2005

Do udigrudi às formas mais recentes de recusa radical do naturalismo

por Ronaldo F. Monteiro

Resumo

Trata-se do cinema marginal, aquele que eclodiu na virada dos anos 1970, sobretudo em mostras paralelas e sessões especiais, e cujo efeito se fez quase que exclusivamente nas caixas de ressonância – os meios intelectuais do cinema. Não é uma tarefa árdua, posto que altamente gratificante. Entretanto, um trabalho aprofundado exigiria longa pesquisa, principalmente porque a passagem do tempo transformou os resultados de algumas propostas, e o referencial crítico existente, em termos de documentação, está desligado das formulações que esses filmes provocariam, hoje.

Em relação à última colocação, é preciso ressalvar alguns poucos autores que persistiram – regularmente ou não – na marginalização, como Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e Luis Rosenberg Filho. Eles, entretanto, tiveram poucos trabalhos levados ao público. Daí resulta que os comentários críticos mais recentes, a respeito, individualizam inapelavelmente a autoria, desfazendo, em consequência, o sentido de surto que, no momento, é o que explicita a preocupação norteadora deste trabalho.

Portanto, um desafio se faz ante as limitações impostas e, sem absolutamente pretender um inventário daquilo que foi uma rotura surpreendente no processo mais ou menos harmônico do Cinema Novo durante os anos 1960, escoro este exame em três dados, a saber: a) a revisão do filme “Piranhas do asfalto”, de Neville Duarte d’Almeida, feito em 1970 e comercialmente inédito até hoje por divergências do autor com a Censura; b) pesquisas paralelas sobre o filme “Orgia ou o homem que deu cria”, de 1970 – igualmente inédito e sobre depoimentos da época feitos por seu realizador, João Silvério Trevisan; c) a memória do tempo vivido, revista por documentos de imprensa consultados, recortes de jornal em sua maioria.

Para mim seria provavelmente mais fácil exemplificar o surto do cinema marginal através da produção de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, com a qual tenho mantido maior intimidade. Entretanto, essa alternativa me levaria a uma análise autoral deturpadora das intenções do trabalho, que, mesmo correndo o risco de se deter em superficialidades, busca uma abrangência no levantamento das características do surto.


Tratar do cinema marginal, aquele que eclodiu na virada dos anos 70, sobretudo em mostras paralelas e sessões especiais, e cujo efeito se fez quase que exclusivamente nas caixas de ressonância – os meios intelectuais do cinema -, não é uma tarefa árdua, posto que altamente gratificante. Entretanto, um trabalho aprofundado exigiria longa pesquisa, principalmente porque a passagem do tempo transformou os resultados de algumas propostas; e o referencial crítico existente, em termos de documentação, está desligado das formulações que esses filmes provocariam, hoje.

Em relação à última colocação, há que ressalvar a permanência de alguns poucos autores que persistiram – regularmente ou não – na marginalização, como Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e Luis Rosenberg Filho. Estes, entretanto, tiveram poucos trabalhos levados ao público. Daí resulta que os comentários críticos mais recentes, a respeito, individualizam inapelavelmente a autoria, desfazendo, em consequência, o sentido de surto que, no momento, é o que explicita a preocupação norteadora deste trabalho.

Portanto, um desafio se faz ante as limitações impostas e, sem absolutamente pretender um inventário daquilo que foi uma rotura surpreendente no processo mais ou menos harmônico do Cinema Novo durante os anos 60, escoro este exame em três dados, a saber: a) a revisão do filme Piranhas do asfalto, de Neville Duarte d’Almeida, feito em 1970 e comercialmente inédito até hoje por divergências do autor com a Censura; b) pesquisas paralelas sobre o filme Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 – igualmente inédito e sobre depoimentos da época feitos por seu realizador, João Silvério Trevisan; c) a memória do tempo vivido, revista por documentos de imprensa consultados, recortes de jornal em sua maioria.

Para mim seria provavelmente mais fácil exemplificar o surto do cinema marginal através dos filmes de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla – comercialmente lançados ou não -, com os quais (filmes) tenho mantido maior intimidade. Entretanto, essa alternativa me levaria a uma análise autoral deturpadora das intenções do trabalho, que, mesmo correndo o risco de se deter em superficialidades, busca uma abrangência no levantamento das características do surto.

PAIXÃO

As coisas começaram a aparecer, embora muito timidamente, no I Festival de Cinema Amador, que se promoveu no Rio, em 1965, como uma parte das comemorações dos 400 anos da cidade. Era a manifestação de uma turma nova — não geração, como foi frequentemente afirmado: havia até casos de amadores mais velhos do que alguns dos representantes do Cinema Novo —, sôfrega pela recente descoberta que alguns conterrâneos haviam feito do cinema.

Os contornos começaram realmente a surgir no ano seguinte, quando a mostra assumiu caráter nacional: foi então possível confrontar inquietações de jovens mineiros e paulistas e compará-las com as dos cariocas; percebeu-se, enfim, que a vontade de fazer cinema percorria quase todo o país.

As imediações do cinema Paissandu e da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio, o restaurante Soberano, em São Paulo, transformavam-se em plateias de debates informais sobre cinema, e o Cinema Novo em particular, já que estes não cabiam dentro do formalismo acadêmico das mostras — justamente aquilo que lhes forneceria o elemento mais dinâmico e produtivo — provavelmente por serem, também, indesejáveis aos organizadores.

Foi nos debates e nos filmes que se esboçaram os resultados desse mergulho apaixonado na opção criativa que permitia o extravasamento dos desejos e dos preconceitos de uma nova geração — aqui, sim, o termo passa a ter um significado preciso —, motivada pelos trabalhos de alguns companheiros que tinham amadurecido um pouco antes suas posições frente ao veículo. Nunca é demais relembrar que o Cinema Novo constituiu-se no primeiro movimento cultural, cinematográfico, no Brasil, apropriado por intelectuais, ressalvadas, obviamente, as exceções, que decorreram, entretanto, muito mais de esforços individuais, ainda que em alguns casos exprimindo o consenso e o incentivo de minigrupos.

Houve quem encontrasse no edipianismo que pululava nos filmes do cinema marginal uma relação direta com o movimento gerador, i. e.: o cinema-novismo. Em princípio, tudo bem; mas a questão é bem mais ampla e séria. O edipianismo dificilmente deixaria de aparecer num produto cultural em que o autor colocava suas entranhas à mostra de todos e, geralmente, de modo bastante agressivo. Assim, por exemplo: nos assassinatos cometidos pelas piranhas do filme de Neville Duarte d’Almeida — seu explorador e o freguês rico —, no parricídio inicial de Orgia e nas lamentações do anjo pela morte do patrão, neste mesmo filme, é impossível não se ver, também, a exorcização de alguns fantasmas e a tentativa de substituição do poder. Em seus filmes às vezes herméticos, as ideias, bem ou mal resolvidas, referiam-se a desejos íntimos, quem sabe, até, às vezes, inconscientes, sem exclusão das relações sociais e das tensões a partir daí provocadas.

JARDIM DE GUERRA

As infindáveis discussões sobre o Cinema Novo, acompanhando o movimento em processo, permitiram aos representantes do cinema marginal atitudes mais precisas diante do seu projeto (e o projeto no singular não significa que se estabeleceram estatutos de coerência entre eles). De imediato, o que se verifica desde as primeiras manifestações mais indicativas da virada de mesa em relação ao cinema que vinha se fazendo é a diferença de postura do autor em relação a seu filme, pela recusa de certo didatismo populista que elas próprias denunciam. Uma das acusações mais frequentes ao Cinema Novo calcava-se no intelectualismo pequeno-burguês que teriam assumido seus cineastas, às vezes ingenuamente, discutindo uma realidade popular que lhes era estranha, ainda que conhecida. Os resultados a que chegaram os contestadores não fugiam muito ao que criticavam em seus antecessores quanto à imodéstia. A novidade apresentada – e que hoje se pode detectar facilmente como contribuição – foi o desnudamento maior da autoria, i.e.: uma coragem praticamente inédita no oferecer-se ao público como artista-indivíduo, enfocando os problemas levantados de modo mais sincero e menos professoral.

Objetivamente, na busca de um entendimento da escalada do cinema brasileiro, o que interessa são os degraus. E os representantes, voluntários ou não, da marginalidade que explodiu – apenas nos meios intelectuais -, na passagem dos anos 60 para os 70, tiveram sua participação histórica.

É claro que boa parte das condicionantes para o radicalismo marginal do surto encontra-se nas novidades políticas e sociais (do recrudescimento da ditadura à circulação internacional das drogas) e também filosóficas (as ideias da vanguarda progressista na Europa e certas manifestações de sua práxis sofreram modificações ponderáveis no decorrer da década de 60), surgidas no período.

Tanto em declarações quanto nos seus posicionamentos dentro dos filmes, aqueles cineastas, que a princípio deveriam compor um segundo filão do Cinema Novo e optaram pela divergência, refutaram o didatismo intelectual dos cinema-novistas e adotaram um processo criativo que lhes pareceu mais adequado à ruptura Com a ideologia dominante. Sua adequação a esse propósito revelou-se nitidamente na renúncia à vida do povo, que eles reconheceram desconhecer; e dentro do mundo mais próximo que os rodeava plasmaram seu protesto.

Antes de tentar abordar as características dominantes no surto, tanto as comuns quanto as diferenciadas por alguns de seus autores, convém estabelecer certas áreas de definição e delimitação.

Dizia eu no início deste trabalho que as primeiras indicações do surto podiam ser encontradas nos curtas apresentados em festivais de amadores. Entretanto, o cinema marginal só encontrou sua base de definição no longa-metragem, posto que o curta, na época, não dispunha de qualquer referencial em termos de mercado: no final dos anos 60, grosso modo, todos os curtas eram marginais.

É na opção assumida pelos realizadores de longas-metragens, a partir das condições de produção, que vai realmente se caracterizar essa faixa de filmes divergentes.

Historicamente, O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, feito em 1968, pode ser considerado como o anunciador ainda não devidamente malcomportado: haja vista sua premiação por um júri oficial, no Festival de Brasília do mesmo ano. Rio e São Paulo tornaram-se os eixos do cinema marginal, absorvendo os mineiros que participaram do movimento, e também o baiano André Luís de Oliveira – com Meteorango Kid, herói intergaláctico (1969) -, em razão de sua exclusividade como centros de tecnologia (especialmente para as tarefas conclusivas de montagem, mixagem e sincronização, trabalho de laboratório etc.).

Os cariocas – naturais ou por adesão – definiram-se através de produções individuais, muito embora alguns deles ligados pela camaradagem decorrente do propósito comum. A única exceção, salvo engano, decorreu da criação da Belair, resultante da associação entre Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, depois que este realizou seu segundo filme paulista, A mulher de todos (1969), o último, aliás, que teve exibição comercial e, este sim, já bem característico do surto.

Em São Paulo, as coisas se passaram de modo um pouco diverso. Antônio Lima e Carlos Oscar Reichenbach Filho partiram para um filme comercial de baixo custo – As libertinas (1968) – já sob influência do tipo de cinema que era feito por José Mojica Marins e Ozualdo Candeias. Formaram a produtora Xanadu e, em 1969, lançaram Audácia, já devidamente inserido no movimento do cinema marginal, que naquela época era chamado pelos próprios participantes de cinema cafajeste, e que logo a seguir provocou o surto da Boca do Lixo.

Segundo Antônio Lima, o ciclo da Boca do Lixo se comporia de doze filmes, feitos em dois anos e incluindo trabalhos de Candeias e Mojica Marins.

Conquanto os filmes desses dois realizadores possam ter influenciado e, até, definido algumas das preocupações dos novos cineastas, não me parece que se enquadrem no ciclo do cinema marginal, que se caracterizou bem mais por um intelectualismo extremado, até mesmo no deboche e na caricatura de certos conceitos em voga na época.

De qualquer maneira, o ciclo da Boca do Lixo, mais do que o udigrudi carioca, reproduziu as atividades do Cinema Novo no que diz respeito à mobilização de grupos. A rebeldia estabeleceu-se, sobretudo, em relação ao realismo crítico do movimento anterior e ao nível industrial dos produtos que marcaram a segunda fase do Cinema Novo.

O PROFETA DA FOME

O termo udigrudi foi inventado, parece, por Glauber Rocha, numa invectiva aos filmes do underground caboclo. E seu tom pejorativo foi devidamente invertido pelos divergentes do Cinema Novo, que dele se apropriaram, já que definia sua proposta.

Numa entrevista dada a uma revista marroquina[1], João Silvério Trevisan, antes mesmo de realizar seu primeiro e único longa-metragem – Orgia, ou o Homem que deu cria – declarava: “Eu busco atualmente um cinema da negação total, um cinema marginal sobre o marginalismo, um cinema ferozmente anticultural que busque a morte da cultura em cada movimento, em cada gesto. Eu quero que meus projetos contribuam para a liquidação simples e absoluta da minha saciedade. Seguramente, um anticinema, porque ele atua ipso facto pela morte do cinema. Isto vai fazer a alegria de todas as funerárias.”

O radicalismo da posição não exclui sua oportunidade, pois define a tendência predominante nos filmes do surto. Uma revisão de Piranhas do asfalto foi bastante útil para a indicação de certas constantes na maioria deles. Elas são enumeradas a seguir.

  1. Condições de produção. A filmagem rápida de um assunto pensado em termos de produção barata (no caso, um apartamento em Ipanema e os arredores do prédio, a praia, uma mansão retirada — talvez na Floresta da Tijuca — e suas vizinhanças).

Cabe aqui um registro sobre o aspecto urbano da ambientação. São raros os casos de filmes marginais, durante essa eclosão inicial, que tenham optado por um clima rural, ou simplesmente natural, como acontece com Orgia, que, como alguns dos exemplares paulistas, aproveitou-se de algumas indicações de A margem, de Candeias, onde a escória da sociedade periférica — em relação à metrópole — se apresenta e se impõe. A natureza costuma surgir como fator que gera perplexidade nos personagens predominantemente urbanos que povoam a grande parte dos filmes ligados ao surto. Em Piranhas do asfalto observa-se, também, um desligamento do real social. Embora ambientado no bairro de Ipanema, o filme exibe um isolamento quase que absoluto dos personagens que servem de pretexto à poética do autor, admitindo, no máximo, a presença de passantes eventuais na composição de alguns quadros. O bairro funciona muito mais como referencial ao padrão de bom gosto, para melhor caracterizar a agressão estética do autor a esse mesmo padrão.

Também em Orgia os exteriores — dominantes — servem muito mais como pano de fundo à sua corte de personagens alegóricos, que o povoam insolitamente: uma estrada, um campo, um monte, um cemitério etc.

  1. Comportamento formal. A produção apressada não é apenas uma saída, mas, também, uma recusa. E esta se patenteia na maneira pela qual os cineastas enfocam seus personagens e situações, tentando violentar normas e bons-comportamentos que o cinema tradicionalizou.

Em seu aspecto mais exterior, por exemplo, constata-se: a exploração estética da luz sobre a lente; a refilmagem do negativo que resulta em imagens diáfanas e meio indefinidas; enquadramentos incorretos, visando a informações dúbias e à ambiguidade; desequilíbrio desejado no nível dos desempenhos, da neutralidade aparentemente amadorística à exacerbação do over-acting.

A importância dos planos-sequência e sua constância surgem como opções agressivas; de dupla agressão: à narração cinematograficamente tradicional e ao hábito do espectador em ter sua informação selecionada pela mise-en-scène através de informações sucessivas. Assim, a longa exposição de situações-limite ao suportável, tanto no que sugere o visualmente desagradável (corpos ensanguentados, tortura física, autocastração, contemplação do lixo), quanto na impressão de vazio (personagens estáticos, muitas vezes olhando ostensivamente para o espectador, esvaziando o quadro de seu conteúdo aparente, talvez um significante sem significado, mas forçando o espectador à reflexão pela duração).

As homenagens cinematográficas são também frequentemente expressas. Em Piranhas do asfalto, além de tributos pela retomada, a câmara focaliza um cartaz de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti, o filme exibe trechos de Ivã, o terrível, de Eisenstein.

  1. Implicações estruturais. A dinamização da evolução narrativa tradicional, seja na manutenção do imponderável entre dois momentos, ou, mesmo, episódios que se sucedem na tela sem indicação clara das relações de causa e efeito, seja pela revelação ostensiva de que um filme está sendo mostrado ao espectador, seja, ainda, pela inserção de dados rigorosamente desligados do relato concreto, cria a instabilidade para o espectador. Os campos do real e do imaginário se misturam ou se sucedem alternadamente; realidade concreta e metáfora passam a participar do mesmo impulso narrativo.

A coerência da rebeldia nos mais variados aspectos do produto é que conferiu aos filmes do cinema marginal surgidos entre os últimos anos da década de 60 e o início da seguinte o peso de sua significação.

O deboche, o grotesco, a caricatura, a imagem suja e mal definida da pobreza e do lixo, o relato sem relato, a exacerbação dos absurdos de uma realidade sem nexo contemplada de dentro, a incapacidade de ação são as peças do puzzle que se encaixam com clareza. Ainda que o excesso de ambiguidade transforme vários dos filmes, total ou parcialmente, em enigmas, em modelos de hermetismo.

Sua marginalização na fase final de atuação — o mercado, tanto pelos constrangimentos governamentais quanto pela negativa dos comerciantes do cinema e a inexistência de uma circulação alternativa — foi uma decorrência da própria proposta, talvez a única com a qual os cineastas divergentes não tenham atinado. Eles foram vitimados pela antropofagia que eles mesmos discutiam como um dado da realidade de então.

O ANJO NASCEU

Os primeiros anos desta década foram marcados por um processo de industrialização até então inédito no cinema brasileiro. E o produto comercial procura normalmente o relato linear, formalmente bem-comportado, o que implica em uma série de limitações à criação.

As pesquisas efetuadas durante o surto do cinema marginal serviram também para nortear certas proposições que se manifestaram mais frontalmente contrárias ao naturalismo, nos últimos anos, sem assumir a marginalidade em relação ao mercado.

Dois filmes recentes — entre outros — resultantes de propostas distintas e buscando caminhos diversos sedimentam — ainda que o contestem seus atores — algumas das contribuições trazidas pelos filmes do udigrudi.

A lira do delírio, de Walter Lima Júnior (1978), em sua proposta de abertura a várias leituras, induz o espectador a co-participar segundo seu (do espectador) direcionamento, e apreender do filme algo que existe em potencial na tela mas que se pode amoldar a visões distintas. Todo o lado irracionalista que os filmes marginais, em sua maioria, desenvolveram leva o espectador a comportamento similar, já que a disponibilidade do perceptor permitia co-produzir ou co-organizar à sua maneira o material que a tela enviava concretamente. E as aproximações se avizinham na retomada, pelo filme de Walter Lima Júnior, de personagens ligados à marginalidade urbana de uma grande metrópole (cabaré, drogas, prostituição, sequestro e tráfico de crianças etc.), e a possibilidade de coabitação de dois campos semânticos: o real e o imaginário.

Independentemente das ideias já algumas vezes veiculadas pelo realizador sobre a importância da ambiguidade, a gênese do filme colaborou sensivelmente para o resultado. A um material originariamente feito para um documentário sobre o carnaval, em 1973, foi adicionado o que deveria ser um musical sobre o carnaval, realizado em 1976. O filme já tinha uma terceira diretriz quando ocorreu a morte da atriz principal – Anecy Rocha, mulher do realizador -, fato que seguramente interferiu, de modo drástico, na montagem definitiva.

Visceralmente diversa deve ter sido a gênese de Mar de rosas (1977), de Ana Carolina. Uma simples visão do filme já dá a perceber o cerebralismo que presidiu sua elaboração, o rigor no contato e confronto de poucos personagens que alimentam toda a trama: pai, mãe, filha, estranho ligado ao pai, casal de província. A ideia de discutir o poder – problemática assumida textualmente pela diretora – a partir de conflitos no microcosmo familiar denota um severo controle das situações armadas, enquadradas, filmadas e montadas. Entretanto, nessa rigorosa aparelhagem formal, que deve ter custado à realização, inclusive, algumas curtições criativas – abundantes, por exemplo, no curto e rigorosamente elaborado Indústria (1969) -, as colocações das relações familiares são tão claras na caricatura e ao mesmo tempo tão extravagantes que provocam um alto teor de ambiguidade. E, sobretudo, instigam o espectador, dinamicamente, numa espécie de lógica do absurdo e absurdo da lógica, de rebeldia em ritmo de humor negro, de deboche revoltado. O rigor formal do tratamento dado ao filme termina se abrindo – na empáfia e na conceituação – a n interpretações. É nesse sentido que os dois filmes se aproximam e se reportam ao do cinema marginal da virada dos anos 70.

Nota

  1. In Cinema III, n° 3, setembro, 1970, Casablanca.

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