2012

Educação para o ócio: da acídia à “preguiça heroica”

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

Ligadas à história antropológica do ócio e da ociosidade, as reflexões filosóficas sobre a preguiça interrogam a natureza da vida social e da comunidade política.  Como para a filosofia antiga todo movimento tende ao repouso, o prazer do movimento tem por fim supremo o descanso feliz, a indolência afortunada. Nesse sentido, a vida contemplativa é, por excelência, distensão do corpo e não perturbação da alma.

A percepção da mobilidade do tempo e da instabilidade do mundo revela os perigos que ameaçam a liberdade e a felicidade, levando os gregos à compreensão de que viver é sabedoria nos usos do tempo. O trabalho para além das necessidades da autoconservação é atividade sem sentido porque desvia o homem da busca da justa vida e da contemplação. Usar o tempo a seu favor é vivê-lo para além da preocupação com a sobrevivência, é aprender a estar consigo mesmo, em uma temporalidade livre do negócio, porque apenas no repouso  formam-se valores espirituais.

Entre os séculos III e IV, na tradição judaico-cristã, a acídia — preguiça do coração — surgiu como um dos sete pecados capitais. Tentação dos maus pensamentos, a Idade Média encontra nos pecados capitais os demônios que exercem seu comando sobre as partes fracas de nossa natureza imperfeita, suscetíveis de corrupção, como o estômago pela gula e o sexo pela luxúria. Mal do ânimo, a preguiça-acídia, preguiça-tristeza ou “preguiça do coração” tem poder sobre o mais nobre do homem, o espírito, em virtude da tênue demarcação entre a meditatio e a preguiça, entre a contemplação religiosa e o contemptus mundi. Considerada inaptidão a permanecer inativo e com o espírito livre para chegar a Deus, à realidade verdadeira ou à transcendência, a acídia-preguiça” é a antítese da vida boa”.

A modernidade desconhece a preguiça por seu anti-intelectualismo que desacredita todas as tarefas não vinculadas ao paradigma da produção e do controle do tempo. Com efeito, até tempos relativamente recentes, as atividades intelectuais, filosóficas, científicas ou artísticas pertenciam a um domínio privilegiado, em que o trabalho não necessitava ser útil e, em especial, a filosofia escapava do trabalho e de suas leis. Tendo perdido essa prerrogativa, o mundo do trabalho intelectual foi submetido à “figura imperial do trabalhador”.

O direito à preguiça não é um combate econômico, mas reivindica o direito de fazer ou não fazer, rompendo com a condição de Homo faber e ingressando no território do Homo ludens. Ativa à sua maneira, a preguiça é irmã do sonho. Pois, como afirmou Heráclito: “Aquele que dorme age e colabora também ele ao advento do mundo”.


A “preguiça heroica”[1] é a maneira como Lafargue compreende os usos do tempo e procede ao elogio dos gregos, inventores da ciência contemplativa, para os quais “pensar é o passeio da alma”. Estado de bem-estar e tranquilidade, a preguiça é o presente que coincide consigo mesmo. Razão pela qual Levinas escreveu: “A preguiça é a impossibilidade do começo. Ou então […] sua completude”[2]. Tempo avesso à aceleração e a finalidades, essa experiência temporal significa que já se alcançou o que o ato aportaria, “(como se) houvesse já algo a perder, pois este algo já se o possui no próprio instante. É porque se pertence que ele se conserva”[3]. A preguiça é o enlevo mágico, indiferente à duração, pois tudo está realizado: “É o castelo construído em uma noite, a aparição repentina da carruagem de ouro com a varinha de condão”[4]. Nesse sentido, a preguiça é a aura do tempo e das coisas: “Observar, em repouso, uma tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio da aura (e do prestígio da preguiça). Ele deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massa.”[5]. A sociedade de massa é afeita à “mobilização infinita”, ao fetiche da inovação e à mudança incessante, hostis ao repouso. Piger é o latim de que deriva pigritia, esse antivalor que desfuncionaliza o tempo do atarefamento, porque é “lento”, “indolente”, de onde se deduz que o preguiçoso é “pouco trabalhador”. Ligadas à história antropológica do ócio e da ociosidade[6], as reflexões filosóficas sobre a preguiça interrogam a natureza da vida social e da comunidade política. Nesse sentido, Aristóteles observa: “Só nos dedicamos à vida ativa em vistas a alcançar o lazer […]. A felicidade depende dos lazeres. Porquanto trabalhamos para podermos ter momentos de ócio”[7]. Porque viver é uma certa maneira de usar o tempo e a vida é breve, Homero dispôs em seus versos: “Os homens são como as folhas. Quando chega o outono, elas caem e são arrastadas pela terra, e novamente vem a primavera e reverte tudo. Assim são os homens, nasce uma geração e a outra perece”[8].

No horizonte da finitude, os gregos buscaram, de maneira inaugural, o fundamento da vida, o próprio do homem, ser que vive em sociedade, exposto, vulnerável e mortal. Como observou também Nietzsche: “O homem quer existir socialmente e gregariamente, necessita para tanto concluir a paz (…). Por necessidade e por tédio”[9]. Se a vida no oikos como na vida pública podem cansar, é por exigirem esforço para a conservação da vida. O esforço exclui a preguiça e o prazer.

Avessa ao esforço era a filosofia, cujo patrono, Sócrates, não tinha pressa quando se sentava às margens do pequeno rio Ilisso, nos arredores de Atenas, elogiando os encantos da sombra das árvores antes do início de um diálogo e de nele se demorar. Sócrates poucas vezes se afastava da cidade, onde era sempre visto na praça pública e nos ginásios, nas palestras e em casa de amigos. Aos atarefados que se precipitavam para cuidar de seus negócios, interpelava-os, perguntando-lhes em que essas atividades podiam fazê-los homens bons e virtuosos. Como para a filosofia antiga todo movimento tende ao repouso, o prazer do movimento tem por fim supremo o descanso feliz, a indolência afortunada. Nesse sentido, a vida contemplativa é, por excelência, distensão do corpo e não perturbação da alma. Fundando a democracia e a filosofia, Atenas garantiu o direito à vida contemplativa e ao ócio (scholé).

Agente livre, mas inserido nos constrangimentos naturais, condenado assim ao trabalho para viver, o homem age também por vontade e liberdade. Nos processos intencionais engendrados por escolhas voluntárias (proaíresis) intervém a fortuna (tyché): “A fortuna é uma causa por acidente, sobrevindo nas coisas que, tendo em vista algum fim, procedem ainda de uma escolha”[10]. Porque, apesar da constância e regularidade da natureza, nas questões humanas deve-se considerar também o inesperado, o homem pode, por liberdade, agir, mas também por vontade não agir. Porque viver é mais do que sobreviver, é alcançar virtude e conhecimento, o trabalho é coerção que afasta dos fins últimos e, por isso, deve ser feito prontamente, para logo nos liberarmos de seu fardo.

A percepção da mobilidade do tempo e da instabilidade do mundo revela os perigos que ameaçam a liberdade e a felicidade, levando os gregos à compreensão de que viver é sabedoria nos usos do tempo. O trabalho para além das necessidades da autoconservação — não sentir fome, sede e frio — é atividade sem sentido porque desvia o homem da busca da justa vida e da contemplação. O trabalho como um fim em si mesmo é, para os gregos, sem sentido, e de “uma monotonia infindável que torna, simultaneamente, os dias longos demais e a vida por demais breve”[11]. O trabalho pelo trabalho, repetitivo e absurdo, como o de Sísifo, é condenação divina que faz dele o “proletário dos deuses”, como o são também, na tradição judaico-cristã, Adão e Eva: expulsos do paraíso. Tornados mortais, devem ganhar a vida com o suor do rosto. Mas, para agentes livres e que desejam[12], o trabalho não é o que mais importa ao homem, e sim o tempo livre — a scholé grega ou o otium dos romanos e o do mundo medieval cristão[13]. Diante do trabalho obrigatório, o repouso e a preguiça representam um tempo anticronológico, avesso à utilidade[14], de tal modo que a antiga maldição do trabalho não se encontra na necessidade do trabalho para se alimentar e se cuidar, mas no esforço para isso, no peso que se exerce sobre o ato. Eis o que faz do presente um tempo estagnado, que custa a passar, como se o presente estivesse atrasado com respeito a si mesmo. Nesse sentido, a preguiça é um recuo diante do cansaço, uma recusa do esforço e da pena, como se reconhece no diletante que se entrega à preguiça. Dilettare é, em italiano, deleitar-se, dar-se a algo por prazer. Gosto dos diferimentos, da tranquilidade, do descanso e do lazer, o dilletare se reúne ao licere latino, ao lazer que é “ter permissão”, e por isso o “lícito” é o “tempo para fazer o que bem se entender”. Se lentidão e calma, indiferença e inação, escoamento do tempo e bel-prazer se dão no limiar da despreocupação, o tempo da preguiça não é um “matar o tempo” porque isso é propriamente o tédio, tempo de mal-estar com qual não se sabe o que fazer. Como escreveu Baudelaire: “É preciso trabalhar, se não por gosto, pelo menos por desespero, posto que, tudo bem pesado, trabalhar entedia menos que se divertir”[15].

Porque o tempo da existência é um dom do tempo, mas breve, os gregos encontraram na scholé a forma superior do bem viver e da felicidade: “a scholé é o tempo reservado ao estudo, ao conhecimento de si e dos outros, à contemplação apaziguadora”[16]. Esta se relaciona com o culto e os cuidados “teóricos” que ele requer, pois teo-orein é o olhar de deus e o cuidado de Deus; teoria é “ter cuidado como o divino”, “ter cuidado com o ver”. Contemplação e cura encontram-se na palavra terapeuma:

Therapeutès é o servidor ou adorador de um deus, e aquele que cuida, médico. Therapeutikós é quem cuida de, é o dedicado, prestativo, que se entrega aos ofícios religiosos, que cuida com solicitude e reverência respeitosa, therapeutikós sendo a arte de velar por algo. Therapeutos é o que se pode cultivar; é o curável; therapeuô é tomar conta, servir, cercar de cuidados, solicitude; honrar os deuses, os pais; fazer os serviços dos templos, ocupar-se com as coisas do culto, cultivar a terra, cuidar da alma, da inteligência, prestar um serviço; dispensar cuidados médicos, tratar; cuidar de si.[17]

Dedicar o tempo a algo significa conferir-lhe valor, e atribuir valor é a quintessência do amor. A scholé refere-se, pois, “às coisas a que dedicamos nosso tempo, ou aquilo que merece o emprego do tempo: De onde, por meio de uma notável evolução, o sentido de ‘estudo’, encontrado em Platão”[18]. Transmitida ao scholion, o comentário (scholion) significa lazer, tempo livre, tranquilidade e também preguiça. Quanto ao advérbio scholei, é lentamente, com vagar e ócio, à vontade: “Os comentários ou escólia são uma espécie de luxo, um capricho (de aluno atencioso), uma brincadeira (de professor aplicado), um jogo nas margens dos discursos: um convite para que o leitor se transforme também em flâneur”.[19]

Essa é a razão pela qual o exercício da filosofia tinha caráter lúdico e foi apresentado como um jogo de perguntas e respostas[20], a exemplo do Sofista, em que Platão põe em cena Teeteto levado pelo Estrangeiro de Eleia a admitir que o sofista pertence àquele gênero de indivíduo “que se dedica a brincadeiras”[21], e Parmênides, solicitado a se pronunciar sobre a questão do Ser e da existência, considera essa tarefa um logo difícil de jogar”[22]. Quanto a Platão, inspirado por Sófron, autor de farsas em forma de diálogo, compôs suas obras como os “mimos”[23] que eram também personagens de comédia, por isso, Sócrates e Platão, algumas vezes, foram denominados “taumaturgos e malabaristas”, próximos nisso aos sofistas. O Crátilo de Platão é um diálogo de tom desprendido e informal, da mesma maneira que no Sofista Protágoras narra, não sem humor, a origem da política a partir do mito de Epimeteu e Prometeu: “Quanto à forma e aos nomes desses deuses”, diz Sócrates, “há uma explicação ao mesmo tempo cômica e séria, pois os deuses apreciam o humor[24]. Nos diálogos, os diversos interlocutores consideram as investigações filosóficas um “agradável passatempo”. Nas Leis, lê-se: “Os deuses, cheios de piedade pelos humanos, raça condenada a sofrimentos, instituíram para os aliviar de suas fadigas e apaziguar seus tormentos o ciclo das festas divinas. Deram-lhes por companhia e guias Apolo e Dionísio, a fim de que, assim nutridos na festa dessa divina frequentação, recebessem novamente a retidão e a ordem”[25]. Porque a ordem é bela e tem seu tetos, a natureza não quer apenas que trabalhemos bem, mas igualmente que utilizemos apropriadamente o ócio: “Para Aristóteles, a preguiça ou ócio é o princípio do universo. É uma coisa preferível ao trabalho e é sem dúvida o fim (tetos) de todo trabalho. […] Esta felicidade, o fim da necessidade de lutar por aquilo que não se tem, é o tetos [algo] que não é procurado em função de um bem futuro, mas em função de si mesmo”[26]. Tempo livre é scholazei, não se apressar, preguiçar; é diagogé[27], “passar através” e, de maneira aproximada, “passatempo”, embora nessa expressão se ausente o elemento lúdico que lhe é essencial: “Aquilo que não encerra utilidade, nem valor simbólico, também não acarreta consequências nefastas, pode ser apreciado mediante o critério do encanto (cháris) que possui e pelo prazer que provoca. Esse prazer, dado não ter por consequência um bem ou um mal dignos de nota, constitui um jogo — paidiá[28]. Simpósios e conversações filosóficas eram precedidos de banquetes, libações e vinho, os comensais alongados em uma espécie de leito. A ascholia — falta de tempo livre laboriosa e lucrativa, era aviltante porque comportava o esquecimento de si”, o não tempo para o autoaprimoramento. Nessa tradição, Sêneca escreveu a seu discípulo Lucílio: “Você conhece ao menos um homem que dê valor ao tempo, a um dia, que sabe que todos os dias ele morre um pouco?”. Dessa forma, o ócio é o reencontro do tempo perdido, aquele que passou sem ser cuidado: “Melhor é estar ocioso que se agitar sem fazer nada”. Usar o tempo a seu favor é vivê-lo para além da preocupação com a sobrevivência, é aprender a estar consigo mesmo, em uma temporalidade livre do negócio, porque apenas no repouso formam-se valores espirituais. De onde a elaboração de uma techné tou biou: “Nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser conseguida sem exercício, não se pode também aprender a arte de viver, a techné tou biou, sem uma askesis (exercício) que deve ser entendida como um exercício de si por si mesmo: eis um dos princípios tradicionais a que muitos pitagóricos, socráticos, cínicos deram uma grande importância. Parece que, entre todas as formas tomadas por este exercício e que comportavam abstinências, memorizações, exames de consciência, meditações, silêncio e escrita, o fato de escrever para si e para o Outro tenha vindo a desempenhar bem mais tarde um papel considerável”.[29] Descanso necessário, ele foi assim formulado por São Tomás de Aquino: “O ócio, o jogo e tudo o que se relaciona com o repouso são coisas agradáveis, pois eliminam a tristeza decorrente do cansaço”. Dada sua natureza finita, o homem não poderia entregar-se ininterruptamente às atividades físicas e intelectuais e, por isso, há um tempo para o descanso e o prazer: “Somos não ociosos para termos ócio”[30]. E sua associação à festa revela que o tempo livre é o contrário do esforço. São Tomás de Aquino escreve: “A virtude consiste no que é um bem, mais do que naquilo que é difícil”[31].

Mas, porque resultados utilitários no conhecimento e na ação estão sujeitos à contingência, saberes incertos e angústia encontram-se na origem do desejo de estabilidade, tranquilidade e inação, pois quem quer que procure a verdade encontra-se em estado de inquietação. O preguiçoso, não. Como escreve Descartes:

[porque o desígnio da busca de uma verdade] é árduo e trabalhoso, certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar dessa sonolência, de medo que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me proporcionarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas[32].

Porque o conhecimento dos fenômenos naturais é inacessível ao homem, o saber da física incerto, nossa inteligência limitada e nossa natureza imperfeita — como o testemunham os desacordos incessantes dos filósofos que aspiram conhecê-los como, mais que tudo, ele é inútil e até mesmo prejudicial se se desvia das verdadeiras questões, aquelas que se perguntam sobre o fim último das coisas, sobre o homem.

Tudo o que dispersa da busca do bem viver é condenado também desde os primórdios da tradição cristã, quando, entre os séculos III e IV, a acídia — preguiça do coração — surgiu como um dos sete vitia capitalia[33]. Caput não significa apenas “cabeça”, pecado que encabeça todos os demais, mas, antes de tudo, é a “fonte” de que decorrem inúmeros desregramentos e extravios. Nesse sentido, Bernard Haring escreve: “A indolência espiritual (a acídia) — o sétimo pecado capital — denomina-se comumente preguiça; mas a tradição teológica não quer dizer preguiça no trabalho ou desejo imoderado de repouso e de prazeres (o que seria a preguiça propriamente dita: pigritia). Trata-se aqui de uma falta de gosto pelas coisas espirituais e de ardor para lutar contra o peso da Terra e se elevar às coisas divinas. Esse torpor espiritual se manifesta de forma extremada na busca febril das coisas terrenas”[34]. A preguiça-acidia[35] é ausência de repouso interior e, assim, uma incapacidade ao ócio, a que se associa o desespero. Tentação dos maus pensamentos, a Idade Média encontra neles os demônios que exercem seu comando sobre as partes fracas de nossa natureza imperfeita, suscetíveis de corrupção, como o estômago pela gula e o sexo pela luxúria. Mal do ânimo, a preguiça-acídia, preguiça-tristeza ou “preguiça do coração” tem poder sobre o mais nobre do homem, o espírito, em virtude da tênue demarcação entre a meditatio e a preguiça, entre a contemplação religiosa e o contemptus mundi. Com efeito, o desprezo do mundo e a insignificância do homem se encontram no Eclesiastes, em que se manifesta a vaidade própria a todo empreendimento humano[36]. Considerada inaptidão a permanecer inativo e com o espírito livre para chegar a Deus, à realidade verdadeira ou à transcendência, a acídia-preguiça[37] é a antítese da vida boa”, é incapacidade à preguiça. Ela é, sobretudo entre os escritores religiosos, “o tédio e o desânimo que se apossam de uma alma impossibilitada de se fixar em alguma coisa e realizar aquelas tarefas às quais devia dedicar-se”[38].

A acídia tem uma história que começa nos desertos de Alexandria e nos mosteiros do Egito. Se a vontade se esvai e o desânimo se apodera dos solitários em suas celas de monge, a disciplina religiosa prevê o socorro espiritual de um superior. Já o anacoreta, que voluntariamente parte para o deserto, não obedece a nenhum superior, família ou sociedade, tampouco a um guia espiritual. Em sua solidão, a cada instante renova sua escolha e seu retiro, permanecendo no deserto quando poderia ajeitar sua despojada bagagem e voltar ao mundo. Lá permanecendo, reafirma sua liberdade. Questão de homens livres, a acídia revela os limites da busca de si mesmo, manifestando-se na instabilitas, esse mal-estar do corpo e tentação de abandonar o lugar em que se encontra o eremita, arrastado pela deriva dos pensamentos[39]. Se logismos é o pensamento, o plural logismoi adquire um sentido pejorativo, pois a eles se sobrepõe a ideia de embaralhamento dos pensamentos, naturalmente bons, do homem, identificados ao demônio que os produz, fazendo o monge cair na tentação de desviar-se de Deus[40]. Enigma da solidão, é difícil avaliar o que impulsiona ao desejo de estar só[41] senão que, não conseguindo cumprir as exigências da vida em sociedade, o solitário escolhe a solidão[42] para, no limite, tornar-se monge e finalmente encontrar a paz. Sofrimento psíquico e dor moral, a acídia faz do deserto um “martírio interiorizado”. Nos Apotegmas de Evágrio lê-se: “O santo abade Antônio, entre as pedras do deserto, foi tomado pelo tédio, em grande obscuridade de pensamentos. Ele diz a Deus: ‘Senhor, eu queria ser salvo, mas os pensamentos não o permitem. Que devo fazer em minha aflição?'”[43].

Acídia é o “mal dos pensamentos” que, sem trégua, são “maus pensamentos”, pensamentos pesados. Por isso, os padres da Igreja investigam seus mecanismos, o que faz do logismos — supputatio, computatio, raciocinium — sinônimo de maus pensamentos e pecado da alma. A acídia é a doença mental dos pensamentos incontroláveis e de suas provações. A essa evagatio mentis, a essa fuga das ideias, a esse lamento, Deus envia um anjo[44] que tece os fios de uma corda, trabalho manual que é o modelo da atividade do santo, que ele deve alternar com orações. Mas fabricação de cestos, trançamento de cordas e tecelagem de junco não combatem a acídia — o trabalho manual é monótona repetição. Recusando essa arte, o acidioso rejeita o humilde tecer, imagem da resignação cristã. Por isso, no capítulo “Da preguiça” da Nau dos insensatos de Sebastian Brant, de 1494, a gravura que representa a acídia não tece nem fia, segurando uma roca mas sem utilizá-la. Fuso e roca encontram-se juntos, na mesma mão, indicando que a obra não se realizará porque a fiandeira é preguiçosa e adormeceu. Estado de desconsolo provindo do interior do próprio homem, a acídia é essa não coincidência do homem consigo e, por isso, “vício do espírito”. A acídia não é tempo livre, pois este só é possível quando o homem faz-se “um” consigo mesmo e, sem conflitos na alma, consente em seu próprio ser, esquecendo as preocupações e entregando-se ao lazer piedoso, semelhante ao dormente que se abandona ao sono justamente para poder dormir[45].

Sono sem repouso, a acídia é instabilidade da alma e ansiedade, o contrário do sono reparador. Sono pesado e culpado, ele se encontra sob os auspícios do “demônio do meio-dia”[46]. Canicular, o daimon mesembrinos[47] é mais forte no verão e, apoderando-se do ânimo, não provoca o sono, ao contrário, persegue o acidioso com pensamentos dolorosos e obsedantes. Não se trata, em verdade, de dormir, mesmo porque o calor é excessivamente intenso. Demônio do meio-dia, abandono da tecelagem dos cestos, dormência ou agitação, a acídia é taedium sive anxietas cordis, desgosto ou inquietude do coração: “Todos os inconvenientes desta doença, o bem-aventurado Davi os experimentou com finura em um único verso, dizendo: ‘minha alma se entorpeceu por causa do desgosto’, isto é, por causa da acídia. Ele diz com justiça que não é o corpo, mas a alma que se entorpeceu”[48]. Servindo-se dos pensamentos, os demônios agitam o logismos, as paixões, provocando os pecados correspondentes: gula, concupiscência, avareza, tristeza, cólera, desânimo (acídia), vanglória e orgulho.[49] Retornando dos desertos de Alexandria, São Jerônimo escreve sobre os solitários. “Há monges em quem a umidade das celas em que se encontram, seus jejuns imoderados, sua aversão à solidão, uma leitura por demais prolongada, os ruídos que dia e noite perturbam a audição fazem-nos cair em melancolia e têm necessidade dos remédios de Hipócrates mais do que de nossos conselhos”[50].

O imaginário moral do Ocidente, no qual o deserto, o mundo e Deus concorriam entre si, perde a acídia e sua majestade de pecado capital ao fim da Idade Média. E, com o desenvolvimento do capitalismo, cujos valores procedem da vida material e do interesse econômico, a acídia é confinada, no laico Século das Luzes, como superstição da “moral religiosa”. Secularizada, a acídia é assimilada à tristeza e torna-se sinônimo de indiferença[51]. Mas essa “preguiça do espírito” é também um torpor que se manifesta nos excessos do Homo faber e sua busca febril de coisas terrenas[52]. Nesse sentido, a preguiça se opõe à acídia, pois ela é seu duplo positivo, a paciência de existir…[53]

É da percepção de um vazio que se arrasta que Pascal constrói seus Pensamentos refletindo sobre os divertissements que preenchem os tempos mortos. Mais preocupado com a “salvação da alma” do que com a ciência natural matematizada que abandona a transcendência, seu Prefácio para o tratado do vazio anuncia um trabalho que jamais foi escrito e que deveria construir um diálogo com as teorias de seus contemporâneos. Nele, porém, não se encontra uma “teoria do vazio”, e sim, mais propriamente, o horror vacui legado da tradição, recusado por Galilei e Descartes na doutrina da ciência, mas acolhido por Pascal como horror ao vazio em sentido existencial e como uma verdade da tradição. Nesse sentido Josef Pieper observa: “Enquanto Descartes nos convida a rejeitar tudo o que não for absolutamente certo, Pascal, ao contrário, nos sugere ficarmos com tudo, enquanto não se tiver a prova cabal de que é falso”[54]. Descartes, diversamente de Pascal, preza o tempo vagaroso e lento, o de permanecer preguiçosamente junto a sua lareira. Na confusão de seus pensamentos, na indeterminação da realidade e da imaginação, Descartes medita sobre o pedaço de cera que acaba de ser retirado da colmeia e, quando aproximado do fogo, provoca o estupor diante de suas metamorfoses. Ao lado do fogo, Descartes reflete também sobre o sonho que de tão realista parece real: sonhar que está acordado. Esses “devaneios que imaginamos quando adormecidos”[55], caprichosos e extravagantes, distinguem-se da realidade incontestável dos pensamentos (cogitationes), pois somos nós que pensamos, mesmo as coisas falsas.

Em meio à angústia das incertezas do sensível, Descartes se permite ficar preguiçoso, desviando-se de qualquer pensar metódico. O pedaço de cera é distração e puro divertimento, pois com tranquilidade ele o vê mudando de forma e cor. O pensamento é, em um primeiro momento, coagitatio, cogitationes são co-agitationes: “O que é a coagitação? Em sentido medieval, a coagitatio designa a desordenada agitação dos fantasmas em nosso espírito. É uma sobreatividade da imaginação, uma hipertrofia da fantasia, ligada à melancólica acídia”[56]. Descartes enfrenta a inquietação interior, a mistura de sensações, imagens e ideias para, depois do estado de confusão mental, de dizer sim ou não, de querer e não querer, alcançar o descanso da mente. Na intimidade bem aquecida de “sua lareira”[57], a preguiça favorece o conhecimento. Próximo do fogo que modifica a cera e o mundo, Descartes afirma que mesmo dormindo é bem ele mesmo quem dorme, vê, ouve e sente o calor do fogo”[58]; mesmo falsos todos os conteúdos do pensamento, dos sonhos e da imaginação, resta de todos uma fonte segura — o eu pensante que não poderia ser falso. O acediasta medieval se transformou em filósofo que não renega a preguiça. Só então Descartes estará preparado para a Ciência. Como escreve Anne Larue: “Não é mais o tempo de cogitar, dormir, sonhar talvez perto do fogo ou ser assaltado por logismoi, mas de afirmar, em novas bases, um novo reino do pensamento”[59].

É a esse lazer despreocupado que o século XIX retornará, em meio ao capitalismo moderno e à proletarização do operário, expropriado de seu saber-fazer e reduzido a mera força de trabalho, desmotivada e sem sentido, a não ser o de prover sua subsistência. Essa é a razão pela qual Paul Lafargue declarava o não senso das lutas operárias de 1848 na cidade de Paris e seu lema do “direito ao trabalho”[60]. A semana dos três oitos — oito horas de trabalho, oito horas de descanso, oito horas de sono — não é senão o otium pervertido em otimização: “Uma estranha loucura”, escreve Lafargue, “dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade […]. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacros santificaram o trabalho […]; homens fracos e desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoou”.

Antecipando Weber em um século, Lafargue encontra na Reforma protestante[61] o espírito do capitalismo “sem espírito”, pois reduz o tempo e o trabalhador a objetos da empresa capitalista. Lafargue anotou:

Os puritanos, pessoas sóbrias e morosas, internalizaram a maldição do trabalho em sentido literal. Quanto mais sofriam com o trabalho, mais acreditavam agradar a Deus. Para eles, o trabalho era meritório. Faziam suas as palavras de Jó: ‘o homem é naturalmente feito para o trabalho como o pássaro para voar’, e do livro III do Gênesis, adiantavam a fórmula: ‘quem não trabalha não come’. Nossa época é, dizem, o século do trabalho; na verdade é o século da dor, da miséria e da corrupção […]. E, no entanto, os filósofos, os economistas burgueses (…), os intelectuais, todos entoaram cantos nauseantes em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho. Ouvindo-os, podia-se crer que a felicidade iria reinar na Terra. […] Acorriam aos séculos passados para vasculhar o pó e a miséria feudais a fim de trazer sombrios contrastes às delicias dos tempos presentes[62].

Conferindo dignidade à preguiça, Lafargue reconhece nela um direito, reavendo a tradição grega e romana, a scholé e o otium, para medir a alienação do presente: “Platão e Aristóteles, pensadores gigantes, (…) desejavam que os cidadãos de suas Repúblicas ideais vivessem no maior lazer, pois, acrescentava Xenofonte, trabalho tira todo o tempo e corn ele não há nenhum tempo livre para a República e para os amigos. Segundo Plutarco, o grande título de Licurgo, mais sábio dos homens, para admiração da posteridade, era ter concedido a ociosidade aos cidadãos da República, proibindo-os de exercer qualquer trabalho”[63]. Porque a preguiça é a condição primeira da liberdade[64], o mito de uma idade de ouro onde impera o ócio acalentou a muitos no século XIX, trazendo de volta os utopistas da Renascença e os contemporâneos que reagem contra o trabalho. Em seu imaginário fantástico, reúnem-se aos protestos camponeses, mais terra a terra, decorrentes do sobretrabalho e de sua miséria. Na França e na Inglaterra, proliferam publicações sobre Le pays des fainéants e Le pays de Cocagne[65]. Nelas se descreve a sociedade ideal com sua abundância de alimentos e bebidas, obtidos sem esforço e preocupação, sem sofrimento e sem nenhum mal. Em contrapartida, lembre-se Lênin, preocupado em atacar o Ancien Régime czarista e intensificar a produtividade do trabalho e a acumulação do capital, quando, em seu pronunciamento ao partido em 22 de março de 1922, declarava guerra à “eterna preguiça dos russos”, referindo-se ao romance Oblomov de Ivan Gontcharov, publicado nos anos 1880 na Rússia[66] e cujo protagonista, de personagem literária, transformou-se em mito nacional.

Oblomov é um “Platão preguiçoso”, cuja posição preferida é estar deitado. Ele é um contemplativo, para quem qualquer locomoção ou mudança no cotidiano constitui uma provação moral. Menos apático do que lúcido, menos desiludido do que clarividente, Oblomov é o romance da procrastinação e dos adiamentos, da recusa de qualquer ação[67]. Lênin o ataca: “Oblomov sempre representou um tipo de vida russo. Ele passava o tempo deitado em sua cama arquitetando planos. Muita água correu desde então. Embora a Rússia tenha passado por três revoluções [a de 1905, a deposição de Kerenski e a Revolução de 1917], ainda existem Oblomovs porque Oblomov era um proprietário de terra mas também um camponês, um camponês mas também um intelectual, um intelectual mas também um operário e um comunista. Basta que nos observemos, basta ver como nos portamos, como trabalhamos nas comissões, para verificarmos que o velho Oblomov ainda está por aqui e que será preciso durante muito tempo lavá-lo, sacudi-lo e esfolá-lo para mudar alguma coisa. Eis a razão pela qual devemos examinar nossa situação atual, sem ilusões”[68]. Não passou muito tempo e Stakhanov, esse Hércules dos trabalhos fabulosos, tornou-se o operário padrão, modelo do revolucionário que não esmorece nunca, o mineiro que extraiu em uma só jornada e sozinho 102 toneladas de carvão, o que deu início, em 1935, ao movimento stakhanovista, que se espalhou por toda a produção industrial.

Oblomov recusa uma vida heroica, sua renúncia é elevação à tranquilidade, ao contentamento e ao repouso. Não adere ao cotidiano agitado de seu tempo[69]. Como meio de informação possui apenas um almanaque que, com os santos do calendário, marca o ritmo de sua existência, sem sobressaltos ou grandes paixões. Aprecia uma boa refeição e uma sesta, devaneando enquanto fuma seu charuto. E se não lhe seduz o luxo, aprecia o conforto; embora seu médico lhe recomende enfaticamente exercícios físicos, não os faz. Vocacionado para a preguiça, sua maior ambição é perseverar em seu ser: “O livro de Gontcharov é uma meditação acerca da sabedoria inventada pelo homem para fazer frente a sua má condição […]. A oblomoveria é uma forma nova de sabedoria de que faz parte a acídia, uma forma de hedonismo alimentar a serviço do sono e uma religiosidade que não o domina, mas que ele domina […]. Aquém do esforço e do cansaço Oblomov considera sempre evitar os extremos. Mesmo no amor, prefere uma viúva já com filhos que uma esposa jovem e aguerrida. Próximo da aurea mediocritas, a sabedoria de Oblomov deseja o justo meio, única dimensão em que o homem pode estabelecer uma vida destinada, de todo jeito, à perda, sem estremecimentos […]. Ele não quer um futuro, não quer o tempo, escolhe a imutabilidade que imita a eternidade prometida […]. O melhor comentário sobre Oblomov é o de guiar-se por Epicuro, para quem a vida perfeita é aquela em que não mais se necessita das coisas cuja aquisição exige esforço […]. Deixar a outros as questões insolúveis do dever, da liberdade, eis a via que ele escolheu, sem ressentimento ou amargura. Um homem não pode fazer muito mais, em sua busca da felicidade, que evitar as situações de sofrimento, em cuja primeira fileira se encontram as paixões […]. As grandes alegrias se pagam caro demais: as ambições intelectuais e os choques afetivos são tão insuportáveis que somente uma sexualidade tranquila e sem tensão, uma alimentação sóbria e regular podem exorcizar. O preguiçoso é um hipersensível que desconfia do mundo”[70].

Privilegiando uma eudaimonia ao alcance do homem, sua felicidade suprime as crises, os grandes feitos teatrais e as tempestades afetivas e políticas. Oblomov é umindolente, aquele que dissipa em si todas as dores. Do preguiçoso o mundo não tem nada a temer, pois a preguiça destrói a própria raiz do excesso e da perdição[71].

O preguiçoso, como o filósofo contemplativo ou o poeta, não participa das artes guerreiras ou dos jogos nas palestras, não compõe discursos sérios, não cumpre os deveres do bom cidadão, não intervém na vida pública. No fundo de sua atitude ‘estoica’, há ceticismo. Sua afasia e apatia resultam da compreensão da finitude do homem e dos limites de nossa inteligência para resolver a totalidade dos problemas do mundo. Sua epoché procede da dúvida, dessa atitude própria a quem é sensível à contingência de tudo que é humano, mau, temporal. Obcecado pela ideia de ser obrigado a remanejar seus domínios, pagar seus impostos e organizar suas perdas, “ele se deita em seu divã, coloca a mão na testa e pensa, e pensa até que, esgotado por este penoso trabalho, ele murmura com boa consciência: ‘já pensei o suficiente por hoje pelo bem comum’[72]. Estado de quietude, a preguiça se diferencia da ociosidade e da desocupação. Na ociosidade pesa o tempo vazio; a inatividade desocupada é tédio do qual se quer escapar, mas que resulta apenas em evasão sem itinerário, ao termo da qual não se encontra um lugar de acolhimento e de repouso. O ocioso sofre o tempo vazio e improdutivo sem o preencher, enquanto o preguiçoso é seu artesão[73].

A modernidade desconhece a preguiça por seu anti-intelectualismo que desacredita todas as tarefas não vinculadas ao paradigma da produção e do controle do tempo. Com efeito, até há pouco, as atividades intelectuais, filosóficas, científicas ou artísticas pertenciam a um domínio privilegiado, em que o trabalho não necessitava ser útil e, em especial, a filosofia escapava do trabalho e de suas leis. Tendo perdido essa prerrogativa, o mundo do trabalho intelectual foi submetido à “figura imperial do trabalhador”. Para Kant, por exemplo, o conhecimento intelectual sendo “exclusivamente discursivo” é “não intuitivo”. Colocar em relação, comparar, distinguir, abstrair é um “esforço do pensamento”, é “atividade”. Por isso, Kant considerou a filosofia e o conhecimento que ela representa — o mais distanciado da percepção sensível — uma forma de trabalho. Em seu ensaio “Sobre um tom superior recentemente tomado em filosofia”(1796), Kant a considera segundo a lei da razão: “Não se adquire um bem senão pelo trabalho”[74]. Desse modo, a filosofia dos românticos, como a de Jacobi, mas também a de Bergson e Schopenhauer, orientando-se pela intuição, não constitui um trabalho, não é uma verdadeira filosofia, como também não o é a de Platão, “Platão é o pai de toda exaltação mística em filosofia”. Quanto à filosofia de Aristóteles, “ela é, ao contrário, um trabalho”[75]. Não por acaso, Kant trata o ato filosófico de “trabalho hercúleo” que encontra na personagem de Hércules, esse herói dos esforços desmedidos, sua legitimação. Porque a “intuição” não “custa nada”, ela é suspeita, não comportando nenhum ganho real em conhecimento, pois, por sua natureza, ela é “fácil” e sem esforço. Nesse sentido, o bem deve ser de natureza difícil e, assim, o critério do bem moral é o esforço da vitória sobre si mesmo. Quanto mais difícil, “maior será o Bem”. Antecipando Kant, Antístenes, do círculo dos frequentadores de Sócrates, não tinha o sentido do culto religioso, do “esplendor das estátuas”, das coisas belas que eram “uma alegria para sempre”. Com desdém “iluminista e racionalista”, dirigia-lhes palavras para mostrar aos passantes que elas eram mudas e nada tinham de divino. Eram-lhe estranhas as musas, pois lhe faltava a capacidade de responder a Eros: “Afrodite, eu a cravaria de flechas se eu a encontrasse”[76]. Construindo a ideia de pensamento como pura atividade, Kant negou o núcleo do conhecimento antigo, seu elemento não ativo e receptivo. Receptivo mas não “passivo”, porque a um só tempo ratio e intelecto: “Para os gregos, como para os grandes pensadores da Idade Média (como Santo Tomás de Aquino), a percepção sensível não é a única que comporta um aspecto receptivo, também no domínio do conhecimento intelectual existe, igualmente, segundo eles, um elemento de acolhimento, um olhar puramente receptivo ou, para dizer com Heráclito, uma ‘escuta da essência das coisas’[77].

A preguiça é a liberdade de fazer ou não fazer. Como escreveu Levinas: “A preguiça não é nem a ociosidade nem o repouso. Ela comporta, como o cansaço, uma atitude com respeito ao ato. Ela não é simples indecisão, um embaraço na escolha. Não decorre de uma falta de deliberação, porque não delibera sobre os fins. Ela se coloca para além da intenção”[78]. Nesse sentido, Bartleby, personagem do romance de Melville, manifesta o vigor do não, com seu gosto pelo anonimato e pela inação. O escriba que não escreve — pois Bartleby é um escrivão — é a imagem da potência passiva que resiste tanto ao coletivo como ao indivíduo, indecidível em sua fórmula concisa “I would prefer not to”. Celebração do nada, seu gesto é profanatório, porque o trabalho é uma “invenção maléfica” e de valorização recente. Por isso, Lafargue observava que os gregos o desprezavam e se deleitavam com os “exercícios corporais e os jogos da inteligência”.

O direito à preguiça não é um combate econômico, mas reivindica o direito de fazer ou não fazer, rompendo com a condição de Homo faber e ingressando no território mais hospitaleiro e feliz do Homo ludens. Como escreve Lafargue: “Num regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo por segundo, haverá espetáculos e representações teatrais”. Quanto ao trabalho, este necessita emancipar-se do maior narcótico do século, a devoção: “Se a classe operária se erguesse com sua força, não para reclamar os Direitos do Homem, que não são senão o direito à exploração capitalista, não para reclamar o direito ao trabalho, que não é senão o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proibisse todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, estremecendo de alegria, sentiria surgir um novo universo”. Se o sono profundo é reconfortante, é por se assemelhar ao repouso divino. No livro de Jó, à noite, Deus dá ao povo bom a alegria, o descanso e os cantos. Insônia, ao contrário, é a impossibilidade do abandono de si, abandono que permite, justamente, dormir[79].

A preguiça como um direito se exerceu no ano de 1968. Nas palavras de Boris Groys: “Tomo como exemplo os anos sessenta, que foram um presente dos deuses. [Em 68] muita gente, em Paris ou na Alemanha, começou a exigir: ‘Queremos fazer alguma coisa sem fazê-la. Queremos

converter o tempo livre em trabalho e o trabalho em tempo livre’ […]. Duchamps disse que no momento em que exibiu seu urinoir sentiu-se mais além do espaço e do tempo. Repetiu, por assim dizer, um ato divino, o ato de criação absoluto mais além do trabalho […]. Existe esse sonho divino: criar sem esforço, como Deus […]. É o sonho eterno do homem”[80]. Essa figuração singular de um deus otiosus que é também um deus criador como sine opera opifex, artesão sem obra e sine propagatione genitore, genitor sem geração[81]. Esse sabbat eterno é a desocupação dos bem-aventurados, estado que desconhece tanto a acídia (desídia) como a carência (indigentia). Preguiça feliz, ela não é nem um fazer, tampouco um não fazer. Nesse sentido, 1968 foi uma exigência dirigida ao céu. E essas súplicas a Deus não significaram outra coisa que esperar um milagre.

Toda cultura é a expectativa de um milagre e a ideia insensata de que o milagre algumas vezes acontece. E essa loucura, essa esperança, põe em movimento toda a história”[82].

Ativa à sua maneira, a preguiça é irmã do sonho. Pois, como afirmou Heráclito: “Aquele que dorme age e colabora também ele ao advento do mundo”[83].

Notas

  1. Em seu O direito à preguiça, Lafargue critica a palavra de ordem dos operários franceses na Revolução de 1848 que reivindicou o “direito ao trabalho”, opondo-lhe a “preguiça heroica” da cultura grega, que desprezava tudo o que os desviasse do ócio e da contemplação. O título de seu livro, bem como as citações de Heródoto, Platão, Xenofonte, Plutarco, Tito Lívio, Cícero, assim como a referência aos escritos de E. Bito sobre a abolição da escravatura, Lafargue os retirou da obra de Christophe Moreau, Du droit à l’oisiveté et l’organisation du travail servile dons les républiques grecques et romaines, que encontrou na biblioteca de seu futuro sogro, Karl Marx. Vale-se ainda de referências a O capital, sem indicar essas fontes. Também o título de sua obra se inspira no livro de Christophe Moreau, mas substitui “direito ao ócio” por “direito à preguiça”, provavelmente para se diferenciar desse autor, que era considerado pela esquerda da época de Lafargue como um “filantropo burguês”, uma vez que havia participado do Consulado na Segunda República, condecorado como acadêmico de renome por Luís Felipe. Cf. Maurice Dommaget, Le droit à la paresse, Paris: Maspero, 1972. 
  2. Emmanuel Levinas, De l’existence et l’existant, Paris: Vrin, 1993, P.34. 
  3. Idem, ibidem, p. 33. 
  4. Idem, ibidem, p. 46. 
  5. Walter Benjamin, “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, Obras Escolhidas I, trad. Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 170. 
  6. No arquivo “Ócio e ociosidade” de suas Passagens, Walter Benjamin aproxima a scholé grega do dândi e do flâneur moderno, do estudante, do poeta e do jogador, personagens que trazem valores de uma civilização passada em meio a uma sociedade que se esforça em destruí-los. Diferenciando ócio e ociosidade, Benjamin contrapõe o “ócio” tradicional à “ociosidade” moderna. Em nota de apresentação das Passagens, Willi Bolle observa: “o ócio tradicional, aristocrático, criativo (o otium dos romanos; o alemão Musse, o francês loisir, o inglês leisure) é confrontado com a ociosidade moderna (respectivamente Mussiggang, oisiveté, idleness). No sistema de valores burguês, baseado no ‘negócio’ (no nec-otium, negação do ócio), o ócio dos antigos e da sociedade aristocrática — isto é, o privilégio de estar livre da obrigação de trabalhar — é visto como algo superado e depreciado como ‘ociosidade’, ou seja, ‘indolência’ e ‘preguiça’. Por outro lado, a ociosidade moderna é um protesto contra a fetichização burguesa do trabalho. Nossa distinção entre ‘ociosidade’ e ‘ócio’ procura reproduzir a diferenciação entre Mussiggang Musse, tentando expressar, ao mesmo tempo, através da afinidade fonética, a dialética da mudança e da continuidade históricas”. (Willi Bolle, in Walter Benjamin, Passagem, trad. Irene Aron e Cleonice Mourão, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 839). 
  7. Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro X , 7,1177 b 4, trad. Daniel Vallandro e G. Bornheim, São Paulo: Abril
    Cultural, 1973, pp. 428 e segs. 
  8. Homero, Ililada, canto VI, v. 146-150, trad. Haroldo de Campos, São Paulo: Arx, 2008, p. 241. 
  9. Friedrich Nietzsche, Le livre du philosophe, trad. Angèle Marietti, ed. bilíngue, Paris: Aubier, 1969, p. 175. 
  10. Aristóteles, Physique, II, 5a-7, trad. A. e Cl. Guillaumont, Paris: Las Belles Lettres, 1971, p. 82. 
  11. Albert Camus, Omito de Sísifo, trad. An Roitman e Pauline Watch, Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 246. 
  12. René Girard desenvolve o tema do desejo, sempre incontentável, segundo a ideia de que todo desejo é sem objeto, por isso inextinguível, como o manifesta o episódio narrado nos Evangelhos acerca do rei Herodes, da rainha Herodíades e de Salomé. Tendo se casado com a mulher de seu irmão, Herodes é interpelado por João Batista que lhe diz não dever ele se casar com a própria cunhada. Herodíades, agora sua esposa, para se vingar de João Batista, vale-se da filha Salomé para enfeitiçar o rei. Dançarina envolvente, quando ela termina o bailado de “dez véus”, o rei e os convivas se encontram fascinados. Herodes diz que lhe concederá o que ela pedir. Ao que ela se dirige à mãe Herodíades para lhe perguntar o que ela deve desejar. É o desejo da mãe que preenche o seu desejo; o desejo é sempre o desejo de um outro. É então requisitada a “cabeça de João Batista”. (Cf. René Girard, Le bouc emissaire, Paris: Flammarion, 0986). 
  13. Os romanos recepcionaram a tradição grega, mas desconfiavam do “modo grego de viver”, da contemplação, preferindo o “ócio com dignidade”, laborioso e aplicado ao estudo, à leitura, à conversação, à correspondência epistolar. Já o mundo cristão reabilitará o tempo dedicado à meditação e ao “divino”, à especulação desinteressada com respeito à vida material imediata. 
  14. Emmanuel Levinas, op. cit., pp. 51 e segs. 
  15. Charles Baudelaire, “Mon coeur mis à nu”, Paris: Gallimard, 1975, p. 682. 
  16. No ensaio “Les problèmes des loisirs en Grèce”, Paul Demont explica as transformações pelas quais passa o termo scholé, da ideia de jogo à sua acepção de luxo supremo, de dedicação ao estudo, ao autoconhecimento e ao conhecimento dos outros para o autoaperfeiçoamento, a autarquia espiritual e a virtude. Seu sentido variou no tempo. Nas tragédias, como a Fedra de Euripides, há dois gêneros de indivíduos: os que consagram a vida ao repouso e ao ócio e os que agem. A contração de seu prefixo a-ergia—argia confere-lhe um tom pejorativo: é preguiça e inércia, é a causa do fracasso dos mortais por significar ora passividade, o não fazer, outra ação. A culpa trágica — a hamartia — provém tanto de um crime cometido quanto de permanecer passivo se a situação exige reação imediata, uma vez que não há como decidir sobre a situação na qual há que agir ou não agir; scholé associa-se por vezes a hedoné, ao prazer, e, nesse caso, o lazer é um prazer perigoso que se liga ao aidos, ao pudor, à vergonha em face da estima pública. Em Esquilo a scholé é o tempo livre mas no qual a passividade é forçada e perigosa, como no drama Agamêmnon, em que Cliptemnestra não quer perder o tempo de agir, isto é, o tempo para se vingar do marido, recusando, por isso, o lazer que seria “perda de tempo”. Em Heródoto, a scholé é o lazer ligado ao repouso, a passividade útil para a preparação de atos importantes. Na Antígona de Sófocles, scholé associa-se à ideia de atraso, de retardamento, de hesitação, um tempo que se ganha ou se perde quando se age mais lentamente que de costume. Para o soldado que anuncia a Creonte a violação de seu decreto e a consequente pena de morte, a scholé é o tempo que desperta a cólera do rei contra ele que traz a notícia, e é o tempo que lhe resta para viver antes que a cólera do rei recaia sobre ele. Ajax, por sua vez, pouco antes de seu suicídio, utiliza a scholé como o tempo em que se discute; é o impedimento para agir com prontidão e corretamente. No coro do Édipo Rei, a scholé é um período durante o qual nada acontece; mas se trata de uma calma ameaçadora, que não é pois nem lazer nem repouso tranquilo e despreocupado — como o silêncio que se instala antes de uma tempestade. A scholé engrandece atos funestos. Nas tragédias As Troianas, Medeia Ifigênia em Tàuride, scholé é o tempo de maus pressentimentos, marcando uma pausa ou um atraso no desenvolvimento da ação trágica, sendo mau augúrio, o ponto de calmaria antes do desenlace inevitável. Quem se deixa tomar por esse lazer está condenado ao fracasso. Na Fedra, o tempo que poderia ser o de uma vida agradável é o que serve para destruir a vida humana, como quando Fedra usa a scholé pouco antes de suicidar-se. Não importa o ato ou o acontecimento, as alegrias da vida podem se converter, de um momento a outro, em falta trágica, pois nunca se está ao abrigo do desastre em parte alguma e em tempo algum. Os momentos os mais agradáveis, a scholé, podem ser a origem da total catástrofe. Assim, na Fedra, Teseu age impulsivamente, Hipólito não age e Fedra algumas vezes age, outras permanece passiva. Em todos os casos, no entanto, a vida está votada ao fracasso porque o homem age mal. Não que lhe falte racionalidade — a faculdade de pensar corretamente e refletir é dada a muitos —, mas não dispomos de critérios certos e seguros para a ação. Para Platão, a aergia é, por vezes, o repouso merecido, outras a preguiça que prejudica a vida. (Cf. O banquete, 19Ib.) Na tragédia, a scholé é o lazer negligente, que perde o kairos, o momento apropriado da ação, o instante decisivo, antes do qual nada aconteceu e depois do qual tudo estará perdido. (Cf. Vernant, Mito e tragédia na Grécia Antiga; M. Moutospoulos,Variations sur le thème du Kairos de Socrate à Denys, Paris: Vrin, 2002; Karsai Gyorgy, “Les loisirs de Phèdre”, Les loisirs et l’héritage de la culture classique. Actes du _Tie’ Colloque de l’Association Guillaume Budé, ed. por J. M. André, J. Daniel e Paul Dumont, 1993, pp. 27-31). 
  17. Bailly, Dictionnaire grec-français, Paris: Hachette, 1950. 
  18. “Nas Leis, 82oc, o termo scholé é aplicado às discussões científicas, por oposição aos jogos e brincadeiras.” (Joaquim Brasil Fontes, Eros tecelão de mitos, São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 29). 
  19. Joaquim Brasil Fontes, op. cit., p. 30. Eis por que o preguiçoso vem a ser o verdadeiro leitor, aquele que lê por prazer e não por dever. Os Cahiers Céline de 1976 publicaram uma matéria em que o entrevistado diz: “Tenho uma biblioteca só minha, mas não a recomendo. Eu me mexo muito durante o dia e à noite gosto de descansar no meu canto com meus livros. É meu refúgio. […]. Há livros de todo tipo, mas, se você for abri-los, vai se espantar. Estão todos eles incompletos, alguns só guardam dentro do encadernamento algumas poucas páginas. Sou de opinião que se deve fazer com comodidade o que se faz todos os dias; então eu leio de tesoura na mão, desculpe, cortando tudo o que não me agrada. Tenho assim leituras que nunca me entediam. Do Homem dos lobos, de Freud, conservei dez páginas, um pouco menos de Viagem ao fundo da noite [de Celine]. De Corneille, Polieto inteiro e uma parte do Cid. De meu Racine não suprimi quase nada. Guardei de Baudelaire uns duzentos versos e de Victor Hugo um pouco menos. De La Bruyère, o capítulo ‘Do coração’; de Saint Evremont, a conversação do padre Canaye com o marechal de Hocquincourt. De madame Sevigné, as cartas sobre o processo de Fouquet; de Proust, o jantar na casa da duquesa de Guermantes; a ‘manhã de Paris’ de A prisioneira”. Na linhagem de Montaigne, que lia “descosidamente” (à pièces décousues), a leitura que excede o prazer resulta em fadiga. Em seus Ensaios, Montaigne anotou: “quanto a mim só aprecio os livros prazerosos e fáceis, que me distraem, cuja leitura é agradável, ou então os que me consolam e me fornecem regras para orientar a vida”. Seu “método” de escrita era ainda por “saltos e cambalhotas”(à sauts et à gambade). Confessa não respeitar nem mesmo a questão anunciada no título do capítulo e, de um ensaio a outro, frequentemente se contradiz. Na verdade, Montaigne não se contradiz propriamente como também não se ofende com leitores flâneurs que só passeiam com ele por algum tempo e, se encontram outra leitura que os contente mais, abandonam seus escritos. Diletante, Montaigne simpatiza com os diletantes. 
  20. Cf. J. Huizinga, Homo Ludens, trad. João Paulo Monteiro, São Paulo: Perspectiva, 2010. 
  21. Cf. Platão, Sofista, 232 a. 
  22. Cf. Platão, Parmênides, 137b. 
  23. Cf. Aristóteles, Poética, 1447 b. 
  24. Platão, Protágoras, 384 b. Na etimologia platônica, Prometeu é aquele que “pensa antes”, Epimeteu aquele que “pensa depois”, quer dizer, imprevidente. Epimeteu se dá conta da má distribuição dos recursos para a sobrevivência do homem quando estes se esgotam nos outros animais, tudo faltando ao homem. 
  25. Platão, Les Lois, OC, vol. XI, trad. Édouard des Places, Paris: Belles Lettres, 1976. 
  26. J. Huizinga, Homo Ludens, op. cit., pp. 180-181. A recreação mental (diagogé) requer que se seja educado para ela, mas não em nome do trabalho e sim em nome dela própria. Nesse sentido, a Paideia, a educação, a cultura não eram algo de útil ou necessário, como também não eram o ler e o escrever, mas servem todos para ocupar bem o tempo livre (idem, p. 180). 
  27. Na Política, Aristóteles observa que as crianças ainda não são capazes de diagogé — de recreação mental e de serem artistas —, porque, sendo um fim último, a diagogé constitui uma perfeição e a perfeição é inacessível ao que é ainda incompleto, imperfeito, inacabado (Política, VIII, 1339 A, 29). 
  28. Platão, Les Lois, op. cit. A proximidade entre jogo e jogo de criança — paidiá — influiu para sua substituição por palavras de tratamento mais precisas e formas mais elevadas de jogo que são o agon e a competição. J.Huizinga observa que tanto Platão como Aristóteles refutavam os argumentos dos sofistas justamente por considerá-los merecedores de atenção e de refutação, já que à época o pensamento filosófico estava ainda próximo da esfera lúdica arcaica, momento em que a filosofia tinha como ponto de partida o jogo de enigmas religioso, ao mesmo tempo ritual sagrado e divertimento festivo. Em sua forma mais elevada, o lúdico produziu a religião e a filosofia, o pensamento mítico e o dos pré-socráticos, em suas modalidades consideradas inferiores ou não nobres, a habilidade sofística e o engenho intelectual, sem haver distinção absoluta entre ambos os lados. (Cf. J. Huizinga, op. cit., pp. 168 e segs.). 
  29. Michel Foucault, “L’Écriture de Soi”, Dits et Écrits, Paris: Gallimard, 2001, p. 0236. A scholé grega, fundamento da cultura no Ocidente, tem seus sentidos na própria memória dos idiomas. Schlolé, schola, Schule, school, escola, que hoje designam lugares de formação e instrução, significavam, em suas origens, lazer. Escola não quer dizer escola, mas “tempo livre”, do qual uma das modalidades é a preguiça, envolvendo o repouso e a estabilidade, a negação do que é laborioso ou penoso. 
  30. Aristóteles, Ethique à Nicomaque, Livre X, trad. J. Tricot, Paris: Vrin, 1990, P. 232. 
  31. Santo Tomás de Aquino, Suma teológica, II, H, questão 123 a, 12ª ed, Paris: Cerf, 1985, p. 3. 
  32. René Descartes, “Primeira meditação”, Meditações metafísicas, trad. J.Guinsburg e Bento Prado Jr., São Paulo: Abril, 1973, P. 97. 
  33. No século XIII os pecados capitais recebem sua caracterização duradoura: orgulho, inveja, avareza, preguiça, cólera, luxúria e gula. Não por acaso, houve a condenação de Adão e Eva, o consumo da maçã proibida sendo o primeiro ato de gula. A acídia constitui um oitavo pecado. 
  34. Bernard Haring, La loi du Christ, Paris: Desdée, 1955, p. 32. 
  35. Os gregos condenavam a aergia — a preguiça — por esta levar o inativo à mendicância e à miséria. 
  36. A palavra “hebel”, traduzida na tradição como “vaidade”, não seria um bom termo, uma vez que “vaidade” contém um juízo de valor, ausente do texto bíblico. O original diz “fumaça”, “vapor”, “sopro”: “fumaça das fumaças, tudo é fumaça”. O pensamento da vanidade e da evanescência de tudo que existe — bens mundanos, saberes, prazeres sensuais — inspirou toda a iconografia dos séculos XVI e XVII, com seus espelhos, crânios, esqueletos, ampulhetas, vermes, moscas, candelabros, velas, naturezas-mortas, manifestando a precariedade da vida e a onipotência da morte. 
  37. A etimologia pode aqui ser esclarecedora. Do grego a-kedia, há o privativo “a” e o verbo kedo que, em sentido ativo, vem a ser “lesar”, “ferir”, “perturbar”. Em sua voz média, reflexiva, kedo significa “preocupar-se com”, “ser inquieto”, “cuidar de”, como em Homero. No Dicionário de Chantraine lê-se: “Em suas formas mais raras, o verbo é utilizado no contexto das cerimônias fúnebres: ocupar-se com os funerais”. Segundo Jean-Pierre Vernant, “a aikidia (em Homero, aeikeie) é a ação de aikizein, de ultrajar o cadáver”. (Vernant, L’individu, la mort, l’amour: soi-même et l’autre en Grèce ancienne, Paris: Gallimard, 1996.) Kedos é cuidado, luto, honras prestadas a um morto ao qual se está unido por aliança, parentesco. Akédia torna-se indiferença, lassidão. Tem-se também akedos: sem preocupação, sem cuidar de, negligenciado, aquele de quem não nos ocupamos. Outros derivados: kedeios, amado, que cuida de. Akédia é um termo menor do grego tardio, pouco usado, encontrado em Empédocles, Hipócrates, Luciano. Sua conotação é a indiferença e a negligência. Cícero a utiliza em uma carta a Atticus: Akedia tua me movet, etis scribis nihil esse: espécie de inércia intelectual diante de uma decisão a ser tomada. A raiz do verbo ked engloba e recobre o conjunto da dimensão da vida e da morte. A ênfase é claramente o cuidado, o ‘preocupar-se com’. “Nós nos preocupamos porque amamos o vivo ou se amou o morto”. (Cf. Lucrèce Luciani-Zidane, L’Acédie: Le vice de forme du Christianisme. De Saint Paul à Lacan, Paris: Cerf, 2009, P. 29). No Dicionário de Psiquiatria de Jacques Postel (Larousse, 2003), a acídia é “depressão que se transforma em uma aversão pela vida, uma indiferença afetiva, é inibição e mesmo torpor considerado pela teologia da Idade Média como um pecado, pois voluntariamente sustentado por um sujeito. Incapacidade de investimento afetivo, a acídia é a impossibilidade de amar. A evolução do termo da Idade Média até hoje oscila entre o pecado e a patologia, como uma tristeza marcada pelo desânimo, por vezes cólera, descuido completo com a ação, um desprezo do mundo, da vida e das alegrias espirituais, ódio que ofende o Criador. Por isso, em larga medida, a acídia prefigura as depressões modernas. A acídia-tristitia desaparece da cultura até o século XIX, quando retorna sob a forma do tédio e da monotonia no mundo contemporâneo, tal como compreendidos, entre outros, por Baudelaire e Benjamin. (Cf. Charles Baudelaire, Spleen de Paris: pequenos poemas em prosa, trad. Leda Tenório da Motta, Rio de Janeiro: Imago, 1995; Walter Benjamin, Origens do drama barroco alemão do século xvll, trad. Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1983; e Walter Benjamin, Passagens, arquivo “Baudelaire” e “Eterno Retorno”, trad. Irene Aron e Cleonice Mourão, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006). 
  38. Cf. Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique, Paris: Bauchesne, 1937, t. Ip. 166. 
  39. Para Orígenes, na Alexandria do século in, os logismoi — a inconstância dos pensamentos — são “a fonte e princípio de todos os pecados em que se originam os maus pensamentos (logismoi)”. 
  40. Logismos é pensamento no sentido do cálculo e de consideração, tomando, com os estoicos, um significado ético, para quem ele designa a função mais elevada da alma. Mas logismoi, na Bíblia dos Setenta, significa literalmente “maus pensamentos”. Evágrio Pôntico, ao final do século iv, acrescenta-lhe um traço pejorativo, “demonológico”, adotado pela literatura ascética do Oriente e do Ocidente. 
  41. Em alguns, o motivo é inconfessável — criminosos foragidos da Justiça ou os mais ricos que se escondem do fisco; outros desejam novas aventuras, outros têm “sede de Absoluto”. 
  42. Alguns autores, como Peter Brown, lembram a difícil condição social das aldeias do Egito coopta, núcleo do movimento ascético, evidenciando as tensões no seu meio social e uma crise da solidariedade e dos valores da vida em comum. Camponeses rudes e violentos, que vivem em proximidade forçada uns dos outros, utilizando um mesmo rio, matam-se por nada, tanto lhes são pesados os laços comunitários. Nesse horizonte, cresce o prestígio dos anacoretas, com seu modo de vida autárquico, absolutamente independente do mundo externo e do meio em que viviam. 
  43. Sentences des Pères du désert, trad. Jean-Claude Guy, Paris: Ed. du Scud, 1976, p. 13. 
  44. Essa representação do anjo tecelão se encontra em praticamente todas as imagens da melancolia a partir da Idade Média. Com Santo Tomás de Aquino, no século XIII, a acídia assume um sentido mais espiritual: é afastamento da alma com respeito ao bem mais valioso, o divino bem, bem que entristece acidioso em vez de provê-lo de alegria e contentamento. 
  45. Porque o dia se arrasta e parece insuportavelmente longo, o monge se desespera de o sol seguir seu curso, mostrando intensa agitação, andando de cá para lá em sua cela; ao menor ruído sobressalta-se e ao mínimo ranger de porta abandona o lugar onde se encontra; movimenta-se sem parar e se escuta alguma voz vai prontamente olhar pela janela. No zênite, o sol provoca entorpecimento e furor contra a contemplação e o desprezo da caridade. Esgotado e infeliz, o solitário acaba por dormir. Sono culpado porque o religioso deveria ler o livro sagrado que tem com ele e, em vez disso, mal olha as imagens ou as palavras, adormecendo onde estiver, recostado em qualquer parede ou inclinado na mesa de leitura. Sono, preguiça e sono culpado compõem a cena primitiva da acídia no Jardim das Oliveiras. Com efeito, os três evangelistas — Lucas, Mateus e Marcos — relatam o mesmo episódio dos apóstolos adormecidos: “Chegados em um lugar denominado Getsêmani, [Jesus] diz a seus discípulos: ‘Sentem-se aqui enquanto eu faço minhas orações’. E ele levou Pedro, Tiago e João com ele e começou a ficar angustiado e a sentir medo. E ele lhes disse: ‘Minha alma está triste e pesada demais. Fiquem aqui, velando’. E, tendo se adiantado um pouco, ele se prostrava na terra e rezava para que aquela hora passasse longe dele. E dizia: ‘Pai, afasta de mim esse cálice’ […]. E [Jesus] volta e os encontra adormecidos e diz a Pedro: ‘Simão, você está dormindo! Você não teve forças de velar por uma hora! Fique acordado para não cair em tentação, o espírito é ardente mas a carne é fraca’. E, mais uma vez, indo embora para rezar ele disse as mesmas palavras. E, de retorno, ele os encontrou de novo dormindo pois seus olhos ficaram pesados e eles não sabiam o que responder. E, vindo uma terceira vez, [Jesus] lhes disse: Durmam agora e descansem em paz. Cristo aprova, por fim, os apóstolos adormecidos, sono de descanso da tristeza. 
  46. Originário do folclore hebraico, o demônio do meio-dia é Queteb, que surpreende na hora da sesta, representado como uma bola de pelos e escamas que rola até os pés do anacoreta quando o sol se encontra em seu ponto mais alto no céu, prostrando-o no chão de terra. 
  47. Encontra-se no Fedro de Platão uma referência ao “demônio do meio-dia”, diálogo em que Sócrates discorre sobre o perigo que assombra o meio-dia, quando é ensurdecedor o canto das cigarras — e o torpor do sono. Quando o comum dos mortais se entrega à sesta, o filósofo não deve dormir, pois o meio-dia e o sono são fatais ao pensamento, são a sonolência da razão. O filósofo permanece desperto enquanto os outros dormem. 
  48. Evágrio escreve: “o demônio da acídia, que é também denominado demônio do meio-dia, é o mais poderoso de todos. […] Primeiramente ele faz com que o sol pareça vagaroso ou imóvel e que, assim, o dia pareça ter cinquenta horas. Em seguida força o monge a ficar com os olhos fixos nas janelas, a se precipitar para fora de sua cela, a ficar observando o sol para ver se ainda demora a nona hora e a olhar daqui e dali”. (Cf. Evagre le Pontique, Les leçons d’un contemplat( Traité de e’oraison d’Evagre le Pontique, trad. I. Housherr, Paris: Baluchesno, 1971, p. 92). A incúria (akedia, falta de cuidado) do eremita que negligencia Deus nos desertos ganha os monges nos mosteiros e, em seguida, os laicos, pois espreita todos que se atormentam com a salvação. A impossibilidade de fixar a atenção, a dificuldade em permanecer onde se encontra, de estar consigo mesmo, é a angústia do meio-dia, hora fatal, a da sombra mais curta. Na confusão dos ponteiros do relógio desaparece a diacronia, o que imobiliza, simultaneamente, o tempo e a alma. Dormir é, agora, falta de coragem diante do tédio e esforço de distração. A acídia é a angústia da espera. 
  49. Reclusos nos mosteiros ou solitários nos desertos, os demônios atacam também o corpo dos “servos de Deus”, como os que arrastam Santo Antão pela barba, enquanto seus pensamentos, que deveriam elevá-lo a Deus, são de inquietação, “lentidão e preguiça”. Sob o sol calcinante do deserto que abrasou sua pele e queimou seu corpo, traz consigo, na memória, a fornalha na qual os monges em crise de acídia deliram. Santo do fogo, suas tentações se inscrevem na pele com erupções e feridas. Ardor também espiritual que não está longe do fanatismo, a acídia, esse desejo sem objeto, impele o santo a aprofundar-se cada vez mais em seu deserto interior, na tortura íntima nascida dessa ausência e dessa falta. Os gritos desesperados dos monges luxuriosos, tanto mais dilacerantes quanto sem qualquer objeto para saciá-los, são o testemunho de sua consciência infeliz. O santo que flutua no quadro de Grunewald desprende-se do solo, devastado por quimeras e pesadelos. Nos delírios da razão, o excesso de cogitatio engendra os monstros do erotismo, fazendo sofrer as provações das chamas. Emblema da luta contra o desejo erótico e a luxúria imaginária, na representação de Bosch, Santo Antônio é arrebatado por uma linha oblíqua invisível, rendendo-se à proliferação dos monstros, miméticos de seus próprios pensamentos. 
  50. Carta CXXV, parágr. 16, in Patrologie Latine, t. XLIX, col. 359, apud Anne Larue, “L’Autre mélancolie: acedia ou les chambres de l’esprit”, Paris: Hermann-Éditeurs des Sciences et des Arts, 2001. 
  51. É sob essa forma que ela reaparece no Ocidente com Hugues de Saint-Victor, Guillaume Peyraut e Santo Tomás de Aquino, depois que Gregório, o Grande, a retirou da lista dos pecados capitais. 
  52. Cf. Bernard Haring, op. cit. , p. 32. 
  53. Cf. Natalie Depraz, Les corps glorieux: phénoménologie pratique de la Philocalie, des Pères du désert et des Pères de l’Église, Paris: Peters, 2008. A acídia foi, na Idade Média, tanto um fenômeno moral ligado à teologia e ao pecado do orgulho, como um fenômeno patológico vinculado à medicina dos humores. 
  54. J. Pieper, Le concept de tradition, trad. Claire Champollion, Genebra: Ad Solem, 2008, p. 42. 
  55. René Descartes, Discurso do método, trad. Jacob Guinsburg, São Paulo: Abril, 1973. É onde aparece pela primeira vez a referência ao sonho e ao mundo sensível, anterior às Meditações metafísicas. 
  56. Jean-Baptiste Bom, La vie sexuelle d’Emmanuel Kant, Paris: Mille et Une Nuits, 1999, p. 56. 
  57. Cf. René Descartes, “Segunda meditação”, Meditações metafísicas, op. ,cit. 
  58. At certe videre videor, audire, calescere. Hoc falsum esse non potest. 
  59. Anne Larue, op. cit., p. 88. 
  60. Ver nota s. 
  61. Paul Lafargue, O direito à preguiça, cap. 3 e 4, trad. Luciano Vieira Machado, São Paulo: Nova Alexandria, 2000, p. 57. “Quem não trabalha não come” viria a ser a palavra de ordem da futura Revolução Russa de 1917, nos anos do “comunismo de guerra” (1917 a 1920) Cf. Maurício Tragtemberg, A Revolução Russa, São Paulo, Edunesp, 2010. 
  62. Idem, ibidem, op. cit. 
  63. Paul tafargue interroga o que determinou o fim dessa tradição para instalar o capitalismo como uma nova forma de religião. Porque a preguiça é crítica do presente anticontemplativo, também Benjamin analisa a Paris de Baudelaire, encontrando no flâneur parisiense e no dândi elegante os herdeiros dos antigos. Ociosos, deixam-se levar pela multidão e pelo “ritmo das tartarugas”: “havia (nessa época) o passante que se perde na multidão, mas também o flâneur, que precisa do espaço livre e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim contra a divisão do trabalho. L.] Por algum tempo, por volta de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias. De bom grado o flâneur deixava que elas lhe prescrevessem o ritmo do caminhar”. 
  64. Kazimir Malevitch observa que a luta pelo socialismo tem o sentido de mudar as relações de produção para instituir o direito à preguiça. Cf. La Paresse comme vérité effective de l’homme, trad. Régis Gayraud, Paris: Alia, 2007. 
  65. Lembre-se que, no século XVI, Rabelais inscreve, na entrada da Abadia de Telème, onde cada um somente trabalha no que quer, a regra: “Faça o que você quiser”. 
  66. Período de convulsões sociais que anunciam os niilistas russos e o terrorismo contra o Estado czarista. 
  67. Ivan Gontcharov pertence à geração que viveu a crise que se seguiu às invasões napoleônicas na Rússia e ao ataque dos exércitos czaristas à França, época de mobilizações sociais e mudanças políticas, com o fim da servidão na Rússia e a burguesia começando a se constituir como classe de substituição à nobreza. Gontcharov morre em 1891, ano do nascimento de Lênin. 
  68. Conferência ao partido em 22 de março de 1922. Dois anos mais tarde, em 1924, visitando Moscou, Walter Benjamin se confrontava com uma sociedade convocada em permanência para a planificação e racionalização, mas que, simultaneamente, se vê constrangida a conviver com a preguiça: “Todos os cidadãos de Moscou têm seus dias ocupados até as bordas. A qualquer hora se convocam seções e comissões nas oficinas, clubes, fábricas; muitas vezes não contam com um espaço próprio e se reúnem em redações ruidosas, nas mesas do restaurante de uma fábrica […]. Nada se passa como estava planejado e era de se esperar […]. Sob a direção de seu diretor Gastieff, o instituto sindical para a ciência do trabalho realizou uma campanha para promover a pontualidade. Desde então, muitos relojoeiros se radicaram em Moscou. Seguindo costumes medievais e gremiais, instalam-se todos em algumas poucas ruas […]. ‘O tempo é dinheiro’: a esta frase assombrosa recorre-se nos proclamas à autoridade de Lênin. Mas a sensibilidade dos russos é muito alheia ao tema. Distraem-se com qualquer coisa, os minutos são a aguardente barata que nunca os sacia, estão embriagados de tempo. Se em alguma rua está-se filmando alguma cena, esquecem a que aspiram e para onde iam, ficam horas acompanhando a filmagem e chegam perturbados a suas fábricas (…). Um dia, preciso que me acordem às sete da manhã. Meu pedido desencadeia o seguinte monólogo shakespeariano do schwejzar (é como se chamam os empregados): ‘Se lembrarmos, vamos acordá-lo, mas se não nos recordarmos, então não vamos chamá-lo. Na verdade, em geral nos lembramos, então acordamos as pessoas. Mas, logicamente, às vezes esquecemos, quando não pensamos nisso. Então não acordamos. É que não estamos obrigados a isso, mas se nos recordamos a tempo então o fazemos de todo jeito. A que horas o senhor quer ser acordado? Às sete? Então vamos anotar. O senhor veja, ponho o papelzinho ali, aí qualquer um vai encontrá-lo. Logicamente se não o encontra não irá chamá-lo. Mas, no geral, acordamos as pessoas.’ Pode-se chegar a ouvir dez, vinte, trinta vezes como resposta e podem transcorrer horas, dias ou semanas até que o prometido se cumpra. Raramente se ouve a palavra ‘não’. A resposta negativa fica nas mãos do tempo. Por isso, as catástrofes temporais, os choques temporais estão na ordem do dia como a remonté. Enriquecem muitíssimo as horas, voltam esgotados todos os dias, convertem cada vida em um instante”. (Walter Benjamin, Diário de Moscou, trad. Hildegaard Herbold, São Paulo: Companhia das Letras, 1989). Acrescente-se que, para Lênin e os revolucionários, a preguiça é contrarrevolucionária porque ao preguiçoso não apraz a ação. Diferentemente da luta entre as classes, ele não luta. Por isso, à luz das filosofias da ação, o preguiçoso incomoda, como o filósofo à cidade antiga. Pierre Hadot anota que, “dotado de notáveis capacidades intelectuais, o filósofo de nada vale no campo militar porque suas virtudes são extremamente perigosas em uma guerra. De fato, a calma, a simplicidade e a misericórdia na guerra não apenas não servem de nada, como levam irremediavelmente à derrota. Quem combate não deve ter escrúpulos morais porque o inimigo não os terá. Por isso não basta a coragem, mas deve-se estar igualmente pronto à mentira e à traição”. (Pierre Hadot, Qu’est-ce que la philosophie antique?, Paris: Gallimard, 1995). 
  69. Há um fundamento cético na atitude de Oblomov, próxima à filosofia como modo de vida. Apatia, ataraxia e afonia estão em Barthes, em O neutro. (Cf. Leda Tenório Motta, Rolan Barthes: uma biografia intelectual, São Paulo: Iluminuras/Fapesp, 2011; Anne Buffault, L’Eclipse de la sensibilité: éléments d’une histoire de l’indifférence, Lyon: Parangon, 2009). 
  70. Pierre Cahné, introdução a Oblomov de Gontcharov, Paris: Folio, Gallimard, 2007, pp. 25-27. 
  71. Na tradição crítica do pensamento libertino, La Mothe Le Vayer, no século XVII, observava em tom pirroniano: “O ócio, estimado muito honesto entre os trácios do tempo de Heráclito, ainda hoje proficiente em grande parte da nobreza da Europa, era um crime punido com a morte pela lei de Amaris, que, segundo Solon, a fez passar dos egípcios aos atenienses”. Para ele, não há nada mais despropositado que os mais ativos: aqueles tachados de preguiçosos são normalmente mais prudentes. Por isso, La Mothe Le Vayer termina suas considerações invocando os deuses dos antigos e o Deus de Epicuro, que dão lições. “E os judeus não repetiam todos os dias que seu Messias era por demais preguiçoso para vir e reconstruir o Templo do Senhor em sua primeira dignidade e esplendor? Não são todos que têm a crendice de que a preguiça seja um vício, pois ela se aloja no mais alto do céu”. (François La Mothe Le Vayer, Dialogues faits à l’imitation des anciens, Paris: Grasset, 1988, pp. 51 e 53). 
  72. Cf. op. cit., p. io8. 
  73. Embora Levinas considere a preguiça um “cansaço de existir”, referindo-a a um sentimento trágico da existência, suas análises sobre o cansaço e o vazio explicitam as significações do tempo da não ação. Nesse âmbito, Levinas estabelece uma diferença entre o “vazio habitado” do preguiçoso e aquele próprio ao desocupado inativo, como ruínas se diferenciam de um teatro vazio: “um templo desativado”, escreve Levinas, “é ainda habitado por seu Deus; uma antiga casa abandonada ainda está assombrada pelos fantasmas dos que nela viveram. Mas um teatro vazio é terrivelmente deserto. Pode-se sentir a presença de Sarah Bernhardt […] que nele atuou, mas Pedra ou Cyrano de Bergerac nada deixaram de seu desespero ou tristeza. Dissiparam-se como nuvens rarefeitas que se misturam indiferentemente umas às outras, trazendo a marca do mesmo nada que constitui a atmosfera mais essencial do teatro finda a apresentação”. Essa é a razão pela qual habitar o tempo livre, scholé, ócio ou preguiça, sempre necessitou toda uma educação. Cf. Aristóteles, Política; Cícero, Dos Deveres, entre outros. 
  74. Immanuel Kant, “Sobre um tom recentemente…”, Oeuvres Philosophiques, trad. Alain Renault, v. in, 1986, pp. 395431
  75. Idem, ibidem, p. 4.36. 
  76. Segundo Clemente de Alexandria, Les Stromates, II, cap. 20, trad. Mondésert, Paris: Cerf, 1954. 
  77. J. Pieper, Le loisir, fondement de la culture, trad. Pierre Blanc, Genebra: Ad Solem, 2007, p. 26. 
  78. Emmanuel Levinas, De l’Existence à l’existant, Paris: Vrin, 1994. 
  79. Boris Groys, Políticas de la inmortalidad, trad. Graçiela Calderón, Buenos Aires /Madri: Katz, 2008, pp. 131-132. 
  80. Idem, ibidem. O desaparecimento do ideário da contemplação se torna mais explícito a partir de Descartes, quando o pensamento no Ocidente perde, de maneira geral, a dimensão “angélica” do mundo, a contemplação. Com efeito, na angeologia medieval os anjos são “testemunhas privilegiadas”, são “a irradiação contemplativa da obra de Deus”: “Clemente (Eclogae propheticae, 56) reconhece nisso a função essencial do estado angélico, o estar em repouso (anápausis) junto ao Trono divino, recolhido na contemplação de Deus […]. Primeiros seres criados, os anjos imitam a contemplatividade do Incriado, considerando, ao mesmo tempo, a obra e seu autor, mais exatamente, considerando a obra em sua origem […]. Por sua natureza [aérea, incorpórea], os anjos refletem o esplendor do Demiurgo. Centelhas da luz divina, espelho do Princípio são a expressão da Forma primeira, anterior à queda. Os anjos são o modelo diurno de um mundo que terminou escolhendo o anoitecer. Expulsos do Paraíso, vivemos em um perpétuo crepúsculo”. (Andrei Plesu, “Des Anges et de l’Homme Universel”, Anges et Esprits Mediateurs, Paris: Dervy, 2004, p. 64). Os anjos, contemplativos, são seres de “boa-vontade”. A ideia de anjos e de “alma” desaparecera da filosofia e da ciência, só sobrevivendo talvez na poesia e na literatura. (Cf. Guy Hocquenghem e René Schérer, “Pourquoi nous restons des baroques”, “Pourquoi les géomètres ont des visions”, L’âme atomique: pour une esthétique de l’ère nucléaire, Paris: Albin Michel, 1986). Com respeito ao desencantamento da religião sob os auspícios da “religião capitalista”: fim do fetichismo e da magia — cujo fundamento é o amor—, advento do fetichismo contemporâneo — cujo fundamento é o poder. (Cf. Walter Benjamin, “O capitalismo como religião”, in GS VI, Frankfurt: Suhrkamp, 1983). 
  81. Cf. Apuleio, Apologia, parágr. 64, trad. Santiago Segura Munguías, Madri: Gredos, 1980; cf. ainda G. Agamben, Le règne et la gloire, Homo Sacer II, 2, trad. Joel Gayraud e Martin Rueff, Paris: Seuil, 2008. 
  82. Boris Groys, op. cit. 
  83. Heráclito, frag. 75, in Héraclite, trad. Paul Dumont, Paris: Gallimard, 1988. 

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