2009

Edito de tolerância

por Michel Déguy

Resumo

Tolerância e transcendência, dois princípios que se acham em relativa oposição. A tolerância abdica do desejo do UNO, enquanto a transcendência luta contra a divisão, a pulverização  e a corrupção.

É preciso refundar esses dois princípios para sondar, na tolerância, algo como um dever (dever de pensamento) de renunciar ao desejo de unificação utópica e, na transcendência, o dever de renunciar à religiosidade de sua proveniência.


Eis o que Nelson Mandela e Desmond Tutu escreveram por ocasião da comissão Verdade e Reconciliação: “A adoção desta constituição lança a fundação sólida sobre a qual o povo da África do Sul transcenderá as divisões e as lutas do passado que suscitaram graves violações dos direitos humanos, a transgressão dos princípios de humanidade durante conflitos violentos e uma herança de ódio, de medo, de culpa e de vingança”[1]

Transcendência: o que isso quer dizer? Simplesmente isto: um movimento de ascensão (“elevação” em Baudelaire) ou sobressalto, que procede de um princípio chamado Espirito (cf., por exemplo, seu uso em Valéry), e não espera que sua injunção venha do alto, nem mesmo do Altíssimo. Não é o Transcendente que cai sobre nós, mas nós que subimos ao céu, o escalamos.

Trans, preposição[2] e prefixo, afirma a passagem através (transgressão), e a ação para cima, a superação. Não existe trans na travessia sem trans ascensional. Há sempre um ponto que sobressai, englobante, um patamar acima do qual o ódio e a separação entre x e y, inevitáveis, históricos, constitutivos, são “superáveis”, isto é, não têm mais lugar de ser.

Tudo o que compõe, associa, complexifica, é bom. O trans é bom; não se trata de religião. Mas de retomada, portanto. Não mais em Aufhebung “dialética” (Hegel). A retomada sublime, e do velho sublime, em sublime moderno: uma sublimação moderna. Retomada da recaída, na recaída; e não mais “sempre mais alto”, como diziam os “idealistas”, mas sempre menos alto; ou melhor, a boa altura, não alto demais; à altura do homem, teria dito o humanista de outrora. Mas, justamente, qual é ela? É a questão do “universal difícil” (levantada por Jean-Claude Milner).

Como manter a transcendência (a Justiça) ou, em termos de Rimbaud, “reinventar” a Justiça, sem mais nenhuma ilusão, isto é, sem esperar um Juízo Final celeste, e recusando a decadência, a corrupção, isto é, a abolição de sua transcendência?[3] A justiça não está em outro lugar que não na cabeça que julga, ou seja, um julgamento inteligente, justo. Em outro lugar que não nas instituições que lhe administram a possibilidade, operadas por homens, os lugares, os prédios; e sob os signos inventados por humanos.

Em matéria de preliminares, seria preferível tratar dos “transcendentais”, como dizem os filósofos, ou condições de possibilidade de uma transcendência teórica e prática para hoje.

Mas, enquanto se espera, deve ser esboçada a constatação dos impedimentos, aparentemente intransponíveis, que nenhum otimismo, nem psicológico, nem cristão, nem humanista tradicional, nem político, deve temperar. Mais vale radicalizar as dificuldades.

A estrangeiridade dos povos, a impermeabilidade das línguas e de seus mundos, a hostilidade das nações são terríveis. Aquilo que Malraux chamava de “o tempo do desprezo” está longe de ter desaparecido. Veneno [poison] insolúvel — e não peixe [poisson] solúvel — no Letes da história. Os ódios hereditários das vítimas históricas (todos contra todos), os emaranhados identitários, as “vulgaridades hostis”, exasperadas pelo esporte, tudo parece favorecer sempre mais os divórcios do que o fazem os erros compartilhados. Os componentes étnicos da Europa nem sequer já foram discriminados, separados — como numa análise que remonta aos requisitos últimos —, para que se possa recomeçar em recomposição e em síntese. Quantos casos de “Kosovo”, se assim posso dizer, até que se acabe a regressão? Ninguém se vê obrigado a permanecer na indivisão? E infelizmente ninguém parece disposto a refinalizar, reutopizar indivisões inovadoras. “A educação europeia” tem futuro.

O cultural que compensa, refaz a utopia e o engodo, o cultural econômico e festivo não bastará. Seria preciso que fosse catalisador; ele é um pouco regulador, a posteriori turístico por exemplo, se é verdade que cada país é chamado a se tornar show-room de seus fenótipos (“produtos típicos”, se preferirem), como se a concorrência econômica devesse bastar para pacificar o mundo. Mas o espírito europeu não pode resumir-se a um programa de consumo cultural. Ele precisará de coerções mais fortes.

É por isso que volto à meditação dos princípios; e, singularmente, destes dois, que se acham em relativa oposição: o de tolerância e o de transcendência. Não tanto para recordá-los, como se eles de novo pudessem servir em sua formulação humanista, mas para refundá-los de uma maneira talvez desconcertante. O primeiro, para nele sondar, numa profundidade ainda não enfrentada pelos bons sentimentos, algo como um dever (dever de pensamento) de renunciar ao desejo da unificação utópica; o segundo, na medida em que implica também uma renúncia, sim, à religiosidade de sua nobre proveniência.

Demissão da unidade? O “universal difícil”,[4] alto pensamento árduo, que pode substituir a esperança, transforma a “perspectiva”, isto é, a relação da imaginação com o futuro; mais sucintamente: a relação com o tempo. Ela suspende (sem dissimulação) toda “mudança por vir”… E se a lei do horizonte fomenta a expectativa de um além-horizonte, de uma inversão possível, onde o espírito projete seu “otimismo”, por exemplo, com vistas a uma reconciliação e um arranjo; se é ela que sustenta o sistema da promessa de prazo reparador, de”compromisso”, de fusão e de efusão, então é esta mistura do futuro e da ilusão, a lógica dos projetos e dos desenlaces, aquilo a que renuncia a lúcida aceitação complexa da separação. Como a religião é a esfera onde as convicções humanas se distinguem e se chocam mais intensamente, e como a história da Europa terá sido uma longa guerra de religião, tomo o exemplo do ecumenismo, ou seja, a esperança de Reunião das igrejas cristãs.

O pensamento do “universal difícil” vincula-se ao rigor. Parente da Gelassenheit heideggeriana, ele seria a fase precedente desta: rigorosa dureza mais do que rigorosa “doçura”; “trabalho de luto”, caso se queira, mas desde que este clichê consolador, que envolve a mediatização com o fait divers, seja reexaminado… com rigor. No caso do meu exemplo: ele requer que um “Papa” ou um chefe desta ou daquela religião (um teólogo católico, um sacerdote douto e convicto, um fiel inteligente) renuncie à perspectiva dita de Unitatis Redintegratio, abandone o perspectivismo pictorial da reunião das Igrejas, do concurso das linhas de fuga, da unidade. Não para uma moratória reconduzível — “sob o horizonte” de seu fim. Mas para sempre.

A unidade é o que não terá sido, o que não é mais, o que não será, o que não é. Implicação corolária: eis que é preciso renunciar aos preparativos em prol da unificação; que o trabalho de pensamento dê lugar àquele que encara, isto é, compreende a separação, a “vizinhança por um abismo” (Heidegger), o aprofundamento da diferença, isto é, do sentido da diferença em “diferensa” (Derrida). Nada se rejuntará, jamais se confundirá. A heterodoxia foi invenção, multiplicação, e não desvio, perversão, malefício. É preciso agora admiti-lo e medi-lo. O católico romano, o ortodoxo, o reformado não se simplificarão jamais. Mas distinguir-se-ão e disjuntar-se-ão ainda mais. A teologia da Glória e a teologia da Paixão são e serão duas. Como viver junto? Sim, é difícil; com e na perene separação: como irmãos separados, justamente. Convém cunhar este oxímoro poderoso e irrevogável, estabelecer-lhe o regime, paradoxalizá-lo e paroxismar sempre mais: todo proselitismo rejeitado para sempre, banido.

Falar dos “mitos” europeus? Mas seria melhor falar da religião — isto é, das religiões e da religiosidade. Maneira de falar dos mitos que nos dizem respeito. O discurso da inteligência moderna — o discurso filosófico, se quiserem, e historiador e ensaísta — é tramado, tecido, de mitemas, de teologemas, de filosofemas e de poemas.

É preciso falar das guerras de religião, nosso passado, dos séculos XVI e XVII europeus, da grande ferida não fechada. Pois aconteceu no século XX esse evento de consequência incalculável: o extermínio dos judeus da Europa (segundo a expressão de Raoul Hilberg) fez recuar para o passado, de certa maneira, o grande evento moderno da Reforma e da Contrarreforma, a guerra de religião, a guerra civil, os massacres, o Edito de Nantes, e depois sua revogação, e a réplica sísmica que foi o Diferendo dos jansenistas e dos jesuítas… — o antagonismo da Paixão e da Glória. O que ensina Calvino? O que ensina Lutero? A diferença interna ao “protestantismo” que opõe o pensamento luterano do Deus absconditus, cuja Cólera e Justiça ninguém pode pretender assumir, e o Calvino das Institutiones,[5]  sobretudo a quarta, isto é, a da teocracia que persegue o Mal (por exemplo, Casteillon e Servet), repercute na guerra “neoconservadora” contra o Eixo do Mal, nesta fase incendiária da história do mundo em que estamos. Richard Rand escreve:

A língua para Calvino é um instrumento de distinções jurídicas; ela é para Lutero uma espécie de maná do céu. Em seus comentários dos Salmos, Lutero investiga em cada frase os enigmas que ela encerra; pois os enigmas dispensam o maná de uma promessa, a do maná dos enigmas por vir. E Calvino, que se ergue sempre como leitor das Escrituras, denuncia em Lutero o amor pelos paradoxos e pelas aporias.[6]

“Dever de memória” é uma expressão fraca. Não pode haver Europa sem uma consciência avisada, isto é, uma consciência europeia, em constante “re-tensão”, interpretativa e atualizante, historiadora. A Europa é a sua história. “Pensar na Idade Média”, propunha um grande livro de Alain de Libera. Pensar o (no) Renascimento, e nos séculos XVI e XVII, etc. não são “opções” no programa. Cada uma das grandes crises é tão complexa e fundamental quanto as outras e reclama os mesmos cuidados históricos — seja a bizantina na sua guerra dos ícones ou, mais de mil anos depois, a crisis em que Husserl meditará às vésperas da II Guerra Mundial. Por mais arcaicos, criminosos e insensatos que tenham sido — e que, portanto, são — o antissemitismo, sua progenitura e seus disfarces, não se trata somente, na memória pesada da Europa, da “questão judia”, ou questão dos judeus da Europa. Quanto à rememoração, à busca historiadora e pensante, do cisma cristão, saído da Alemanha do século XVI para ganhar e configurar o Ocidente, parece que o canteiro de seu conhecimento deve reabrir suas obras, se é verdade que o laboratório central, americano, da-Guerra-e-da-Paz tem como centro o oratório calvinista “oval” da Presidência.

Renunciar à sintese hegeliana é buscar poder conjugar os contrários, distintamente: eles não se dissolvem na síntese, e fazer cooperar paradoxalmente irredutíveis inimigos, partidário cada um de um hemisfério da composição de verdade visada. Não é só a moral que é provisória.

Com sua permissão, leitor, farei alusão, para terminar, ao grande jurista Kelsen. A liga, não a síntese, pois esta não existe, de duas disposições favorece as soluções em geral. Como ligar, portanto, um realismo empírico desmistificador, kelseniano, amigo dos procedimentos de representação (do múltiplo por uma unidade), de delegação dos partidos, dos compromissos históricos, com um idealismo transcendental em “como se”, que mantém a ficção reguladora das idealidades e dos ideais, em conhecimento de ficção. Não deixar as ideias caírem “cinicamente”, é o que manda o realismo. Imanência e transcendência: tudo depende dos novos jorros de transcendência, a inventar — a imaginar, como diz Mireille Delmas-Marty.

Não retomo o refrão de 1968. Não: “Sejamos realistas, exijamos o impossível”. Mas: Sejamos idealistas, pensemos o impossível — para praticar o possível difícil.

Dois princípios adversos desempenharam aqui o papel de “fundamentais”: a tolerância, que abdica do desejo ávido do UNO; e a transcendência, ou princípio de transformação, que luta contra a divisão, a pulverização, a corrupção.

A transcendência moderna, aquela que não conta mais com a mão de Deus da Capela Sistina, que abandona Adão, é este movimento de levantar a altura — de inventar o canto.

Tradução de Marcos Bagno.

Notas

[1] Devo a citação a Barbara Cassin.

[2] Preposição na língua francesa.

[3] Narrada pelo filme O júri, de Lumet.

[4] Expressão de Jean-Claude Milner.

[5] Projeto de Seminário do professor R. Rand, cit.

[6] Apoio-me, para estas alusões, no relato que Stefan Zweig consagra a João Calvino, e no Projeto de Seminário do professor R. Rand para o Colégio Internacional de Filosofia (2008-2009).

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