É possível esquecer o futuro?
por Frédéric Gros
Resumo
Para as grandes sabedorias das épocas helenística e romana (a estoica, a epicurista e a cética), “segurança” significa, de acordo com a etimologia da palavra, ausência de preocupações e perturbações da alma. Nesse sentido, tais sabedorias constituem as primeiras grandes tentativas de garantir segurança na história da filosofia. O que elas de fato prometem a seus discípulos, por meio de técnicas espirituais precisas – diferentes segundo as escolas –, é a conquista de uma disposição de alma equilibrada. Daí a serenidade do sábio diante das grandes perturbações do mundo. Para usar uma imagem cara à escola estoica, a alma deve ser como um rochedo em meio às tempestades.
Já o epicurismo vê na felicidade a razão de ser da existência. É ela pura e simples – livre da ânsia pela multiplicação dos prazeres. Assim, é preciso chegar a essa felicidade de plenitude, mas – eis onde a questão mesma se complica – o que impede de encontrá-la é precisamente a busca desenfreada por prazeres incertos. A maioria dos homens – escreve Epicuro – organiza a vida segundo o bem material e o reconhecimento social. Por isso o constante sacrifício do presente em função do prazer futuro, que ou não se atinge, ou, quando se atinge, é acompanhado de um sentimento de vazio. E então, se tais prazeres não são tão intensos quanto se supunha, é porque ainda não se é rico ou poderoso o bastante.
Como segundo grande exemplo de esvaziamento do futuro em nome da segurança, pode-se mencionar a crença milenarista. Diferente da segurança do sábio, sua natureza é totalmente objetiva, já que consiste no desaparecimento de todo e qualquer perigo, assim como pregado por um grupo de padres cristãos dos primeiros séculos da presente era. Inspirado no Apocalipse de São João e no vaticínio de Isaías – que, aliás, anuncia “uma segurança para sempre” –, ele evoca a última idade do mundo. Nela, que duraria mil anos – ou a eternidade de um único dia –, o homem viveria a felicidade plena em escala cósmica; logo, isenta de futuro. Interessante é que tal mito ressurge constantemente na história. Há, para ele, uma versão hegeliana ou marxista, por exemplo. Ela que se realizaria quando o progresso alcançasse seu fim. Nada mais de mudanças, transformações ou evoluções. Assim, não restaria à humanidade senão viver a imanência perfeita.
Nietzsche propõe romper com isso, já que, para ele, esquecer é exatamente transferir o peso do passado para o futuro, que, então, abre-se em possibilidades. Eis por que há uma nobreza no esquecimento. Algo que vai além da mera passividade, da manifestação de desgaste ou da negligência por parte de um espírito fatigado. Não, esquecer é escolher. Livrar-se do lastro. Desembaraçar-se do peso das lembranças. Recusar ser escravo do passado. É um ato de liberdade, digno dos espíritos poderosos. O fraco é incapaz de esquecer. Porque não para de ruminar o que lhe aconteceu, é impotente diante do afluxo de lembranças, sempre se deixa submergir por seu passado e mostra-se incapaz de controlar esse turbilhão.
“O futuro”, escreve Valéry, “não é mais o que era.” A beleza enigmática dessa frase provém, acredito, de um movimento de superposição e mesmo de confusão entre as dimensões do tempo. Classicamente, poderíamos dizer, o passado era, o presente é e o futuro será. Na frase de Valéry, as dimensões se misturam: o futuro, o que será amanhã, diz ele, não é mais, hoje, o que era outrora. O futuro de hoje não se assemelha mais ao futuro de ontem. Assim, quando Valéry escrevia essa frase, era para testemunhar o sentimento de uma mudança geral e profunda do mundo no qual ele vivia. A frase completa, recordo, é: “Tudo muda, mesmo o futuro não é mais o que era”. A ideia, portanto, é que às vezes há transformações tão consideráveis que até o rosto do futuro é alterado. Hoje também se poderia dizer que mudamos de mundo e de referências. Hoje também mudamos de futuro. Mutação do futuro, portanto.
O futuro sempre foi vivido e pensado como o lugar das incertezas. Aristóteles, por exemplo, falava dos futuros contingentes. Evidentemente, muitos colocaram a questão de saber se essa incerteza estava inscrita nas coisas ou se era apenas o fruto da nossa ignorância. Estará o futuro escrito em alguma parte como uma fatalidade escondida aos olhos dos homens? Ou será que, de fato, nada está previsto de antemão? Seja como for, é essa incerteza que produz, na alma humana, uma oscilação incessante entre a esperança e o temor, uma agitação perpétua entre a confiança e o medo.
Parece-me que certo número de técnicas espirituais, de utopias políticas e mesmo científicas, ou ainda de proposições éticas, se esforçam precisamente por tentar neutralizar o futuro no que ele possa ter de obscuro, de incerto, procurando estabilizá-lo. Como neutralizar o futuro? Como fazer para que o futuro se torne tão seguro, tão certo como o passado? Como fazer para que o futuro não se assemelhe mais a si mesmo, isto é, para que tenha o rosto tranquilizador do passado definitivo ou de um presente imóvel, eterno? Poderíamos traçar, de início, dois grandes conjuntos, duas grandes estratégias que consistiriam em, a primeira, fazer dissipar o futuro no presente; a segunda, em só considerar o futuro sob a forma de uma repetição do passado. Na primeira, portanto, o futuro desaparece, é como que afogado no presente. Na segunda, o futuro é apenas o eco do passado.
Em ambos os casos se percebe que o futuro como espaço de incertezas, como provocador de distúrbios numa alma dividida entre a esperança e o temor, desaparece. Para caracterizar as duas estratégias me servirei de dois termos bastante comuns: de um lado a segurança, de outro a responsabilidade. A segurança, ou melhor, certa dimensão da segurança, como esquecimento do futuro; e a responsabilidade, ou melhor, certa forma de responsabilidade, como construção de um futuro que é apenas a repetição do passado.
Mas é possível esquecer o futuro? Afinal, já é bastante difícil esquecer às vezes o passado. Penso que o tema do esquecimento do futuro, esquecimento do futuro no e pelo presente, mobiliza duas grandes construções culturais diferentes: a sabedoria epicuriana e o milenarismo cristão. Tudo, no entanto, parece distingui-los. De fato, tudo opõe absolutamente, de um lado, essa antiga sabedoria que ensina o homem a buscar antes de tudo o prazer e, de outro lado, essa velha crença cristã, aliás condenada pela Igreja, para a qual a destruição dos mundos, o apocalipse, será precedida de um período de mil anos de plenitude perfeita de felicidade universal. Existe, porém, uma ligação entre essas duas construções culturais, ou melhor, elas compartilham um conceito, o de segurança: ataraxia, em grego, securitas, em latim. O termo segurança se encontra no núcleo da sabedoria epicurista da crença cristã milenarista. Claro que a significação desse termo não é exatamente a mesma quando se passa da sabedoria antiga à profecia cristã, mas o que é designado, buscado, anunciado é sempre um desaparecimento do futuro. A segurança é quando o futuro não existe mais, é quando se esqueceu do futuro.
Num primeiro sentido, que encontramos em todas as grandes sabedorias da época helenística e romana (o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo), segurança significa, de acordo com a etimologia, a ausência de preocupações e de perturbações na alma, isto é, um estado de tranquilidade e de serenidade perfeitas. Nesse sentido, as grandes sabedorias antigas se apresentam como os primeiros grandes empreendimentos de segurança da história. O que elas de fato prometem a seus discípulos, por meio de técnicas espirituais precisas, e que são diferentes segundo as escolas, é a conquista de um estado de alma caracterizado pelo equilíbrio, pelo repouso, pela calma, isto é, pela segurança. O sábio é completamente sereno, nada abala sua segurança interior, e as grandes perturbações do mundo não conseguem agir sobre sua alma. Para usar imagens caras à escola estoica, a alma do sábio é como um rochedo imóvel e soberano em meio às tempestades, ou como uma fortaleza inexpugnável. Claro que, entre os estoicos, os epicurianos e os céticos, as técnicas utilizadas serão diferentes, e a qualidade da serenidade buscada varia de uma sabedoria a outra. Mas o que me parece característico de Epicuro, e por isso me interessarei apenas por sua escola, é precisamente uma desconfiança sistemática em relação ao futuro. Como se sabe, o epicurismo considera que a felicidade deve ser o objetivo último da existência. Acrescento em seguida que é uma felicidade pura, uma felicidade simples, e que evidentemente não se trata, muito pelo contrário, de um apelo a multiplicar os prazeres. Assim, é preciso chegar a essa felicidade de plenitude, mas – e é onde as coisas se tornam complexas – o que pode nos impedir de encontrar essa felicidade é precisamente a busca desenfreada, a busca insaciável de prazeres incertos. A maioria de nós, escreve Epicuro, organiza a vida em torno da busca de prazeres ligados às riquezas, à posse material e ao reconhecimento social. É o prazer de possuir isso ou aquilo, o prazer de chegar a essa ou àquela posição social. E não cessamos de sacrificar o presente à busca desses prazeres futuros, que nunca chegam, ou dos quais logo sentimos o vazio quando chegam, após muitos esforços para obtê-los. Imaginamos então que, se esses prazeres não são tão intensos quanto se pensava, é porque não somos ainda bastante ricos ou bastante poderosos. E a corrida às riquezas e às honrarias é indefinidamente relançada. Por isso é urgente, para Epicuro, esquecer o futuro. É preciso esquecer o futuro para se lembrar do presente, para estar presente no presente. A urgência, a verdadeira urgência, é a urgência do presente. De fato, não cessamos de nos projetar num futuro e de existir fora de nós mesmos. Pode-se citar aqui o pensamento impressionante de Pascal: “Não vivemos nunca, esperamos viver”. Mas a verdadeira felicidade, para Epicuro, é a arte de estar presente: presente para si, presente para os outros, presente para a presença. É preciso desembaraçar o presente das brumas do futuro a fim de dar-lhe maior transparência. Uma grande parte das recomendações e das técnicas epicuristas tem em vista colocar-nos na vertical de nós mesmos, para que possamos acolher totalmente a felicidade do instante.
Como segundo grande exemplo de evacuação do futuro em nome da segurança, pode-se citar, penso eu, a crença milenarista. O primeiro sentido da segurança era, como vimos, o de uma tranquilidade de alma. Portanto, era a dimensão subjetiva da segurança, a segurança como calma interior, serenidade. Sejam quais forem as desordens e os dramas do mundo, o sábio permanece imperturbável. O segundo sentido da segurança, ao contrário, é totalmente objetivo: é a evocação de um desaparecimento total, no mundo, de todos os perigos possíveis, uma extinção total, no coração dos homens, de toda fonte de agressividade. É a segurança como ausência de perigo, como desaparecimento radical de todas as ameaças. Alguns padres cristãos, nos primeiros séculos da nossa era, inspirando-se no Apocalipse de São João, mas também nas profecias de Isaías – Isaías que anuncia precisamente securitas usque in sempiternum (uma segurança para sempre)-, evocam um período que descrevem como a última idade do mundo. Quando esse período chegar, eles dizem, os homens viverão uma plenitude e uma felicidade completas, e o conjunto da Criação será reconciliado. Esse período será de “mil anos”, mas “mil anos”, eles explicam, significa a eternidade de um único dia, “mil anos” significa o prolongamento indefinido de uma jornada perfeita. O milenarismo é a utopia de uma idade do mundo na qual o futuro não mais existirá, pois será então o domingo da história. Essa inexistência do futuro não ocorrerá na escala de uma consciência, a do sábio, que se esforçaria por esquecê-lo por exercícios de concentração no presente, mas em escala cósmica. O milenarismo é o anúncio de um dia de repouso da humanidade inteira e do mundo, um domingo interminável, um domingo sem nunca mais segunda-feira. Essa utopia de um tempo objetivo que faria desaparecer o futuro sob a plenitude um presente eterno, penso que ela ressurge constantemente na história. Possui uma versão hegeliana, marxista, comunista, no chamado “fim da história”. Quando a história se completa e se realiza, porque as forças do progresso chegaram ao extremo de suas possibilidades, o tempo se estabiliza, se imobiliza. Não há mais futuro porque todas as dinâmicas de mudança, de transformação e de evolução chegaram ao seu termo. Então, para a humanidade, não resta senão viver numa imanência perfeita. E essa ausência de futuro é a segurança, porque não há mais nada a temer. Não há mais riscos, nem negatividade, nem criação.
Penso que existe uma versão contemporânea desse milenarismo, proposta não pela teologia, mas pela ciência. Já nos anos do pós-guerra, Günther Anders denunciava a possibilidade de um milenarismo técnico-científico, isto é, de um mundo no qual a humanidade se limitaria a funcionar, sem se colocar a questão do sentido de seus atos. Mas vou tomar referências mais contemporâneas. O desenvolvimento das novas tecnologias permite hoje considerar a construção de um mundo novo, mundo no qual os objetos, as superfícies e os indivíduos estariam saturados de leitores, de receptores que trocariam informações e ativariam funções. É o que chamam de ubimedia, mas também de a internet das coisas. O projeto é fazer os objetos se comunicarem entre si pela internet, a fim de que ordenem uns aos outros certo número de ações, sem a mediação de nenhuma intervenção humana. Os exemplos dados são conhecidos: é a geladeira que, após ter escaneado seu “interior”, faz um balanço dos produtos que em breve vão faltar e passa diretamente a ordem ao supermercado; é a casa que, conforme o tempo e a luminosidade, aciona a abertura ou o fechamento das janelas; são os carros que diminuem automaticamente a marcha à aproximação de um obstáculo; são os sistemas de irrigação que se comunicam diretamente com os satélites meteorológicos para adaptar a liberação da água à previsão do tempo etc.
O que é preciso compreender é que não se trata apenas de comandos a distância, mas verdadeiramente de uma interação automática entre os objetos que dispensa a intervenção humana. Há um conceito que poderíamos utilizar aqui como grade de leitura. Termo interessante porque designa ao mesmo tempo o grande princípio de legitimação do neoliberalismo: é o termo “regulação” ou, melhor ainda, “autorregulação”. No fundo, o que a internet das coisas propõe é um mundo no qual os objetos, programados de antemão para adotar tal ou tal comportamento em tal ou tal circunstância, interagiriam permanentemente, para prevenir acidentes, evitar desperdícios, antecipar saturações etc. Portanto, são fluxos de informações que se trocam a fim de provocar, de impedir, de distribuir ou de equilibrar outros fluxos: fluxo de energia, fluxo de mercadorias, fluxo de indivíduos. E é precisamente essa autorregulação sem consciência que faz desaparecer o futuro. Nesse sentido, o neoliberalismo é também o fim da história. Como há muito escreveu Santo Agostinho, no livro XI das Confissões, é a consciência que temporaliza, mas ela temporaliza porque introduz hesitações, antecipações, retenções.
A internet das coisas nos promete um tempo sem futuro semelhante ao do milenarismo cristão, um tempo da pura funcionalidade, o eterno presente da autorregulação permanente. Nesse novo mundo, dizem os promotores dessas novas tecnologias ou das “cidades inteligentes”, os objetos se tornam sujeitos. E os sujeitos, talvez se deva acrescentar, se tornam objetos. Desaparecimento da consciência, com suas dúvidas, hesitações, adiamentos, defasagens. Num mundo absolutamente programado, não há mais que tomar decisões, as coisas interagem automaticamente. Cercados por objetos que não cessarão de interagir, nós mesmos não precisaremos mais existir, antecipar, nos projetar num futuro: será suficiente funcionarmos. Esse mundo da internet das coisas, essa utopia técnica da ubimedia, é apresentado como o universo da segurança perfeita, porque se considera que a consciência dos indivíduos constitui a maior fonte de erros fatais, de negligências culpáveis, de esquecimentos perigosos. Um mundo de segurança perfeita só pode ser um mundo sem futuro e sem consciência.
Gostaria agora de esboçar um segundo grande conjunto de noções que vão propor também uma neutralização do futuro, no que ele pode ter de incerto, de contingente, de arriscado. Mas essas noções são muito diferentes da de segurança: trata-se da dívida e da promessa, que constituem, acredito, duas figuras da responsabilidade. Por outro lado, esse segundo conjunto não propõe exatamente esquecer o futuro. Irá conservá-lo, mas fazendo dele um simples eco do passado. Acho importante compreender bem esse enunciado. O que diz ele? Diz que o homem, pelo fato de nascer, constitui em si e por si mesmo uma dívida. Pois, afinal, cada um de nós recebeu propriamente a vida. Mais ainda, recebe-se uma cultura, uma língua, uma educação. De tal modo que a condição humana mais fundamental é a do devedor: somos devedores de nossa vida, e também devedores de nossa língua, de nossa cultura, de nosso saber. O problema da existência é então: como pagar nossas dívidas? O texto prossegue da seguinte maneira: “É por ser uma divida para com os deuses que o homem deve fazer sacrifícios; é por ser uma dívida para com os sábios que deve ensinar seu saber; é por ser uma dívida para com os antepassados que deve engendrar; é por ser uma dívida para com os homens que deve praticar a hospitalidade”. Aqui, vejam, coisas tão diferentes quanto libações feitas aos deuses, o fato de ter filhos, a transmissão de um saber recebido, a hospitalidade, todas essas atitudes são sistematicamente interpretadas como maneiras de pagar dívidas fundamentais. E esse pagamento é necessário porque, para essas antigas crenças, é ele que sustenta a ordem do mundo.
Vou agora insistir numa particularidade desse sistema arcaico da dívida, o que poderíamos chamar o princípio de transmissão. De fato, uma das maneiras principais de pagar a dívida é fazer-se, por sua vez, credor. Pago o dom da vida quando eu mesmo tenho filhos, pago o saber que aprendi ensinando-o a outros, pago a refeição do meu hospedeiro oferecendo, por minha vez, hospitalidade a outro. Nessa série de exemplos, percebe-se que pagar a dívida não é exatamente devolver a quem nos deu o equivalente do que recebemos. É dar o que recebemos a um terceiro, a outro. Portanto, há uma circulação da dívida no conjunto do corpo social e, sobretudo, através das gerações que criam vínculo. Nesse sistema, cada um acaba sendo o devedor de outro: o devedor de seus pais, o devedor de seus contemporâneos, o devedor de sua educação, o devedor dos deuses. Assim, essa responsabilidade alimenta lógicas de transmissão. O que é a transmissão? É a ideia de que o sentido do que recebi, em termos de habilidades, de educação, de experiências, de valores, completa-se quando o transmito a outro. Ensino-lhe tal coisa a fim de que você possa ensiná-la a outro. Mas também: dou-lhe hospitalidade a fim de que, se um dia um estrangeiro se apresentar em sua casa, ele seja recebido como eu o recebo etc. Essa dívida fundamental ativa estruturas de solidariedade, alimenta o vínculo social e as obrigações. Dizer: “O homem quando nasce, nasce em estado de dívida”, significa que sempre somos devedores dos outros. Mas, ao mesmo tempo, esse sistema é muito conservador, ele proíbe a inovação, já que o futuro nunca é pensado senão como repetição do passado: tenho filhos para que eles tenham filhos por sua vez, transmito verdades para que elas sejam repetidas às gerações vindouras. Seja como for, nessa imagem da condição humana a existência inteira se constrói como um pagamento de dívidas. O futuro nunca serve senão para pagar o passado. Essa ideia de um futuro colocado por inteiro sob o signo da repetição é muito impressionante. Penso que existe aí certa concepção da responsabilidade, a ideia de que viver é ter de responder perpetuamente por suas dívidas, dívida de educação, de cultura, de saber etc.
Hoje estamos evidentemente muito distantes desses sistemas arcaicos de transmissão, e nossas sociedades são bem mais individualistas. Consideramos que o fato de nascer nos dá mais direitos (à igualdade, à liberdade etc.) do que impõe deveres. No entanto, a dívida volta a ser coextensiva ao destino dos indivíduos e dos países sob a forma, claro que bem mais particular, do endividamento financeiro. Hoje, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, o problema da dívida é onipresente. Não cessam de ser propostas novas políticas públicas que levem em conta o estado de endividamento de um país; nos Estados Unidos, cada indivíduo é porta dor de e é identificado por um credit score, uma cifra que o acompanha a vida toda e evolui ao longo da vida, um algoritmo calculado a partir do perfil financeiro da pessoa e que representa sua capacidade de reembolso. Impõe-se aos poucos a ideia de que as pessoas se definem conforme sua capacidade de endividamento. Evidentemente, esse sistema é muito distante daquele que descrevi para as sociedades arcaicas. Não se trata mais de ser uma dívida em relação ao sentido da humanidade, mas de ter dívidas junto ao banqueiro. O sistema da dívida nas sociedades arcaicas alimentava lógicas de transmissão e de solidariedade. enquanto o sistema contemporâneo é antes um processo cínico de enriquecimento indefinido dos mais ricos e de empobrecimento dos mais pobres. Trata-se essencialmente de dívidas financeiras quantificáveis, que são ao mesmo tempo alavancas de especulação. Mas encontramos, tanto lá quanto aqui, o mesmo efeito de obliteração do futuro. Pelo menos na Europa, penso que essa pressão da dívida equivale a um esmagamento do futuro. O futuro é doravante construído como o que deve servir para reembolsar as despesas presentes. O que constitui, afinal de contas, uma mudança considerável: o presente não serve para tornar possível o futuro, o futuro é que torna possível o presente. Na e pela dívida, o que torna possível meu presente é a alienação do meu futuro.
Examinei até aqui três grandes figuras da obliteração do futuro. Primeiro, as técnicas espirituais de concentração pelas quais se busca viver o instante, a fim de dissipar as brumas do futuro e instalar-se na transparência de uma felicidade presente – era, como lembram, a sabedoria epicurista. Em segundo lugar, o milenarismo numa dupla versão, cristã mas também técnico-digital. Tratava-se então de esperar o advento de um eterno presente no qual não haveria mais temor nem esperança, uma revolução futura que poria fim à possibilidade mesma do futuro.
Nesses dois primeiros casos, a obliteração do futuro se fazia em nome da segurança. A seguir, foi a ideia de responsabilidade que me serviu para colocar o problema, dessa vez da dívida como encerramento do futuro: o futuro serve apenas para reembolsar o passado ou para tornar possível o presente.
Gostaria agora de lhes propor a exploração de um último conceito ainda ligado à ideia da responsabilidade, que é desta vez o de “promessa”, de um compromisso que se pode assumir em relação aos outros ou de uma promessa que se pode fazer a si mesmo. Vou me apoiar num texto famoso para construir essa ideia de promessa. Esse texto é a segunda dissertação de A genealogia da moral, de Nietzsche. É um texto ao mesmo tempo importante e surpreendente. Importante porque há nele uma das mais belas definições de o que é a responsabilidade. Surpreendente, também, porque essa definição é um elogio, enquanto outros textos de Nietzsche, ao contrário, criticam a ideia de responsabilidade. Mas aqui se trata claramente de um elogio da responsabilidade como manifestação de uma força de caráter. Vou começar por expor o fio da argumentação nietzschiana, porque se observa, ao longo dessa demonstração, um trabalho sobre a temporalidade. Nietzsche começa seu texto por outro elogio, não o da responsabilidade, mas o do esquecimento. De fato, explica Nietzsche, existe uma virtude profunda do esquecimento: esquecer é precisamente retirar o peso do passado e deixar o futuro aberto. Lembremos, aqui, o que dizíamos há pouco a propósito da dívida. À força de sentir-me perpetuamente em dívida, à força de construir minha própria vida como um movimento indefinido de reembolso, sou privado de futuro. Mas não são só as dívidas que podem obstruir nosso futuro: as más lembranças também, as desgraças antigas, um passado difícil de assumir. Sabemos que Nietzsche, através de sua obra, faz um retrato sombrio do que ele chama o homem do ressentimento. O homem do ressentimento é aquele incapaz de esquecer, de esquecer as pequenas humilhações, as pequenas mesquinharias de uns e outros, as pequenas derrotas da existência. Sua única preocupação é então vingar-se, nos outros, do que lhe aconteceu ou, simplesmente, vingar-se de sua própria fraqueza ou de sua própria covardia. O ressentimento enfeia tudo. Para Nietzsche, ele injeta na relação consigo e com os outros o desejo sujo de vingança. Assim, o futuro não existe mais senão como a projeção odiosa de uma desforra.
Eis por que existe uma nobreza do esquecimento. Para Nietzsche, esquecer não é apenas uma passividade da alma que deixaria as lembranças se apagarem, uma manifestação de desgaste ou de negligência da parte de um espírito fatigado. Não, esquecer é fazer voluntariamente a escolha, livrar-se do lastro, desembaraçar-se do peso das lembranças, recusar ser escravo do seu passado. É um ato de liberdade, uma decisão. Trata-se aqui do que Nietzsche chama o esquecimento ativo. Esquecer, ele escreve, é o que caracteriza naturezas fortes, vontades poderosas. O fraco é incapaz de esquecer. Ele não cessa de ruminar o que lhe aconteceu, é impotente diante do afluxo de suas lembranças, sempre se deixa submergir por seu passado e se mostra incapaz de controlar essa invasão.
Mas Nietzsche não se detém aí, e é a continuação do texto que nos interessa para compreender o que poderia ser uma transfiguração do futuro, uma repetição criadora do passado no futuro. De fato, explica Nietzsche, existe um grau superior da força. Esquecer é bom, porque é desembarçar o futuro das sombras do passado. Mas prometer é ainda melhor. Prometer é tornar-se mestre do futuro.
Para compreender o que Nietzsche quer dizer aqui, é preciso descrever de perto o ato de prometer. Quando prometo, digo de tal ato que o cumprirei tal dia. A propósito de tal coisa, anuncio que a realizarei em tal momento. E a esse cumprimento, a essa realização, dou-lhes um caráter de certeza. Prometo-me, ou prometo a outra pessoa, fazer tal ou tal coisa.
E organizo a seguir minha vida para que ela seja como que dirigida pela realização de minha promessa. Embora o futuro contenha, por essência, um elemento de incerteza, de imprevisibilidade, uma contingência insuperável, digo hoje de tal ato que ele será cumprido a tal hora, de tal coisa que ela será realizada em tal momento, e dou forma à minha existência de modo que ela se oriente para a realização de minha promessa. Existe uma forma gramatical que ilustra bem a estrutura da promessa: é o futuro anterior. Tomo uma frase conjugada no futuro anterior: ”Amanhã terei feito isso ou aquilo”. Notem que o futuro anterior utiliza o auxiliar “ter”, que na maioria das vezes é a marca do passado. ”Amanhã terei feito isso”: digo hoje, a propósito de tal coisa, que amanhã é como se ela já estivesse feita. Dou a um ato por vir, em minha declaração presente, a certeza do acontecimento passado.
Assim essa promessa é um signo de força, precisamente porque se trata de afirmar meu domínio sobre o futuro, e de anunciar que, sejam quais forem os obstáculos e os imprevistos, cumprirei o que prometi cumprir, realizarei no futuro uma promessa do passado. Essa promessa, evidentemente, supõe uma memória, mas não é mais a memória patológica do homem do ressentimento. É, da parte do homem forte, o que Nietzsche chama uma memória da vontade. E a responsabilidade, para Nietzsche, é exatamente isso, é a capacidade de responder por si, mas de responder por si diante do futuro. Essa responsabilidade é completamente distinta da responsabilidade civil ou penal, para a qual se trata de indicar, sobretudo, que cada um deve assumir o fardo de seus atos passados. A responsabilidade penal está voltada para o passado. A responsabilidade da promessa está voltada para o futuro. Creio que ela permite a Nietzsche construir o pensamento de uma liberdade como destino. É verdade que, imediatamente, as ideias de “liberdade” e de “destino” se opõem, já que o destino designa uma necessidade superior a todas as vontades e que se impõe absolutamente a elas. Mas na promessa, em que se trata de decidir em nosso íntimo o rosto que tomará nosso próprio futuro, há a ideia de que a forma mais elevada de liberdade não é poder escolher isso ou aquilo, poder mudar de caminho, mas sim construir-se a si mesmo como destino, tecer de si para si, pela promessa, um fio de necessidade. O que me prometi fazer, o farei. Nada me impe dirá, nenhuma das dobras escuras do futuro poderá desviar-me disso. E essa retidão é o signo da liberdade mais nobre e da força mais realizada. A verdadeira liberdade é construir-se a si mesmo como destino.
Vejam que aí também, de certa maneira, como em relação à dívida, o futuro nunca é senão o ponto de realização do passado. Mas, enquanto a dívida colocava essa repetição do passado no futuro sob o signo da servidão e do encerramento, a promessa a coloca sob o signo da liberdade mais elevada. Meu futuro não é mais o que era. Faço dele a câmara de eco de uma decisão solene e iniciadora, e assim me faço livre, construindo a mim mesmo como destino. Então, sim, o futuro não é mais o que era. Antes ele era vago, indeterminado, incerto. Agora é a corda tensa do arco de um destino, o desafio de uma promessa.
Tradução de Paulo Neves.