Erro, ilusão, loucura
por Bento Prado Jr.
Resumo
O combate à desrazão é talvez o sintoma mais evidente de uma eterna crise da razão. Desde Platão e os sofistas, há uma polêmica constante entre universalistas e relativistas, racionalistas e irracionalistas. É em torno desse combate que Wittgenstein escreveu sua última obra, Sobre a certeza, na qual, segundo Arthur Gianotti, preocupado em salvar o filósofo vienense do pântano do relativismo, a pluralidade dos jogos de linguagem não elimina uma referência ao horizonte da universalidade. Mas a questão é mais complexa. Ao escrever o livro, o alvo de Wittgenstein era criticar Moore e sua filosofia do senso comum. O que ele mostra é o desenrolar incerto e interrogativo da pesquisa. A tensão (o “atrito”) entre universalismo e relativismo lhe serve, não para tentar uma síntese, mas para desqualificar simultaneamente os termos opostos, como fez Pascal. Certamente existem regras, mas não importa saber em que elas se baseiam. Se a ilusão filosófica nasce de uma húbris que nos afasta do senso comum, a terapia não nos devolve simplesmente à tranquilidade saudável do senso comum. No Tractatus ele apontava, no final, o silêncio para além da linguagem. Na última fase de sua obra, ele aponta uma atitude que atravessa os jogos de linguagem sem privilegiar nenhum. Trata-se de um perspectivismo sem relativismo. A tarefa do filósofo é explorar a alteridade, é mergulhar no caos buscando lá sentir-se bem. Pois, como diz Wittgenstein, “se na vida estamos cercados pela morte, assim também na saúde do entendimento estamos cercados pela loucura”.
Para Zeza, minha irmã do morro da Mangueira.
Les hommes sont si nécessairement fous, que ce serait être fou par un autre tour de folie de n’être pas fou.
Blaise Pascal
Beim Philosophieren muss man in’s alte Chaos hinabsteigen, und sich dort wohlfühlen.
Ludwig Wittgenstein
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Crisis perennis ou crise datada? Se datada, de quando? É certo que razão e filosofia nascem juntas, na Grécia, já em crise. Um pouco como se o verme fosse co-natural à maçã. Como imaginar a instituição da filosofia grega clássica (Sócrates, Platão, Aristóteles), sem o desafio sofístico? Que a razão possa ter alcance universal e ancoragem ontológica (que, enfim, seja Razão no sentido mais ambicioso e ilimitado da palavra), é preciso demonstrá-lo contra aqueles que dela fazem uma ilha em deriva, que se dilui mesmo no rio que a transporta — nenhum limite, nenhuma forma permanente, nada que oponha o mundo privado ao mundo público, o tempo à eternidade, o conceito à simples experiência vivida. É preciso distinguir entre sentido e verdade, instalar dialética, analítica, semântica, ontologia, contra aqueles que produzem paradoxos a partir das ideias negativas — do não-ser, do erro, da ilusão, da loucura, enfim —, contra os heróis da me-ontologia, como Górgias, que dissolve a voz humana ou a fala racional no ruído anônimo da natureza, murmúrio inarticulado do peixe ou da planta tangida pelo vento.
Da mesma maneira, como compreender as empresas de Descartes e de Kant sem a desrazão que combatem (aqueles que vêem espíritos ou formas substanciais sem método analítico)? O Outro da razão a ser domesticado por um ou por outro não é certamente o mesmo, como não coincide com o adversário dos gregos clássicos — mas um ar de família parece reuni-los, como que contra sua vontade. Philosophia perennis? Apologia escolar da filosofia? Talvez não necessariamente, já que reconheço necessário distinguir momentos diferentes — e sobretudo a figura contemporânea dessa crise quase eterna. Lembro, aqui, uma frase da primeira nota de trabalho de O visível e o invisível, de Merleau-Ponty, onde o filósofo diz, nem mais nem menos: “A crise jamais foi tão profunda”. E sua frase significa, pelo menos, desconfiança em relação ao otimismo ilustrado, que liga as ideias de progresso social e epistêmico; mais do que isso, suponhamos que se refere à sua mais imediata contemporaneidade. O mesmo Merleau-Ponty que se perguntara, em outra ocasião, sem drama, mais ou menos o seguinte: “Circula mais verdade nos dias de hoje do que no passado?”. É difícil imaginar ingenuidade filosófica ou histórico-filosófica, por parte de Merleau-Ponty. Suponhamos, então, que ele se refere a alguma característica do pensamento contemporâneo (o texto é escrito nos fins da década de 50) — e parece referir-se a algo como uma banalização, um esvaziamento sem par na história, da filosofia. Entramos na civilização do paper. Levemos em consideração que, quarenta anos depois, esse argumento não parece inteiramente deslocado. E que certamente encontraria a compreensão de Wittgenstein, de que falaremos hoje, e que parecia pensar na mesma direção.
Senão, vejamos. Não faltam discursos filosóficos contemporâneos — estes mais perto de nós, nesta última década pelo menos — que falam da crise da razão e fazem um diagnóstico diferente do de Merleau-Ponty ou de Wittgenstein. Falo aqui dos inimigos da nova sofística (ou do pensamento “pós-moderno”, de direita ou esquerda), e que invocam a necessidade de vencer a crise e restaurar a razão. Convergiriam assim, estranhamente, o neoliberalismo de alguns filósofos franceses (que comemoram a queda do muro de Berlim e convidam à restauração do bom espírito das Lumières) e a velha iniciativa de Lukács, em Die Zerstörung der Vernunft, mau livro de um grande pensador.[1] É preciso lembrar, aqui, o diagnóstico de Paulo E. Arantes sobre a curiosa convergência entre autores como R. Rorty e J. Habermas, sobre o fundo das culturas americana e alemã — diagnóstico que identifica uma grande ambiguidade, tanto nos pontos de contato como nos pontos de crise desse cruzamento entre duas culturas.[2] Seria preciso acrescentar, a esse imbróglio ideológico-filosófico, a origem husserliana (a ideia de Krisis tanto da humanidade como da ciência europeias) no diagnóstico frankfurtiano da dialética das Luzes e de seus descarrilamentos, como sugeriu Carlos Alberto Ribeiro de Moura, referindo-se particularmente ao texto “Ciência e fenomenologia”, de Herbert Marcuse.[3] Convenhamos que tal coincidência no combate ao irracionalismo, visando, num caso, o que se considera direitismo e, no outro, esquerdismo, põe em xeque o uso heurístico, o interesse teórico de pseudonoções como a de irracionalismo. Alguém já se proclamou irracionalista sinceramente ou sem ironia? Ou, lembrando Émile Bréhier, que se referia na ocasião ao libertinismo, não poderíamos dizer: “On est toujours l’irrationaliste de quelqu’un”?
De qualquer maneira, a questão da crise da razão aparece, hoje, também, na polêmica entre modernos e pós-modernos, universalistas e relativistas, racionalistas e irracionalistas. Talvez valha a pena, por isso mesmo, tentar mostrar a impertinência dessa formulação do problema (sugerir que essa descrição da crise não é a melhor). Sobretudo quando é guiada pela leitura de Wittgenstein, numa polêmica nem sempre esclarecedora sobre a melhor interpretação de seus textos.
O que quero fazer, nesta circunstância, é pensar Wittgenstein como protagonista essencial da crise contemporânea da razão, de maneira a retirá-lo do contexto em que o debate acima referido se desenrola, devolvê-lo ao lugar que parece ocupar na história da filosofia moderna, no eixo que vai a ele, vindo de Descartes e passando por Kant, mas sobretudo por Pascal. Como a razão moderna exorciza o seu Outro (erro, ilusão, loucura), qual a validade dos argumentos que limitam o alcance da razão (argumentos da loucura e do sonho, dialética transcendental), como Wittgenstein acolhe e reelabora tais argumentos no seu último texto, Über Gewissheit [Sobre a certeza]? Arrisquemos uma hipótese: não poderíamos dizer que a empresa desse livro renova a empresa crítica do Tractatus? Neste caso, tratava-se de mostrar o que queriam dizer (sem poderem fazê-lo) solipsistas e realistas. Lá, alguma superioridade era reconhecida ao solipsismo — sob a estrita condição de reconhecer que sua verdade era indizível, não podia sobreviver à sua expressão teórica e coincidia, no limite, com a tese aparentemente oposta do realismo. A nova filosofia da lógica, como a antiga dialética transcendental, faz a gênese conceitual das ilusões da metafísica. No segundo caso, trata-se de opor idealismo e relativismo (ou o idealismo protagorizado) ao realismo, nos mesmos termos. Se assim for, como Kant, Wittgenstein oporia sistematicamente o interesse do que a metafísica queria dizer à sua expressão necessariamente equivocada. Na linguagem de G. Lebrun, o avesso da empresa crítica seria uma espécie de história “filosofante” da filosofia.[4]
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Trata-se, portanto, de visar essa arqueologia implícita da filosofia moderna, se ela existe (e não estou completamente enganado), no pensamento de Wittgenstein, aqui mais kantiano do que se está normalmente disposto a aceitar, particularmente nos seus últimos escritos e, antecipemos, nas últimas frases de Sobre a certeza.
Mas, para fazê-lo, tomemos como fio condutor o último livro de José Arthur Giannotti[5] e sublinhemos seu grande acerto, sobre o morno fundo do debate contemporâneo entre modernos e pós-modernos, ao esvaziar, de um só golpe, dois equívocos simétricos, vigentes na literatura sobre Wittgenstein: tanto a leitura relativista como a pragmático-transcendental-comunicativa da obra de maturidade do filósofo vienense. Um grande acerto, sem dúvida, mas que parece trazer consigo alguns problemas; numa palavra, minha impressão é de que, no livro de Giannotti, há vários indícios de que foi levado, como que sem perceber, para perto de Apel e de Habermas, autores dos quaisquer, no entanto e vivamente, demarcar-se e afastar-se. No meu primeiro passo, quero fornecer as razões deste meu juízo, detendo-me no último capítulo de Apresentação do mundo, para discutir a apropriação filosófica que nele Giannotti faz dos últimos escritos de Wittgenstein.
É bem verdade que o texto de Giannotti está muito mais voltado contra a leitura relativista do que contra a neo frankfurtiana. Todo o andamento do capítulo é marcado pela intenção de mostrar que a pluralidade dos jogos de linguagem e sua radicação na diversidade das formas de vida não elimina uma referência essencial ao horizonte da universalidade. Tese que é montada sistematicamente: em primeiro lugar, mostra-se que, se a “dinâmica” dos jogos de linguagem se desdobra sobre o fundo de uma facticidade pressuposta, isso não rouba à sua “compreensão”, ou à sua análise, um estilo essencialmente gramatical ou lógico (e não genético) e transcendental (e não empírico). Que se possa, assim, separar “questões gramaticais” de “questões de história natural” é demonstrado com o esclarecimento de que mostrar a “base vital” de um jogo de linguagem não significa afirmar que ele aí vem beber seu sentido ou fundar sua verdade — ao contrário do recurso husserliano fundacional ao Lebenswelt, ou à Terra que, como Ur-arkhe (e contra a ontologia precipitada e já “positivista” de Galileu, que confunde o dado com o construído), não se move. De resto, é preciso reconhecer que, caminhando já na direção da reflexão de Wittgenstein segundo a qual, se admitirmos que a Terra, como Ur-arkhe, se move (não necessariamente objetivo-real-empiricamente), começaremos a compreender a Grundlösigkeit do fundamento. Giannotti afirma com razão que, segundo Wittgenstein, não são princípios “indubitáveis” que dão sentido e base ao mundo, mas a tarefa ou a prática do julgar e do pensar. De fato, a dialética, que une e separa polaridade e bipolaridade no funcionamento do jogo de linguagem, dá estatuto inédito à ideia de fundação, introduzindo a “difícil” ideia, como diz Wittgenstein, da Grundlösigkeit do fundamento, lembrando os comentários de Heidegger, em Der Satz vom Grund, do belo verso de Angelus Silesius: “Die Rose ist öhne warum”. Mas, sobretudo, Giannotti parece ter razão ou fundamento (ao contrário da rosa) porque, se “a pá entorta” ao cavar o chão em busca do fundamento arquissólido, ou aí encontra apenas o tecido frágil de convenções demasiado humanas, não deixa de descobrir canais de comunicação com outros jogos de linguagem. E, com eles, e contra os relativistas ou os culturalistas, estão garantidos a comunicabilidade entre todos os jogos de linguagem, entre todos os homens, e o horizonte universal da razão.
Quanto a mim, nada parece haver a acrescentar, no que concerne à demolição do relativismo. Talvez apenas tenha havido excesso de zelo. Com efeito, afirmações como: “A forma de vida considerada em Sobre a certeza é a da Grã-Bretanha do pós-guerra. O princípio obtido a partir dessa forma de vida pode, no máximo, ser adotado e aplicado a alguns países europeus da mesma época, ou, com maiores restrições ainda, a alguns países europeus de épocas anteriores”;[6] afirmações como essa parecem ruir por si mesmas. Na verdade, ao escrever Sobre a certeza, Wittgenstein parece não escrever apenas contra Moore, mas também contra os ingleses ou contra os tempos modernos. Valem para esse livro as primeiras linhas de uma versão antiga do prefácio às Philosophische Bemerkungen: “Este livro foi escrito para aqueles que têm afinidade com o espírito em que foi escrito. É um espírito que, creio, é diferente da principal corrente da civilização europeia e americana”.[7]
Deixemos de lado, portanto, a questão do relativismo e passemos ao que me interessa no momento: isto é, saber se, com a água do banho, Giannotti não jogou fora também o bebê, ou ainda, se, para salvar a razão da crise ou do pântano do relativismo, não nos devolveu ao chão ilusoriamente sólido da metafísica dogmática. E comecemos por algo que já observei anteriormente,[8] ou seja, pelo fato de Giannotti traduzir sistematicamente vernunftige Mensch por “homem racional”, e não por “pessoa razoável”, como deveria. As duas expressões não têm o mesmo peso ou o mesmo uso. Enquanto a primeira, na linguagem da tradição da filosofia, remete ao domínio da episteme ou da noesis, a segunda parece remeter antes ao da doxa ou da fronesis; no contexto de Sobre a certeza, em todo caso, a ideia de Vernunftigkeit sempre faz contraponto à hybris (arrogância) filosófica, ao desejo de um fundamento último, seja mediante o exercício metódico e metafísico da dúvida, seja mediante a promoção cognitivo-metafísica das “verdades” do senso comum: isto é, sempre milita contra Descartes e Moore. Como o alvo de Giannotti é compatibilizar o universalismo da razão com o pluralismo dos jogos de linguagem, sua tradução é estratégica. Mas discutível, já que devemos compreender a expressão “vernunftige Mensch” apenas como aquele que joga bem o seu jogo, que não indaga por suas bases, já que fazê-lo seria, justamente, interromper o jogo. Na verdade, seria preciso, aqui, distinguir, na prática do homem razoável, o que ela implica de reflexividade do que implica para a ideia de algo como um Gemeinsinn. Confesso que sinto, nesses textos de Wittgenstein, um tom kantiano — mas deixemos para adiante essa questão que só poderá ser bem formulada atravessando a leitura giannottiana.
De qualquer maneira, já essa simples escolha de tradutor parece ampliar exageradamente a dimensão cognitiva da ideia de jogo de linguagem, sobretudo se associada à ênfase no fato de que, para Wittgenstein, a verdade de certas proposições aparentemente empíricas pertence a nosso quadro de referência, isto é, à própria base de nosso Weltbild. O que há na base, mitologia ou saber positivo? O fato é que tais enunciados permitem a Giannotti avançar não apenas na direção do universalismo, mas dar alcance ontológico à ideia de jogo de linguagem. Alcance ontológico no sentido mais forte da palavra, que recupera e relança em jogo a velha ideia de adequatio.
É assim que Giannotti nos diz: “Já analisamos como se articula o acordo, a harmonia entre o pensamento e a realidade: de um lado, não é porque digo falsamente que algo é vermelho que o real adquire essa propriedade[…]”.[9] No Tractatus, certamente, era necessário mostrar a harmonia perfeita entre pensamento e realidade e era possível fazê-lo. Mas, aqui, como? Concordo, com Giannotti, que “esta maçã é vermelha para todo mundo”, como Wittgenstein concordaria, desde que o enunciado fosse situado “em certas circunstâncias”, isto é, como prática no fluxo da vida, sem su bli nhar o é, isto é, retirando-lhe justamente o “peso ontológico” que lhe atribui sua interpretação metafísica. Não é esse, aliás, o argumento central de Sobre a certeza?
Mas, caminhemos devagar com o andor! Quando Giannotti fala da harmonia entre pensamento e realidade, no mais das vezes, está pensando simplesmente, creio, na relação entre regra e caso, que é suscetível de uma compreensão puramente crítica e não implica metafísica alguma, realista ou idealista. Sem dúvida, se um jogo de linguagem funciona — e enquanto funciona —, podemos dizer, em algum sentido, que há “harmonia” ou que não há muito atrito ou fricção entre o pensamento e a realidade. Mas a interpretação de Giannotti parece ser mais forte, já que ele dissera pouco antes:
[…] o próprio funcionamento da ordem [uma ordem dada por alguém a outrem — nota de B. P.] coloca no horizonte a possibilidade de adequar esse jogo à nova situação. Conforme, pois, a natureza do entendimento (Verständigung) com o qual as pessoas se comprometem, coloca-se no horizonte o sentido da adequação (Übereinstimmung) e fundamentação (Begründung) dos jogos.[10]
O que vejo aqui de problemático? Aparentemente, a expressão Übereinstimmung não comparece em Sobre a certeza de maneira a amparar a ideia de fundamentação e adequação à realidade dos jogos de linguagem. Aliás, no parágrafo 215, está dito explicitamente: “Aqui vemos que a ideia de ‘concordância com a realidade’ (Ubereinstimmung mit der Wirklichkeit) não tem nenhuma aplicação clara”. Giannotti não ignora o parágrafo, mas insinua, em seu comentário, que essa ideia pode ter aplicação, embora não muito clara. O que, confesso, não é muito claro para mim. De resto, as outras ocorrências da palavra Übereinstimmung, no livro em questão, não parecem confirmar o pequeno desvio que Giannotti impõe ao parágrafo 215. A primeira, no parágrafo 191, parece mostrar que, com a ideia de adequação, temos algo como um inevitável círculo vicioso: “Bem, se tudo fala por uma hipótese e nada contra ela, então ela é verdadeira? Poderíamos chamá-la assim. — Mas concorda com a realidade, com os fatos? — Com essa questão você já está girando em falso”. Ou, ainda, no parágrafo 199: “A razão pela qual uso a expressão ‘verdadeiro ou falso’ tem algo de enganador em si, pois parece equivaler a dizer ‘concorda com os fatos ou não’, enquanto o que está em questão é justamente o que é ‘concordância’ (Übereinstimmung) aqui”.
Se é problemática a concordância entre hipótese e fato, no interior de um jogo de linguagem, que dizer da concordância entre linguagem e mundo, ou entre pensamento e realidade (holisticamente considerados), que está “fundada” em proposições “polares”, que nada têm de comum com as hipóteses e que não são nem verdadeiras nem falsas? É claro que o Saber é sempre um dom da Natureza, como diz Wittgenstein no parágrafo 505. Sem regularidade natural, não poderíamos falar, mas não poderíamos sequer sobreviver. Mas isso não pressupõe harmonia preestabelecida entre pensamento e realidade. Aqui, com Giannotti, parecemos regredir da Crítica da faculdade de julgar para a Monadologia de Leibniz. Não é necessário que o mundo, em si ou para Deus, seja bem-comportado (como ele era, de fato, no Tractatus, já que desde sempre domesticado no interior do espaço lógico) para que eu não caia do cavalo, para usar a metáfora de Wittgenstein. O mundo pode empinar, pular ou mesmo bolear. No pior dos casos, mudo de sela ou transformo meu jogo de linguagem. Mas, para que haja verdade (ou erro), certeza (ou dúvida), razão (ou loucura), nenhuma harmonia precisa ser estipulada: deve-se apenas aceitar que até agora, pelo menos, tudo ou quase tudo correu bem — até agora, já que para Wittgenstein, como para Hume, não cabe ao filósofo fazer profecias. Basta aceitar algo como a ideia vaga (e essencialmente vaga e indeterminada) da regularidade da natureza. Ideia a um só tempo empírica e transcendental, como os famosos mistos empírico-transcendentais de Foucault em Les mots et les choses. Aí se juntam “fatos muito gerais da natureza” e condições gramaticais ou lógicas da significação ou do uso da linguagem: vida, linguagem, ação ou trabalho. Junção, é preciso acrescentar, na qual a inegável facticidade reconhecida não implica forma alguma de empirismo. Como observa Bouveresse: “[…] alguns fatos poderiam tornar nossos jogos de linguagem impossíveis ou sem interesse, mas nenhum dos fatos que podemos constatar e mencionar tornou-os necessários”.[11] Um pouco como se esses fatos fornecessem uma matéria, apenas, a ser marcada ou enformada pela ação de uma instância transcendental que, só ela, fornece necessidade e inteligibilidade.
Na verdade, à ideia de adequação só resta um uso que é, se vocês me permitem a expressão, “intra-lúdico-linguística”, como parece dizer o próprio Wittgenstein, no parágrafo 203: “Em que consiste esta adequação, senão no fato de que aquilo que é evidência nesses jogos de linguagem fala a favor de nossa proposição?”. Talvez até pudéssemos dizer que, mais importante do que uma eventual “adequação”, na descrição da dinâmica dos jogos de linguagem, seja a inadequação, ou seja, o atrito, como se estivéssemos diante de uma filosofia do não ou de um inesperado parentesco com Bachelard. Pois é esse atrito que parece imprimir movimento aos jogos de linguagem, fazendo deles essa “práxis mutável” que Giannotti opõe à leitura apeliana de Wittgenstein. Operação que não vai sem dificuldade para Giannotti, que é obrigado a conter imediatamente o mobilismo sugerido, logo após sua sugestão. Foi, digamos, quase um lapso. É o que podemos ler nas seguintes frases: “Não é porque as águas e as areias se movem, as margens se modificam com o tempo, que deixamos de nos banhar no mesmo rio. Porquanto para dizer que se banha no mesmo rio essas mudanças não são pertinentes para que se demarquem as margens e o leito”.[12] Essas frases de Giannotti comentam os parágrafos 97 e 99, onde Wittgenstein fala das mudanças dos jogos de linguagem, quando uma proposição (de forma empírica) “endurece”, por assim dizer, fundindo-se na formação ou na mitologia de base ou, pelo contrário, quando um desses elementos de base do Weltbild se fluidifica, tornando-se proposição empírica de pleno direito, reassumindo sua bipolaridade e voltando a girar em torno do eixo polar imó vel. Giannotti, na verdade, liga esse argumento ao argumento da regularidade da natureza — se tudo mudasse aleatoriamente, como seria possí vel a linguagem? E tem razão ao fazê-lo. Mas não exagera ele, no esforço de mitigar o mobilismo, como Platão mais do que como Wittgenstein, para guardar lugar para o uso da linguagem? Qual é o sentido da metáfora heraclitiana e fluvial deste último? Nós podemos ler o seguinte no parágrafo 97 de Sobre a certeza: “A mitologia pode voltar ao estado de fluxo, o leito do rio dos pensamentos pode deslocar-se. Mas eu distingo entre o movimento das águas no leito do rio e a mudança do próprio leito; embora não haja distinção nítida entre um e outro”. Embora a distinção não seja nítida (neste caso como em todos os outros, já que abandonamos o platonismo do Tractatus), Wittgenstein parece insistir na diferença entre o movimento das águas e a mudança do perfil das margens do rio. Porque a mudança das margens ou do leito é a mudança do próprio rio. Um jogo de linguagem permanece o mesmo, mesmo se proposições nele consideradas verdadeiras passam a ser consideradas falsas e vice-versa. Mas se o bloco ou o aglome rado das proposições polares — a mitologia de base — muda, não mais se pode di zer que jogamos o mesmo jogo e que nos banhamos no mesmo rio. Não é o mundo que se revela volúvel, mobile quale la donna, apenas nós mudamos as regras de nosso jogo e, com elas, nossa forma de vida, isto é, nós mudamos.
“Banhamos todos no mesmo rio”, parece dizer Giannotti, reatando os laços entre a filosofia de Wittgenstein e a filosofia clássica grega de Platão e Aristóteles. E não será a ideia da multiplicidade dos jogos de linguagem que há de impedir, à primeira vista, a celebração dessas núpcias. Para melhor neutralizar o pluralismo (senão o relativismo ao menos virtual) dos jogos de linguagem, Giannotti procede a uma dupla operação, que percorre esses jogos em duas direções diferentes.
Numa operação, por assim dizer, interna, Giannotti persegue uma linha centrípeta, que o leva da periferia dos jogos de linguagem a seu centro, ou, para manter a metáfora wittgensteiniana que explora com felicidade, da superfície do globo que gira em direção a seu eixo imóvel (para ser mais platônico, Giannotti poderia lembrar que o movimento da esfera, em torno de seu centro imóvel, é a melhor metáfora da eternidade). Tal movimento coincide, na verdade, com o movimento da reflexão, tal como o entende Giannotti, isto é, com o movimento da descrição dos jogos de linguagem, ou com o trabalho do filósofo que escava o chão da prática linguística, em direção à mitologia que serve de grundlösige Grund ao Weltbild que ele quer pensar. Numa outra operação, à primeira complementar, e que poderia ser descrita como centrífuga, Giannotti prolonga, transversalmente, uma linha que leva do eixo imóvel, acima referido, em direção a todos os demais, esboçando o campo de tradução possível entre todos os jogos de linguagem. Ou, como resume o próprio Giannotti:
No processo regressivo de formular os fundamentos dos jogos de linguagem chega-se ao pressuposto de que os seres humanos podem comunicar-se entre si, a despeito das diferenças de suas formas de vida, porque o fundamento nada mais é do que a possibilidade deles se perguntarem pelas bases de suas intercomunicações possíveis, possibilidade inscrita quando tentam e logram compreender ao menos as fímbrias duma linguagem a mais alheia, ainda que errando.[13]
Note-se que essa abertura para o Outro ou para o universal é descrita como cúmplice do trabalho do filósofo ou como garantia da vocação essencialmente universalista da filosofia. O que tenderia a transformar a filosofia, a contrapelo do pensamento de Wittgenstein, na verdade da linguagem ou em alguma forma de jogo universal, para onde convergem ou devem convergir os diferentes jogos de linguagem. Mas não dizia, mais ou menos, Wittgenstein que a essência da filosofia reside no uso equivocado da linguagem? Há que acrescentar que pertence à essência do vernunftige Mensch (mais tarde voltaremos ao assunto), justamente, não perguntar pelo fundamento, não ser filósofo. A análise filosófica, que pode desarmar a pergunta pelo fundamento (essa doença mortal da linguagem), caminha na contracorrente do movimento espontâneo da Vernunftigkeit, definida como o bom senso comum. Vernunftig, o filósofo? Lembremo-nos da cena no jardim londrino, imaginada por Wittgenstein em Sobre a certeza: uma senhora ouve um diálogo entre dois filósofos que discutem a existência do mundo exterior (ou desta árvore, o que não é a mesma coisa), e um deles diz, mais ou menos: “Minha senhora, não somos loucos, estamos apenas conversando filosofia”. Giannotti quer encontrar na reflexividade do uso da linguagem, espontânea e natural (se assim podemos dizer), uma espécie de garantia antecipada da eficácia universal da razão. Como se a linguagem preservasse, em sua essência, um lugar de onde o filósofo sobrevoasse a pluralidade demasiado factícia dos jogos de linguagem, desempenhando o papel que Mannheim reservava à “Intelligentzia”, que flutuaria livremente entre ou sobre as classes e as ideologias em conflito.
Na verdade — façamos justiça a Giannotti —, não se trata de um pairar mais ou menos miraculoso — ou de um deus ex machina que generosa e inesperadamente vem salvar-nos do relativismo. Pois Giannotti nos re vela o terreno comum e sólido onde pode ancorar-se essa virtual compreensão da (ou abertura para a) multiplicidade dos jogos de linguagem reais e possíveis:
[…] é crucial não perder de vista que este fio que alinhava os contatos e os confrontos das diferentes formas de vida remete a uma base quase animal, àquilo que nos faz homens num senso mais elementar, a um certo reino animal do espírito, a um terreno já conquistado, visível no cotidiano se a própria prática da linguagem não o acobertasse. Exatamente aquele terreno comum a partir do qual interpretamos uma linguagem desconhecida.[14]
Notemos, antes de seguir adiante, que aqui, paradoxalmente, ao menos para uma leitura de Wittgenstein, é a prática da linguagem, e não a perplexidade, que deriva de seu mau uso, que entope os canais da compreensão e obs curece nossa visão das coisas elas mesmas.
Essa humanitas minima, na teoria de Giannotti, embora sem contar com conteúdo determinado (ou com um “decálogo primitivo”, como ele diz) antecipa, por debaixo dos jogos de linguagem, e por assim dizer em silêncio, os Grundprinzipien da pesquisa humana, tal como podem ou devem ser explicitados pela análise filosófica. “Grundprinzipien”, acrescenta Giannotti, que “constituem o horizonte tanto da pesquisa quanto do processo de persuasão pelo qual introduzimos terceiros paulatinamente em nosso mundo cotidiano.”[15]
Se essa caracterização do esforço de Giannotti não está completamente errada, e se, com ela, compreendemos as (boas) razões que invoca contra a interpretação relativista de Wittgenstein, fica menos claro por que desqualifica as de Apel ou de Habermas. O que nelas censura é a fidelidade ao mo delo clássico e fixista da razão e a ignorância de que, para Wittgenstein, a ló gi ca e a gramática se enraízam numa práxis mutável. Ora, Apel e Habermas não ignoram propriamente a mobilidade da práxis básica — o que fazem é interpretá-la teleologicamente,[16] isto é, como referida ao alvo de uma comunidade comunicativa ideal, que lhes parece estar virtualmente inscrita no fato bruto de qualquer comunidade comunicativa real ou empiricamente dada. Não é “realismo empírico” ou materialismo histórico que faz falta du côté de Frankfurt, o problema está em seu “idealismo transcendental” ou sua “filosofia da história”; ou seja, é a ideia de instituir, com a ajuda de Wittgenstein, mas contra a letra e o espírito de sua obra, a ideia de uma espécie de jogo de linguagem ideal e final, que atrapalha a compreensão da obra de Wittgenstein e do próprio Mundo. Ideia mais próxima da ficção do Glasperlenspiel do romance de Herman Hesse (essa espécie de jogo unificador de todos os saberes, da música e da matemática, englobando a totalidade da ciência e da cultura, incorporado num organon materializado como um super ou metacomputador avant la lettre) do que da realidade da filosofia de Wittgenstein. É claro que posso inventar ou imaginar um jogo de linguagem — mas imaginar um jogo de linguagem universal, cuja vocação é iluminar a totalidade dos jogos de linguagem reais e possíveis, isso parece corresponder a algo como um círculo quadrado. Se é fácil conceber que todo jogo de linguagem é reflexionante (meus juízos fornecem os princípios do julgamento[17]), mais difícil é imaginar que dois jogos possam relacionar-se como uma metalinguagem se relaciona com sua linguagem-objeto. Nesse sentido, a observação de Giannotti é justificada: há fidelidade, por parte dos neofrankfurtianos, pelo menos à ideia clássica de que a filosofia tem um objeto próprio, que pode falar significativa e verazmente dele, que pode do miná-lo teoricamente. Ideia incompatível, talvez, com a de uma dialética negativa.
Mas não é a um resultado parecido que chega Giannotti? Sem recorrer à linguagem teleológica dos frankfurtianos (Giannotti não pode se esquecer do belo parágrafo 559: “Você precisa ter em mente que o jogo de linguagem é, por assim dizer, imprevisível. Quero dizer: não está fundado. Não é nem razoável nem não razoável. — Está aí, como nossa vida”), Giannotti não deixa de endossar, pelo menos, a ideia da convergência aos jogos de linguagem, a partir do chão da humanidade mínima comum, em direção aos princípios universais da pesquisa humana ou de nossa racionalidade — tudo isso garantido pela comunicação possível entre os diferentes jogos de linguagem. Estamos tão longe assim da filosofia da comunidade comunicativa?
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Boa parte das dificuldades que acabamos de mostrar provém, talvez, da atitude subjacente à leitura de Giannotti: atravessando os textos de Wittgens tein na direção de seus próprios alvos especulativos, talvez ainda muito marcados por Husserl e Hegel, não se demora, como deveria, na ruminação do alvo de Wittgenstein, tal como ele mesmo o visa, ou tenta visá-lo, na hesitação e no tremor de uma pesquisa que se autocorrige sem des continuar, sem jamais atingir o repouso de sua expressão plena e finalmente transparente. Incompletude essencial do pensamento que é dificilmente reconhecida pelos comentadores do filósofo e que prejudica fortemente a compreensão de seus escritos. De um filósofo que sempre insistiu sobre a dificuldade essencial da expressão .
E, no entanto, o alvo é bem indicado, em Sobre a certeza, senão claramente definido: trata-se de criticar Moore e sua filosofia do senso comum que, contra toda a tradição do pensamento (particularmente do idealismo, do ceticismo e do solipsismo), quer finalmente desencavar o chão sólido onde apoiar definitivamente a filosofia. Tudo isso numa operação que se exprime ou se limita a exprimir teses, na verdade truísmos, como tal reco nhecidos, que estariam, por sua própria banalidade, além de qualquer razão de duvidar, a definir o horizonte da verdade absoluta. Assim, em “Uma defesa do senso comum”, diz Moore:
Começo, então, com minha lista de truísmos, cada um dos quais (em minha opinião) sei, com certeza, ser verdadeiro. As proposições a serem incluídas nesta lista são as seguintes:
Existe presentemente um corpo humano vivo, que é meu corpo. Este corpo nasceu há algum tempo no passado, e existiu continuamente desde então, embora não sem sofrer mudanças; ele era, por exemplo, muito menor quando nasceu, e durante algum tempo posterior foi menor do que é agora.[18]
Poupando os auditores ou leitores, não prossigo na enumeração da longa lista dessas verdades e insisto, apenas, em que o que choca Wittgenstein é a ênfase que sublinha a expressão sei, que parece fundar, de alguma maneira, a lista das verdades triviais ou absolutas, transmitindo-lhes sua certeza imediata ou subjetiva. Todo o livro Sobre a certeza visa mostrar como tais proposições não podem, por razões lógico-gramaticais estritas, desempenhar o tranquilo papel filosófico fundacional que lhes atribui Moore. Trata-se de mostrar a impossibilidade de fundar, nas “evidências” do senso comum, uma filosofia realista e de mostrar, simultaneamente, que nenhuma evidência, nenhum contato privilegiado consigo mesmo, pode, tampouco, ser chamada a amparar uma filosofia não realista, isto é, idealista, cética ou solipsista. No fundo, aponta Wittgenstein, são as mesmas razões que cancelam o sentido possível de realismo e de idealismo, que mostram que a aparente oposição entre essas metafísicas é meramente efeito de superfície, que ambas partilham do mesmo equívoco filosófico de base. É o que está escrito, de cara, desde o início de Sobre a certeza, no seu parágrafo 37, onde Wittgenstein adverte o leitor:
Mas será uma resposta adequada ao ceticismo do idealista ou às certezas do realista dizer que “há objetos físicos” é um absurdo (Unsinn)? Para eles, no final das contas, não se trata de um absurdo. Todavia, seria uma resposta dizer: — esta asserção, ou sua oposta, é uma tentativa equivocada de exprimir o que não pode ser assim expresso. E, que há equívoco, isso pode ser mostrado; mas isso mesmo não encerra o assunto. Precisamos ver que o que se apresenta a nós como uma primeira expressão de uma dificuldade, ou de sua solução, pode ainda ser uma expressão falha. Assim como alguém que, criticando com justiça um quadro, faz desde o início uma censura lá onde não tem cabimento — nesse caso, uma investigação torna-se necessária, para localizar o justo ponto de ataque da crítica.
Todo o livro deve, portanto, ser compreendido como esforço por rea lizar essa correção da linha de tiro crítica. O alvo já está dado, mas de alguma maneira está mal focado. E sua correção — a desqualificação tanto do rea lismo como do idealismo, da metafísica, enfim — só se torna possível com o desdobramento da análise gramatical do comportamento dos conceitos de saber, crer, duvidar, estar seguro de…, errar, sonhar. A conclusão do livro está pronta desde o seu início, mas só o desenrolar ziguezagueante, frequentemente incerto e interrogativo da pesquisa pode dar-lhe seu horizonte verdadeiro, no cruzamento da definição dos três termos cruciais de erro, ilusão e loucura, que definem a vocação problemática e crítica da razão e da filosofia.
Imobilizado em seu conteúdo temático (isto é, desligado do telos pro blemático ou, como veremos adiante, de seu movimento reflexivo), o último escrito de Wittgenstein é muito simples. Gilbert Hottois, por exemplo, fornece um esquema bem preciso dos momentos argumentativos de Sobre a certeza:
Wittgenstein põe precisamente em questão e denuncia: a) que saibamos, co nheçamos tais proposições [os truísmos enunciados por Moore como o cerne duro da boa e universal filosofia do senso comum — nota de B. P.]; b) que possam ser consideradas absolutamente verdadeiras; c) que seja possível produzir a menor prova de tais proposições e mais geralmente do common sense view of the world ou do realismo; d) que o “eu” da expressão “Eu sei que…” desempenha qualquer papel significativo.[19]
Mas esse comentador não se limita a fazer um boa radiografia temática do livro de Wittgenstein: ao fazê-lo, dá também conta do sentido dos argumentos que aí parecem levar ao relativismo e que fazem a festa dos intérpretes “pós-modernos”, adeptos do culturalismo. Há que interpretar, afirma com razão, os textos que insistem na pluralidade e na irredutibilidade dos Weltbilden, no quadro da polêmica contra o realismo, num estilo quase dia lético, sem fixá-los como teses que dariam forma a uma Weltanschauung, assinada por Wittgenstein. O que importa é a tensão que o filósofo instaura entre universalismo objetivista e relativismo, não para superá-la em direção de uma síntese superior, mas para desqualificar simultaneamente os termos opostos. Como Pascal.[20]
Guardá-lo em mente é indispensável, para evitar um radical mal-entendido do sentido do texto. Aparentemente advogados e adversários do relativismo acabam desencavando dos textos de Wittgenstein algumas teses, uma filosofia no sentido de uma doutrina ou de uma visão do mundo. E é preciso reconhecer que algo, senão no estilo, pelo menos em algumas expressões de Wittgenstein, leva a esse equívoco. Como se fosse impossível desfazer as ilusões da filosofia sem incorrer involuntariamente nessas mesmas ilusões. E o próprio Wittgenstein reconhece esses percalços, como, por exemplo, quando a “dificuldade de perceber a Grundlösigkeit de nossas crenças” (parágrafo 166) nos faz cair numa filosofia tão dogmática e cega para o uso legítimo da linguagem como qualquer outra. Como é dito no parágrafo 422: “Quero assim dizer algo que soa como o pragmatismo. — Aqui estou sendo atropelado por uma espécie de Weltanschauung”.
Não são, com efeito, teses de nenhum tipo, epistemológicas ou ontoló gicas, que nos carregam para longe do relativismo ou do pragmatismo. E não é preciso, com Giannotti, recuperar, por sob as diversas formas de vida, a universalidade da humanitas minima de facto, para salvar Wittgenstein do relativismo.
Basta para tanto reconhecer que, ao descrever e compreender o funcionamento de um jogo de linguagem, eu, de alguma maneira, estou qualificado a compreender todos os jogos de linguagem, reais ou possíveis.[21] Como conciliar essa ideia com a ideia da irredutibilidade dos Weltbilden ou dos abismos que separam esses diferentes paradigmas? O abismo reside mais nas crenças (infundadas ou infundáveis) cristalizadas na mitologia de base dos jogos de linguagem do que nos “princípios fundamentais da pesquisa humana”. Que podem significar tais princípios de que fala o parágrafo 670? Trata-se de algo puramente formal, que nada prejulga da constituição ontológica do mundo; no limite, a) a ideia de que toda proposição sig nificativa depende de um fundamento ou de um método de verificação; b) que toda fundamentação tem um limite, justamente uma base em si mesma infundada, e c) que esse espaço, aparentemente estreito, uma esfera bien aménagée internamente, flutuando sobre um abismo sem fundo, é suficientemente largo para abrigar o funcionamento do entendimento humano. Não reencontraríamos, aqui, o espírito de Pascal, quando afirma que a falta de prova dos princípios “não é um defeito, mas uma perfeição”? O princípio é, apenas, o que não é pouco, que deve haver regras, mas não importa saber, nem se pode propriamente “saber”, em que se baseiam tais regras.
Lembremo-nos de que, em Sobre a certeza, sempre se trata do senso comum e de seu possível uso filosófico. E que se trata, sobretudo, de discriminar entre as possibilidades de compreender e de conhecer, ou de ratificar que não se pode conhecer, sem compreender. Talvez seja nesse sentido que Wittgenstein afirma, no parágrafo 378: “Das Wissen gründet sich am Schluss, auf der Anerkennung”, ou “O conhecimento funda-se, no final das contas, no reconhecimento”. Deixemos de lado o comentário — verdadeiro ninho de rato — do que representa a interpretação da palavra Annerkenung, que tem história na filosofia, e não apenas na alemã. Mas lembremo-nos, mais uma vez, de que o texto é escrito contra Moore. Numa palavra, se o senso comum não garante fundamento ou apodicticidade ao conhecimento, não deixa de ser condição de possibilidade do exercício do julgamento em geral, em termos rigorosamente kantianos. Se não obriga a uma metafísica, como quer Moore, o senso comum, purificado pela análise conceitual, pode e deve funcionar como horizonte da racionalidade. Não é o que já dizia Kant, na Crítica da faculdade de julgar? No seu parágrafo 40, Kant diz:
O entendimento humano, que, como meramente são (ainda não cultivado), é considerado o mínimo que se pode esperar de quem aspira a ser qualificado de homem, goza também da humilhante honra de ser qualificado de senso comum, uma vez que, com a palavra comum (não só em nossa língua, que dá a esse vocábulo uma verdadeira dupla acepção, mas também em muitas outras), se designa o vulgar, o que se encontra em qualquer parte, razão pela qual possuí-lo não constitui um mérito ou uma excelência.
Mas, por sensus communis há que entender a ideia de um senso comunitário, quer dizer, de uma faculdade de julgar que em ideia (a priori) se atém em sua reflexão ao modo de representação dos demais, com o objetivo de ajustar, por assim dizer, seu juízo à razão humana total, subtraindo-se assim à ilusão que, procedente de condições pessoais subjetivas facilmente confundíveis com as objetivas, poderia exercer influência perniciosa sobre o juízo.[22]
Mais adiante retornaremos à ideia kantiana da insuficiência da defi nição de senso comum como mera sanidade, ou como humanidade mínima. Digamos, por enquanto, que é contra essa ressalva, isto é, ignorando a advertência kantiana, que Giannotti interpreta a gramática wittgensteiniana do juízo reflexionante. Qual é, com efeito, o sentido do recurso ao chão da humanidade mínima como solo da universalidade da razão, senão o de amarrar, de fundar sentido e verdade no rez-de-chaussée d’une théorie rustique? Metafísica do Folklore?
Pois não é bem assim que soa (klingt) a interpretação giannottiana? De um lado, podemos dizer que a distinção kantiana entre Gemeinsinn (entendido como senso da Gemeinschaftlichensinn ou como sentido comunitário)[23] e gemeine Menschverstand aprofunda, sem ferir o espírito da reflexão de Wittgenstein, o espaço que separa a universalidade da inter com preensão humana, como possibilidade de universalidade racional, do mero fato da história natural da humanidade.
É o que podemos ver no tratamento giannottiano dos textos consagrados por Wittgenstein, em Sobre a certeza, às ideias de persuasão e de conversão. Seguindo sua irreprimível vocação universalista e ontológica, e desenvolvendo sua teoria da “socialização do fundamento” ( ou da justificação racional-comunicativa do injustificável), meu amigo afirma:
Enquanto fundamento, essa maneira não é verdadeira nem falsa, mas se perguntarmos pela verdade dele, a resposta tenderá [grifo meu] a ser positiva, porque a própria pergunta o coloca como uma posição, uma admissão (Annahme), coletivamente assumida, uma orientação para se pensar assim.[24]
Como pode uma proposição (ou, melhor, uma pseudoproposição) “tender” a ser verdadeira, se lógica e gramática mostram que, por essência, não pode ser considerada verdadeira nem falsa? O Glauben (a crença) insinuou-se aqui, sub-repticiamente, nas dobras da razão reflexionante e cobra direi tos iguais aos do Wissen (o saber). É também esse pequeno deslocamento que permite, a Giannotti, extrapolar o alcance do conceito wittgensteiniano de Grundprinzip, misturando seus efeitos epistêmicos e seus efeitos ope - ra tórios em geral, na falta de uma expressão melhor. É o que transparece, por exemplo, em um dos inúmeros argumentos mobilizados contra o relativismo, baseados na ideia do universalismo do Gemeinsinn ou do caráter universalista das práticas reflexionantes em geral. Giannotti diz:
E o próprio confronto de imagens e visões está remetendo a terrenos comuns que asseguram a operacionalidade do confronto. Daí ser perfeitamente possí vel se falar de “princípios fundamentais” (Grundprinzipien) da pesquisa humana (ÜG [Sobre a certeza], 670), que constituem o horizonte tanto da pesquisa quanto do processo de persuasão pelo qual introduzimos terceiros paulatinamente em nosso mundo cotidiano.[25]
Podemos, assim, de fato, subsumir os processos de pesquisa e de persuasão sob os mesmos princípios? Aparentemente Wittgenstein no-lo proíbe expressamente, nos textos que consagra à ideia de persuasão em Sobre a certeza. A esse tema consagra dois parágrafos de seu livro: o 262 e o 612, onde está dito, respectivamente: “Posso imaginar um homem que cresceu em condições muito especiais e aprendeu que a Terra surgiu cinquenta anos atrás, e que, assim, acredita nisso. Poderíamos ensiná-lo: a Terra, há muito tempo… — Tentaríamos passar-lhe nossa visão do mundo (Weltbild) — Fa-lo-íamos através de uma espécie de persuasão” (262). Ou: “Digo que ‘combateria’ o ou tro homem, mas não lhe daria também razões (Gründe)? Certamente; mas até onde iriam? No fim das razões, ergue-se a persuasão. (Pense no que ocorre quando missionários convertem os nativos.)” (612, que na verdade encerra um argumento que se inicia em 609, contrapondo um membro de uma cultura primitiva, que crê em oráculos, a um homem moderno que tem noções de física). Que não possamos seguir a indicação de Giannotti, está claro nos dois textos. Num caso como no outro, a ideia de persuasão é oposta, por essência, à ideia de fundamentação . Os Grundprinzipien da pesquisa humana, longe de subsumirem as práticas da persuasão, terminam justamente ali onde estas começam. Numa palavra: se tenho que persuadir alguém, é porque não te -nho (nem posso ter) fundamento ou razões para convencê-lo. Persuadir alguém é levá-lo a admitir, justamente, o que não tem base, uma mitologia”, algo que está muito além, ou aquém, da alternativa entre o verdadeiro e o falso, o racional e o irracional ou, melhor dizendo, entre a sensatez e a loucura, entre o Cosmos e o Caos. Muito mais que a razão, está envolvida, na persuasão, a autoridade, a assimetria entre aquele que ensina, mesmo recorrendo à violência, e o aprendiz[26] — a mesma assimetria que existe entre o missionário e o nativo. Para Wittgenstein não há, como para Descartes, uma Idade da Razão, em que o homem pode desencavar, em si e para si mesmo, um fundamento que é uma razão. Ainda uma vez, para Wittgenstein, também, ir em direção ao fundamento é cair no abismo sem fundo.
Como poderia ser diferente? Posso eu ensinar uma crença, isto é, uma segurança (Sicherheit) sem fundamento? Dar Grund ao que por essência é Grundlos? O campo onde se desenrola a persuasão é antes o da guerra que o do entendimento comunicativo mais ou menos transparente. Assim, Wittgens tein pergunta no parágrafo 612 há pouco citado: “Disse que ‘comba teria’ (Ich würde ‘bekampfen’) o outro”; e acrescenta que é isso mesmo. Persua dir e converter é quebrar, sem argumento propriamente racional ou razoável, uma segurança, na expectativa de substituí-la por outra. Em todos os parágrafos entre o 605 e o 612, as palavras cruciais e sublinhadas pelo autor (por oposição à palavra razão) são segurança, combate, persuasão . E não poderia ser diferente, já que, se não partilhamos o mesmo Weltbild, não jogamos o mesmo jogo de linguagem, não obedecemos às mesmas regras. É por isso que, para descrever essa situação-limite, Wittgenstein fala de heresia e de conversão, de loucura e de sensatez. Assim, no parágrafo 611: “Onde dois princípios se chocam, cada um declara o outro louco ou herético”. Diga-se, aliás, en passant, para a pré-história longínqua de Sobre a certeza, que Wittgenstein protestava, já em 1911, contra a teoria da conversão, exposta em conferência por Moore.[27] Numa palavra, a universalidade dos “princípios universais da pesquisa humana” topa com um limite inultrapassável na escolha, sempre ar bi trária, dos princípios sem os quais não se cristaliza um Weltbild ou se ins titui uma Weltanschauung: “nossa racionalidade”, na expressão privilegiada por Giannotti, é neutra metafisicamente. Relativismo ou criticismo?
Não há relativismo algum aí presente, já que a ideia está in nuce no próprio Tractatus e convive perfeitamente com seu universalismo de princípio. Lá tratava-se, num nível por assim dizer epistemológico, do estatuto das proposições da mecânica e de seu caráter “convencional” (aspas que devem, aqui, ser levadas muito a sério). O problema em questão, nas proposições 6.3, entre outros, é o das relações entre lógica e mecânica, em que se fuzila o princípio de razão suficiente (Der Satz vom Grund) e, com ele, o princípio da causalidade e da indução, a própria ideia de lei natural. O que nos interessa, nesta circunstância, são as proposições 6.371 — “Toda a moderna visão do mundo (Weltanschauung) está fundada na ilusão de que as chamadas leis naturais sejam as explicações dos fenômenos naturais” — e 6.372:
Assim, detêm-se diante das leis naturais como diante de algo intocável, como os antigos diante de Deus e do Destino.
E uns e outros estão certos e estão errados. Os antigos, porém, são mais claros, na medida em que reconhecem um termo final claro, enquanto, no caso do novo sistema, é preciso aparentar que está tudo explicado.[28]
É claro que, em Sobre a certeza, não faria sentido falar de erro ao descrever uma visão do mundo. Mas o que se arma aqui, no interior do próprio Tractatus (e um pouco na continuidade do convencionalismo mitigado de Hertz), é a ideia de que a convenção (na representação mecânica do mundo) não é arbitrária. Como observa Luiz Henrique:
Analogamente, a ninguém deve ocorrer perguntar se os eventos do mundo estão intrinsecamente submetidos às leis newtonianas ou às leis aristotélicas. Eles não estão intrinsecamente submetidos a nenhuma legalidade. Só há a legalidade lógica. A escolha de um ou outro sistema de mecânica é arbitrária, mas também ela é relativamente arbitrária. Aprendemos algo sobre como as coisas têm acontecido quando percebemos que um sistema permite a formulação de um conjunto de leis naturais compatível com nossa experiência mais simples que um tal conjunto de leis que o outro permita formular. Daí venha, talvez, a ilusão de que os princípios naturais tenham conteúdo empírico, sejam propo sições com sentido. Do ponto de vista lógico, porém, simplesmente não são proposições.[29]
É impossível não notar algum paralelismo entre o “convencionalismo” desse momento do Tractatus e o do segundo Wittgenstein. Multiplicidade de esquemas projetivos num caso, de jogos de linguagem, no outro — mas, em ambos os casos, pouco peso atribuído à mitologia que confunde fato e lógica, Weltbild e conhecimento racional ou positivo. Mitologia é, em ambos casos, a palavra que significa uma ilusão de tipo especial — talvez até uma ilusão bene fondata praticamente. Aquela ilusão que é inevitável e inócua (e, mais do que isso, indispensável ao bom funcionamento da prática discursiva e à vida em comum). Indispensável, na vida comum, como Weltbild, ou base sem base da prática eficaz. Ela arrisca, todavia, tornar-se Weltanschauung nas mãos do filósofo, realista ou idealista, que quer dar fundamento teórico ou dogmático ao humano e necessário desejo de segurança.
4
Com a definição que assim se esboça da ideia de ilusão e de sua necessidade, parece ter sido resolvido todo o problema e a filosofia pode receber sua tarefa terapêutica e negativa.
Mas será bem assim? Se a ilusão filosófica nasce de uma hybris que nos afasta do senso comum, a terapia filosófica não nos devolve, simplesmente, à tranquilidade saudável do senso comum.[30] Uma vez provado o fruto da árvore do conhecimento, a inocência edênica da consciência espontânea está perdida para todo o sempre. É o que nota, com alguma preocupação, G. Hottois em seu texto acima referido. Diferenciando as atitudes de Moore e Wittgenstein, em face do senso comum, ele nos diz:
Sua [de Wittgenstein] prática filosófica implica um retorno ao senso comum e, no entanto, num primeiro tempo, uma distanciação. Pitcher escreve que suscitar a confusão, a perplexidade nos alunos, constituía uma primeira etapa do ensino de Wittgenstein. Ou seja, a inocência original pré-filosófica é tão desqualificada quanto a complacência (dolorosa ou não) na filosofia.[31]
É notável a dificuldade com que este bom comentador enfrenta esses textos de Wittgenstein, particularmente os últimos, escritos às vésperas de sua morte. Essa dificuldade é, no mínimo, sintoma de sensibilidade hermenêutica, mesmo se não culmina no pleno esclarecimento da estranheza bem percebida. O que espanta G. Hottois é o ressurgimento in extremis do espanto filosófico, acompanhado de nova ruminação sobre argumentos que, há muito, deveriam ter sido enterrados — falo dos argumentos do sonho e da loucura. Não condena Wittgenstein a filosofia em nome da linguagem comum, ou de seu uso desastradamente a-gramatical pelos filósofos? Sim, mas Wittgenstein não é, como Moore, advogado do senso comum como visão do mundo, assim como não o é de qualquer visão do mundo. O alvo de Sobre a certeza não é justamente a filosofia do senso comum? Não ataca ele, também, algo como um senso comum historicamente dado, o que chama de Amerikanismus (também visado criticamente por Heidegger), não opunha ele uma concepção “bolchevique” à concepção filistina ou burguesa da filosofia (pelo menos no que tange à matemática)? Não pensou mesmo, sem jamais, é claro, aproximar-se do marxismo como filosofia, em viver e traba lhar na União Soviética até 1937?[32]
Há, sem dúvida, não-conformismo e retorno da inquietação metafísica, que o cuidado de sempre com a ética traz de volta consigo.
É assim com alguma perplexidade que G. Hottois observa que “[…] os últimos aforismos de Sobre a certeza foram redigidos na antevéspera de sua morte: a perplexidade filosófica aí aparece tão profunda, ou mais profunda ainda, que vinte anos antes, quando acreditava, firmemente, dispor de um método terapêutico”.[33]
Mas não é a terapia filosófica, ao contrário dos tempos do Tractatus, interminável por essência, como a unendlische Analyse de Freud? O que inquieta, ainda uma vez, nosso comentador, é que a dissolução dos enigmas não nos devolve à atitude “saudável” do senso comum. Com efeito, a des peito de sua concepção terapêutica da filosofia, Wittgenstein não parece identificar plenamente saúde com adesão ao senso comum historicamente dado. (Lembremo-nos, aliás, de que na sua juventude, atormentado por seus “pecados” e com os problemas da lógica — “logic is Hell”, dizia Bertrand Russell —, foi recomendado a abandonar a preocupação com essa disciplina, pelo cuidado paternal de seu mestre com os riscos que tais estudos poderiam trazer à sua saúde mental; ao que Wittgenstein respondeu, su gerindo que, nesse caso, poderia correr o risco de uma perigosa queda na normalidade mental.) Não só a tarefa da filosofia é infinita, como rigorosamente incompatível com o senso comum.
Ao fim e ao cabo de Sobre a certeza — quando a ótica do idealismo já estava tão enterrada quanto a do realismo do senso comum — emerge, novamente, o argumento do sonho. É bem verdade que o argumento cartesiano é rapidamente despachado, num estilo, aliás, bastante tradicional.[34] Conforme uma longa tradição, trata-se de mostrar, para usar a linguagem kantiana, que o eu penso, que assegura a unidade das representações, pressupõe uma consciência de objeto.[35] Mas o que é mais interessante é que o argumento do sonho vem aí de alguma maneira articulado ao argumento da loucura, que nos devolve ao debate contemporâneo sobre a importância desses argumentos na arquitetura das Meditações metafísicas de Descartes.[36]
Mas que é a loucura em Sobre a certeza? O conceito aparece inúmeras vezes no livro (como, por exemplo, nos parágrafos 155, 217, 223, 257, 355, 420 e 611). Para começar, distingue-se essencialmente do erro e da ilusão. Com efeito, um dos argumentos essenciais de Sobre a certeza consiste em apontar, na corrigibilidade, um traço essencial do erro. Só se pode falar em erro lá onde um sistema de regras já está pressuposto, e pode corrigi-lo, enquanto a loucura, como uma espécie de erro incorrigível, parece ser definida como cegueira para a regra (cf. parágrafo 156: “Para cometer um erro, precisamos já julgar conforme a humanidade”). Mas ele se distingue também da ilusão, em espécie da ilusão filosófica. Mesmo porque a ilusão filosófica é, de alguma maneira, natural, senão necessária. Como a aparência trans cendental de Kant, que não ofende o uso lógico do entendimento e res ponde a uma necessidade da razão , e que, “[…] descoberta embora […], não deixará de lhe apresentar miragem e lançá-la em erros momentâneos, que terão de ser constantemente eliminados”.[37] Passo que o filósofo dogmático dá espontaneamente (a ser corrigido e evitado pela análise crítica ou pela terapia conceitual) e com o qual transforma o inevitável Weltbild, subjacente a qualquer forma de vida, em Weltanschauung.
Mas, se corrigir uma ilusão filosófica não é corrigir um erro, já que as Weltanschauungen, como os Weltbilden, não são nem verdadeiros nem falsos, qual é então o sentido da atividade crítica do filósofo? Sendo compreender e explicar as ilusões filosóficas, mergulhando no solo infundado das imagens do mundo (numa atividade essencialmente comparativa), ela é essencialmente algo como a exploração da alteridade, numa direção dife rente daquela seguida pelo missionário em sua tarefa persuasiva. Com preender um outro sistema de regras, jogar todos os jogos de linguagem, não seria, ao mesmo tempo, compreender a loucura? O filósofo crítico pode, sim, atingir a serenidade (uma serenidade, todavia, sempre em sursis), mas não a tranquilidade do homem comum que não problematiza a Verdade do Weltbild que lhe dá segurança. — Não somos loucos, minha senhora, estamos fazendo filosofia, vivendo na contracorrente… No Tratactus, o filósofo, depois de desenhar, de dentro da linguagem, os limites do dizível e do pensável, apontava para o seu além, o místico, como alvo essencial do pensamento, que ele deve atingir em silêncio. Na segunda fase de sua obra, e transformada a concepção da linguagem, a descrição dos jogos de linguagem e de seus limites aponta para uma atitude, uma certa visão pers pícua e sinóptica que os atravessa a todos e que não privilegia nenhum. Partout et nulle part, descrevendo os microcosmos de todos os jogos de linguagem, o filósofo vislumbra o caos de que emergem cada um e todos eles. “Perspectivismo sem relativismo”, na expressão lapidar de Luiz Henrique. É nesse sentido talvez que se deva entender a frase em epígrafe: “Ao filosofar, devemos mergulhar no caos primitivo e lá sentirmo-nos bem”.
5
Onde estava a razão, não instalamos nós a loucura, afundando-nos no vórtice da crise da razão e no pântano do irracionalismo? Não, caros amigos, com esta operação Wittgenstein reata, paradoxalmente, através do romantismo alemão e da crítica kantiana, com a origem grega do racionalismo; talvez mesmo com aquele momento, breve, que separou a morte da tragédia do nascimento da filosofia. Delimitar a razão, sobre o fundo da loucura, é ainda delimitar a razão, apurar ou aguçar a fina ponta do rigor lógico no seu contato com o seu outro. Lembremo-nos da frase de Wittgenstein: “Se na vida estamos cercados pela morte, assim também na saúde do entendimento estamos cercados pela loucura”.[38]
Notas
[1] Penso aqui em livros como O pensamento 68, de Luc Ferry e Alain Renaut, bem como no Por que não somos nietzschianos, ambos editados, no Brasil, pela Editora Ensaio, que dá também, e principalmente, espaço a Lukács.
[2] Cf. P. E. Arantes, “Alta costura parisiense; nem Apel, nem Rorty”, in A. Cícero & W. Salomão (eds.), O relativismo enquanto visão do mundo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1994, pp. 103-14.
[3] Cf. H. Marcuse, “On science and phenomenology”, in R. Cohen & M. W. Wartofsky, Boston studies in the philosophy of science, vol. ii, Nova York, The Humanities Press, 1965, pp. 279-90.
[4] Cf. G. Lebrun, Kant et la fin de la métaphysique, Paris, Armand Colin, 1970, p. 67.
[5] J. A. Giannotti, Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Wittgenstein, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
[6] Cf. Paulo Roberto Margutti Pinto, “O problema da necessidade da fundamentação última não metafísica em Karl-Otto Apel”, Revista Kriterion, no 91, jul. 1995, p. 25.
[7] L. Wittgenstein, Remarques mêlées; texto original e tradução francesa de G. Granel, Ed. Trans-Europ-Repress, 1984, p. 15.
[8] Cf. Bento Prado Jr., “A gramática da reflexão”, Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 3 de julho de 1995, pp. 10-1.
[9] J. A. Giannotti, op. cit., pp. 245-6.
[10] Idem, ibidem, p. 245.
[11] J. Bouveresse, Le mythe de l’intériorité: expérience, signification et langage privé chez Wittgenstein, Paris, Les Éditions de Minuit, 1987, p. 593.
[12] J. A. Giannotti, op. cit., p. 246.
[13] Idem, ibidem, p. 245.
[14] Idem, ibidem, p. 254.
[15] Idem, ibidem.
[16] Inspirados tanto em Peirce como em Kant.
[17] Cf. Sobre a certeza, § 124.
[18] G. E. Moore, “Uma defesa do senso comum”, in Escritos filosóficos, coleção “Os pensadores”, São Paulo, Abril, 1985, pp. 81-2.
[19] G. Hottois, Du sens commun à la société de la communication; études de philosophie du langage; Moore, Wittgenstein, Wisdom, Heidegger, Perelman, Apel, Paris, Vrin, 1989, pp. 32-43.
[20] Cf. Bento Prado Jr., O relativismo como contraponto”, in O relativismo enquanto visão comum do mundo, A. Cícero & W. Salomão (eds.), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1994.
[21] Ver, por exemplo, a este propósito, o seguinte parágrafo de G.-G. Granger: “C’est cette démarche que Wittgenstein apelle une Beschreibung, une description. Les jeux de langage simples qu’il imagine sont alors ‘les pôles d’une description et non le rez-de-chaussée d’une théorie’ (Remarques sur la philosophie de la psychologie, n.o 633, p. 141 de l’édition Granel). Méthode qui est confirmée par un autre texte du même manuscript: ‘J’apprends à décrire ce que je vois; et j’apprends là tous les jeux de langage possibles’ (n.o 980, p. 202)”. Cf. G.-G. Granger, Invitation à la lecture de Wittgenstein, Aix-en-Provence, Alinéa, 1990, p. 265.
[22] I. Kant, Crítica da faculdade do juízo; trad. Valério Rohden e Antonio Marques, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993, pp. 139-40. Na nossa citação seguimos mais, em alguns detalhes, a tradução argentina, da Editora Losada, p. 145.
[23] Notemos quão injusta é a descrição que Apel faz da filosofia de Kant como monoló gica. Aqui talvez possamos falar de um erro ao mesmo tempo historiográfico e filosófico.
[24] Cf. J. A. Giannotti, op. cit., p. 248.
[25] Idem, ibidem, p. 254.
[26] A respeito dessa assimetria e da importância da obra de santo Agostinho para Wittgenstein (em particular seu De magistro), cf. as páginas esclarecedoras que Sílvia Faustino consagrou em seu livro (Wittgenstein: o eu e sua gramática, São Paulo, Ática, 1995) ao bispo africano.
[27] Ver R. Monk, Wittgenstein, o dever do gênio, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, parte i, capítulo 3.
[28] L. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus; tradução, apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos, São Paulo, Edusp, 1993, p. 273.
[29] Idem, ibidem, p. 100.
[30] Embora seja inegável que alguns textos de Wittgenstein apontam para essa direção.
[31] G. Hottois, op. cit., p. 49.
[32] Cf. R. Monk, op. cit., p. 230.
[33] G. Hottois, op. cit., p. 50. A insolubilidade dos problemas (ou pseudoproblemas) da filosofia não os suspende para sempre. Pelo contrário. Talvez Wittgenstein endossasse a bela definição de filosofia fornecida por Simone Weil: “La méthode propre à la philosophie consiste à concevoir clairement les problèmes insolubles dans leur insolubilité, puis à les contempler sans plus, fixement, inlassablement, pendant des années, sans aucun espoir, dans l’attente. D’après ce critère, il y a peu de philosophes. Peu est encore beaucoup dire”. Cf. S. Weil, La connaissance surnaturelle, Paris, Gallimard, p. 305.
[34] Em outro texto, ainda inédito (“Wittgenstein, o argumento do sonho revisitado”), examinamos detalhadamente os últimos aforismos de Sobre a certeza sobre o pano de fundo da história da reflexão acerca do argumento cartesiano do sonho, de Locke a Wittgenstein, passando por Spinoza, Kant, Sartre e G. Ryle.
[35] Ver a “Refutação do idealismo”, na Crítica da razão pura.
[36] Penso aqui na polêmica que opôs H. Guéroult a F. Alquié, J. Derrida a M. Foucault e H. Frankfurt a H. Gouhier, onde se trata, também, essencialmente do argumento do malin génie.
[37] I. Kant, Crítica da razão pura; trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mourujão, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1985, p. 298.
[38] L. Wittgenstein, Remarques mêlées, Ed. Trans-Europ-Repress, 1984, p. 56.