2007

Elogio do medo

por Maria Rita Kehl

Resumo

Uma das grandes paixões da sociedade moderna é a segurança. “Paixões de segurança”, disse Lacan numa conferência de 1947, referindo-se à matéria-prima emocional das massas que serve à manipulação da indústria das imagens. A modernidade acreditou que o progresso técnico e científico pudesse eliminar a morte, o enigma e o medo. Como se fosse possível instalar o império das luzes banindo da vida todas as zonas de sombra.

Mas o medo, assim como a morte, é parte essencial da vida. Quanto mais tentamos nos livrar dele, mais ele retorna. Não é espantoso que o grande filão de vendas do cinema, hoje, não seja o erotismo e sim o medo?

Não é intrigante que assistamos hoje a uma intensificação dos sintomas fóbicos — reconhecidos por Freud há mais de cem anos e rebatizados de “pânico” pela indústria dos psicofármacos? O pânico, hoje, seria sintoma de nossa recusa em incluir o medo, o estranhamento, entre os fenômenos normais da vida?

Sobre isso, escreve Elias Canetti no início de A língua absolvida: “O sentimento mais estimulante é o medo, é impensável o pouco que seríamos se não tivéssemos sentido medo. É peculiar ao homem a tendência de sempre se expor ao medo. Nenhum sentimento de medo se perde, mas seus esconderijos são misteriosos”.

Quem sabe poderemos curar o pânico revalorizando o papel vital dos sentimentos de medo.

 


A razão pela qual decidi elogiar o sentimento do medo em uma época em que vivemos assolados pelo terror, em suas duas modalidades políticas — o terrorismo de grupos minoritários ou populações rebeladas e o terror de Estado que responde na mesma moeda — é que acredito que não é dado a nós, humanos, desconhecer o medo. O que há de terrível no mundo em que vivemos não é a presença do medo, e sim o fato de que toda a enorme variedade dos sentimentos de medo ficou encoberta por sua dimensão mais opressiva, mais empobrecedora, que é o temor em relação a nossos semelhantes. O homem, que só sobrevive física e psiquicamente em aliança com seus semelhantes, vê hoje no outro, qualquer que ele seja — estrangeiro ou vizinho, familiar ou desconhecido —, a ameaça mais temida.

Para fazer o elogio do medo, devo desconsiderar provisoriamente a dimensão geopolítica que fundamenta os grandes temores contemporâneos, reais ou imaginários. Quero lembrar que o medo é uma das fontes da fantasia e da invenção, e que grande parte dele provém das mesmas fontes do mistério e do sagrado. O medo pode ser provocado pela percepção de nossa insignificância diante do universo, da fugacidade da vida, das vastas zonas sombrias do desconhecido. É um sentimento vital que nos protege dos riscos da morte. Mas em razão dele desenvolvemos o sentido da curiosidade e a disposição à coragem, que superam a mera função de defesa da sobrevivência, pois possibilitam a expansão das pulsões de vida.

As crianças procuram o medo. As histórias infantis incluem sempre elementos assustadores que ensinam os pequenos a conhecer e enfrentar o medo. Curiosos e excitados, os pequenos exigem que os adultos repitam várias vezes as passagens que os amedrontam nos contos de fadas.

Quando pequena eu costumava brincar com o medo. Propunha desafios a mim mesma: subir até meu quarto sem acender nenhuma luz, enfrentando a escuridão da escada que se agravava ao longo do corredor, até chegar ao breu completo do quarto fechado. Não raro voltava correndo da metade do caminho, sentindo a excitação do medo como um frio na barriga. Nas férias, passava longas temporadas no sítio dos avós de minhas melhores amigas. Ali, nosso desafio noturno era fazer sozinhas o caminho do terreiro até a porteira, sem lanterna, pelo meio do laranjal — enfrentamento pueril com as fantasias de cada uma, do qual herdei o prazer que mantenho até hoje de fazer longos passeios no escuro quando estou longe das cidades.

O escritor Elias Canetti, no primeiro volume de suas memórias,[1] recorda que quando muito pequeno costumava brincar de inventar histórias que o enchiam de medo. Para estimular a fantasia, usava as figuras monstruosas que sua imaginação fazia surgir da padronagem abstrata do papel de parede de seu quarto. Escreve Canetti:

O sentimento mais estimulante é o medo; é impensável o pouco que seríamos se não tivéssemos sentido medo. É peculiar ao homem a tendência de sempre se expor ao medo. Nenhum sentimento de medo se perde, mas seus esconderijos são misteriosos. De todos os sentimentos, talvez seja este o que menos se transforma. Quando penso nos meus primeiros anos, reconheço em primeiro lugar os temores, de uma riqueza inesgotável. Muitos deles só descubro agora; outros, que jamais encontrarei, devem constituir o mistério que me provoca o desejo de uma vida eterna.[2]

Para ele, o medo é um estímulo à criatividade e um motor do desejo; nos nichos de mistério deixados por seus temores infantis reside a fonte do desejo de viver eternamente. O medo da morte, que é sempre medo do desconhecido, ocupa grande parte de nossa capacidade de simbolização na esperança de dominar aquilo que, mais cedo ou mais tarde, nos aniquilará. Para isso vivemos. Para isso as crianças brincam com o medo: para conhecer seus limites, aproximar-se do mistério. Brincar de medo é chegar o mais perto possível de onde mora o perigo, real ou fantasioso, mas é também, inversamente, um modo de afastar-se o máximo possível do espaço familiar, excessivamente protegido, que também pode ser sufocante.

Acontece que na proteção familiar também reside um perigo. A criança precisa se afastar do que lhe é mais familiar, estranhamente familiar:[3] o corpo materno, tão convidativo quanto interditado. A atração das crianças pelos esconderijos, os cantos escuros, as cabaninhas inventadas debaixo dos móveis, é resíduo do fascínio pelo corpo materno, metáfora da proteção e do amparo perdidos em um passado idealizado. Mas como todo ato psíquico é sobredeterminado, o amor infantil pelas tocas escuras é tributário também do desafio ao eu que se afirma como entidade separada do entorno nesses lugares tão protetores quanto ameaçadores. Sozinha, encolhida em seus esconderijos secretos, a criança aprende a dominar a angústia de ser aniquilada pelo corpo materno, aprende a preservar a independência de seu frágil eu perante a ameaça de incesto que o aconchego da “cabaninha” presentifica.

A LEI DO MEDO

Um dos capítulos do belo livro não tão infantil de Rudyiard Kipling, Mowgli, o menino lobo,[4] chama-se “Como apareceu o medo”. Os leitores devem se lembrar da história de Mowgli, pequeno filho de caçadores que foram mortos pelo tigre Shere Khan no jângal (jungle) indiano. Abandonado nu na mata, Mowgli foi encontrado e criado por uma loba e seus irmãos lobinhos, e, embora reconhecido como filhote de homem, foi aceito pela alcateia que negou a Shere Khan o direito de matar o menino. O jângal tem suas leis, que orientam e organizam o convívio entre as espécies animais. O urso Babo, professor do pequeno Mowgli, ensinou-lhe que “todos os filhos do jângal obedecem pelo menos a uma lei”.

Que lei é essa? Veremos.

O capítulo intitulado “Como apareceu o medo” começa referindo-se a um ano de grande seca, em que os alimentos escasseavam e os animais andavam fracos, exaustos, em busca da água cada vez mais rara. Nos períodos de seca, a lei do jângal diz que é proibido aos predadores matar suas presas junto aos bebedouros, diante do grande perigo de extinção de toda a vida selvagem, os mais fracos devem ser poupados do medo cotidiano diante dos predadores, é proibido caçar nos horários de matar a sede.

Em tempos normais, escreve Kipling, a hora de beber é sempre arriscada. Os gamos, as zebras, os roedores menores costumam beber com os olhos alertas e os músculos retesados, prontos para o salto e a fuga. Mas então já não havia mais aquela “excitação de vida e morte”. Os animais fracos e bambos vinham juntos matar a sede no rio Waigunga (o Ganges), cada vez mais lamacento. Quando, no meio do rio, surgiu o topo da Roca da Paz, foi decretada no jângal a Trégua das Águas. Hathi, o elefante, por ser o animal mais velho, garantia a vigência da lei: sob sua vigilância os animais, mesmo famintos, não pulavam sobre os mais fracos. “Vivemos realmente sob uma lei, irmãozinho”, comentou Bagheera, a pantera negra, lambendo os beiços de fome diante dos cervos magrelos.

Na noite em que se passa o capítulo, Shere Kahn irrompeu em meio à reunião dos animais sedentos, com sangue nos bigodes. Acabara de matar um homem, a presa mais desprezada e mais temida entre os habitantes do jângal. “Matei porque estava em minha noite de caça”. Os animais desconheciam essa regra, e Hathi teve que lhes contar a lenda da origem do medo, passada na origem dos tempos.
Nos primeiros tempos do jângal, os animais desconheciam o medo da morte.

Como no mito do paraíso terrestre, conviviam em paz, comendo folhas, flores, raízes. Também ignoravam a existência do homem. O chefe de todos os animais era Tha, o primeiro elefante, e o juiz que arbitrava os desentendimentos era o primeiro tigre. Um dia um gamo faltou ao respeito com o tigre e este, num impulso, quebrou-lhe a espinha com uma patada. Pela primeira vez os animais viram a morte e sentiram o cheiro do sangue. O tigre foi destituído de sua função porque trouxe a morte e o medo para a sociedade dos animais.

Escolheu-se um segundo juiz: o macaco. Mas este não sabia fazer senão macaquices e palhaçadas. Se o tigre trouxe o medo, o macaco trouxe o riso. O primeiro foi violento, o segundo debochado. Por isso, nenhum dos dois estava apto a representar a lei. O elefante concluiu que estava na hora de impor ao jângal a única lei que não pudesse ser quebrada. Essa seria a lei do medo.

O que é o medo? Não é a face simbólica da lei: é a face imaginária — a lei sustentada por uma fantasia ameaçadora. Na lenda de Kipling, o medo morava em uma caverna, andava sobre dois pés e não tinha pelos no corpo. O medo era o Homem, o único animal que conhece a morte. Os animais foram vê-lo e fugiram, pois o homem saiu da caverna aos gritos, pulando, jogando pedras. Na tentativa de se reabilitar perante a assembleia do jângal o tigre matou o homem — mas dessa forma os animais passaram a temer também o tigre, que havia espalhado o cheiro da morte entre eles. O tigre imaginou que só existia um homem, e que ao matá-lo teria extinguido a lei do medo. Mas o que fez foi “desatar os pés da morte”, ou seja, ao abater um homem, ensinou os outros homens a matar e espalhou para sempre o medo entre os habitantes do jângal.

Hathi concluiu sua história dizendo que, desde que o homem passou a dominar as ciências da morte, o medo dominou a vida do jângal e a lei do medo substituiu todas as outras leis da convivência pacífica.

Essa breve narrativa para crianças contém várias características do mito. Pode ser lida como uma alegoria da origem dos tempos, no sentido da origem de determinada ordem social. O jângal metaforiza a sociedade humana no momento de inauguração da lei, acompanhado da perda da inocência, à maneira do mito bíblico da expulsão dos primeiros humanos do paraíso terrestre.

O medo, para os habitantes do jângal criados por Rudyiard Kipling, é o medo da morte. O homem foi escolhido para representar o medo por ser o único animal capaz de antecipar a própria morte. Todos os outros animais só conhecem o medo na presença de sinais de perigo. O homem pode localizar as razões de seu medo pelo uso da linguagem: o acesso ao simbólico torna a morte pensável (embora nunca totalmente simbolizável). O medo, entre os humanos, pode resultar de uma operação simbólica.

No capítulo sobre a origem do medo em Mowgli, o menino lobo, Kipling estabelece uma relação progressiva entre o medo e a lei. No início dos tempos, a lei é simbólica. Isso significa que a lei resultou de um acordo entre todos os membros daquela sociedade. Mas mesmo a lei simbólica precisa ser sustentada por alguns representantes reais, encarregados de arbitrar os conflitos. A origem do medo começa com a desmoralização da lei por parte de seus primeiros representantes reais: o tigre foi arbitrário; o macaco, cínico. Para que o jángal não ficasse desgovernado, o primeiro elefante decide que só a lei do medo poderia substituir a lei simbólica.

O medo é a “única lei que não pode ser quebrada”, equivalente às leis de exceção impostas pelos governos totalitários em épocas de “estado de sítio”. Sua vigência torna obsoletas todas as outras leis. Por isso, o medo é o que referenda a lei dos tiranos, que não se detêm diante das regras de convivência e respeito pelo outro. O medo torna o governante, a pretexto de proteger seus súditos de ameaças externas ou internas, absoluto em seu poder. Nesse sentido, a atualidade do presente ciclo de conferências pode ser justificada pela opinião do filósofo Giorgio Agamben, para quem os estados de exceção, como modo de organização política, são cada vez mais frequentes, a ponto de se tornarem a regra em nosso tempo.[5] Nos estados de exceção, a lei do soberano não precisa das instituições impessoais da justiça e da democracia para se afirmar; equivale à lei do medo na fábula de Kipling.

No mito freudiano sobre o assassinato do pai primordial,[6] o medo do desamparo em que se encontra a fratria órfã traz a necessidade de uma lei que proteja o grupo contra as consequências mais temíveis da luta de todos contra todos. A lei simbólica, que impõe como condição do convívio com o grupo a renúncia ao excesso de gozo pulsional — o que em psicanálise se traduz como interdição do incesto —, institui-se por decisão coletiva para substituir a lei arbitrária do tirano assassinado. Se a lei simbólica perder a sustentação coletiva, o medo voltará a dominar e impor uma lei fundada sobre o temor imaginário da morte: há sempre um fantasma no horizonte para justificar a lei do medo.

A lei do medo pode ser comparada ao estado de terror em que vivem os moradores de algumas favelas das grandes cidades brasileiras, oprimidas entre a lei do tráfico e a violência da polícia sem lei. É uma lei que não pode ser questionada, muito menos transgredida: se a transgressão à lei simbólica cobra o preço da exclusão do transgressor dos termos da lógica que comanda o convívio de uma comunidade, a transgressão à lei do medo sempre é paga com a morte.[7]

Meu elogio do medo, portanto, não deve se confundir com o elogio à lei do medo. O medo instigante e criador, sem o qual, nas palavras de Canetti, é impensável o pouco que seríamos, só é possível em uma sociedade relativamente pacificada pela vigência da lei simbólica. O medo absoluto imposto pela lei do medo não é instigante nem criativo. Não cria, na mente humana, esconderijos de mistério de onde nasce o desejo de uma vida eterna. A lei do medo reduz o homem à condição de homo sacer, recuperada por Agamben, sujeito cuja vida foi excluída do campo simbólico e ficou à mercê da violência banal, prestes a ser abatido por qualquer motivo, pelas mãos de qualquer um.

O MEDO, A LEI E AS FOBIAS

Que relação a clínica psicanalítica estabelece entre o medo, a lei e a fobia? A fobia é uma forma de sofrimento psíquico que consiste na irrupção aparentemente incompreensível de sentimentos de pânico diante de um objeto que não oferece perigo nenhum, a não ser por suas conexões com a fantasia inconsciente. Já na criança, os medos característicos do período em que ela começa a se diferenciar da mãe são protótipos do que poderão vir a ser as fobias no adulto. Mesmo para o adulto não fóbico, os objetos dos medos infantis conservam com frequência um aspecto ameaçador injustificável fora do campo da fantasia.

Por que razão tememos, como a criança pequena, os lugares escuros? Por que tememos as grandes alturas e alguns pequenos insetos? O que existe em comum entre o medo das multidões, dos espaços fechados ou dos grandes espaços abertos, o medo das cobras (das quais é tão fácil fugir) ou das representações de algumas feras que já não ameaçam o homem contemporâneo?

Talvez esses elementos nos remetam à ameaça da perda de controle sobre situações cotidianas. Na escuridão da noite sem lua, no alto dos penhascos ou da Torre Eiffel, ou no aperto de uma grande aglomeração humana — como diante de uma fera selvagem ou de um inseto insidioso —, as funções normais do eu parecem pouco valer. Estamos à mercê do desconhecido, de forças que ultrapassam nossa precária capacidade de controle. As fobias alimentam-se desse tipo de sentimento de ameaça de dissolução do eu. Mas, por ligarem tal angústia à representação de algum objeto ou situação dos quais é possível fugir, as fobias são resoluções psíquicas para o sentimento muito mais intenso do pânico.

O pânico é a irrupção da angústia sem representação alguma. Medo sem objeto, que nos ataca desde um lugar desconhecido cuja sede se confunde com o próprio corpo. O pânico é o medo da morte que irrompe do corpo, ameaça da qual não sabemos fugir. A fobia, no sentido freudiano, representa uma tentativa de solução para o pânico. Ao ligar aquele medo sem objeto a uma representação qualquer, torna possível ao eu retomar pelo menos seus mecanismos mais primitivos de defesa, evitando o objeto fóbico a qualquer custo. Diante da iminência de destruição do eu sentida nas crises de pânico, quando a lei simbólica deixa de operar e o sujeito sente-se à mercê da força desorganizadora das pulsões, a fobia representa uma ordem precária, porém operante, sob a vigência da lei do medo.

O caso de fobia mais conhecido na história da psicanálise é o do pequeno Hans,[8] menino de 5 anos que Freud analisou indiretamente, em sessões de escuta e orientação com o pai, em 1909.

O “caso Hans” pode ser lido na íntegra nas Obras completas de Freud, por isso vou tomar apenas alguns elementos de que preciso para fundamentar meu argumento. Sabemos, pelo relato de Freud, que Hans foi um menino muito apegado à mãe, que correspondia inteiramente a seus sentimentos. A relação com o pai era mais ambivalente: embora o amasse com ternura, o pai representava para Hans um poderoso rival na disputa pelo amor materno. A conduta da mãe justificava a hostilidade do menino: quando o pai viajava, Hans era autorizado a dormir com ela na cama do casal. Desse modo, a chegada do pai representava para a criança uma intromissão indevida em seu romance edipiano.

O nascimento de uma irmãzinha introduziu o pequeno Hans nos mistérios da diferença sexual. Observem que em 1909 Freud ainda não havia criado o conceito de recusa (da percepção da diferença sexual), sobre o qual haveria de construir sua hipótese a respeito da origem das perversões.[9] Mas chama a atenção do leitor contemporâneo o fato de Hans só ter percebido a diferença entre os sexos ao observar o corpo da irmã, uma vez que era frequentemente autorizado pela mãe a acompanhá-la ao banheiro. No corpo da mãe, o pequeno não vê, ou não quer ver, a ausência do “faz-pipi” que tanto o intriga na pequena Hanna. Sua atenção detém-se na presença de objetos de cor preta ou marrom — possivelmente associados à visão enigmática dos pêlos pubianos — que mais tarde vão se associar a alguns elementos da fobia.

A observação da “coisinha” diminuta da irmã, associada a uma ameaça de castração feita pela mãe para coibir a masturbação infantil, lançou o pequeno Hans em plena angústia de castração. O complexo de castração transforma a impossibilidade do incesto em proibição. A fantasia de uma fusão com o corpo materno, retorno a um estado de entropia dominado pela pulsão de morte, é interditada por efeito da angústia de castração. Esta pode ser considerada como uma primeira vigência da lei no psiquismo, na forma primitiva de lei do medo que determina a entrada da criança no segundo tempo do Édipo — tempo do complexo propriamente dito, pois o primeiro tempo é marcado pelo gozo da união com a mãe sem angústia.

O interessante no caso do pequeno Hans é a transformação de sua angústia de castração em uma série de fobias. O menino começa manifestando medo de ser mordido por um cavalo ao sair na rua — medo que se agrava diante de cavalos pretos e marrons. O cavalo que morde seria o pai poderoso e vingativo diante da rivalidade do filho. Tal representação inconsciente é reforçada por uma segunda corrente psíquica recalcada, uma vez que a cor dos cavalos remete à imagem da ausência de pênis no corpo materno, que Hans já conhecia e, até então, recusava. A fobia se agrava quando Hans vê um cavalo que puxa uma carroça carregada de carvão escorregar nos paralelepípedos da rua e cair. O pai/cavalo irado, na cena da queda, realiza o desejo de ver o pai/cavalo morto — desejo que enche a criança de terror, já que nada é mais sinistro para o psiquismo do que deparar com a representação da realização de uma fantasia, recalcada.[10] O medo dos cavalos, em Hans, contempla a ambivalência da relação do menino com o pai: medo de ser atacado (castrado) por ele + desejo de vê-lo “cair” + horror de vê-lo “cair”. O fascínio pelo cavalo, símbolo da potência paterna, também não está ausente da conjunção de fantasias condensadas sobre a imagem do cavalo.

O surgimento da fobia limita o espaço de circulação do fóbico, como condição de que ele possa se defender, no espaço externo, da representação subjetiva angustiante. O medo dos cavalos mantém o pequeno Hans ainda mais perto da mãe. Permanecer fechado em casa cumpre uma série de funções defensivas para o menino. A proximidade com o corpo materno, ao mesmo tempo desejado e interditado, mantém a promessa do incesto, mas possibilita o controle do objeto. Por outro lado, ficando em casa, o menino controla também a chegada do pai, tanto para defender-se dele quanto para se assegurar de que seu desejo de morte não se realizou. O fóbico, escreve Freud, isola um objeto externo ao psiquismo, o que lhe permite evitar o contato com representações inconscientes associadas a ele.

A hipótese freudiana é de que o desenvolvimento da fobia em Hans tenha sido precedido por um primeiro ataque de pânico, de pura angústia sem objeto, muito mais ameaçadora para o psiquismo. Da “lembrança de um ataque de angústia” surge a necessidade de localizar um objeto capaz de representar, por associação com as representações recalcadas, a ameaça da qual é preciso fugir. A fobia é o “medo de voltar a sentir medo”. Diante do objeto fóbico, o eu se comporta como se o disparador da angústia não fosse uma emoção, uma descarga pulsional, mas uma percepção externa. O perigo inconsciente é projetado no mundo, de modo a possibilitar o controle do pânico.

Nesse sentido é possível aproximar a irrupção das fobias e o sentimento que Freud veio a batizar, anos depois, de Unheimlich — a angústia diante do que nos é “estranhamente familiar”. O Unheimlich, que chamarei de sinistro, termo utilizado na tradução espanhola que pode fazer sentido para o leitor brasileiro, é o sentimento de estranheza que ocorre quando uma vivência reanima um complexo infantil recalcado, ou quando antigas convicções fantasiosas (negações da realidade, da morte, fantasias de onipotência etc.) parecem de repente achar uma confirmação na realidade.[11]

Se o recalque de tais fantasias infantis transforma em estranho o que um dia nos foi familiar, o encontro com representações que se associem àquelas fantasias recalcadas produz a inquietante sensação de estar diante do “estranhamente familiar”: a exposição do sujeito à presença de alguma coisa que deveria estar oculta.

Para Freud, a fobia enlaça estreitamente o sujeito ao objeto de seu desejo recalcado, ao mesmo tempo que lhe permite controlar o objeto, livrando-o do risco (imaginário) de satisfazer o desejo. No caso do pequeno Hans, é preciso perguntar, como fez mais tarde Lacan,[12] por que foi necessário ao menino desenvolver uma fobia para atravessar o complexo de Édipo. O que ameaçava o pequeno fóbico era a possibilidade de realização do desejo incestuoso, que só precisou ser controlado pela criança porque não estava interditado pela mãe, ou seja, porque sua relação com a mãe não permitia a simbolização da lei. A mãe de Hans, e não o pequeno (ou seu pai), era quem não sustentava a interdição do incesto. Do contrário, por que o menino era convidado ou autorizado a fazer o papel de marido da mãe quando o pai viajava?

Lacan chama a atenção para o fato de que só a presença atual do pai garantia seu lugar simbólico para a criança, uma vez que ele não estava incluído no discurso da mãe. A lei do medo, na forma dos sucessivos ataques fóbicos, veio substituir a lei simbólica para preservar o menino do risco de uma psicose.

O PÂNICO E O MEDO DO INCONSCIENTE

No final do relato do caso do pequeno Hans, Freud responde à possível objeção de que não se pode fundamentar uma teoria geral do aparelho psíquico a partir da análise de um caso patológico como o daquele menino. Sua argumentação começa por afirmar que Hans não teria sido um menino “menos normal” do que qualquer um de nós. Não se pode traçar uma fronteira definitiva entre o neurótico e o normal, escreve ele. Mas a educação, o modo como os pais reagem às manifestações dos conflitos infantis, pode contribuir para o desenvolvimento de uma neurose em qualquer criança sadia — ou, ao contrário, ajudar a criança a encontrar outra resolução psíquica para o conflito inconsciente que lhe produz angústia. Nessa mesma linha, Freud critica os “entusiastas da normalidade”, e relaciona a fobia de seu pequeno paciente indireto com o mesmo temor ao inconsciente manifestado pelos opositores da psicanálise. Conhecer nossos desejos recalcados, escreve ele, não nos leva a realizá-los, isto é, a colocar a fantasia em prática. Pelo contrário, a possibilidade da saúde psíquica implica substituir uma parte do recalque por um julgamento (moral).

A análise não destrói o resultado do recalque. As pulsões dominadas e submetidas continuam a sê-lo. Mas (a análise) alcança esse resultado (o domínio das pulsões) por um outro caminho. Substitui o recalcamento, automático e excessivo, pelo domínio razoável e adequado obtido pela ajuda das mais elevadas instâncias psíquicas. Substitui a repressão pelo juízo condenatório.[13]

Embora alguns dos elementos da metapsicologia freudiana tenham sido contestados, modificados ou aperfeiçoados por seus seguidores, a radical modernidade do criador da psicanálise subsiste nessa postura de incluir as manifestações do inconsciente entre os fenômenos normais da vida, ajudando a tornar muito mais elásticas as barreiras que isolam a saúde da doença, o normal do patológico, o “são” do neurótico.

No entanto, um século de psicanálise não foi suficiente para debelar o medo do inconsciente, que Freud percebeu em 1909.

Alguns anos antes de desvendar a metapsicologia dos sintomas fóbicos, Freud havia se interessado pelo que chamou de neuroses de angústia, cujas manifestações nos fazem lembrar os atuais transtornos de pânico. Para Freud, no final da década de 1890, os acessos de angústia resultariam da invasão do aparelho psíquico por grandes descargas de energia sexual livre, ou seja, a libido não ligada a nenhuma representação. A energia libidinal livre — que mais tarde Freud viria a chamar de pulsão — só produz angústia nos casos em que o recalque impede o acesso às representações sexuais. Em Freud, o prazer não se obtém apenas pelo encontro corporal com um objeto de satisfação: o prazer, no sentido freudiano, consiste antes de mais nada na descarga promovida pelo encontro da energia libidinal com uma representação mental do objeto de satisfação, que possibilita ao psiquismo um alívio de tensão prazeroso. Essa concepção do prazer psíquico como descarga de tensão é o que permite a Freud afirmar, em A interpretação dos sonhos, que o sonho — trabalho psíquico de representação do recalcado — é realização de desejo. Para o psiquismo, realizar um desejo equivale a encontrar, ou criar, um meio de representá-lo.

De acordo com a primeira teoria da angústia na obra freudiana, o acesso de angústia não passaria de uma descarga pulsional não simbolizada ou não simbolizável. Essa invasão do psiquismo pela excitação pulsional produz, para o sujeito, um sentimento de profundo desamparo ante a força desorganizadora da pulsão sem objeto. Em 1925, em Inibição, sintoma e angústia,[14] Freud reformulou sua teoria. O ataque de angústia não resultaria diretamente da invasão do psiquismo pela excitação impedida de acesso ao pensamento, e sim da ameaça de retorno do recalcado. A angústia seria um sinal de alarme ante a iminência do retorno de uma representação recalcada. Escreve Freud:

O problema de como surge a angústia no recalque pode muito bem ser de caráter complexo, mas isto não nos impede de manter a ideia de que o eu é a verdadeira sede da angústia, e rechaça nossa opinião primitiva de que a energia de carga do impulso recalcado era transformada automaticamente em angústia.[15]

Não sei se a reformulação da teoria da angústia invalida a primeira hipótese, de invasão do psiquismo pela energia pulsional desligada de algum representante. Nas duas teorias da angústia, mantém-se a ideia de que o sujeito está impedido de abrigar em seu pensamento uma ideia, associada ao desejo recalcado. Entre o excesso pulsional e o vazio representacional, o psiquismo vê-se ameaçado de desintegração. A angústia seria um sinal de alarme ante o perigo iminente de destruição psíquica pela pulsão de morte — conceito que, no limite, diz respeito ao estado primitivo da energia pulsional, desorganizada e desorganizadora do psiquismo quando desligada de qualquer representação de objetos parciais.

Em favor de minha hipótese, cito Mário Eduardo Costa Pereira, que não descarta a primeira teoria freudiana sobre a angústia na compreensão das crises de pânico:

Assim, a teoria da neurose de angústia, em 1895, para dar conta dos estados extremos de angústia, já colocava o problema dessa situação subjetiva em que o aparelho psíquico se encontra desamparado diante da emergência incontrolável da vida pulsional. Mais tarde, as coisas serão esclarecidas pela teoria: o estado psíquico de impossibilidade de controle sobre a própria pulsão será chamado de desamparo (Hilflösigkeit); o afeto que lhe é próprio é o Schreck, o terror. [16]

Mas Freud exige ainda que prestemos atenção a outra questão: como é possível que um processo de desvio de carga psíquica (característico do recalque) possa produzir angústia? A resposta é que a angústia não é “criada novamente”; ela é “produzida, como estado afetivo, segundo uma imagem mnémica prévia”.

Os estados afetivos se acham incorporados à vida anímica, como precipitados de acontecimentos traumáticos primitivos, e são revividos como símbolos mnémicos, em situações análogas a tais acontecimentos antiquíssimos.[17]

O que o recalque promove é a conservação da atualidade dos “acontecimentos traumáticos primitivos”: o inconsciente é atemporal. A angústia é o afeto que sinaliza o risco de repetição, ou revivência, do trauma — que, no entanto, só deixará de ser traumático à condição de se tornar pensável, ou seja, simbolizável. A segunda teoria da angústia, em Freud, mantém a relação entre a angústia e a falta de representação.

É interessante notar que, ao articular angústia e encontro com o vazio, Freud inscreve-se marginalmente na tradição filosófica do cristianismo. Mas onde um pensador como Pascal refere-se ao vazio da alma sem Deus, que deixa o homem desamparado diante do universo e do seu destino, Freud trata do vazio de simbolização e do desamparo psíquico que ele acarreta. O sujeito da psicanálise é o homem sem Deus da modernidade, indefeso perante sua própria divisão subjetiva. Por um lado, encontra-se à mercê da invasão das excitações pulsionais; por outro, vive temeroso de deparar com as representações do desejo inconsciente. Nesse sentido, pode-se pensar nas fobias como mecanismos de proteção ante o medo de sentir medo, o qual não é outro senão o medo do inconsciente a que se referiu Freud na conclusão do “caso Hans”.

O RETORNO DO PÂNICO NA CONTEMPORANEIDADE

A chamada síndrome do pânico tem sido considerada, por algumas correntes da psiquiatria que admitem um diálogo com a psicanálise, uma tentativa de antecipação do próximo acesso de angústia. Faz parte das patologias sem representação que, de acordo com os dois últimos relatórios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), vêm se alastrando nos países industrializados desde a década de 1980.[18] O sentimento de estar prestes a enlouquecer, relatado por muitas pessoas que sofrem ataques de pânico, deve-se justamente ao desaparecimento (provisório) da capacidade de colocar em palavras, de tornar pensável, o que lhes acontece. Assim, a emergência de um ataque de pânico parece uma rebelião desordenada do corpo, impossível de ser acolhida ou compreendida pelo psiquismo.

A medicalização da vida subjetiva promovida por correntes radicais das neurociências, a partir de uma concepção dos estados afetivos como transtornos do funcionamento cerebral por deficiência de neurotransmissores, tem contribuído para a perda ou o empobrecimento de uma das qualidades fundamentais do psiquismo: o fato de que ele só existe como trabalho permanente de representação, de simbolização do real, de resolução de conflitos. Quando o inconsciente é encarado exclusivamente como um objeto das neurociências e suas manifestações passam a ser aplacadas por ação de novas substâncias químicas — cuja eficácia tranquilizadora pode ser comprovada —, o sujeito psíquico torna-se um estranho a si mesmo. As manifestações da subjetividade vão sendo progressivamente estigmatizadas como estorvo à vida produtiva e aos ideais de felicidade imediata promovidos pela cultura das sensações corporais.[19] Consequentemente os períodos de luto, as tristezas que a vida traz, as ansiedades e angústias dos neuróticos comuns passam a ser encarados como anomalias intoleráveis sobre as quais se exige rápida intervenção médica em nome do retorno rápido a um funcionamento “normal”.

A tendência a reduzir a explicação dos ataques de pânico a uma disfunção química — por exemplo, consequência da falta de receptor de serotonina no cérebro —[20] vem crescendo entre as várias correntes da psiquiatria atual. Escreve Costa Pereira:

Vemos assim que, além das consequências clínicas, tal forma de considerar o problema tem profundas repercussões ideológicas, pois exclui a história e a subjetividade daquele que experimenta o pânico. Para estudar esse fenômeno, a abordagem operacional seria amplamente suficiente, na medida em que, identificando o transtorno nuclear biológico central, nada poderia ser descoberto além desse registro primário.[21]

No mesmo sentido, cito as observações de Benitton Bezerra Jr.:

O que está em discussão não é a utilidade dos conhecimentos biológicos sobre o cérebro, nem o esforço de esquadrinhar o sistema nervoso central de modo a nos permitir intervir de modo cada vez mais eficaz sobre o sofrimento psíquico. O que se coloca como inaceitável é a pretensão de descrever a vida mental, a experiência subjetiva e os fenômenos psicopatológicos como sendo, em sua verdadeira essência ou natureza, algo de ordem material, fisicalista. Essa pretensão deve ser atacada não só por razões teóricas, mas também por motivos éticos. Não apenas porque oferece uma descrição equivocada e estreita da complexidade da experiência humana, mas porque as consequências de sua adoção são funestas. A biologização radical da psiquiatria é a decretação da sua morte.[22]

As convicções fisicalistas que dominam correntes da psiquiatria trabalham para corroer, ou desautorizar, as bases subjetivas da experiência. O paradoxo é que, quanto mais o psiquismo é despojado de sua carga de trabalho de simbolização, mais propenso fica ao ataque da angústia. Ou seja, se o sujeito que padece de ataques incompreensíveis de pânico é tratado como objeto de intervenções medicamentosas, as manifestações do inconsciente permanecem cada vez mais enigmáticas para ele. Os “doentes” da síndrome de pânico referem-se ao ataque da “coisa” sem rosto e sem nome, que pode chegar a qualquer momento sem ser anunciada.[23] O pânico, na expressão de Benilton Bezerra Jr.,[24] assemelha-se a um alien que invade o corpo sem que o sujeito saiba de onde vem ou por que ocorre: “não tem face humana, é violência bruta que emerge dos tecidos corporais”. As intervenções fisicalistas inibem a manifestação do pânico e dispensam os pacientes do trabalho psíquico que o sintoma exige. Tal trabalho, para a psicanálise, consiste em ampliar o campo de representações simbólicas de modo a que as manifestações do inconsciente não sejam aterrorizantes para o sujeito.

Nos Estados Unidos, a cada ano da última década, 2,4 milhões de pessoas são “abatidas” pelo pânico, com medo intenso da morte iminente e sintomas físicos que simulam um ataque cardíaco. Em contrapartida, o mercado farmacêutico no final do século XX movimentou entre 300 bilhões e 500 bilhões de dólares, cifra que testemunha por si só a favor da expansão da concepção fisicalista da subjetividade. Analistas econômicos prevêem que em vinte anos o mercado farmacêutico dará um salto da ordem de 3,2 trilhões de dólares.[25] Ao contrário dos neuróticos freudianos, que ainda buscam um analista para se indagar a respeito do significado daquilo que lhes escapa nas manifestações do inconsciente, os pacientes psiquiátricos puros (isto é, que substituem todas as formas de terapia da palavra pela medicalização) não querem interrogar seus sintomas, mas simplesmente fazê-los calar. Com isso, amortecem a vitalidade do trabalho psíquico e predispõem-se a um estado depressivo contínuo, resultante da falta de vida interior.

Na falta de um ambiente cultural e político, onde o mal-estar possa ser lido como sintoma do que não vai bem na cultura — isto é, como um analisador crítico do mundo em que vivemos —, restam as políticas conservadoras de medicalização dos comportamentos tidos como “desviantes”. Por exemplo: nos Estados Unidos, cresceram os diagnósticos de sociofobias na medida em que mudaram os critérios de avaliação dessa forma de mal-estar, incluindo cada vez mais aspectos de comportamentos considerados anti-sociais — mais uma vez, independente da pergunta sobre a origem e a causa. No início dos anos 1980, 2% da população norte-americana levava o diagnóstico de sociofobia. Nos anos 1990, a proporção saltou para 13%, correspondendo à inclusão de novos itens, como comportamentos banais de rebeldia entre os adolescentes para o diagnóstico da sociofobia.

Ainda de acordo com Benilton Bezerra, quando um diagnóstico reconhecido pelo DSM atinge perto de 10% da população de um país, ingressa entre as prioridades comerciais da indústria farmacêutica. Dessa forma, todas as manifestações de insatisfação ou de inadequação em relação às condições da vida atual são passíveis de medicalização. No caso das sociofobias, Benilton Bezerra indaga se não poderíamos considerar que seu aumento decorre da sensação de ameaça sofrida, sobretudo entre os mais jovens, diante de uma sociedade cada vez mais competitiva, que exige dos indivíduos uma dose cada vez maior de agressividade para alcançar um lugar ao sol.

Da parte dos estudos psicanalíticos sobre a síndrome do pânico, chama a atenção o predomínio dos teóricos que associam o sentimento de desamparo, característico dos acessos de angústia, com as experiências precoces de abandono sofridas pelos sujeitos. O estudo de Costa Pereira revela o predomínio dos psicanalistas que articulam a predisposição ao pânico com a experiência de abandono por parte da mãe. De fato, a fenomenologia dos ataques de pânico remete o observador às intensas reações de angústia dos bebês que, segundo John Bowlby, são a resposta natural às primeiras experiências de separação da mãe. No entanto, o próprio Bowlby supõe um processo de adaptação do infans às ausências maternas, sem o qual seria impossível continuar vivendo. Ter passado pela angústia de separação na primeira infância não explica o retorno da experiência de pânico na vida adulta.

Para isso é preciso mais uma vez levar em conta as conclusões clínicas de Freud, como fez Lacan no seminário sobre As relações de objeto.[26] A análise do pequeno Hans nos permite entender os ataques de pânico (que naquele caso, a criança conseguiu controlar pela criação do objeto fóbico) não como reação à falta da mãe, e sim aos excessos do amor materno. A predisposição ao pânico, e o desamparo que ela reedita, não teria necessariamente sua origem nas experiências infantis de abandono materno, mas na relação com uma mãe “fora-da-lei”, que mantém sempre em aberto para a criança a possibilidade imaginária de realizar o incesto. Hans não se tornou fóbico porque sua mãe o deixou só, e sim porque ela não permitiu que ele se separasse dela. Não desenvolveu angústia na ausência da mãe e sim, já aos 5 anos, nas ausências do pai, durante as quais o pequeno era convidado a voltar a dormir com sua mãe. O desamparo reeditado durante o ataque de pânico não é aquele que a criança sentiu, no passado, na falta da mãe. É o desamparo do psiquismo invadido pela força pulsional desordenada, fora-da-lei — que é, por definição, pulsão de morte.

A articulação entre a angústia, a lei e a fobia nos permite compreender, na atualidade, o retorno das angústias mais precoces na forma das síndromes de pânico nos adultos e adolescentes. A lei não simbolizada é uma das possibilidades da realidade psíquica dos neuróticos; diante de situações que remetem, por associação livre, ao desejo incestuoso recalcado, mas não suficientemente interditado, o sujeito responde com um sentimento de ameaça de aniquilação equivalente à angústia sentida ante a iminência real da dissolução do eu e da morte.

De acordo com esse raciocínio, a síndrome do pânico não revela tanto uma falta de cuidados maternos quanto uma insuficiência no exercício da função paterna.

MENINOS FÓBICOS

A relação entre o medo, o pânico e a lei remete a uma observação clínica recente a respeito de casos de fobias que tenho visto aumentar consideravelmente entre meninos, na passagem da infância para a adolescência. Essa observação parcial é corroborada por dados estatísticos expressivos sobre o aumento das sociofobias, como os mencionados acima.[27]

O início da puberdade é o período da vida em que as referências familiares e a proteção dos pais cedem lugar à conquista dos espaços públicos e à importância da aceitação por parte de grupos extra-familiares: amigos, escola, turmas da rua, etc. É um período de descobertas, de novas experiências às quais corresponde uma ampliação de horizontes e de pontos de vista. Por que razão tantos meninos, na atualidade, recuam diante desse momento de passagem e desenvolvem crises de pânico, que, com frequência, se transformam em sociofobias? Por que razão, para um número crescente de garotos (e algumas garotas), o momento de alargar horizontes e ganhar as ruas passa a ser vivido com tanto terror que se produz o contrário, um estreitamento cada vez maior do espaço de circulação?

A passagem da infância para a adolescência é também um momento de reativação do complexo de Édipo. A maturação biológica do aparelho genital que caracteriza a puberdade exige uma reorganização das pulsões sexuais, que lançam o adolescente de volta ao encontro das representações mal elaboradas do complexo de Édipo. A tradicional rebeldia adolescente pode ser entendida como uma revivescência do conflito infantil com a lei simbólica representada, no triângulo edípico, pela atuação do pai imaginário, que separou, bem ou mal, a criança do gozo do corpo materno.

Penso que o aumento das crises de pânico e das sociofobias entre os adolescentes, sobretudo entre os de sexo masculino, para os quais os apelos à rivalidade fálica se apresentam com mais violência, é a resposta que os mais frágeis encontram diante da perspectiva de encontrar, fora do espaço privado, um mundo sem lei, onde não é possível viver.

A imagem, nem tão fantasiosa quanto gostaríamos, deste mundo ameaçador, desenha-se a partir do declínio da dimensão imaginária do pai. Embora a função paterna seja simbólica, ela é indissociável da dimensão imaginária do pai,[28] que lhe dá consistência e sustentação na cultura. Os imperativos de gozo que predominam nas sociedades capitalistas do ocidente, ligando através das imagens publicitárias as motivações e os projetos de vida dos sujeitos à voracidade do mercado, dificultam que o pai real (ou seu substituto) encontre, na criança, uma posição legítima a partir da qual possa fazer valer a lei. O pai real, esse ser de carne e osso que concebeu a criança e convive com ela, vem perdendo lugar no imaginário social na proporção direta da expansão dos apelos midiáticos ao gozo e à transgressão. O imaginário paterno não pode ser sustentado apenas pela capacidade de consumo, único fator que ainda parece respeitável no que concerne à potência do pai real.

Ora, tal desmoralização do pai imaginário fragiliza os adolescentes, sobretudo os meninos, abrindo diante deles a perspectiva da entrada em um mundo ameaçador, regido pela lei do mais forte, diante do qual muitos deles apresentam recuos sintomáticos. A autoridade paterna, excluída de um discurso que a sancione, não tem onde se apoiar. Não vivemos mais no tempo do pequeno Hans, quando o pai apelava à vontade do “bom Deus” para fazer valer, na criança, suas próprias determinações. O pai contemporâneo não tem nenhuma instância imaginária a que recorrer. “Não existe o Outro do Outro”, disse certa vez Lacan.

Em uma sociedade laica, a transmissão da lei poderia sustentar-se em outras formações imaginárias, como os ideais coletivos. Mas, no Brasil de hoje, o espaço público e o imaginário social estão preenchidos pela emissão constante e indiferenciada — sem cortes significativos — de imagens televisivas e publicitárias. A tevê é o representante do Outro na modernidade tardia. Como o Deus cristão, ela parece onipresente, onisciente e onipotente. Mas é um Outro que não fala em nome de nenhum ser imaginário; seu mestre é o mercado, sua lei é o gozo.

Que significantes mestres regulam o gozo na sociedade atual? A potência paterna passou a ser medida pelo poder de consumo do pai real; fica excluída, assim, a possibilidade de um pai pobre fazer-se respeitar, mesmo nos casos em que este se apresente, à maneira antiga, como honesto, esforçado, trabalhador. Quanto aos que têm dinheiro, estes se vêem lançados em uma negociação permanente com os filhos, em termos de: se quiser que eu te obedeça, me pague.

A publicidade demonstra constantemente que a fruição individual de um objeto de consumo (apresentado sempre como objeto do desejo) vale mais do que todos os ideais coletivos do mundo. Descolado de uma cadeia significante que sustente sua função simbólica, o pai contemporâneo sente-se, com frequência, incapaz de exercer a autoridade necessária, tanto para estruturar seus filhos por meio da imposição de limites quanto para protegê-los dos riscos da falta de limites.

A lei do gozo é ameaçadora. O adolescente, em pleno momento de ressignificação edípica, vê-se convocado a realizar, metaforicamente, o incesto, gozo mortífero que ameaça dissolver sua precária integridade psíquica. Por uma outra via — a das fantasias inconscientes que se materializam no campo do Outro — a forte rivalidade exigida pelo estágio selvagem do capitalismo impõe padrões de masculinidade cada vez mais agressivos às relações entre os adolescentes, convocando todos a uma disputa fálica mortífera. Tal predisposição a resolver os conflitos de interesses pela via da violência não beneficia nem os mais fortes — que se defendem atacando primeiro — nem os mais fracos, que não sabem a quem recorrer para se defender.

Contra o risco de ser aniquilados pela lei do gozo, os ataques de pânico representam um meio extremo de manutenção da lei, na forma arcaica da lei do medo. A vigência da lei do medo restringe a atividade psíquica, o campo de representações do sujeito do desejo e o espaço de circulação dos indivíduos. Ela obedece apenas ao comando da angústia, que se apresenta — na falta de representações sociais onde ancorar a angústia de castração — como pura angústia de morte.

O menino que, aos 13 ou 14 anos, se sente apavorado ante a perspectiva de “enfrentar uma balada”; o garoto que se encolhe em casa, com medo da agressividade, verdadeira ou imaginária (pois vivemos uma realidade imaginária, socialmente construída, tão real quanto o asfalto da rua e os postes da calçada), de seus colegas de turma; o adolescente recém-saído da infância que começa a evitar um número cada vez maior de situações públicas até trancar-se no quarto e recusar-se a enfrentar até a sala de aulas e o espaço “protegido” dos shoppings: todos esses sintomas precisam ser escutados, não só no que diz respeito aos sujeitos que sofrem, individualmente, mas também no que concerne ao laço social. Mesmo nos casos em que o sofrimento mais intenso peça um tratamento medicamentoso, a psicanálise (ou alguma outra forma de terapia da palavra) é um instrumento capaz de abordar o medo de sentir medo característico das crises de pânico, que é fundamentalmente medo do inconsciente.

Notas

[1] Elias Canetti, A lingua absolvida, trad. de Kurt Jahn (São Paulo: Companhia das Letras, 1988).

[2] Ibid., p. 65.

[3] Cf. Sigmund Freud, “El sinistro”, em Obras Completas, vol. III, trad. de Luiz Lopez Ballesteros (Madri: Biblioteca Nueva, 1973)

[4] Rudyard Kipling, Mowgli, o menino lobo, trad. de Monteiro Lobato (São Paulo: IPeb/Nacional, 2004)

[5] Cf. Giorgio Agamben, Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, trad. de Henrique Burigo (Belo Horizonte, UFMG, 2002).

[6] Cf. Sigmund Freud, “Totem y tabu” (1913) em: Obras completas, vol. II, cit., pp 1745-1810.

[7] Ver, a respeito, Luiz Eduardo Soares, MV Bill & Celso Athaide, Cabeça de porco (Rio de Janeiro, Objetiva, 2005)

[8] Cf. Sigmund Freud, “Análisis de la fobia de un niño de cinco años (el caso Hans) – 1909”, em: Obras completas, vol. II, cit., pp. 1365-1439.

[9] Cf. Sigmund Freud, “El fetichismo”, (1927), em Obras completas, vol. III, cit., pp. 2993-2996.

[10] Este pensamento também está no texto de Freud de 1927, “El sinistro”, cit.

[11] Sigmund Freud, “El sinistro”, cit., p. 2503.

[12] Jacques Lacan, “A estrutura dos mitos na observação da fobia do pequeno Hans”, em O seminário 4: a relação de objeto (1956-1957), versão brasileira de Dulce Duque Estrada (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995), pp. 203-450.

[13] Cf. Sigmund Freud, “Análisis de la fobia de un niño de cinco años (el caso Hans) – 1909”, cit., p. 1438.

[14] Sigmund Freud, Inibición, sintoma y angustia, em Obras completas, vol. III, cit., pp. 2833-2883.

[15] Ibid. p. 2837.

[16] Mario Eduardo Costa Pereira, Psicopatologia dos ataques de pânico (São Paulo: Escut, 2003), p. 66.

[17] Sigmund Freud, Inibición, sintoma y angustia, em Obras completas, vol. III, cit., pp. 2837.

[18] Cf. Mario Eduardo Costa Pereira, Psicopatologia dos ataques de pânico, cit., p. 111: “[…] No plano epidemiológico, o estudo mais importante do transtorno de pânico é o do NIMH […] que, a partir de 1982, entrevistou mais de 18.500 adultos em cinco comunidades americanas. Este estudo mostrou que 9,3% dos entrevistados tiveram ataques de pânico isolados ao menos uma vez ao longo de suas vidas; 3,6% tiveram ataques de pânico sem preencher todos os critérios do transtorno de pânico e (…) 1,5% apresentaram o transtorno de pânico segundo os critérios do DSM-III em um dado momento de suas vidas”. Na página 113: “Um estudo muito importante realizado em 1985 nos Estados Unidos, em 3 mil pessoas com mais de 18 anos, mostrou uma prevalência dos ataques de pânico na população em geral de, aproximadamente, 3% em um período de seis meses”.

[19] Ver a respeito, Jurandir Freire Costa, “A personalidade somática do nosso tempo”, em O vestígio e a aura (Rio de Janeiro: Garamond, 2005)

[20] National Institute of Health (U.S. Department of Health and Human Services), “Emotion Regulating Protein Lacking in Panic Disorder”, Boletim do NIH News, 20-1-2004.

[21] Mario Eduardo Costa Pereira, Psicopatologia doa ataques de pânico, cit., p. 126.

[22] Benilton C. Bezerra Jr., “Naturalismo como anti-reducionismo. Notas sobre cérebro, mente e subjetividade”, em Cadernos do IPUB, VI (18), Rio de Janeiro, 2000, pp. 158-157.

[23] Mario Eduardo Costa Pereira, Psicopatologia doa ataques de pânico, cit., p. 10.

[24] Em comunicação oral com a autora.

[25] Benilton C. Bezerra Jr., “Naturalismo como anti-reducionismo. Notas sobre cérebro, mente e subjetividade”, cit., p. 4.

[26] Jacques Lacan, O seminário 4: a relação do objeto (1956-57), cit.

[27] Benilton C. Bezerra Jr., “Naturalismo como anti-reducionismo. Notas sobre cérebro, mente e subjetividade”, cit., p. 15.

[28] O pai imaginário é aquele apresentado à criança, no Édipo, através do discurso da mãe (ver, a respeito, Joel Dor, O pai e sua função na psicanálise (Rio de Janeiro: Zahar, 1991). Na adolescência, passagem do espaço familiar para o espaço público, a sustentação imaginária do pai depende de seu lugar não mais exclusivamente no discurso materno, mas nos discursos que organizam o campo social.

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