Vitoria aí recusa a fórmula de Plauto: “O homem é um lobo para o homem”, nestes termos: Non enim homini homo lupus est, ut ait Comicus, sed homo. O que Carl Schmitt comenta assim:

O termo “homo”, repetido três vezes, soa de maneira tautológica e neutralizante; […] [para a Idade Média] a qualidade comum, ser homem, não tinha ainda necessidade de nivelar as diferenças sociais, jurídicas e políticas que apareceram ao longo da história humana. […] Todos os teólogos cristãos sabiam que os infiéis, os sarracenos e os judeus eram homens, e o direito das gentes da Respublica Christiana, com suas distinções nítidas entre diferentes tipos de inimigos e, por conseguinte, de guerra, baseava-se em distinções profundas entre os homens e na grande variedade de sua condição.

Ora, essas distinções é que se encontram apagadas pela tautologia de Vitoria, a título de uma primeira e decisiva ne utralização.[42] Os príncipes dos povos não cristãos – como vimos – têm uma jurisdição legítima sobre esses povos, assim como os habitantes do Novo Mundo têm um domínium legítimo sobre suas terras, e por isso os príncipes cristãos não têm, então, nenhum direito imediato à Conquista.[43] A questão da guerra justa é elaborada, em princípio, no quadro de uma reciprocidade e de uma reversibilidade a priori: todos os direitos dos espanhóis com relação aos bárbaros são igualmente válidos tratando-se dos bárbaros com relação aos espanhóis. Esses direitos são recíprocos (jura contraria), segundo uma reversibilidade inteira. Daí a fórmula, que muitas vezes parece estranha e escandalosa, a propósito do direito de “sociedade e de comunicação”, desenvolvida pelo exame do primeiro título legítimo de dominação (dicio):

É permitido aos espanhóis fazer comércio com os bárbaros, mas com a condição de não trazer prejuízo ao país deles. Eles podem, por exemplo, fornecer mercadorias que lhes faltam e levar ouro, prata ou outros bens que eles têm em abundância. Os príncipes índios não podem impedir seus súditos de fazer comércio com os espanhóis e, inversamente, os príncipes espanhóis não podem proibir o comércio com os índios. […] Em suma, é certo que os bárbaros não podem proibir o comércio dos espanhóis mais do que os cristãos, o de outros cristãos. Ora, é evidente, se os espanhóis impedissem os franceses de fazer comércio com eles, não pelo bem da Espanha, mas para que os franceses não tirassem vantagem disso, seria uma lei injusta e contrária à caridade[44] [Sublinhado por nós].

Vitoria leva a reviravolta a ponto de impor aos bárbaros o mandamento evangélico: “Ama teu próximo como a ti mesmo!”.

Os espanhóis são o próximo dos bárbaros, como o mostra a parábola do bom samaritano (Lc 10, 29-37). Ora, os bárbaros são obrigados a amar seu próximo como a si mesmos (Mt 22, 39). Portanto, eles não podem sem razão afastar os espanhóis de seu país. Com efeito, santo Agostinho escreve no De doctrina christiana: “Quando se diz: ‘amarás teu próximo’, é evidente que o próximo é todo homem”.[45]

Pode-se enfim, como o faz Vitoria na discussão do terceiro título ilegítimo,[46] inverter, por hipótese, o movimento da descoberta, de oeste para leste: os índios não teriam mais direito sobre nós, a título de um pretenso “direito de descoberta”, se fossem eles que nos houvessem descoberto (nonplus quam si illi invenissent nos […]) essa é mais uma maneira, paradoxal, por certo, de defender os índios e assegurar a legitimidade de seu dominium:

Sem dúvida, em virtude do direito das gentes, o que não pertence a ninguém torna-se propriedade de quem dele se apodera […] Mas esses bens [os descobertos pelos espanhóis] não eram sem proprietários. Esse título não se aplica, portanto, a eles [os índios] […] Em si mesmo, esse título [o direito de descoberta] não justifica de modo algum a posse desses territórios, como também não se os bárbaros nos houvessem descoberto.[47]

É sem dúvida com relação a anotações desse gênero que se deve compreender aobservação de Carl Schmitt, denunciando em Vitoria “uma sutileza muito abstratamente neutra, indiferente e, por conseguinte, igualmente anistórica.[48] A anistoricidade merece, em todo caso, ser aqui sublinhada, na medida em que marca bem a imensa distância que separa as considerações jurídicas de Vitoria de toda tomada de posição pautada em uma ideia de progresso ou de superioridade de uma civilização relativamente a uma outra, e esse talvez seja um dos traços que contribui para distinguir mais claramente a posição de Vitoria da de um autor (mais moderno) como Juan Ginés de Sepúlveda. Não se encontra em Vitoria, e a fortiori em Las Casas, nenhuma perspectiva concernente ao que se poderia chamar, anacronica­ mente, uma filosofia da história qualquer. A principal razão disso é certamente que, em Vitoria e mais ainda em Las Casas, o exame dos títulos da conquista desenrola-se ainda, na realidade, em um horizonte que perma­ nece amplamente teológico ou econômico-teológico.[49] Aquilo a que o teólogo-jurista não pode renunciar, o que ele jamais põe em causa diretamente, como também não o fará Suárez,[50] é o quadro doutrinal da problemática da guerra justa. Por isso, ele adere ainda plenamente à base conceituai e jurídica da Respublica Christiana, o que dá também a medida da extraordinária tensão que atravessa toda a sua obra ou, mais precisamente, a Relectio de Jndis: aí se reencontra, com efeito, a argumentação, a retórica tradicional (escolástica) que mantém os quadros fundamentais da missão, da evangelização, da causa de uma guerra justa e, ao mesmo tempo, a radicalização do tema da societase do commercium, a retomada e a transposição para o plano internacional da “philia” aristotélico-ciceroniana.

Como vimos, aos olhos de Vitoria, o primeiro título legítimo da conquista espanhola é o direito natural de sociedade e de comunicação (De Indis, 1, 3, 1), fundado na amizade que uma natureza comum estabelece entre todos os homens. Esse é um direito fundamental, natural e suscetível, no limite, de ser imposto.

Todo ser vivo ama seu próximo, diz a Escritura. Portanto, parece que a amizade entre os homens seja de direito natural e que seja contra a natureza evitar a sociedade dos homens inocentes.[51]

O primeiro título legítimo que é da alçada do direito das gentes e, por isso, do direito natural é, então, o da circulação e livre comunicação:

[…] os espanhóis têm o direito de dirigir-se a esses territórios e de permanecer neles […l Pode-se mostrá-lo, antes de tudo, a partir do direito das gentes que é direito natural ou derivado do direito natural. “Chama-se direito das gentes (jusgentium) o que a razão natural estabeleceu entre todos os povos (gentes).”[52] Em todas as nações, com efeito, considera-se como inumano receber mal os estrangeiros e os viajantes, sem razão especial. Mas, ao contrário, é humano e justo tratar bem os estrangeiros, a menos que os viajantes vindos a países estrangeiros se comportem mal.[53]

Na citação que faz de Gaius, Vitoria substitui de maneira muito significativa o termo “homines” pelo termo “gentes”. O jurisconsulto definia, de fato, o direito das gentes como um direito comum, impondo-se aos homens tomados enquanto tais, e por isso distinto tanto do direito natural em sentido estrito – o que se refere ao conjunto dos seres vivos – quanto do direito civil próprio a cada cidade. Vitoria transforma esse texto arquiclássico em uma nova tautologia que é tudo; salvo insignificante: o direito que os romanos colocavam entre todos os homens, encontra-se assim convertido em um direito entre os grupos humanos, as nações, as gentes. O direito das gentes torna se, assim, no sentido próprio (moderno), um direito internacional ou interestatal. Pois o que está em questão nesse apelo ao direito de sociedade e de comunicação, estabelecido pela razão natural que é aqui razão humana, é uma transposição e como que um alargamento da amicitia ciceroniana ao conjunto das nações consideradas como entidades independentes. Por certo, seria um erro compreender esse direito de comunicação, que é também o do commercium, no sentido antigo do termo, como destinado a fundar em primeiro lugar a liberdade do comércio ou das trocas, em um sentido mercantilista ou “liberal”.[54] Em compensação, é lícito opor a esse direito de sociedade e de comunicação, afirmado sem reserva, a acentuação muito diferente de Las Casas que, em uma de suas últimas obras, o De thesauris,[55] sublinhava que direito natural e direito das gentes permitem também proibir e impedir a penetração do território, o comércio e a liberdade das trocas:

O desembarque ou a penetração em qualquer terra que seja deve ser ordenada sem causar o menor dano e não pode fazer-se sem a autorização dos habitantes. Se se agisse de outra maneira, se se fizessem esforços para desembarcar ou penetrar sem uma autorização expressa ou tácita e se, sobretudo, os indígenas manifestassem, com a ajuda de palavras, de sinais ou de ações, sua recusa do desembarque, este determinaria uma lesão do direito em nome da qual, com toda a justiça, os indígenas se sublevariam, pois a ordem natural da justiça encontrar-se-ia violada pelos enviados de nossos reis. Seria então feita violência contra os indígenas e, em nome do direito natural, ser­ lhes-ia lícito recorrer às armas, e não apenas impedir o desembarque e a penetração dos ditos enviados, mas também rechaçá-los como inimigos culpados de um ataque iníquo, e vingar-se disso.

Assim, portanto, qualquer povo, cidade, comuna, reino autônomo, por decisão de seu chefe, pode agir dessa maneira se estima que estão em jogo a paz e tranquilidade, se pensa desse modo evitar a corrupção e defender a segurança e a existência do Estado, do reino ou da República. Em vista disso, pode impedir a entrada de seu território, de sua província ou de·sua cidade a quem quer que quisesse comerciar, trocar, comprar, vender ou estabelecer-se. Agindo assim, seria muito prudente e conduzido pela razão, e poderia, baseando-se na autoridade do direito das gentes e do direito natural, castigar todos aqueles que atentassem contra esses direitos.[56]

Mas é sobretudo a propósito do último título legítimo, aliás exposto por Vitoria de modo hipotético, que Las Casas desenvolverá sua crítica. Trata-se, com efeito, do direito de tutela. Título que se poderia – como o sugere Vitoria – “não sustentar, por certo, mas recolocar em discussão”, pois “ele pode parecer legítimo a alguns”: “Ei-lo: embora esses bárbaros não sejam inteiramente loucos […] não estão, porém, longe disso e, assim, não parecem capazes de constituir e de governar um Estado legítimo, mesmo do simples ponto de vista humano e civil…”.[57]

Reconhece-se facilmente aqui a tese de Juan Ginés de Sepúlveda, que Las Casas combaterá por ocasião da célebre controvérsia de Val­ladolid.[58] O que permanece bastante singular na economia do tratado de Vitoria é que precisamente, antes mesmo da discussão dos títulos ilegítimos, e como que para servir de base ao exame, este começara por estabelecer, como o relembramos, que os “bárbaros” tinham um poder legítimo, público e privado, antes da chegada dos espanhóis, e que não se poderia denegar-lhes esse poder assimilando os índios a criaturas irracionais (creaturae irrationales), próximas dos animais selvagens, das crianças e dos loucos. A conclusão desse primeiro exame era particularmente firme: “Se [os índios] parecem tão estúpidos e obtusos, penso que isso vem, em grande parte, de uma educação má e bárbara; pois vêem-se igualmente entre nós muitos camponeses que pouco diferem dos animais. De tudo o que precede, resulta então que, sem nenhuma dúvida, os bárbaros tinham, assim como os cristãos, um poder verdadeiro, tanto público como privado”.[59] Essa era também para Vitoria a oportunidade de voltar à teoria aristotélica da escravidão, tão frequentemente discutida no contexto da conquista:[60]

Ao argumento – os bárbaros são escravos por natureza, sob o pretexto de que não são bastante inteligentes para governar a si próprios -, respondo que Aristóteles certamente não quis dizer que os homens pouco inteligentes estejam por natureza sujeitos ao direito de um outro e não tenham poder nem sobre si mesmos nem sobre as coisas exteriores. Ele fala da escravidão que existe na sociedade civil: essa escravidão é legítima e não torna ninguém escravo por natureza. Se há homens que são pouco inteligentes por natureza, Aristóteles não quer dizer que seja permitido apoderar-se de seus bens e de seu patrimônio, reduzi-los à escravidão e pô-los à venda. Mas ele quer ensinar que eles têm, natural e indispensavelmente, necessidade de ser dirigidos e governados por outros; é bom para eles estar sujeitos a outros, da mesma maneira que as crianças têm necessidade de estar sujeitas a seus pais antes de ser adultos, e a mulher, ao marido. Que esse seja realmente o pensamento de Aristóteles, é evidente, pois ele diz da mesma maneira que certos homens são senhores por natureza, a saber, os que brilham pela inteligência. Ora, ele certamente não quer dizer que esses homens podem tomar nas mãos o governo dos outros, sob o pretexto de que são mais sábios. Mas quer dizer que eles receberam da natureza qualidades que lhes permitem comandar e governar. Assim, admitindo que esses bárbaros sejam tão estúpidos e obtusos quanto se diz, não se deve por isso recusar-lhes um poder verdadeiro nem os incluir entre os escravos legítimos…[61]

Mas deixemos de lado a controvérsia de Valladolid e a dialética sutil da Relectío e voltemos, para concluir sobre esse ponto, à tese fundamen­ tal do teólogo-jurista: se o totus orbis – transposição laicizada da Respublica Christiana ou do Imperium – constitui realmente, de certa maneira (aliquo modo), um único corpo político (una respublica), Vitoria não considera por isso que ele possa materializar-se em uma instância supranacional ou superestatal. Por certo, em sua Lição sobre o poder político, ele chega a enunciar uma “autoridade do mundo inteiro” como fundamento do direito das gentes. No entanto, para ele permanece aberta a questão da possível encarnação dessa autoridade do “totus orbis”. Qual poderia ser exatamente o poder político da comunidade mundial?

Da mesma maneira que a maioria do Estado pode estabelecer um rei sobre o Estado inteiro, a despeito da oposição dos outros, a maioria dos cristãos pode legitimamente, mesmo que todos os outros se oponham a isso, escolher um único monarca, a quem todos os príncipes e todas as províncias seriam obrigados a obedecer.[62]

Mas o que vale essa analogia e, em particular, como designar aquele que teria o encargo de exercer tal poder internacional, no qual o direito de intervenção por causa superior de humanidade (“direito de ingerência”) é seguramente uma peça essencial?[63] Com efeito, o princípio de tal intervenção nunca é discutido desde que se trate de sacrifícios humanos, de prostituição sagrada, de antropofagia, de sodomia … Uma vez reconhecido esse direito, a verdadeira e espinhosa questão é evidentemente a de suas limitações. Assim como a comunidade política jamais está fundada em um contrato ou em um concurso de vontade, mas se baseia no direito natural e encontra seu ponto de ancoragem na necessidade de o homem humanizar-se por meio dos laços sociais que asseguram antes de tudo sua conservação e sua defesa, a sociedade internacional, mesmo se acontece de ela atualizar-se factualmente por meio dos pactos, jamais é, em si mesma, de essência contratual, mas sempre de direito natural;[64] é, ela também, uma exigência de princípio da natureza racional e social do homem, e pode, como tal, definir uma ordem jurídica própria: o jus gentium. O direito das gentes, assim fundado no direito natural, recebe valor de lei, na medida em que o mundo inteiro (tatus orbis), que constitui analogicamente uma nova comunidade política (una respublica), vê outorgar-se-lhe assim o poder de decretar leis justas e boas para todos.[65] Assim caracterizado, o direito das gentes impõe-se a todas as comunidades, pois foi estabelecido em virtude da autoridade do mundo inteiro (est enim latum totius orbis auctoritate). Assim, Vitoria é levado a distinguir, antes de Grotius, do direito das gentes geral e primeiro (jus inter gentes), diretamente derivado do direito natural, um direito das gentes positivo ou convencional, que deve seu valor a um pacto ou a um acordo entre os homens (ex pacto et condicto inter homines) (nº 21). Vitoria pode então extrair duas origens do direito das gentes: o direito natural no sentido estrito e a opinião unânime do gênero humano, mas ele mantém a preexcelência do direito natural:

Assim, muitas coisas parecem ser da alçada do direito das gentes, que, em razão de sua suficiente derivação do direito natural, possui uma força evidente para estabelecer um direito e uma obrigação. Admitindo que ele nem sempre derive do direito natural, o consentimento da maioria do mundo inteiro parece bastar, sobretudo quando se trata do bem comum a todos. Com efeito, se nos primeiros tempos da criação do mundo ou de sua restauração depois do dilúvio, a maioria dos homens estabeleceu que em toda parte os embaixadores seriam invioláveis, que o mar pertenceria a todos, que os prisioneiros de guerra seriam escravos e que conviria não expulsar os estrangeiros, isso certamente teria força de lei, mesmo que os outros homens a isso se opusessem.[66]

Suárez, ainda que se situe aqui na linha de Vitoria, acentuará ainda mais, como veremos, o aspecto consuetudinário do direito das gentes.

SUÁREZ

Se Suárez, como Vitoria, afirma a autonomia e a auto-suficiência da comunidade política como comunidade perfeita, radicaliza, no entanto, a tese do teólogo de Salamanca em função de duas considerações novas: sua determinação “voluntarista” da lei e sua decisão quase metodológica de considerar ant s de tudo a condição da lei e do Estado in pura natura, isto é, abstraídos os teologúmenos relativos à queda e à história da salvação, em uma palavra, abstraída toda consideração econômica.

Em seu De Legibus, Suárez começa, com efeito, por criticar a definição tomista geral da lei,[67] antes de sua divisão em lei eterna, lei divina, lei humana e, secundariamente, lei antiga, lei nova, porque tal definição é, a seus olhos, ampla demais.[68] Para Tomás, a lei é antes de tudo a ordenação racional ao bem comum, promulgada pela autoridade que tem o encargo da comunidade.[69] Mas o ad primum da questão 93, artigo 4, precisa que, no caso da lex naturae, a promulgação deve ser entendida como o fato de Deus ter inscrito essa lei no espírito humano de maneira que a lei aí seja naturalmente conhecida [ex hoc ipso quod Deus eam mentibus hominum inseruit naturaliter cognoscendum]. O que equivale a dizer que o que faz com que uma lei seja uma lei não se deve em primeiro lugar ou apenas à sua promulgação por uma autoridade reconhecida, mas que o elemento essencial para toda lei é a ordenação da razão, a referência ao Bem comum.[70]

A legalidade da lei não resulta, portanto, de ela emanar de tal autoridade reconhecida (Deus, o Soberano, o imperador…) nem de obedecer a um processo codificado, pois estando assegurados esses dois elementos, resta determinar ainda o essencial, a saber, o elemento intrínseco que constitui a natureza da lei: a ordenação racional ao bem comum. Assim, a lei pode ser em primeiro lugar e fundamentalmente definida como aliquid rationis, a saber, regula et mensura, segundo o preceito geral, retomado de Aristóteles: rationis est ordinare ad finem.[71] Assim, lei natural e lei positiva permanecem estreitamente aparentadas, são, ambas, ordem de razão. Mas afirmar que a lei é em primeiro lugar e essencialmente ordem de razão equivale a subordinar, nela, o elemento voluntário.[72] Sem dúvida, a vontade deve aquiescer à ordem ou recusá-la, mas, no final das contas, é sempre à razão que a lei deve o fato de ser o que é e de ter força e valor de lei.

A discussão crítica que entabula com F. Vásquez (1531-1604)[73] leva Suárez a formular mais claramente sua própria concepção da lei e do fundamento da obrigação. A questão discutida é de saber se a obrigação legal, tratando-se da lex aeterna, resulta de imediato da essência divina ou se requer uma disposição específica da vontade. Para Suárez, na medida em que a lex aeterna é a regra das operações divinas ad extra, ela implica necessariamente o concurso da liberdade.[74] O que foi por vezes chamado de voluntarismo suareziano[75] encontra aí seu verdadeiro ponto de ancoragem. Com relação ao ensinamento tomista, a própria lei muda de natureza e de condição, a partir do momento em que a autoridade do direito natural não provém mais diretamente de uma regra interior à razão que se impõe à vontade, mas remete, em última instância, à superioridade absoluta da vontade daquele que é o Autor da lei natural.[76] A principal consequência dessa crítica da definição tomista da lei, em razão de sua extensão indevidamente “metafórica”, é que a lei apenas recebe força obrigatória se emana de um organismo soberano (De Legibus, I, 4, 6-9). A força coercitiva (vis coactiva) da lei não resulta imediatamente de seu valor normativo, ela se torna constitutiva de sua natureza mesma na medida em que implica uma decisão imperativa da vontade.[77] Portanto, é para deixar à lei sua forma e sua força de lei que Suárez tende a introduzir uma separação nítida entre a lei dita natural, a que está inscrita no coração do homem e que a razão reconhece,[78] e a lei humana instaurada positivamente, ao “determiná-la”, pela vontade do Soberano.[79] Por certo, Suárez defende aparentemente, contra Vásquez, a co-dependência da lei eterna e da lei natural, e entende fazer da lei positiva, na linha de Tomás de Aquino, uma determinação desta última,[80] porém a legalidade da lei remete sempre a uma decisão e a uma injunção da vontade que escolhe indiferentemente. Mesmo da lei eterna, afirma Suárez, é preciso dizer que ela postula um ato positivo da vontade divina “porque mesmo a liberdade de Deus encontra­se formalmente na vontade divina.[81] Assim, para Suárez, o julgamento da razão jamais basta para determinar a vontade que permanece sempre como a causa eficiente do ato e não recebe nada, propriamente falando, de seu objeto. A primeira consequência de tal doutrina, no plano jurídico­político, é evidentemente a tese da preeminência da lex sobre o jus, ao passo que este último, para Tomás, como o relembramos, remetia sempre a um justum, ele próprio apreendido em sua essência (ex natura rei). Nada de surpreendente, portanto, em que, em sua determinação da ideia de comunidade internacional, assim como na elaboração da problemática do direito das gentes, o pensamento de Suárez afaste-se do de Vitoria, para quem a lei permanecia essencialmente “ordinatio rationis”. Por certo, Suárez reconhece, na linha de Vitoria, a especificidade do “bonum totius orbis”, mas quando se trata de fixar o fundamento da obrigação, tratando-se dojus gentium, é o consentimento positivo dos Estados, cada um dos quais está preocupado antes de tudo em afirmar e preservar sua soberania, que virá muito naturalmente em primeiro plano. O direito natural situado fora da lei não pode introduzir-se na ordem jurídica senão secundariamente e graças a uma reflexão moral. Uma das consequências últimas dessa inflexão voluntarista na definição da lei e de sua obrigação será o positivismo jurídico e o aparecimento de um absolutismo de Estado, diante do qual será preciso organizar, então, controles externos, esforçan­ do-se por fixar limites ã sua soberania, o que será pedido à doutrina da “potesta indirecta” pontifical. Suárez, assim como Bellarmino, insistindo, em um contexto polêmico sobredeterminado (a polêmica com Jaime r da Inglaterra), no valor do pacto constitucional entre o povo e o príncipe, visam tanto distinguir a dedução ou derivação do poder político e a da monarquia pontifical[82] quanto sublinhar as limitações intrínsecas ao pacto constitucional no quadro político:

É preciso compreender que a Lex regia foi constituída por meio de um pacto pelo qual o povo transferiu seu poder ao príncipe com a condição e obrigação, para ele, de cuidar da República e de administrar a justiça, e que o príncipe aceitou tanto esse poder quanto sua condição.[83]

E mais adiante na Defensio fidei, Suárez sugerirá mesmo a possibilidade de basear diretamente no jus gentium antes que no direito natural a obediência civil, pois esta é de direito natural apenas sob a pressuposição do pacto:

A obediência civil devida aos príncipes, embora esteja baseada no direito natural em que encontra sua raiz, pode ser dita de maneira mais verdadeira e mais própria depender do direito das gentes, porque ela não depende imediatamente do direito natural, mas, sendo pressuposta a conjunção dos homens em um único corpo político e em uma comunidade perfeita, pode ser dita seguramente depender do direito natural (jus naturae), na hipótese de um pacto e de uma convenção entre os homens…[84]

Passemos agora ao segundo ponto que queremos sublinhar: Suárez, depois de Vitoria, afirma a autonomia e a auto-suficiência do poder político próprio a uma comunidade perfeita (o corpo místico político), mas doravante é no horizonte de uma reflexão stando in pura natura que se acha considerado o fim do poder político e da lei civil.[85]

A problemática da condição de pura natureza ressurge, com efeito, no centro da análise da lei e da determinação do fim do legislador e do bem comum da comunidade política entendida como corpo místico:

[…] o poder legislativo civil, mesmo examinado segundo a natureza pura, não tem por fim intrínseco e considerado por si a felicidade supranatural da vida futura […]; mas seu fim é a felicidade natural da comunidade humana perfeita de que o soberano cuida, de tal sorte que nela os cidadãos vivam em paz e segundo a justiça, e com suficiência dos bens que se relacionam à conservação e à comodidade da vida corporal, e aí incluindo essa probidade dos costumes que é necessária à paz exterior a fim de assegurar a felicidade da República e a cqnservação que convém à natureza humana.[86]

Assim, para Suárez, o Bem comum, em sua determinação propriamente política, encontra-se antes de tudo ou essencialmente circunscrito a um horizonte puramente terrestre. Desse modo, é a esfera propriamente teológico-política que desaparece.[87]

No De Legibus,[88] a tese da autonomia do poder político e do fim próprio à comunidade perfeita que é o Estado é dirigida contra Tomás de Aquino, para quem o fim último da vida humana era a beatitude em função da qual devia ser ordenada toda lei. Por certo, Tomás reconhecia a autonomia relativa da comunidade política a título de comunidade perfeita da qual o homem era parte integrante, mas era para melhor articulá-la a um sistema finalmente referido a uma felicidade supra natural.[89] Para Suárez, em compensação, nem o poder político nem o “jus civile”, como direito positivo, devem considerar “a felicidade eterna sobrenatural da vida futura”, pois esta não poderia constituir um fim próprio, próximo ou último, para a comunidade política. Vê-se aqui claramente como, na reflexão suareziana, a doutrina da pura natureza exerce suas consequências jurídico-políticas. O poder político é puramente natural; ora, a natureza, como tal, não tende a nenhum fim sobrenatural (De Legibus, III, xr, 4). Suárez deu mesmo mais um passo na “laicização” da esfera política: se a felicidade eterna em uma vida futura não pode constituir de maneira alguma o fim próprio do poder político, o mesmo se dá com a felicidade espiritual dos homens nesta vida. Em outras palavras, é toda a ordem do “espiritual”, considerada no plano da comunidade política, ou mesmo no plano pessoal da salvação individual, que se encontra excluída da consideração jurídico-política: “[…] Assim como o poder político (potestas) não é ordenado pela beatitude eterna da vida futura, tampouco o é pela felicidade espiritual da vida presente”.[90]

Para dizer a verdade, é a felicidade como tal, seja sobrenatural ou natural, no que se refere à vida presente, que é indiferente ao poder civil e à sua legislação positiva, a partir do momento em que essa felicidade concerne aos “homens singulares”, considerados como “pessoas particulares” ou privadas. Indiferente ã felicidade dos indivíduos, seja sobrenatural ou natural, o poder político não tem outro fim, próprio e intrínseco, que não a felicidade natural da própria comunidade política e por isso dos indivíduos humanos, na medida em que são membros dela: “[…] o fim do poder civil é a felicidade natural da comunidade humana perfeita de que esse poder cuida, assim como a dos homens singulares na medida em que são membros de tal comunidade”.[91]

Por certo, o corpo político é teleologicamente constituído, pauta-se necessariamente por um bem, mas este pode e deve definir-se de maneira inteiramente natural, nos limites do presente ou da “vida presente”. Vêem-se bem as razões estratégicas dessa estrita delimitação do campo e dos fins da comunidade política e o benefício que se pode tirar dela, notadamente contra todas as formas de absolutismo à Jaime I, que pretendem submeter os fins espirituais a uma autoridade política que, ao mesmo tempo, encontra-se sacralizada e fundada diretamente por instituição divina.[92]

Concluamos sobre esse ponto: no tratado das Leis, é certamente o horizonte da doutrina da pura natureza que contribui para deslocar de maneira radical a articulação tomista entre lex naturalis e lex aeterna. Suárez efetua, com efeito, o que se é tentado a chamar uma “laicização” expressa do conceito de bem comum,[93] determinando restritivamente o fim da Respublica humana como uma verdadeira felicidade política.[94] Por certo, para Tomás, como aliás para Aristóteles, o objetivo do legislador é o bem comum, mas este último está, ele próprio, diretamente subordinado à busca de um fim último que o ultrapassa incomparavelmente.

Contra a teologia política dos Reformadores, Suárez também rejeita, e de maneira inteiramente consequente, a tese segundo a qual a origem do Estado estaria intrinsecamente ligada à Queda; o Estado é antes fundado ex institutione primae naturae:

Essa recusa deve ser fundada em que a reunião dos homens em uma cidade não advém por acidente apenas, em razão do pecado ou da corrupção da natureza, mas convém por si ao homem, qualquer que seja a sua condição, e contribui para a sua perfeição.[95]

Assim, para Suárez, como já para Vitoria, a criação ou a instituição do Estado, a título de comunitas perfecta, é sempre de direito natural[96] e, se permanece legítimo relembrar que o poder político (potestas política) provém de Deus, importa então precisar que é sempre per jus naturae, por intermédio do direito natural, que procede essa derivação. As consequências dessa tese impõem-se imediatamente quando se trata da questão da origem do poder e de seu sujeito natural e primeiro.[97] Com efeito, se Deus intervém na instituição política, é unicamente a título de causa prima et universalis, isto é, de causa remota.[98] Pois o verdadeiro estabelecimento de toda sociedade política requer sempre uma causa eficiente, a que é tirada da livre decisão dos cidadãos; na origem de toda vida coletiva, é preciso pressupor então um ato moral, que é lícito considerar como uma forma de contrato. Assim, a comunidade civil é colocada inteira no plano da natureza; esta basta perfeitamente para dar conta do Estado como corpo orgânico – corpo místico – cujo fim é o bem comum, sem que as condições da ordem social tenham sido substancialmente modificadas pela Revelação. Por isso, o poder público, tal como é hoje entre os príncipes cristãos, não é nem maior nem de outra natureza que entre os pagãos. Encontra-se aqui, na linha de Vitoria, a afirmação radicalizada da autonomia da autoridade política, ainda que se tenham de distinguir, em função da heterogeneidade dos fins (felicidade política, felicidade sobrenatural), dois tipos de submissão ou de sujeição.[99]

Há uma dupla sujeição, a saber, direta e indireta. Chama-se direta a que se mantém no interior e nos termos desse poder; indireta, a que provém da direção em vista de um fim superior e que é relativa a um poder mais excelente.[100]

É nessa mesma perspectiva, que leva a acentuar a autonomia e a auto­suficiência da comunidade política como comunidade perfeita, que Suárez examina por sua vez a coexistência e a cooperação dos diferentes corpos políticos – pode-se falar aqui de Estados – no seio de uma comunidade mais ampla, a comunidade internacional. Contudo, não se poderia considerar o nascimento e a constituição dessa comunidade internacional por analogia com a constituição de um corpo político, sujeito primeiro do poder. O que constitui a unidade de um corpo político é, com efeito, a reunião de um grande número, seja em virtude de uma “vontade especial”, seja em virtude de um “comum consentimento”, em vista de um fim especificamente político. A comunidade assim constituída tem necessidade, inevitavelmente, de um organismo diretor, de uma “cabeça” ou de um “chefe”, em vista da assisfência mútua que devem prestar-se, por definição, os indivíduos que a compõem. E é precisamente por isso que o corpo político é um “corpo místico”, entenda-se antes de tudo uma comunidade formando por si uma verdadeira unidade. Desde que se constitui, uma comunidade desse gênero, provida de uma unidade moral, torna-se o sujeito de um poder (potestas), aquele mesmo que deve encarnar-se em um órgão soberano. É portanto ex natura rei, segundo uma lei de essência, que uma multidão, quando forma uma comunidade e encontra-se reunida por um laço político, torna-se detentora de um poder próprio.[101] É, por assim dizer, estruturalmente, e previamente a toda determinação da forma do governo, que a comunidade política é constituída em democracia primitiva. O único ponto verdadeiramente fundamental é que o poder (potestas), inerente à comunidade constituída, ou melhor, constituindo-se, consiga encarnar-se em um órgão soberano, único suscetível de assegurar a unidade do corpo político na busca de seu fim próprio. Estando enunciado o princípio da constituição de uma éomunidade política ou de uma comunidade perfeita orientada para seu fim próprio, Suárez, assim como Vitoria, não parece considerar seriamente, no entanto, a ideia de uma única e mesma comunidade política universal: tal comunidade provavelmente nunca existiu, ainda que em uma humanidade adâmica, ou, se esse era o caso, teria durado apenas muito pouco tempo, e não poderia existir mais no futuro, da mesma maneira que todas as figuras históricas do Império universal jamais puderam pretender seriamente instituir leis válidas para o mundo inteiro (tatus orbis).[102] Com efeito, cabe a cada comunidade política decretar leis destinadas a manter e a regular a vida do corpo político, mas tais leis são sempre “leis humanas próprias e particulares”, leis “positivas”, que, portanto, têm sentido apenas com relação ao governo desta ou daquela comunidade definida, e não poderiam, em princípio, ser universais, isto é, aqui estritamente estender-se ao conjunto inteiro dos homens (tota hominum universitas).[103] Suárez, depois de Vitoria, recusa então expressamente a ideia· segundo a qual o Imperador poderia ou teria podido ser “de direito, senhor e soberano do universo inteiro e, por conseguinte, obrigar o mundo inteiro por suas leis civis”.[104] A seus olhos, trata-se aí de uma tese “inteiramente errônea e desprovida de todo fundamento”, quer seja aplicada ao Império romano quer ao Santo Império germânico.[105]

Se as comunidades políticas são de imediato plurais, cada uma caracterizada pela especificidade de suas leis positivas ou civis, pode-se considerar, contudo, a possibilidade de uma verdadeira comunidade internacional? Esta não poderia constituir uma comunidade perfeita suplementar nem, sobretudo, superior à pluralidade determinada das comunidades políticas ou das Repúblicas, caracterizadas por leis sempre próprias e particulares. No entanto, na falta de uma verdadeira comunidade internacional, dotada de um poder legislativo, é possível considerar certos direitos, suscetíveis de regular a coexistência da pluralidade das comunidades políticas, pois se as comunidades políticas são divididas em nome de sua instituição mesma, devem, entretanto, como os indivíduos reunidos para formar um corpo político sempre singular, encontrar uma certa forma de “supracomunidade”, graças à qual possam prestar-se mútua assistência e, sobretudo, manter entre si relações de paz e de justiça. Por isso elas se encontram, novamente, como que ordenadas por um fim superior (o “bem do universo”), assim como cada República é ordenada por um fim político próprio. Ora, tais direitos são precisamente os direitos das gentes (jura gentium), na medida em que se baseiam na tradição e no costume.[106] Para Suárez, à diferença de Tomás de Aquino, aqui é a consideração do uso que é determinante: este terá permitido, com efeito, definir progressivamente certo número de direitos comuns suscetíveis de regular as relações entre as diferentes Repúblicas ou Estados, sem que, no entanto, eles jamais formem realmente um novo corpo político, uma instância superior. Não é menos verdade que Suárez, que se inscreve claramente, ainda desta vez, no prolongamento de Vitoria, elabora a ideia reguladora de uma comunidade internacional, superior à comunidade estatal e que forma como que uma comunidade, como que uma entidade política e moral própria:

[…] o gênero humano, embora esteja dividido em diferentes povos e soberanias, conserva sempre certa unidade, não apenas específica, mas também quase política e moral, a que é prescrita pelo preceito natural de amor e de misericórdia mútuos, preceito que se aplica a todos, mesmo aos que são estrangeiros, a qualquer nação que pertençam.

Por essa razão, embora cada Estado – república ou reino – seja intrinsecamente uma comunidade perfeita e consistente por seus próprios membros, no entanto cada um desses Estados é também, de alguma maneira, membro dessa comunidade universal que concerne ao gênero humano. Com efeito, essas comunidades nunca são tão auto-suficientes, tomadas isoladamente, a ponto de não ter necessidade de alguma assistência, sociedade e comunicação mútua, seja em vista do maior bem-estar e de um proveito superior, seja ainda por uma necessidade moral ou para satisfazer uma carência, como decorre da experiência. Por esse motivo, elas precisam de algum direito que as dirija e as ordene convenientemente nesse gênero de relação de sociedade. Embora isso se dê em grande parte em virtude da razão natural, isso não se dá suficientemente nem diretamente em todos os casos, e é por esse motivo que certos direitos especiais puderam ser estabelecidos pelos costumes dessas mesmas nações. Pois, assim como em uma cidade ou província, o costume introduz o direito, os costumes puderam introduzir o direito das gentes na universalidade do gênero humano. Tanto mais, aliás, que as matérias que constituem o objeto desse direito são pouco numerosas, bastante próximas do direito natural, deduzem-se muito facilmente deste e são tão úteis e tão conformes à natureza que, se não são deduções evidentes do direito natural, absolutamente necessárias por si mesmas à honestidade dos costumes, são pelo menos inteiramente conformes à natureza e acei­ táveis por todo o mundo.[107]

Suárez terá consagrado à clarificação de seu conceito de “jus gentium” vários capítulos do livro II do De legibus:[108] assim, o direito das gentes, tornado direito internacional público, refere-se principalmente, como sublinhamos, ao costume ou ao uso (II, 19, 6; II, 20, 2; III, 2, 6), mas, como tal, ele não poderia, contudo, ser assimilado a um direito positivo próprio à comunidade internacional. Conceder-se-á sem dificuldades que, com relação a Tomás de Aquino, de Vitoria a Suárez o direito das gentes mudou de natureza e, portanto, também de lugar: afastou-se cada vez mais claramente do direito natural, sem por isso ligar-se pura e simplesmente ao direito positivo, do qual continua a distinguir-se precisamente por uma diferença fundamental. Ele não poderia ser, propriamente falando, instituído e, em todo caso, jamais instituído positivamente por referência à vontade soberana dos Estados; antes continua a ser sempre resultado, fruto do uso e do costume de que se tomam nota mais tarde.[109]

Os preceitos do direito das gentes diferem dos preceitos do direito civil por não serem escritos, e sim por consistirem nos costumes não de uma cidade ou outra, de uma província ou outra, mas de todas ou de quase todas as nações: com efeito, o direito humano é duplo, a saber, escrito e não escrito…

Mas o direito não escrito consiste nos costumes: se é introduzido pelos costumes de um único povo e o obriga unicamente, é dito direito civil. Mas se é introduzido pelos costumes de todos os povos e os obriga a todos, cremos então que se trata do jus gentium próprio, e que ele difere também do direito natural, porque se baseia não na natureza, mas nos costumes, e nós o distinguimos também do direito civil, quanto à sua origem, seu fundamento, sua universalidade…[110]

Com efeito, os preceitos do direito das gentes diferem dos do direito civil, não apenas porque não são escritos (o direito natural tampouco o é), mas sobretudo porque se impõem apenas em virtude dos costumes de todas as nações ou de quase todas as nações. O direito das gentes distingue-se ainda do jus civile, pois não é próprio a esta ou aquela “cidade”, “província” ou “nação”, mas a todas as nações, ou a quase todas. Aí está a sua universalidade. Ele se distingue também do direito natural, pois não se apóia na “natureza” (entenda-se a natura hominis, natura rationalis), mas no uso ou nos costumes. Eis sua origem e fundamento. Posto isto, trata-se então de compreender como o direito das gentes pode ser comum a todos os povos (gentes), sem se confundir, porém, com o direito natural ou deixar-se reconduzir necessariamente para este, o que era, como vimos, uma das orientações da doutrina to mista.[111] Trata-se de assegurar a universalidade do direito das gentes, sem por isso ter de fundá-lo na natureza, estando bem entendido que ele não pode ter sido, ao contrário, introduzido pela vontade ou pela opinião dos homens (II, XIX, 5).

Se se fala no direito das gentes no sentido próprio, está claro que ele pôde introduzir-se no universo pouco a pouco, pelo uso e pela tradição, e graças a uma sucessão, uma propagação e uma imitação mútua dos povos, independentemente de uma convenção ou de um acordo especial de todos os povos, em um momento dado; esse direito é, com efeito, tão próximo da natureza e tão conveniente a todas as nações e à sua sociedade que se propagou quase naturalmente com o gênero humano, e não é, portanto, escrito, porque não foi decretado por nenhum legislador, mas seu valor deve-se ao uso.[112]

Os dois termos importantes são, ainda aqui, o uso e a tradição. A universalidade, ou a quase universalidade do direito das gentes, está sempre ligada, assim, à história. Esse direito se introduz pouco a pouco e difunde­ se de um povo a outro, sem que jamais tenha sido instituído por algum legislador, sem que tampouco seja preciso imaginar um congresso (conventus) e um acordo expresso (consensus) de todas as nações. Sua progressão, portanto, está ligada simplesmente aos “usos”, aos “costumes” das nações. Observar-se-á que Suárez esforça-se, assim, se não em “renaturalizar” o direito das gentes, o que seria evidentemente contraditório com seu propósito principal, pelo menos em não afastá-lo completamente da natureza: ele está “está o mais perto possível da natureza”, convém a todas as nações e à sua associação ou à sua “sociedade”, e pode, portanto, difundir-se de maneira “quase natural”, ao mesmo tempo que o gênero humano. Sua validade se deve ao uso. Importa, para bem compreender a concepção suareziana do direito natural, tomar a medida da tensão desse duplo movimento: historicizar o direito das gentes sem o desnaturalizar completamente. O hábito ou o uso fornece aqui, evidentemente, o conceito intermediário de que Suárez precisa necessariamente: assim, o direito das gentes, sem perder nada de sua justiça (ele é jusjustum), é suscetível de variações (mutabile). Não separando inteiramente o direito das gentes da natureza, Suárez pode pretender permanecer fiel à doutrina tomista (Suma teológica, Ia, IIae, qu. 95, art. 4), segundo a qual os preceitos do direito das gentes são conclusões tiradas dos princípios do direito natural, por oposição ao direito civil (positivo) que consiste em determinações, mas Suárez não deixa de sublinhar o que constitui a seus olhos a diferença fundamental, essencial, entre direito das gentes (pelo menos o jus gentium proprium, II, XIX, 2) e direito natural:

O direito das gentes difere antes de tudo e principalmente do direito natural porque, na medida em que comporta preceitos positivos, ele não implica a necessidade da coisa prescrita, em nome apenas da natureza da coisa, e segundo uma inferência evidente a partir de princípios naturais, pois tudo o que é assim é natural… Da mesma maneira, os preceitos negativos do direito das gentes não proíbem alguma coisa porque isso é mau por si, pois isso também é puramente natural; assim, a partir da razão humana, o direito das gentes não é apenas ostensivo do mal, mas constitutivo; é assim que esse direito não proíbe coisas más porque são más, mas, proibindo-as, ele as torna más...[113] [Sublinhado por nós].

Uma segunda diferença os separa: o direito das gentes não pode ser tão imutável quanto o direito natural, pois a imutabilidade resulta da necessidade.

O terceiro traço diferencial, depois da necessidade e da imutabilidade, concerne à universalidade. Enquanto a universalitasou a communitas do direito natural não sofrem exceção; esse não é o caso do direito das gentes. A “sempre” (semper) aqui se opõe “regularmente” (regulariter), de modo que o direito das gentes é comum não a todos, mas a “quase” todos (fere omnibus commune).

A conclusão que Suárez tira dessa confrontação diferencial é que o jus gentium é um direito “humano e positivo” (II, XIX, 3). Enquanto se preserva a oposição cardeal do direito positivo e do direito natural, importa, com efeito, considerar que o direito positivo pode subdividir-se por sua vez em direito civil e em direito das gentes. Este último comporta novamente dois “modos” característicos (II, XIX, 8): aquele, mais propriamente dito, que todos os povos e todas as nações são obrigados a respeitar em suas relações recíprocas (jus quod omnes populi et gentes variae inter se servare debent).Tomado nesse sentido, o direito das gentes antecipa o que se denominará em seguida direito internacional, torna-se claramente um direito interestatal, o que acentua ainda seu caráter positivo. O segundo modo é o que se denomina imprópria e analogicamente direito das gentes na medida em que é observado pelos diferentes Estados ou pelos diferentes reinos “intra se”, em sua vida e em suas relações internas.[114] É assim que são da alçada do direito das gentes propriamente dito tudo o que concerne à prática das trocas ou do comércio (usus commerciorum), o respeito pelos embaixadores, o direito da guerra. Em compensação, por conformes à natureza que possam ser os usos validados pelo direito das gentes, nenhum deles se impõe absolutamente nem é necessário ex vi solius rationis naturalis, ex pura naturali ratione. Vê-se bem aqui como a expressão ratio naturalis substituiu decisivamente a de lei natural. Mas é por isso também que o direito das gentes, mesmo em seu sentido primeiro, distingue-se do direito universal, aquele que concerne ao tatus orbis, ao mundo inteiro, segundo Vitoria. Pois tal direito jamais existe, com efeito, senão a partir da pluralidade dos Estados soberanos e de sua vontade de pôr-se de acordo sobre certo número de convenções, não absolutamente necessárias. Com isso Suárez cava uma distância muito mais nítida entre direito natural e direito das gentes do que a que reconhecera Tomás. Entre essas duas formas de direito, há, com efeito, diferença de natureza e não simplesmente transição gradual assegurando a passagem de um ao outro.

Além de tudo o que separa as posições respectivas de Vitoria e de Suárez – e muitas vezes são mais que simples “nuances” -, parece claramente, no entanto, que a problemática do direito das gentes representa, por assim dizer, o terreno privilegiado no qual se deixa medir exatamente a distância que sepa­ ra a reflexão dos teólogos- juristas[115] do frágil equilíbrio tomista construído segundo o esquema de derivação: lex aeterna, lex naturae, jus naturale, jus gentium, jus civile.Em todos os casos, o que terá sido irremediavelmente rompido é a notável continuidade do ardo, ou melhor, da ordinatio tomística, capaz de integrar em um poderoso movimento unificador ascensional a totalidade do real, segundo a medida última da lex divina. Sem dúvida, aqui é o conceito tomista de inclinatio e o de apetite natural que constituíam os princípios diretores de uma comum participação de todos os vivos em um ordenamento divino e providencial por meio do qual a ordem da natureza reunia­se, sem verdadeira solução de continuidade, à da graça. Assim, por sua legislação própria e positiva, a lei humana, pautada por uma justiça, ou por um justum dado ex natura rei, contribuía eminentemente, e sem verdadeira arbitrariedade, para a determinação da lei natural. Lei natural – direito natural: o ponto de referência era sempre muito claramente fixado para decidir sobre a própria legalidade da lei positiva. Ora, a mais profunda linha de fratura ocorrida nesse edifício é, sem nenhuma dúvida – como bem o mostraram os trabalhos exemplares de Henri de Lubac, continuados por Franco Todescan -, a disjunção, tornada patente no século XVI, entre uma ordem doravante qualificada de “sobrenatural” e um estatuto hipoteticamente constituído, o da pura natureza. Doravante, é nesse quadro, como se viu explicitamente com Suárez, que são elaboradas as teses fundamentais relativas à lex naturalis. Na perspectiva do status purae naturae, esta é de imediato desconectada de toda consideração econômica, estranha à articulação tomista central na Suma – a do exitus e do reditus -, de tal sorte que a lei ou o direito naturais representam daí em diante esse conjunto de princípios que a ratio naturalis é capaz de apreender segundo sua ordem própria. O direito natural torna-se assim, em seu princípio, um direito racional e, a partir daí, importa muito pouco saber (Vásquez versus Suárez) se essa racionalidade, codificável, é a de uma ordem das essências que se impõe ao próprio Deus ou se se reserva em Deus uma instância propriamente volitiva e posicional. Em todos os casos, tratando-se da lei humana, positiva, o dictamen rationis não poderia bastar para fazer lei, e é preciso ainda um novo elemento constitutivo: a vontade. É essa profunda desestruturação do equilíbrio tomístico – cujas razões são indissociavelmente doutrinais, confessionais e históricas – que impõe repensar com novos esforços a própria ideia de mundo (tatus orbis) e de sua possível reunificação na escala de um direito das gentes essencialmente consuetudinário, historicizado e, se se quiser, desnaturalizado. Secularização, laicização são certamente termos muito gerais para caracterizar os fenômenos de grande amplitude que ocorrem de 1511-12 a 1611-12. O que é certo, em todo caso, é que os teólogos espanhóis, confrontados com a interpretação do sentido da Conquista, terão contribuído para colocar as bases do que se tornará, depois de Althusius e Grotius, a Escola moderna do direito natural.

Tradução de Maria Lúcia Machado

NOTAS

  1. O sermão é conhecido apenas pelo relato que fez dele, bem mais tarde, Bartolomé de Las Casas. Ver Las Casas et la défense des Indiens, apresentado por Marcel BATAILLON e André SAINT-LU, Paris, Archives Julliard, 1971, pp. 67-9.
  2. O grande historiador e editor Angel Losada sublinhou muitas vezes, com ênfase, a importância real dessa controvérsia: “Nunca, sem dúvida, nem antes nem depois dessa data, um Imperador tão poderoso – e em 1550, Carlos Quinto, imperador do Santo Império Romano, era o soberano mais poderoso da Europa, à frente de um grande império colonial – ordenou a suspensão das conquistas até que se decida se são justas”, em “Evolutión del moderno pensamiento filosófico-histórico sobre Juan Ginés de Sepúlveda”, Actas de Congreso Internacional sobre el V Centenario del nacimiento del Dr.Juan Ginés de Sepúlveda, Córdoba, 1993, p. 11.
  3. Ver o dossié reunido por Luciano PERENA e Vidal ABRIL, Francisco Suárez, De juramento fidelitatis, Conciencia y Política, Madri, CSIC, 1979.
  4. Ver Jean-Marie AUBERT, “Aux origines théologiques des droits de l’homme”, Le Supplément, nº 160, mar. 1987, p. 114: “A repercussão da obra de Bartolomé de Las Casas teria podido limitar-se à humanização da colonização espanhola. De fato, ele abriu os olhos de muitos teólogos para a verdadeira dimensão do problema levantado, a discussão da representação clássica da sociedade humana. Pode-se falar de uma verdadeira revolução doutrinal que abala a teologia escolástica na modernidade. Pois, de fato, tratou-se da passagem de um direito universal cristão fundado em Deus para um direito natural tipicamente individual e laicizado”. Palavras que só podem deixar perplexo aquele que apenas tivesse aberto um dos últimos opúsculos do grande dominicano, De l’unique maniere d’évangéliser le monde entier.
  5. Tese que recebe uma dimensão verdadeiramente militante desde os trabalhos de Ernest NYS (Les initiateurs du droit public moderne, Bruxelas, 1890; Les origines du droit international, Bruxelas, 1894) e de James BROWN SCOTT ( The Spanish Origin of International Law, 1933; The Catholic Conception of Intemational Law, 1934).
  6. Sobre o ensino de Vitoria em Salamanca, ver especialmente, na obra coletiva editada por Ada LAMACCHIA, La filosofia nel siglo de ora, Studi sul tardo rinascimiento spagnolo, Bari (1995), Levante Editori, a primeira parte: La scuola di Salamanca: prima generazione, pp. 15-215.
  7. Ia IIae, qu. 91, art. 2: “[…] Uma tal participação da lei eterna na criatura, chamamo­la lei natural”. Ver também Ia IIae, qu. 93, art. 1: “[…] A lei eterna não é nada mais que a razão da divina sabedoria, enquanto dirige todos os atos e todas as moções”. Sobre tudo isso, pode-se remeter aos trabalhos de Michel VILLEY, notadamente Questions de saint Thomas sur le droit et la politique, 4ª ed., Paris, 1975, em particular pp. 123 e ss.
  8. Ver Jean-Marie AUBERT, Le droit romain dans l’oeuvre de saint Thomas, Paris, Vrin, 1955.
  9. Ia IIae, qu. 95, art. 2: “Nas coisas humanas, alguma coisa é dita justa pelo fato de que é conforme à regra da reta razão. Mas a regra primeira da razão é a lei natural. A partir daí, toda lei positiva humana terá razão de lei apenas na medida em que deriva da lei natural’·.
  10. Essa é a tese que ensinará ainda fielmente Domingo de SOTO (1495-1560), professor em Salamanca a partir de 1532, em seu De justitia et jure, I, qu. 5, art. 4: “Chama-se direito das gentes o que os mortais estabeleceram racionalmente, a partir dos princípios naturais, por via de conclusão […]; em compensação, o que foi instituído por via de determinação, como do gênero para a espécie, é denominado direito positivo (jus civile)”, (Salamanca, 1556-57; reimpressão, com introdução de V. CARRO e tradução espanhola de M. González Ordónez, Madri, 1967-68).
  11. Ia IIae, qu. 95, art. 4: Ad primum dicendum quod jus genitum est quidem aliquo modo naturale homimi, secundum quod est rationalis, inquantum derivatur a lege naturali per modum conclusionis quae non est multum remota a principiis. Unde defacili inhujusmodi homines consenserunt. Distinguitur tamen a lege naturali, maxime ab eo quod est omnibus animalibus commune. Em seu Comentário da Suma teológica (ln Secundum Secundae, qu. 57, art. 3, § 2), Vitoria sustentará uma posição diferente, a mesma que desenvolverá Suárez: “Chama-se direito das gentes o que não comporta por si e por sua natureza uma justa proporção (aequitas), mas o que é ratificado por uma convenção humana (quod ex condictio hominum sancitum est). Pode-se concluir, então, que o direito das gentes deve ser antes classificado sob o direito positivo que sob o direito natural”.
  12. Francisco de VITORIA, Leçon sur le pouvoir politique, tradução francesa de Maurice Barbier, Paris, Vrin, 1980, pp. 57-8.
  13. Ele também será lente de prima em Salamanca de 1581 a 1600.
  14. Ver Cícero, De officiis, 1, IV, 11: “Em primeiro lugar a natureza deu a todo o gênero dos seres vivos uma inclinação a conservar a si mesmos, sua vida e seu corpo, a evitar tudo o que lhes seria nocivo, a buscar e a preparar tudo o que é necessário à vida, alimento, abrigo e outras coisas do mesmo gênero. A todos os seres vivos pertence também em comum a propensão a unir-se em vista da procriação e a cuidar dos seres que procriaram” [Principio generi animantium esta natura tributum, ut se, vitam corpusque tueatur, declinetea, quae nocitura videantur, omniaque, quae sunt ad vivendum necessaria, acquirat et paret…]. Ver também Tomás de Aquino, Ia IIae, qu. 94, art. 2, in corpore: “…Dir-se-á que é da alçada da lei natural o que a natureza ensinou a todos os animais, isto é, a união dos sexos, a educação dos filhos e outras coisas semelhantes” [… dicunturea esse de lege naturali quae natura omnia animalia docuit, ut est conjunctio maris et feminae, et educatio liberorum, et similia].
  15. De justitia et jure, 1, qu. 4, art. 4: “A lei natural é a mesma em todos os mortais na medida em que concerne apenas aos princípios […] Enquanto ela concerne às conclusões tiradas desses princípios, ainda que no mais das vezes seja a mesma em todos, tanto no que concerne à retidão quanto ao conhecimento, ela comporta, no entanto, falhas com relação ao primeiro ponto, em razão de certos impedimentos particulares, com relação ao segundo ponto, em razão do obscurecimento suscetível de cegar a razão por hábitos maus” [Lex naturalis quatenus ad sola principia extenditur, eadem est apud omnes mortale […] Quatenus ad ejus conclusiones etsi plurimum sit eadem apud omnes, etquantum ad rectitudinem et quantum ad cognitionem, deficit tamen et respectu prioris propter particularia quorundam impedimenta, et respectu posterioris, propter rationis nubila quibus ob consuetudinem pravam excaecatur]. Comparar com Tomás, S. T., Ia IIae, qu. 94, art. 2: “Os preceitos da lei natural desempenham na razão prática o mesmo papel que os primeiros princípios de demonstração na razão especulativa: uns e outros são, com efeito, princípios conhecidos por si. […] Ora, da mesma maneira que o ser é o que cai em primeiro lugar sob a apreensão da razão [primum quod cadit in apprehensione simpliciter], o bem é o que cai em primeiro lugar sob a apreensão da razão prática, ordenada para o agir [primum quod cadit in apprehensione practicae rationis, quae ordinatur ad opus]. Pois todo agente age para um fim, o qual tem razão de bem. Por isso o primeiro princípio da razão prática baseia-se na razão de bem, sendo o bem precisamente o que todos desejam. O primeiro preceito da lei será, então, que é preciso fazer e buscar o bem e evitar o mal. E sobre ele serão fundados todos os outros preceitos da lei natural [et super hoc fimdatur omnia alia praecepta legis naturae]”.
  16. Loc. cit., art. 2: “o direito ou o justo se dizem de uma obra adequada a outrem sob certo modo de igualdade”.
  17. Ver. qu. 57, art. 3, incorpore: “A justiça implica, com efeito, certa igualdade (ae­ qualitas), como seu nome o indica: o que se iguala se ajusta, diz-se vulgarmente (ea quae adaequantur justari)”.
  18. Ibidem.: ”Absolutamente falando, o fato de apreender alguma coisa não convém apenas ao homem, mas igualmente aos outros seres animados. E é por essa razão que o direito que se chama natural segundo o primeiro modo nos é comum com os outros seres animados. […] Em compensação, o fato de comparar alguma coisa, relacionando-a ao que dela provém com o uma consequência, eis o que é próprio ã razão” [Absolute autem apreehendere aliquid non solum convenit homini, sed etiam aliis animalibus. Et ideo jus quod dicitur naturale secumdum primum modum, commune est nobis et aliis animalibus. […] Considerar autem aliquid comparando ad id quodex ipso sequitur, est proprium rationis].
  19. “Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituir, id apud omnes populos paraeque custoditur vocaturque jus gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur”, lnstitutiones, 1, 2, 1, Corpus Juris Civilis, Krueger, I, p. 1.
  20. Ibidem ad tertium: “[…] Na medida em que a razão natural dita o que é da alçada do direito das gentes, esses direitos não têm necessidade de alguma instituição especial, mas é a própria razão natural que os institui” [… quia ea quae sunt juris gentium naturalis ratio dictat..., inde est quod non indigent aliqua especiali institutione, sed ipsa naturalis ratio ea instituit].
  21. Sobre tudo isso, ver Michel VILLEY, Questions de saint Tbomas sur le droit et la politique, Paris, PUF, 1987, em particular pp. 121 e ss., 141 e ss.
  22. Retomamos aqui a caracterização muito pertinente de Venancio CARRO, La teologia y los teólogos-juristas espanoles ante la conquista de América, Madri, 1955, 2 vols.
  23. A edição de referência é hoje a de L. PERENA e J. M. PRENDES, edição crítica com tradução espanhola (no Corpus Hispanorum de Pace), Madri, CSRC, 1967. Citaremos também a tradução francesa, com introdução e notas, de Maurice BARBIER, Leçons sur les lndiens et sur le droit de guerre, Genebra, Droz, 1966. Infelizmente, essa tradução, aliás excelente, não pôde apoiar-se na edição de L. Pereña. Assinalemos também a notável edição italiana bilíngue, que dá o texto da edição crítica: Relectio de lndis. La questione degli lndios, texto crítico de L. Pereña, edição italiana e tradução de A. Lamacchia.
  24. Edição T. Urdánoz, Obras de Francisco de Vitoria, Relecciones Teológicas. Edição crítica do texto latino, versão espanhola, Madri, BAC, 1960. Tradução francesa por Maurice BARBIER, Leçon sur le pouvoir civil, Paris, Vrin, 1980. A edição Urdánoz inclui uma excelente introdução biográfica (pp. 1-107).
  25. Trad. cit., p. 43: Patet ergo quod fons et origo civitatum rerumque publicarum, non inventum est hominum, neque inter artificata numerandum, sed tanquam a natura profectum.
  26. “[…] foi necessário ao homem não vagar ao acaso, dispersando-se e isolando-se como os animais selvagens, mas socorrer-se mutuamente vivendo em sociedade”, trad. cit., p. 41.
  27. “Se se faz abstração do direito comum positivo e humano, não há mais razão para que esse poder pertença antes a um que a outro. Portanto, é necessário que seja a própria comunidade que se baste e possua o poder de governar-se[…] Não há razão para que, na comunidade política, cada um reclame para si um poder sobre.os outros”, trad. cit., p. 46.
  28. De jure helli, 7-9 [24-28], trad. fr. cit., pp. 118-9: “Mas toda a dificuldade é de saber o que é um Estado e quem é príncipe propriamente falando. Respondamos brevemente que se chama Estado, propriamente falando, uma comunidade perfeita. Mas o que é uma comunidade perfeita? Essa é a questão. A esse respeito, é preciso observar que ‘perfeito’ equivale a ‘completo’. Pois aquilo a que falta alguma coisa é dito imperfeito e, ao contrário, aquilo a que não falta nada é dito perfeito. Portanto, é perfeito o Estado ou a comunidade que forma um todo por si mesmo, isto é, que não é parte de um outro Estado, mas que tem suas leis próprias, seu conselho próprio e seus magistrados próprios […l Por conseguinte, o direito de declarar a guerra pertence apenas a um Estado perfeito ou a seu príncipe”.
  29. “O Estado não pode de maneira alguma ser privado do poder de defender-se e de proteger-se contra as injustiças de seus súditos e dos estrangeiros, o que ele não pode fazer sem poderes públicos”, trad. cit., p. 55.
  30. Non est impedimentum quod aliquis sit verus dominus .”
  31. Trad. cit., p. 21. Ver Ia nae, qu. 10, art. 10: “É preciso levar isto em conta: a soberania e a autoridade entraram aí pelo direito humano, a distinção entre fiéis e infiéis é, ao contrário de direito divino, porém esse direito divino que vem da graça não destrói o direito humano que vem da razão natural. É por isso que a distinção entre fiéis e infiéis, tomada em si não suprime a soberania nem a autoridade dos infiéis sobre os fiéis” [Ubi considerandum est quod dominium et praelatio introducta sunt ex jure humano; distincto autem fidelium et infidelium est ex jure divino. Jus autem divinum, quod est ex gratia, non tollit jus humanum, quod est ex naturalis ratione. Et ideo distincto fidelium et infidelium, secundum se considerata, non tollit dominium et praelationem infidelium supra fideles].
  32. I, 1, 10 (trad. 26-7). Vitoria pode referir-se igualmente ao comentário de Cajetan sobre as mesmas questões da Suma teológica: “Quidam autem infideles nec de jure nec de facto subsunt secundum temporalem juridictionem principibus christianis, ut se invenniuntur pagani qui nunquam imperio romano subditi fuenmt, terras inhabitare in quihus christianum nunquam fuit nomem. Horum nanque domini, quam vis infideles, legitimi sunt sive regali sive político regimine gobernentur. Nec sunt propter infidelitatem a domínio suorum privati, cum dominium sit ex jure positivo, et infidelitas ex divino jure, quod non tollit jus posmvum.
  33. Nº 9. trad. cit.. p. 54.
  34. Trad. cit., p. 58: “Imo, cum una Respublica sit pars tolius orbis, et maxime christiana provincia pars totius Respublicae, si bellum utile sit uni provinciae, aut Respublicae cum domino orbis au Christianitatis, puto eo ipso bellum esse injustum”.
  35. Ver Leçons sur le pouvoir politique, trad. cit., p. 55: “Se, com efeito, o homem não pode renunciar ao direito e à faculdade de defender-se e de servir-se de seus membros segundo sua vontade, ele tampouco pode, portanto, renunciar ao poder, pois este lhe pertence em virtude do direito natural e divino. Assim como também o Estado não pode de maneira alguma ser privado do poder de defender-se e proteger-se contra as injustiças de seus súditos e dos estrangeiros, o que ele não pode fazer sem poderes públicos”. Sem dúvida, caberá a Las Casas, e só a ele, ir muito mais longe no reconhecimento da diversidade das comunidades políticas e de seus direitos próprios, afirmando que cada Respublica tem igualmente o direito de defender seus deuses e qué essa é uma primeira marca fundamental de piedade. Na 11ª réplica redigida por Las Casas para responder às objeções de Sepúlveda na célebre controvérsia de Valladolid, em 1550 (ver sobretudo, a propósito dessa controvérsia, Lewis HAKKE, All Mankind is one. A study of the Disputation between Bartolomé de Las Casas and Juan Ginés de Sepúlveda in 1550, on the lntellectual and Religion Capacity of the American lndiam, Northern Illinois Press, 1974; ver também a excelente síntese de A. LOSADA, que muito terá contribuído para uma apreciação mais fina das posições de Sepúlveda, ‘The controversy between Sepúlveda and Las Casas in the Junta of Valladolid”, na obra coletiva Bartolomé de Las Casas in the History. Toward an understanding of the Man and His Work, Juan FRIEDE e Benjamin KEEN (eds.), Northern Illinois University Press, 1971, pp. 279-306), Las Casas declara, com efeito: “Sendo dada a convicção (errônea) em que se encontram os idólatras de que as divindades que honram são o verdadeiro Deus, eles têm não apenas o direito de defender sua religião, como o direito natural os obriga a isso, e, se não chegam a expor suas vidas para defender seus ídolos e seus deuses, pecam mortalmente. A razão disso é, entre muitas outras, que todos os homens são obrigados, por lei natural, a amar e servir a Deus mais que a si próprios, e defender a honra e o culto divino até a morte, inclusive […] E não há nenhuma diferença quanto a essa obrigação entre os que conhecem o verdadeiro Deus, isto é, os cristãos, e os que não o conhecem e estimam verdadeira alguma divindade. […] Pois a consciência errônea compromete e obriga com relação à consciência reta […]” (em Las Casas, L’ Evangile et la force. Apresentação, escolha de textos e tradução de Marianne MAHN-LOT, Paris, Cerf, 1964, p. 192).
  36. Como se sabe, o termo será oficialmente proscrito a partir das Lois Nouvelles de 1542.
  37. Ver Michel SENELLART, “L’effet américain dans la pensée politique européenne du XVIéme siècle, em Penser la rencontre de deux mondes, publicado sob a direção de Alfredo Gomez-Muller, Paris, PUF, 1993, pp. 80-1.
  38. É sob esse título que foi publicada separadamente a terceira parte da Defensio Fidei, E. ELORDY e L. PEREÑA (eds.), Madri, CSIC, 1965.
  39. Der Nomos der Erde im Vdlkerrecht desjus Puhlicum Europaeum, Berlim, 1950.
  40. Ibidem, p. 71.
  41. Leçons sur les Indiens et sur le droit de guerre, introdução, tradução e notas de Maurice BARBIER, Genebra, Droz, 1966, p. 82.
  42. Carl SCHMITT, ibidem, p. 74: “Neutralisierung”, “neutralisierende Argumentation”.
  43. Idem, pp. 73-4. Ver a discussão da primeira questão examinada por Vitoria (I, 1; trad. fr. p. 13): “Os índios tinham um poder verdadeiro, tanto público quanto privado?” e a conclusão dessa discussão (I, 1, 16; trad. fr. p. 32): “De tudo o que precede resulta então que, sem nenhuma dúvida, os bárbaros tinham, assim como os cristãos, um poder verdadeiro tanto público quanto privado. Nem os príncipes nem os cidadãos puderam ser despojados de seus bens com o pretexto de que não tinham poder verdadeiro (non essent veri dominz). Seria inadmissível recusar àqueles que jamais cometeram injustiça o que concedemos aos sarracenos e aos judeus, esses inimigos perpétuos da religião cristã. Com efeito, reconhecemos nestes últimos um poder verdadeiro sobre seus bens, salvo quando se apoderaram de territórios cristãos”.
  44. 1, 3, 2; trad. fr., p. 85.
  45. 1, 3, 1. Mais uma vez, a comparação com Las Casas permite avaliar o abismo que separa as duas doutrinas.
  46. 1, 2, 10; trad. fr., p. 59.
  47. Pode-se ficar perplexo diante da nota do tradutor: “É a afirmação da igualdade dos povos e das raças”.
  48. Carl SCHMITT, op. cit., p. 76.
  49. Naturalmente, esse ponto é,ainda mais acentuado em um Las Casas, do qual se pôde evocar o profetismo. Ver Francesca CANTU, “La dialectique de Las Casas et l’histoire”, Le Supplément, nº 160, mar. 1987, pp. 5-26. Esse número inclui um precioso dossiê consa­grado a “Las Casas & Vitoria. Le droit des gens dans l’âge moderne”.
  50. Ver. Luciana Perena VICENTE, Teoria de la guerra en Francisco Suárez, Madri, cs1c, 1954. O tomo II inclui a edição crítica do De bello.
  51. De Indis, 1, 3, 1 (trad., p. 83): “Omne animal diligit sibi sImile (Eccl. 13 (19]). Ergo videtur quod amicitia ad omnes homines sit de jure naturali, et quod contra naturam est vitare consortium hominum innoxiorum”.
  52. lnstitutiones, 1, 2, 1 (Corpus Juris Civilis, Krueger, t. I, p. 1): “Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituir, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque jus gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur”.
  53. De Indis, 1, 3, 1, trad. fr., p. 82 (csic, pp. 77-8);’Primus titulus potest vocari naturalis societatis et communicationis. Et circa hoc sit prima conclusio: Hispani habent jus peregrinandi in illas provincias […] Probatur primo ex jure gentium, quod vel est jus naturale vel derivatur ex jure naturali (Inst. De jure naturali et gentium): ‘Quod naturalis ratio inter omnes gentes constituir, vocatur jus gentium’. Apud omnes enim nationes habetur inhumanum sine aliqua speciali causa hospites et peregrinos male accipere; et contrario autem humanuin [et officiosum] se bene habere erga hospites; quod non esset si peregrini male facerent acce­ dentes in alienas nationes”.
  54. Nesse sentido, é lícito considerar excessivas as conclusões de Henri MÉCHOU­ LAN, Le sang de l’autre et l’honneur de Dieu, Paris, Fayard, 1979: “O direito das gentes é um direito confessional e um instrumento de legalidade cristã” (p. 88), “o direito de Vitoria é o direito do mais forte” (p. 89). Ver também, do mesmo autor, “Vitoria, pére du droit international?”, em Actualité de la pensée juridique de Francisco de Vitoria, Bruxelas, Bruylant. 1988, pp. 11-26.
  55. Publicado com tradução espanhola e anotação por A. LOSADA, Los tesoros del Peru, Madri, 1958, p. 129.
  56. Cit., p. 125.
  57. De Indis, 1. 3, 17, trad. cit., p. 101.
  58. Diante da tese de Sepúlveda, segundo a qual os índios são bárbaros que antes de tudo devem ser dominados, Las Casas propõe uma célebre tipologia em que distingue três categorias de bárbaros. Ver L’Evangile et la force, op. cit., pp. 184-5. Observar-se-á, contudo, que a tese de Sepúlveda, tal como se pode reconstituí-la, independentemente dos testemunhos de Las Casas, é muito menos simples e não defende, em todo caso, a ideia de uma escravidão “por natureza”. O ponto crucial que pode ser elucidado graças aos trabalhos de A. Losada é o seguinte: “Há, além disso, outras causas que justificam as guerras: uma delas, a mais aplicável a estes bárbaros chamados vulgarmente índios, é a seguinte: que aqueles bárbaros, cuja condição natural é tal que devam obedecer a outros, se recusam o império destes e não resta outro recurso, sejam dominados pelas armas, pois tal guerra é justa segundo a opinião dos mais eminentes filósofos, entre eles Aristóteles”, citado por A. LOSADA, “Evolución dei Moderno Pensamiento Filosófico-Histórico sobre Juan Ginés de Sepúlveda”, em Actas de Congreso Intenzacional sobre el V Centenario del nacimiento del Dr. Juan Ginés de Sepúlveda, Córdoba, 1993, p. 11. A essa afirmação do Democrates segundo, do qual Losada igualmente deu uma edição crítica (Madri, csic, 1951), é preciso acrescentar hoje este testemunho absolutamente fundamental tirado da carta que ele dirige a Francisco de Argote: “Eu não sustento que os bárbaros devem ser reduzidos à escravidão, mas que devem apenas ser submetidos à nossa dominação. Não sustento que devemos privá-los de seus bens, mas unicamente submetê-los, sem cometer contra eles a menor injustiça. Não sustento que devemos abusar de nossa dominação […] Em primeiro lugar, devemos afastá-los de seus costumes pagãos e, em seguida, com afabilidade, impeli-los a adotar o direito natural e, graças a essa magnífica propedêutica à doutrina de Cristo, atraí-los, com a mansidão apostólica e palavras de amor, para a religião cristã” (carta nº 53, A. LOSADA (ed.), Epistolaria de Juan Ginés de Sepúlveda, Instituto de Cultura Hispânica, Madri, 1966). Sublinhemos simplesmente dois pontos: Sepúlveda fala de “condição” e não de “natureza”, e evoca a necessidade de conduzir os índios até o… direito natural. Antes que ceder à indignação fácil, frequentemente admitida aqui, contra aquele que defenderia teses pagàs (aristotélicas), em face de um Las Casas precursor dos direitos do homem, é sem dúvida mais judicioso e perturbador observar que Sepúlveda representa aqui o autor moderno, humanista, defensor da ideia de progresso e da difusão de um direito natural ao qual conviria alçar os povos “bárbaros”. Se ainda se deve falar de “precursor”, é antes Sepúlveda quem mais uma vez anteciparia pontos fundamentais do que se tornará, no século XVIII, a ideologia colonial “progressista”.
  59. De Indis, 1, 1, 15, trad. cit., p. 31.
  60. Ver Marcel BATAILLON, “Las Casas face à la pensée d’Aristote sur l’esclave”‘, em Platon et Aristote à la Renaissance, XVIéme Colloque international de Tours, Vrin; 1976, pp. 403-20. Ver também J. A. Fernández SANTA MARÍA, The State, War and Peace. Spanish Political Thought in the Renaissance 1517-1559, Cambridge, 1977; e, do mesmo autor, ”Juan Ginés de Sepúlveda on the nature of the American Indians”, em The Americas, XXXI, 4 (1975), pp.· 434-51.
  61. De Indis, 1, 1, 16, trad. fr., p. 32: “[…] ipsi sunt servi a natura, quia parum valent ratione ad regendum [etiam] se ipsos. [Política, 1, 2, 1254, arts. 13-15.] Ad hoc respondeo quod certe Aristoteles non intellexit quod tales, qui parum valent [ingenio], sint natura alieni juris et non habeant dominium et sui et aliarum rerum; haec enim est servitus civilis et legitima, quia nulla est servus a natura [Política 1, 6, 1255 a]. Nec vult Philosophus quod, si qui sunt a natura parum mente validi quod liceat occupare patrimonia illorum et illos redigere in servitudinem et venales facere; sed vult docere quod a natura est in illis necessitas qua indigent ab aliis regi et gubernari, et bonum est illis subdi aliis, sicut filii indigent subici parentibus ante adultam aetatem, et uxor viro. Et quod haec sit intentio Philosophi patet, quia eodem modo dicit quod a natura sunt aliqui domini, scilicet qui vigent intellectu. Certum est autem quod non intellegit quod tales possint sibi arripere imperium in alios illo titulo, quod silit sapientiores, sed qµia a natura habent facultatem, ad imperandum et regendum. Et sic; dato quod isti barbari sint ita inepti et hebetes, ut dicitur, non ideo negandum est habere verum dominium, nec sunt in numero servomm [civilium] habendi'”.
  62. Ibidem, nº 14. A nota do tradutor sublinha aqui, involuntariamente. a dificuldade dessa assimilação dos Estados cristãos ao tatus orbis.M. BARBIER observa: “É uma consequência da comunidade política mundial. Se esta existe efetivamente, possui um poder político da mesma maneira que o Estado, isto é, em virtude do Direito Natural. Como o Estado, ela pode igualmente transmitir esse poder e designar o príncipe encarregado de o exercer”.
  63. Ver De jure belli, 19 [521, trad. cit., 125: “Ora, o que é necessário ao governo e à proteção do mundo é de direito natural: precisamente essa razão que mostra que o Estado tem, em virtude do direito natural, o poder de punir e de castigar seus próprios cidadãos quando eles lhe causam dano. Se o Estado possui esse poder com relação a seus súditos, o mundo o possui sem nenhuma dúvida com relação a todos os que lhe causam dano e não vivem humanamente; ele não o exerce senão por intermédio dos príncipes”.
  64. Ver sobre esse ponto a excelente síntese de Antonio TRIYOL Y SERRA, Le Supplément. Revue d’éthique et théologie morale, nº 160, mar. 1987. “Las Casas & Vitoria. Le droit des gens dans l’âge moderne”, p. 84. Ver também, do mesmo autor, “La conception de la paix chez Vitoria”, em Recueils de la Société Jean Bodin, t. XV, Bruxelas, La Paix, 1961, pp. 241-73.
  65. De potestate civili, nº 21 (trad. pp. 73-4): “O direito das gentes não deve seu valor apenas a um pacto ou a um acordo entre os homens, mas tem também valor de lei. Pois o mundo inteiro, que forma, de certa maneira, uma única comunidade política, tem o poder de fazer leis justas e boas para todos, como as que se encontram no direito das gentes. Daí decorre claramente que todos os que violam o direito das gentes, seja em tempo de paz, seja em tempo de guerra, cometem um pecado mortal, mas com a condição de que seja sobre pontos muito importantes, como a imunidade dos embaixadores. E não é permitido a nenhum Estado recusar submeter-se ao direito das gentes, pois é em virtude da autoridade do mundo inteiro que ele foi estabelecido” []us Gentium non solum babet vim ex pacto et condicto inter homines, sed etiam babet vim legis. Haec enim tatus orbis, qui aliquando est um respublica, potestatem ferendi leges aequas et convenientes omnibus, quales sunt in jure gentium. Ex quo patet quod mortaliter peccant violantes contra jura gentium, sive in pace, sive in bel/o, in rebu tamen gravioribus, ut est de incolumitate legatorum; non licet uni regno nolle teneri jure gentium; est enim latum totius orbis authoritate].
  66. De Indis, I, 3, 3 (csI’c, pp. 81-2), trad. fr., p. 86: “[…] Nota quod, si jus gentium derivatur sufficienter ex jure naturali, manifestam vim habet ad dandum jus et obligandum. Et dato quod non sempre derivetur ex juri naturali, sequi videtur consensus majoris partis totius orbis, maxime pro bono communi omnium, si enim post praeterita tempora creati orbis aut reparati post diluvium, major pars hominum constitueri ut legati ubique essent inviolabiles, ut mare esset commune, ut bello capti essent servi, et hoc ita expediret, ut hospites non exigerentur, certe hoc haberet vim, etiam aliis repugnantibus”.
  67. Suma teológica, Ia IIae, qu. 90, art. 1 e qu. 93, art. 3: “A lei é uma certa regra e uma medida dos atos, segundo a qual se é levado a agir ou impedido de agir” [Lex est quaedam regula et mesura secundum quam induciturad agendum vel ab agendo retrahitur].
  68. De Legibus,1, e. 1, n. 1: “Essa caracterização é, ao que parece, muito ampla e muito geral'” [Quae descriptio nimis lata et generalis videtur). Dispomos hoje, para esse texto, da notável edição crítica bilíngue estabelecida por Luciana PEREÑA, no quadro da série “Corpus Hispanomm de Pace”, Madri, 1971 e ss.
  69. Ia IIae, qu. 90, art. 4: “[…] a definição da lei: ela não é nada mais que uma ordenação da razão em vista do bem comum, estabelecida por aquele que tem o encargo da comunidade, e promulgada” […definitio legis quae nihil est aliud quam quaedam rationis 01·di­ natio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis babet, promulgata].
  70. Suma teológica, Ia IIae, qu. 93, a1t. 4, ad 2um: “A lei humana é propriamente uma lei apenas na medida em que é conforme ã reta razão; nesse caso, é manif sto que ela deriva da lei eterna. Mas, na medida em que se afasta da razão, ela é o que se chama uma lei iníqua e, assim, não tem tanto razão de lei como de violência”‘ […] ex humana intantum habet rationem legis, inquantum est secundum rationem rectam; et secundum boc manifestum est quod a lege aeterna derivatur. Inquantum vera a ratione recedit, sic dicitur lex iníqua; et sic non habet rationem legis…]
  71. Sobre a doutrina tomista da lei, cf. em particular Oscar J. BROWN, Natural rectitude and divine law in Aquinas, Pontifical Institute of Mediaeval Studies, Toronto, 1981. Ver também Michel BASTIT, Naissance de la loi modeme, Paris, PUF, 1990, primeira parte: “Saint Thomas ou la loi analogique”.
  72. Ver Ia IIae, qu. 90, art. l; Ia IIae, qu. 91, art. 2, ad 3m: “Mas porque a criatura racional dela participa de um modo intelectual e racional, segue-se que a participação da lei eterna na criatura racional chama-se propriamente uma lei: pois a lei é questão de razão” [Quia rationalis creatura participat rationem aeternam intellectualiteret rationabiliter, ideo participatio legis aeternae in creatura rationali proprie lex vocatur nam lex est aliquid rationis].
  73. De Legibus, II, c. 5, n. 2 (G.H.P., t. III, p. 60). Sobre essa discussão, Ver. R. SPECHT, “Zur Kontroverse von Suárez und Vásquez uber den Grund der Verbindlichkeit des Naturrechts”, em Archiv für Rechts und Sozial philosophie,1959, pp. 251 e ss.
  74. Ibidem, II, 3, 3-4 (C.H.P., t. III, pp. 33-5): “É preciso dizer, na verdade, que a lei eterna não significa um ato necessário em Deus, mas um ato livre […] a lei eterna incluí necessariamente ou postula um ato da vontade divina…”.
  75. Ver I. ANDRÉ-VINCENT, “La notion moderne de droit naturel et le volontarisme (de Vitoria à Suárez et à Rousseau)”, em Archives de Philosophie du Droit, 1963, pp. 237-59, em particular p. 243.
  76. Ver a discussão sobre a condição “legal” da lei natural, em De Legihus. n, VI, 1-13 (C.H.P., t. III, pp. 76-96).
  77. De Legibus, u, VI, 1 (C.H.P., t. III, p. 76): “Não há lei no sentido próprio e prescritivo sem a vontade daquele que prescreve” [Lex… propria et praeceptiva non est sine voluntate alicujus praecipientis].
  78. De Legibus, I, III, 9 (C.H.P., I, p. 44-5: “[…] A lei natural no sentido próprio é, portanto, a que é imanente ao espírito humano em vista de discernir o que é honesto do que é vergonhoso. […] Por isso essa lei é dita natural, não apenas na medida em que o que é natural é distinto do que é sobrenatural, mas também na medida em que se distingue do que é livre. Não é porque sua execução é natural ou porque provém da necessidade, como é a execução da inclinação natural nos brutos ou nas coisas inanimadas, mas porque essa lei é como uma propriedade da natureza e porque o próprio Deus a introduziu na natureza” [Lex ergo naturalis propria […] est illa quae humanae menti insidet ad discernendum honestum a turpi […] Ita ergo haec lex naturalis dicitur non solum prout naturale a supernaturali distinguitur, sed etiam prout distinguitur a libero; non quia ejus executio naturalis sit seu ex necessitate fiat, sicut executio naturalis inclinationis est in brutis vel rebus inanimis sed quia lex illa est veluti proprietas quaedam naturae et qu ia Deus ipse illam natll rae inseruit]. Sobre essa separatio, ver. I. ANDRÉ-VINCENT, art. cit., p. 243: Em Suárez, a razão perdeu seu caráter normativo: ela não dita a ordem ao Bem, apenas pode conhecê-lo especulativamente. Então a vontade toma o lugar da razão para dar à fé sua forma normativa: o imperium torna-se seu ato”
  79. De Legibus, II, 11, 12 (C.H.P., t. III, pp. 144-5). Ver também I, v, 23: “[…] A obrigação indufida pela lei emana da vontade do legislador […]” (C.H.P., 1, p. 98).
  80. De Legibus, I, 3, 13: “Com efeito, a lei é dita positiva porque é como acrescentada à lei natural, sem dela emanar necessariamente”.
  81. De Legibus, II, 3, 4. Ver sobre esse ponto Rainer SPECHT, art. cit.
  82. SUÁREZ, Principatus politicus, III, 13 (C.H.P., p. 43): “[…] a monarquia pontifical foi instituída imediatamente pelo próprio Deus na Igreja universal […] É por essa razão que o poder espiritual nunca esteve presente como em seu sujeito na comunidade da Igreja inteira […]”.
  83. Principatus politicus, II, 12 (C.H.P., p. 26). Ver também II, 20: [… ] Já disse acima que o poder real estava fundado em um contrato ou em um quase contrato… Assim, tal poder é sempre obtido imediatamente por um título humano ou por vontade humana.
  84. Defenso fidei, VI, 6, 11.
  85. Sobre os considerandos e o que está em jogo nas discussões sobre a condição de pura natureza, remetamos às obras clássicas do padre Henri de LUBAC, Surnaturel, Paris, Aubier, 1946, e Augustinisme et théologie moderne, Paris, Aubier, 1965. Ver também, na linha do trabalho do padre Lubac, Franco Todescan, Lex, natura, beatituda. ll problema della legge nella scolastico spagnola del sec XVI, Pádua, Cedam, 1973.
  86. De Legibus, III, 11, 7 (C.H.P., t. v, p. 152).
  87. Ver De Legibus, III, 11, 7 (C.H.P., t. v, p. 153): “Com efeito, assim como o bem natural desse corpo político não se estende além da vida presente e dura apenas nela, o fim desse poder ou dessa lei não pode estender-se além da vida presente.,. Ver também ibidem, III, 11, 4 (C.H.P., t. v, pp. 148-9): “O poder civil e o direito civil, considerados por si, não concernem à felicidade eterna supranatural da vida futura a título de fim próprio, próximo ou distante. A prova disso está em que tal poder é puramente natural: portanto, sua natureza não tende a um fim supranatural […] Digo, porém, que o poder civil, por uma relação extrínseca, pode ser ordenado por uma felicidade supranatural ou por um fim último […] Mas, a ater-se à pura natureza, a lei civil não pode ser ordenada dessa maneira por um fim supranatural”. [Nós sublinhamos).
  88. III, XI.
  89. Suma teológica, Ia IIae, qu. 90, art. 2.
  90. De Legibus, 111, XI, 6.
  91. Ibidem, 7: “ejus finem [a saber, o ·’poder civil”] esse felicitatem naturalem communitatis humanae perfectae cujus curam gerit, et singulorum hominum ut sunt membra talis communitatis “.
  92. Ver Jean-François COURTINE, “L’héritage scolastique dans la problématique théologico-politique de l’âge classsique”, em L’Etat baroque, 1610-1652, Paris, Vrin, 1985, pp. 87-118.
  93. Sobre esse fenômeno geral de “laicização”, ver Michel VILLEY, La formation de la pensée juridique modeme, Paris, 1975, pp. 346-7.
  94. De Legibus, 1, 13, 7: “[…] o fim da República humana é a verdadeira felicidade política que não pode advir independentemente dos costumes honestos; a República é dirigida para essa felicidade por leis civis e, portanto, é necessário que essas leis tendam por si ao bem moral […] que é o bem pura e simplesmente”.
  95. De Operesexdierum, v, 7, n. 6; De Legibus, III, 3, 6 (C.H.P., t. v, pp. 31-2).
  96. Ver Principatus politicus, 11, 5-9 (C.H.P., pp. 18-22).
  97. SUÁREZ, Defensio fidei,III, 2, 5 (Principatus politicus, II1 5, C.H.P., p. 18): “[…] suprema potestas civilis, per se spectata, immediate quidem data est a Deo hominibus in civitatem seu perfectam communitatem congregatis, non quidem ex peculiari et quasi positiva institutione vel donatione omnino distincta a produtione ralis naturae, sed per naturalem consecutionem ex vi primae creationis ejus, ideoque ex vi talis donationis non est haec potestas in una persona. neque in peculiari congregatione multarum, sed in toto perfecto populo seu corpore communitatis.
  98. Defensofidei, 111, 2, 2 (Principatus politicus, C.H.P., p. 16). ver também De Legibus, III, 3, 4 (C.H.P., t. V, pp. 23-4).
  99. Phncipatus politicus. v, 2 (C.H.P., pp. 65-6).
  100. Ibidem, p. 66: “Quamvis temporalis princeps ejusque potestas in suis actibus directe non pendeat ab alia potestate ejusdem ordinis, et quae eundem finem tantum respiciat, nihilominus fieri potest ut necesse sit ipsum dirigi, adjuvari, vel corrigi in sua materia, a superiori potestate gubernante homines in ordine ad excellentiorem finem et aeternum, et tunc ilia dependentia vocatur indirecta, quia ilia superior potestas circa temporalia non per aut propter se, sed quasi indirecte et propter aliud interdum versatur”.
  101. De Legibus, III, II, 4: “Hominum multitudo quatenus speciali voluntate seu communi consensu in unum corpus politicum congregantur uno societatis vinculo et mutuo se juvent in ordine ad unum finem politicum, quomodo efficiunt unum corpus mysticum, quod moraliter dici potest per se unum; illudque consequenter indiget uno capite. ln tali ergo communifate, ut sic, est haec potestas ex natura rei, ita ut non sit in hominum potestate ita congregari et impedire hanc potestatem”.
  102. Ibidem: “[…] mihi verisimilius est vel nunquam vel bressimo tempore fuisse hanc potestatem hoc modo in tota hominum collectione, sed paulo post mundi creationem coepisse homines dividi in varios respublicas et in singulis fuisse hanc potestatem distinctam”.
  103. III, II, 6: “[…] potestatem hanc ferendi leges humanas proprias et particulares (quas civiles vocamus, tanquam ordinatas ad regímen unius communitatis perfectae), hanc (inquam) potestatem nunquam fuisse unam et eandem in rotam hominum universitatem: sed ita fuisse per communitatem divisam, sicut ipsae communitates instituebantur et dividebantur”.
  104. III, VII, 1: “Potest hoc loco tractari quaestio celebris inter juristas: An Imperator jure sit dominus et princeps totius orbis et consequenter an possit totum mundum suis civilibus legibus obligare…?”.
  105. III, VII, 6: “Sit ergo imprimis certum neque imperatorem ramanum neque aliquem unum hominem vel regem habere potestatem universalem ad ferendas leges civiles obligantes universum orbem”.
  106. III, 11, 6: “[…] nam licet universitas hominum non fueri congregata in unum corpus politicum, sed in varias communitates divisa fueri, nihilominus ut illae communitates sese mutuo juvare et inter se in justitia et pace conse1vari possent (quod ad bonum universi necessarium erat), oportuit ut aliqua communia jura quasi communi foedere et consensione inter se observarent; et haec sunt quae apellantur jura gentium, quae magis traditione et consuetudine quam constitutione aliqua intraducta sunt”.
  107. De Legibus, II, XIX, 9.
  108. De Legibus, II, XVII-XX, cs1c 1v, pp. 99-149, ao que é preciso acrescentar as “Additiones Suarecii ad jus gentium”, ibidem, pp. 151-65.
  109. I. ANDRÉ-VINCENT puxa sem dúvida exageradamente Suárez para o lado de Gratius, quando observa (art. cit., p. 245): “Para Vitoria, o direito das gentes era um direito intermediário (um direito natural segundo). Doravante, ele não é mais do que um direito positivo. Perdeu seu verdadeiro lugar entre esse direito positivo e o direito natural, pois perdeu sua verdadeira natureza. Ele não é mais que positivo, isto é, voluntário. Baseia-se na vontade dos Estados.
  110. De Legibus, II, XIX, 6.
  111. De Legibus, II, XX, I: “Quomodo jus gentium sit omnibus commune, et tamen non sit naturale
  112. II, 20, I. Ver também II, 20, 2: “In jure gentium praecepta sunt magis generalia, quia in eis consideratur utilitas totius naturae et conformitas ad prima et universalia principia naturae.
  113. Ver também II, XX, 3: “Addo vera esse differentiam inter jus gentium et naturale rigorasum; quod jus naturale non solum praecipit bona, sed etiam ita prahibet omnia mala, ut nullum permittat. Jus autem gentium aliqua mala permittere potest”.
  114. Ver De Legibus, n, 19, 8: “Addo vera ad maiorem declarationem, duobus modis… dici aliquid de jure gentium, uno modo quia est jus, quod omnes populi, et gentes variae inter se servare debent, alio modo quia est jus, quod singulae civitates, vel regna intra se observant, per similitudinem autem et convenientiam jus gentium appellatur”.
  115. Deixamos evidentemente de lado aqui os representantes de um tomismo preocupado com uma maior fidelidade ao ensinamento do Mestre, como Soto ou Baiiez, notadamente.

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