1994

Dostoievski: a ficção como o pensamento

por Boris Schnaiderman

Resumo

Dostoievski é um exemplo de artista que contribui para a evolução das ideias encarnando-as em personagens. Sua reflexão se realiza sempre em termos ficcionais e a concretude dos personagens tem muito a ver com discussões filosóficas. Daí as marcas que deixou em Nietzsche e no Camus de O estrangeiro, para dar apenas dois exemplos. W. Kaufman chegou a definir a novela Memórias do subsolo como “a melhor introdução do existencialismo jamais escrita”. Uma anotação de Dostoievski define o tema de Crime e castigo como um “crime teórico” e o próprio nome do seu personagem, Raskolnikov, faz alusão à “consciência cindida” hegeliana (raskol em russo significa “cisão”). O que há de trágico na consciência é objeto de constantes diatribes contra Deus, a razão, a situação do mundo. Mikhail Bakhtin apontou bem esse caráter dialógico da obra: sua ideologia jogada e discutida entre as demais, as ações concentradas em “pontos de crises, fraturas e catástrofes”. O paradoxo nunca abandona essa consciência fortemente crítica e religiosa que, numa carta de 1854, escreveu: “se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade (…) eu gostaria mais de ficar com Cristo do que com a verdade.” Os “argumentos em contrário” e as contradições mesmas da vida de Dostoievski (visão aguda das injustiças sociais aliada a uma posição política reacionária) marcam um pensamento concreto que extrai da união do inteligível e do sensível (como queria Hegel) a capacidade de transformar ideias em algo vital que diz respeito a todos nós.


Temos em Dostoievski, certamente, um exemplo marcante de artista cuja obra traz contribuição decisiva para a evolução das ideias.

Aliás, Thomas Mann chamou a atenção para este fato num ensaio admirável. Escrevendo sobre Goethe e Tolstoi,[1] ele fez a distinção, na obra e na personalidade deste, entre o “espírito plástico” e o “espírito crítico”. A sua extraordinária capacidade de criação plástica proviria, segundo Mann, da proximidade com a natureza, sendo o seu criticismo, o seu moralismo, de caráter absolutamente secundário. Ao contrário de Goethe e Tolstoi, cuja força provém da natureza, os verdadeiros “filhos do pensamento, da ideia, do espírito” são, para Thomas Mann, Schiller e Dostoievski.

Por mais esquemática que possa parecer esta classificação, ela tem o seu fundo de verdade, mas, ao mesmo tempo, está pedindo um acréscimo. Schiller e Dostoievski, representantes por excelência do pensamento em poesia e no romance? Realmente, está certo. Deve-se lembrar, porém, que, enquanto Schiller chega a trabalhar com o pensamento abstrato, efetuando um desenvolvimento valioso das concepções estéticas de Kant, como se constata particularmente nas Cartas sobre a educação estética da humanidade, Dostoievski opera sempre com o humano concreto, encarnado em suas personagens. Mesmo quando defende, e com muito empenho, uma concepção estética, como é o caso de seu artigo sobre uma exposição de pintura em São Petersburgo, em 1861,[2] as figuras que aparecem na tela de um quadro em que o autor se detém parecem adquirir vida e transformam-se em personagens, que dialogam com outras figuras

os visitantes da exposição. E este tratamento realmente ficcional leva a uma conclusão de ordem estética: a condenação da busca da mera realidade fotográfica, como nos daguerreótipos da época, e a afirmação do relativismo de qualquer cópia da realidade empírica — enfim, uma ideia muito cara a Dostoievski e afirmada por ele com insistência.

O extraordinário, certamente, é que a sua reflexão, realizada sempre em termos ficcionais, tenha deixado marca tão forte na evolução do pensamento, como se constata, particularmente, em Nietzsche e no existencialismo francês, a tal ponto que a obra de Camus é praticamente inconcebível sem o diálogo com Dostoievski, quer em sua argumentação teórica, quer nos textos de ficção, bastando dizer que seu romance mais famoso, O estrangeiro, tem muitos pontos de contato com uma crônica de Dostoievski sobre um crime (“A propósito do caso Kroneberg”, incluída no Diário de um escritor). Aliás, um estudioso norte-americano, W. Kaufman, definiu a novela Memórias do subsolo como “a melhor introdução do existencialismo jamais escrita”.[3]

Mas, se ele deixou esta marca na evolução do pensamento, é evidente que trabalhou sempre com dados que lhe vinham da filosofia, e a concretude de suas personagens tem muito a ver com as discussões filosóficas. Neste sentido, basta pensar em Raskólnikov de Crime e castigo, personagem-ideólogo por excelência, cuja atuação se desenvolve quase como uma proposição, ou melhor, uma demonstração de como um indivíduo puro, desejoso de praticar o bem, é levado ao crime por um raciocínio perfeitamente lógico. O próprio Dostoievski, numa de suas anotações, definiu o tema de Raskólnikov como um “crime teórico”.[4]

A crítica russa já lidou muito com temas como “Dostoievski e Kant”, “Dostoievski e Hegel”, “Dostoievski e Nietzsche”, e eles também aparecem muito em estudos no Ocidente. Pudera! A paixão e a garra com que trata das questões ligadas ao pensamento se revelam em cada um de seus livros.

Um episódio de sua biografia nos mostra como essas questões eram vitais para ele. Durante os quatro anos que passou nos trabalhos forçados na Sibéria, a única leitura permitida era a da Bíblia e de uns poucos escritos sacros. Libertado em 23 de janeiro de 1854, escreveu uma carta a seu irmão Mikhail,[5] enviada clandestinamente, na qual pedia: “Preciso de livros e de dinheiro. Mande-os pelo amor de Cristo!”. Na relação constavam revistas do ano, historiadores antigos e novos (“preciso deles muito”), Vico, os padres da Igreja, o Corão, a Crítica da razão pura de Kant, e acrescentava: “Se você alguma vez tiver possibilidade de me enviar uma encomenda por via não oficial [isto é, evitando a censura], mande-me sem falta a História da filosofia de Hegel. Todo o meu futuro se liga a isso!”.

Ora, por que esta veemência justamente em relação a Hegel?

Como que respondendo a esta minha indagação, V. A. Batehínin publicou o trabalho “Dostoievski e Hegel (Sobre o problema da ‘consciência cindida’)”[6] e outros dados importantes me são fornecidos por I. F. Kariákin em “Sobre a problemática ético-filosófica do romance ‘Crime e castigo’”.[7] Com efeito, eles me lembraram que na Fenomenologia do espírito de Hegel,[8] no capítulo “Certeza e verdade da razão”, o item “A lei do coração e o delírio da presunção” contém uma análise da revolta do indivíduo, que afirma sua lei em oposição à lei a que todos se submetem e, ao mesmo tempo, apresenta esta sua lei como algo necessário ao bem-estar da humanidade. Não se tem aí algo muito próximo às lucubrações de Raskólnikov sobre o “direito” que teria de matar a velha usurária, uma criatura que não faria falta ao mundo e graças a cuja morte ele poderia fazer o bem a tantas pessoas? (O tradutor francês do tratado de Hegel, o filósofo Jean Hyppolite, afirma[9] que o protótipo desse rebelde apresentado por Hegel seria Karl Moor, personagem de “Os salteadores” de Schiller. Ora, sabe-se que Dostoievski era leitor constante do poeta alemão.)

O importante, no caso, não é tanto pesquisar uma possível influência de Hegel sobre Dostoievski, mas sim mostrar como as mesmas preocupações levaram Hegel àquela reflexão e se corporificaram na personagem Raskólnikov. (Aliás, o próprio nome deste faz alusão à consciência cindida, pois, como já foi apontado muitas vezes, raskol, em russo, significa “cisão”, “fragmentação”, embora também designe o movimento religioso que no século VII se ergueu contra uma reformulação dos rituais da Igreja russa; neste sentido, o nome também alude ao assassínio como heresia.)

Essa “consciência cindida” (que a crítica russa procurou situar historicamente, como a consciência numa sociedade que, tanto na Alemanha de Hegel como na Rússia de Dostoievski, estava apenas começando a ingressar no sistema capitalista) é captada em sua maior miséria em Memórias do subsolo, e o trágico da situação ali provém sobretudo do fato de que a personagem ignóbil está perfeitamente cônscia de sua ignomínia. A preocupação com “o belo e o sublime” (que foi tão frequente nas discussões russas da época, com base nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime de Kant) é apresentada com um máximo de irrisão na cena em que o “paradoxalista”, narrador-personagem da novela, dialoga com Lisa, a prostituta que ele encontrou num bordel clandestino. “A cena toda é uma representação assombrosa da dissonância entre o ético e o estético: a bela pregação sai dos lábios de um pregador que não tem nada de belo”, escreveu R. G. Nazirov.[10] Na base dessa dissonância, a novela acaba adquirindo um toque de sarcasmo feroz.

Sem dúvida, Dostoievski leva ali ao máximo a apreensão do que há de trágico na faculdade humana de ter consciência. E ao mesmo tempo, ele diz, pelo seu “paradoxalista”, que ora é porta-voz do autor ora representa o que este via de mais condenável nos homens de sua época, que não se pode viver apenas com a razão, pois esta é “cerca de um vigésimo de toda a minha capacidade de viver”.

Temos nessa novela uma verdadeira diatribe contra o racionalismo de seu tempo e contra toda a tradição do cartesianismo e do Iluminismo francês. A famosa digressão do “paradoxalista” contra a absolutização de “dois mais dois são quatro” e sua afirmação de que, por exemplo, considerar “dois mais dois igual a cinco” seria muito mais interessante marcam um tema constante em sua obra. “A humanidade será eternamente grata a Dostoievski, que, talvez mais do que qualquer outro artista, obriga as pessoas a se abrasar com o pensamento do perigo da ‘aritmética’”, escreveu I. F. Kariákin.[11] Sim, aquela “aritmética” que fazia Raskólnikov considerar necessária a morte da velha usurária, pois essa morte iria beneficiar um grande número de pessoas.

Aliás, escrevendo na Rússia no início da década de 1970, Kariákin faz uma evidente alusão ao stalinismo e à ideia de que a eliminação física dos inimigos políticos seria necessária para a construção de uma sociedade justa. Isto nos remete, inevitavelmente, às inúmeras discussões políticas sobre a obra de Dostoievski, desde a comparação que o mesmo crítico faz entre determinadas formulações de Marx e certas passagens de Dostoievski, graças às quais ele seria “objetivamente nosso aliado, não obstante todos os seus ataques ao comunismo”,[12] até o Camus de O homem revoltado, ensaio esse completamente marcado por Dostoievski, mas também pela experiência terrível da Segunda Guerra Mundial, e onde se encontra a afirmação de que “a pretensão humana à divindade” apareceu na forma do “Estado racional, tal como foi edificado na Rússia”.[13]

Seja, porém, qual for a posição política de quem recebe a obra de Dostoievski, não se pode deixar de constatar: seu humanismo frenético aponta para o que há de mais profundo na natureza humana e no pensamento sobre essas profundezas. O mesmo caminho trilhado pelos grandes filósofos foi percorrido por ele como artista-criador. Seu questionamento dos problemas cruciais com que nos defrontamos foi realizado sempre ficcionalmente, mesmo quando atuava como jornalista e entrava em briga com ideologias correntes na época. E assim como nos detemos hoje em face da sua realização como ficcionista-filósofo, poderíamos pensar sobre como ele chamou a atenção para a relação entre uma notícia de jornal e os grandes temas de reflexão filosófica. Aliás, o literário, o filosófico e o jornalístico aparecem confundidos em sua obra. Assim, o famoso capítulo de Os irmãos Karamazov em que Ivã expõe a Aliocha a sua angústia perante o sofrimento de crianças baseia-se em notícias de jornal e registros históricos, mas a personagem acaba tratando dos temas capitais do destino do homem e da não-aceitação de uma harmonia universal que tivesse como base o sofrimento alheio, ainda que fosse o sofrimento de uma só criança. Enfim, mais uma vez, a revolta contra a “aritmética”, a recusa de uma colocação puramente “euclidiana”, como diz o próprio Ivã.

Nesse vasto romance, a premência angustiosa da discussão de ideias atinge o máximo. O suave Aliocha, o noviço que encarna as virtudes cristãs, é contraposto ao rebelde Ivã, tão fascinante em sua argumentação arrasadora: “Não digo que eu não aceite Deus, Aliocha, apenas eu lhe devolvo com muito respeito o bilhete de ingresso”, isto é, o ingresso num mundo de iniquidades, onde a imolação de crianças tornou-se quase regra geral.

Aqui, chegamos a um ponto fundamental da obra de Dostoievski. Foi preciso esperar por Mikhail Bakhtin e seu livro, Problemas da poética de Dostoievski, publicado em 1963, como reformulação de outra obra sua de 1929,[14] para que se tivesse uma abordagem realmente em profundidade do embate de ideias na obra do romancista, com o estudo das vozes que as expressam, e do que este embate representa como princípio estruturador.

Segundo Bakhtin nos mostra com grande riqueza de pormenores, Dostoievski não constrói seus romances e contos em torno de sua ideologia, mas joga-a em meio às demais, discute com suas personagens, dá maior força de convicção ao oponente, em suma, realiza o tipo mais elevado do romance de ideias, aquele em que as personagens encarnam princípios e concepções de mundo, sem perder nada de sua extraordinária vitalidade. Já tive oportunidade de tratar disso extensamente em dois livros,[15] de modo que não vou me estender mais sobre esse tema.

Cabe, no entanto, perguntar: em que medida essas personagens, cada uma com características peculiares e sem se tornarem simplesmente porta-vozes do autor, representam algo de suas próprias lutas interiores, de suas dúvidas e angústias? Visto que já superamos a fase do medo extremo de cair no biografismo, podemos deter-nos um pouco nesta questão. E neste sentido, mais uma vez, vale a pena recorrer à correspondência de Dostoievski, tão profunda e tão reveladora, pelo menos em seus momentos cruciais (tal como em sua ficção, ele é, por excelência, também nas cartas, o escritor que “concentra as ações nos pontos de CRISES, FRATURAS E CATÁSTROFES”, na formulação lapidar de Bakhtin). Vejamos, portanto, outra carta sua escrita logo que saiu dos trabalhos forçados. Ela é de fevereiro de 1854, dirigida a N. D. Fonvízina, mulher de outro degredado político, e que procurara confortá-lo no período de sua prisão.[16]

Ouvi muita gente dizer que a senhora, Natália Dmítrievna, é muito religiosa. Vou dizer-lhe, portanto, não porque seja religiosa, mas porque eu mesmo senti isso, que, em tais momentos, ansiamos por fé, como se fôssemos “erva ressequida” [expressão bíblica],[17] e nós a encontramos realmente porque na infelicidade o verdadeiro aparece com maior nitidez. Vou lhe dizer a meu respeito que sou filho de meu século, filho da descrença e da dúvida, até hoje e (eu sei) até o túmulo. Que terríveis sofrimentos me custou e me custa agora esta ânsia de acreditar, que é tanto mais forte em minh’alma, quanto mais eu tenho argumentos em contrário. E, no entanto, Deus me envia às vezes momentos em que estou perfeitamente tranquilo, eu então amo e acredito que sou amado por outrem, e em tais momentos eu compus em mim um símbolo de fé, no qual tudo para mim está claro e é santo. Este símbolo é muito simples, ei-lo: acreditar que não existe nada mais belo, profundo, simpático, racional, valoroso e perfeito do que Cristo, e não só não existe, mas, digo isso a mim mesmo com um amor enciumado, nem pode existir. Mais ainda, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade, e então realmente a verdade estaria fora de Cristo, eu gostaria mais de ficar com Cristo do que com a verdade.

Não estão já colocados aí, 24 anos antes, alguns dos dilemas pungentes que vamos encontrar em Os irmãos Karamazov? Não temos aí, prefigurado, o diálogo entre Aliocha e Ivã? E o próprio dialogismo, que Bakhtin captou na ficção de Dostoievski, não aparece claramente afirmado nesta exposição de crença que se fortalece com os “argumentos em contrário”?

Como não reconhecer, também, que a contradição é inerente a tudo o que se refere a Dostoievski? Este “filho de seu século”, que expressa um amor tão profundo pela humanidade, não era o mesmo chauvinista, xenófobo e racista que vamos encontrar no Diário de um escritor e cuja sombra se projeta sobre toda a sua obra, por menos que atribuamos ao autor biográfico opiniões expressas pelo narrador ou pelas personagens? Conforme já escrevi mais de uma vez, poucos escritores tiveram como ele uma visão extremamente aguda das injustiças sociais, mas isto se aliava a uma posição política francamente reacionária, de um homem que sofrera na própria pele a crueldade do sistema que defendia.

O grande pensador revolucionário russo, A. I. Herzen, depois de visitado pelo romancista em Londres, escreveu numa carta, em 17 de julho de 1863: “Dostoievski esteve ontem em minha casa. É um homem ingênuo, um tanto confuso, mas extremamente simpático. Acredita com entusiasmo no povo russo”.

Se pensamos nas posições políticas de Dostoievski na época, em sua defesa do pótchvienitchestvo [de potchva, “solo”], ele nos parece realmente bem ingênuo, na defesa daquelas ideias que expressou na época, sobre a necessidade de uma ligação com o povo, ligação essa que ele acabou vendo como algo baseado nos valores tradicionais. Sim, aquele ex-presidiário político, que chegara a ser condenado à morte, ligava-se cada vez mais ao regime constituído, aos valores da Rússia imperial, que ele passaria a expressar.

Mas, ao mesmo tempo, repitamos, que sagacidade na apreensão do social! Assim, em suas notas de viagem pela Europa Ocidental, Notas de inverno sobre impressões de verão, impressiona o contraste que ele aponta entre o burguês triunfante da Inglaterra, cônscio de sua posição superior, e que deixa em plena luz a miséria dos seus bairros operários, onde surgem as visões mais assustadoras, inclusive um flagrante de menininha prostituída, agarrada à moeda que recebera, um flagrante que tem algo de clamor desesperado, e a burguesia francesa que esconde os seus pobres e apresenta ao forasteiro a sua capital como uma cidade muito limpa e bem cuidada. E o autor compara esse francês da burguesia ao avestruz, que esconde a cabeça para não ver “os caçadores que o estão alcançando”. Dostoievski parece dizer: Aqui é que vão acontecer coisas!”. E isto em 1863, oito anos antes da Comuna de Paris!

E ao tratar do espírito capitalista na Inglaterra, ele o relaciona COM a religião protestante, pelo menos com algumas de suas formas, prenunciando assim claramente a teorização de Max Weber sobre este assunto.[18]

Mas esta clarividência de Dostoievski, esta agudez com que ele se volta para o social, fala-nos às vezes ainda mais de perto. Assim, o seu “clamor desesperado” a que me referi, ante o sacrifício de crianças na sociedade moderna, adquire uma força arrasadora, quando pensamos no que a nossa imprensa tem divulgado sobre a infância no Brasil, quando nos detemos um pouco sequer nas nossas mazelas. Seu pensamento sempre concreto, sempre ligado ao humano, retira sua maior força desta união do inteligível e do sensível (como queria Hegel), desta capacidade de fazer das ideias algo vital e cotidiano, que diz respeito a todos nós.

Notas

[1] Thomas Mann, “Goethe e Tolstoi”, em Ensaios, São Paulo, Perspectiva, 1988.

[2] F. M. Dostoievski, “Exposição, na Academia das Artes, de trabalhos de 1860-1861” [Vístavka v Acadêmii Kbudojestv za 1860-1861 god], em Obras completas de Dostoievski em 30 volumes, vol. XIX, Leningrado, Naúka [Ciência], 1979.

[3] W. Kaufman, Existentialism from Dostoievski to Sartre, Nova York, 1957, p. 14, apud R. G. Nazirov, “Sobre os problemas éticos da novela Memórias do subsolo”, em Dostolévski i ievó vriêmia [Dostoiévski e seu tempo], Leningrado, Naúka, 1971, p. 143.

[4] Apud I. F. Kariákin, “Sobre os problemas ético-filosóficos no romance ‘Crime e castigo’”, em Dostoievski e seu tempo.

[5] Obras completas de Dostoievski em 30 volumes, vol. XXVIII, Livro I.

[6] V. A. Batchínin, “Dostoievski e Hegel (Sobre o problema da ‘consciência cindida’)”, em Dostoiévski — matieriáli í islédovania [Dostoievski — materiais e pesquisas], vol. 3, Leningrado, Naúka, 1978.

[7] I. F. Kariákin, em Dostoievski e seu tempo.

[8] Baseio-me na edição francesa: G. W. F. Hegel, La phénoménologie de l’esprit, trad. Jean Hyppolite, Paris, Aubier-Montaigne, s. d.

[9] Idem, ibidem, vol. t, p. 303, n. 38.

[10] R. G. Nazirov, “Sobre os problemas éticos da novela ‘Memórias do subsolo’”, em Dostoievski e seu tempo, p. 150.

[11] I. F. Kariákin, “Sobre os problemas ético-filosóficos no romance ‘Crime e castigo’”, em Dostoievski e seu tempo, p. 169.

[12] Idem, ibidem, p. 166.

[13] Albert Camus, L’homme révolté, Paris, Gallimard, 1951, p. 225.

[14] O livro de Mikhail Bakhtin, Problêmi poétiki Dostoiévskovo [Problemas da poética de Dostoievski], Leningrado, Khudójestvienaia litieratura [Literatura], 1963, constitui uma reformulação de seu livro Problêmi tvórtchestva Dostoiévskovo [Problemas da obra de Dostoievski], Leningrado, 1929.

[15] Boris Schnaiderman, Dostoievski prosa poesia, São Paulo, Perspectiva, 1982, e Turbilhão e semente — Ensaios sobre Dostoievski e Bakhtin, São Paulo, Duas Cidades, 1983.

[16] Ver n. 5.

[17] Graças a uma nota em Obras completas de Dostoievski (Naúka), temos a indicação precisa: Salmos, ci, 5 e 12; Isaías, XLII, 15.

[18] Nestes dois últimos parágrafos, repeti trechos de meu prefácio ao livro: F. M. Dostoievski, Memórias do subsolo e outros escritos, São Paulo, Pauliceia, 1992, organizado e traduzido por mim.

    Tags

  • apreensão do social
  • cisão
  • clarividência
  • compaixão
  • consciência trágica
  • contradição
  • dialogismo
  • Diário de um escritor
  • diatribe contra o racionalismo
  • discussões filosóficas
  • Dostoievski
  • ficção
  • Hegel
  • humanismo frenético
  • Kant
  • Max Weber
  • Mikhail Bakhtin
  • paradoxo
  • pensamento abstrato
  • pensamento concreto
  • personagens
  • Schiller
  • Thomas Mann
  • W. Kaufman