1999

Essomericq, o venturoso carijó

por Leyla Perrone-Moisés

Resumo

Em 1504, o comerciante e armador normando Binot Paulmier de Gonneville partiu de Honfleur em busca das “belas riquezas das Índias”. Sua nau navegou ao longo da costa africana até a altura do cabo da Boa Esperança, onde enfrentou uma tempestada seguida de calmaria e perdeu sua rota, chegando a terras desconhecidas, no litoral sul do Brasil.

O capitão e sua tripulação encontraram, então, uma tribo Carijó (nome antigo dos Guarani) que os recebeu com cordialidade. Ao partir levando pau-brasil e outras raridades, Gonneville levou consigo um jovem de quinze anos chamado Essomericq, filho do cacique Arosca, prometendo devolver o rapaz instruído nas artes europeias, em especial nas técnicas das armas de fogo, ao cabo de 20 luas.

Impossibilitado de empreender nova viagem e manter o prometido, Gonneville adotou o índio como filho, casou-o com uma parenta e, ao morrer, deixou-lhe seu nome, sua fortuna e as armas de sua família. Essomericq viveu na Normandia até a idade avançada de 95 anos. Teve catorze filhos, que se casaram com aristocratas franceses e tiveram numerosa descendência.

De resto, pouco se sabe sobre a vida de Essomericq.

Somente no século XIX A Relação da viagem do capitão Gonneville, declaração apresentada pelo viajante em 1505 às autoridades francesas, foi revelada. A Relação contém a narrativa pormenorizada das viagens de ida e de volta, e uma longa parte intermediária referente à estada na terra dos Carijó. A imagem que Gonneville oferece dos índios é uma imagem “realista”, sem nenhum aspecto fabuloso e, em princípio, isenta de preconceitos negativos. Os índios são descritos em função de sua ideologia de comerciante – bons parceiros, os Carijó, e maus parceiros, os Tupinambá e os Tupiniquim – e de sua ideologia de cristão católico – os primeiros se apresentam relativamente bem (semivestidos, agradáveis à vista) e se comportam razoavelmente (não são antropófagos, vivem numa sociedade policiada, apenas guerreiam com inimigos, como os europeus), enquanto os segundos têm aspecto repelente (nus, tatuados) e se comportam muito mal (comem homens, são traiçoeiros, não parecem ter chefes nem leis).

Na óptica do capitão, levar Essomericq para a França não era um ato praticado como abuso, mas como obediência a um “costume”. A maior prova das boas intenções  do capitão foi o não-esquecimento de sua promessa e a maneira como ele tratou de compensar o não-cumprimento da mesma. A dívida de Gonneville será o principal ponto ressaltado pelas testemunhas e pelos historiadores dessa história, ao longo dos séculos. Todos os “brancos”, os “civilizados”, incluindo nós, os americanos de hoje, têm uma dívida para com os índios, uma dívida que não data pouco mais de cinco séculos. Como essa dívida pode ser paga? Dando-lhes uma “esmerada educação”? Integrando-os à nossa chamada civilização? Devolvendo-lhes ou garantindo-lhes suas terras e o direito à diferença cultural?

Essomericq não se manifestou sobre o assunto. Mas os nossos índios vivos estão tomando cada vez mais a palavra. E são eles que  devem ser consultados, agora, sobre como podemos pagar essa dívida.


Várias conferências deste ciclo têm tratado do “mau encontro”; a minha poderia chamar-se “o bom encontro”. Em meu livro Vinte luas,[1] narrei um episódio pouco conhecido da história do Brasil.

Três anos depois da descoberta oficial do Brasil por Cabral, o comerciante e armador Binot Paulmier de Gonneville partiu de Honfleur, na Normandia, em busca das “belas riquezas das Índias”. Sua nau, chamada L’Espoir, navegou ao longo da costa africana até a altura do cabo da Boa Esperança, onde enfrentou uma tempestada seguida de calmaria e perdeu sua rota. Em janeiro de 1504, ela chegou a terras desconhecidas. Sabe-se hoje que essas terras se situavam no litoral sul do Brasil, muito provavelmente na altura de Santa Catarina.

O capitão e sua tripulação aí encontraram uma tribo Carijó (nome antigo dos Guarani), que os recebeu com cordialidade. Depois de uma estada de seis meses, durante os quais a nau foi reparada, os normandos empreenderam a viagem de volta. Além do pau-brasil e de outras raridades, o capitão levou consigo um jovem de quinze anos chamado Essomericq. Prometeu ao pai desse rapaz, o cacique Arosca, devolvê-lo ao cabo de vinte luas (vinte meses), instruído nas técnicas europeias, em especial na das armas de fogo.

A volta à França foi acidentada, e terminou, perto da costa francesa, com dois ataques de piratas e o naufrágio final do navio. Entretanto, parte da tripulação se salvou. Entre os sobreviventes estavam o capitão Gonneville e Essomericq, que seria o primeiro índio brasileiro a aportar em terras francesas.

O tempo foi passando e o capitão não conseguiu empreender nova viagem àquele lugar por ele designado como “Índias Meridionais”, não tendo podido, assim, cumprir a promessa de devolver Essomericq ao seu país. Para indenizá-lo, adotou o índio como filho, casou-o com uma parenta e, ao morrer, deixou-lhe seu nome, sua fortuna e as armas de sua família. Essomericq viveu na Normandia até a idade avançada de 95 anos. Teve catorze filhos, que se casaram com aristocratas franceses e tiveram numerosa descendência.

Comparada com outros episódios da Descoberta e da Conquista, essa história real é uma espécie de conto de fadas inserido num conjunto de contos de terror. Ela não é exemplar, porque é excepcional. Mas ela faz refletir e sonhar, como a alegoria de um encontro amigável e igualitário entre os dois mundos.

A história dessa viagem e de suas consequências atravessou os séculos sob a forma de uma narrativa protagonizada por uma dupla indissolúvel: o Capitão e o Índio, separados por suas diferenças e reunidos por afeição e parentesco. O que pretendo fazer aqui é uma análise das imagens do índio e do capitão, nos discursos referentes a esses fatos, desde o da Relação da viagem do capitão Gonneville, no século XVI, passando pelos comentários dos historiadores nos três séculos seguintes, até os dias de hoje. O que aí tentarei captar é menos a verdade dos fatos do que as imagens acopladas de seus protagonistas, moldadas pela ideologia de cada narrador. Note-se, desde já, que tanto as imagens do índio como as do capitão pertencem todas à visão europeia ou europeizada dos mesmos, já que não possuímos nenhuma opinião a esse respeito oriunda de Essomericq ou de outros índios.[2]

SÉCULO XVI: O OLHAR DO DESCOBRIDOR

A Relação da viagem do capitão Gonneville é um documento que sofreu tantos percalços como a nave do capitão. Ela consiste numa declaração apresentada pelo viajante em 1505, às autoridades francesas, com o intuito de obter indenização pelas perdas sofridas no naufrágio. Mantida em segredo pelo almirantado francês, em virtude de seu interesse para o comércio marítimo e para eventuais projetos de colonização, foi revelada parcialmente no século XVII por um bisneto de Essomericq, de quem falarei oportunamente. O documento oficial, uma cópia autenticada do século XVII, só foi descoberto e analisado no século XIX.[3]

A Relação contém a narrativa pormenorizada das viagens de ida e de volta, e uma longa parte intermediária referente à estada na terra dos Carijó. Sobre estes, diz o capitão no relato transcrito pelo escrivão portuário: “Dizem também que, durante sua permanência na dita terra, conversavam cordialmente com as gentes dali, depois que elas foram cativadas pelos cristãos por meio de festas e pequenos presentes que estes lhes faziam; sendo os tais índios gente simples, que não pediam mais do que levar uma vida alegre sem grande trabalho”.

A imagem que o capitão nos dá dos índios Carijó é positiva. Seus hábitos, suas vestimentas sumárias e seus ornatos são descritos com evidente simpatia por parte do europeu, que assim se refere ao chefe da tribo: “O dito Arosca tinha, ao que parece, uns sessenta anos, e era viúvo; tinha seis filhos machos de trinta até quinze anos; e vinham, ele e os filhos, frequentemente ao navio. Homem de postura grave, estatura média, gordinho, de olhar bondoso”.

A narrativa prossegue com a partida da nau, e a referência ao fato que vemos hoje como principal, a transferência do filho de Arosca para a França:

E porque é costume daqueles que chegam às novas terras das Índias levarem delas à cristandade alguns índios, tanto se fez, com tal gentileza, que o dito chefe Arosca consentiu que um de seus filhos jovens, o qual se dava bem com os do navio, viesse à cristandade, já que se prometia ao pai e ao filho trazê-lo de volta dentro de vinte luas ao mais tardar; porque assim eles contavam os meses. E o que lhes dava mais vontade: faziam-no crer que, àqueles que viessem do lado de cá, ensinariam a artilharia; o que eles desejavam intensamente, para poderem dominar seus inimigos; como também a fazer espelhos, facas, machados e tudo o que viam e admiravam dos cristãos; o que era prometer-lhes tanto como prometer a um cristão ouro, prata e pedradas, ou ensinar-lhe a pedra filosofal. Tendo acreditado firmemente nessas coisas, o dito Arosca estava contente de que lhe levassem o filho, que se chamava Essomericq; e deu-lhe por companhia um índio de trinta e cinco ou quarenta anos, chamado Namoa.

Os nomes dos três índios citados por Gonneville merecem um breve comentário. À primeira vista, nenhum deles parece ser tupi-guarani. Entretanto, se levarmos em conta as dificuldades de transcrição de uma língua desconhecida, podemos aventar a hipótese de que eles constituem deformações dos verdadeiros nomes indígenas. Essomericq, por exemplo, poderia ser Içá-mirim, isto é, chefe pequeno.

Durante a viagem de retorno, a tripulação sofreu um surto de escorbuto que acometeu os dois índios. Namoa morreu…Colocou-se então, para os europeus, um problema religioso. Deveriam batizar o jovem Essomericq, para salvar sua alma? Depois de cuidadosa deliberação, que levava em conta a conveniência ou não de o decidirem sem a anuência do índio, concluíram que era mais prudente fazê-lo. Essomericq recebeu então o nome cristão de seu padrinho, Binot, e, depois de batizado, sarou.

Prosseguindo a viagem ao longo da costa brasileira, os franceses encontraram índios muito diversos dos hospitaleiros Carijó, provavelmente Tupinambá e Tupiniquim, índios que Gonneville qualifica de “rudes, nus”, “cruéis comedores de homens”. A Relação termina com o relato do naufrágio e da chegada ao porto normando. Depois de enumerar os 28 sobreviventes, o capitão acrescenta: “E mais o índio Essomericq, aliás Binot, que em Honfleur e por todos os lugares de passagem era muito bem olhado, por não ter jamais havido em França personagem de tão longínquo país”.

No conjunto da Relação, a imagem que Gonneville oferece dos índios é desprovida de fabulação; é uma imagem “realista”, sem nenhum aspecto fabuloso e, em princípio, isenta de preconceitos negativos. Os índios são descritos em função de sua ideologia de comerciante – bons parceiros, os Carijó, e maus parceiros, os Tupinambá e os Tupiniquim – e de sua ideologia de cristão católico – os primeiros se apresentam relativamente bem (semivestidos, agradáveis à vista) e se comportam razoavelmente (não são antropófagos, vivem numa sociedade policiada, apenas guerreiam com inimigos, como os europeus), enquanto os segundos têm aspecto repelente (nus, tatuados) e se comportam muito mal (comem homens, são traiçoeiros, não parecem ter chefes nem leis).

No geral, Gonneville respeita o modo de ser dos índios, não pretendendo forçá-los a aderir à sua fé ou ao seu modo de vida. Podemos dizer que, como aqueles habitantes de Honfleur, os índios são por ele “bem olhados”: com curiosidade e benevolência. Evidentemente, esse “bem olhar” pressupõe a convicção da superioridade ética e técnica dos europeus, e uma atitude ao mesmo tempo paternalista e aproveitadora com relação à ingenuidade dos Carijó. Esse olhar é semelhante ao de Pero Vaz de Caminha, por seu realismo e seu encantamento, e é típico daquele breve momento pós-descoberta, em que os planos de conquista ou de colonização ainda eram incipientes e, por isso, outra História parecia ainda possível.

Na óptica do capitão, levar Essomericq para a França não era um ato praticado como abuso, mas como obediência a um “costume”. De fato, sabe-se que naquela altura numerosos índios já haviam sido levados, pelos descobridores, para a Espanha e para Portugal. Além disso, Essomericq partia com o consentimento de seu pai, a fim de instruir-se nas “artes da civilização”. Os Carijó, como atestam outros documentos do século XVI, estavam sempre dispostos a viajar, talvez em busca daquela “terra sem mal” que Pierre e Hélene Clastres estudaram como traço distintivo da mitologia guarani.[4] Mas a maior prova das boas intenções do capitão foi o não-esquecimento de sua promessa, e a maneira como ele tratou de compensar o não-cumprimento da mesma. A promessa de Gonneville será o principal ponto ressaltado pelas testemunhas e pelos historiadores dessa história, ao longo dos séculos.

SÉCULO XVII· O OLHAR MISSIONÁRIO E O OLHAR DA CORTE

Em meados do século XVII, o abade Jean Paulmier de Courtonne, bisneto de Essomericq, era cônego da catedral de Lisieux e personagem bem relacionado nas cortes europeias. Em 1663, ele publicou um memorando que havia enviado ao papa Alexandre VII.[5] Nesse texto, o abade narrava ao papa a viagem do capitão Gonneville, e solicitava ao sumo pontífice que fosse criada uma missão naquelas “Terras Austrais”, para evangelizar aqueles gentios dos quais descendia. O fato de não se saber, então, onde se situavam essas terras não parecia embaraçá-lo.

Para convencer o papa da conveniência dessa missão, o abade citava longos trechos da Relação de Gonneville, precisamente aqueles em que o capitão descrevia os Carijó. Nenhuma menção é feita aos “maus encontros” dos franceses com os outros índios, pois o que o abade pretendia mostrar era a boa índole dos selvagens e sua predisposição à fé cristã. De fato, as qualidades vistas por Gonneville e pelo abade Paulmier naqueles índios austrais eram exatamente as que os jesuítas sempre louvaram nos Carijó.

O modo como o abade apresenta a questão situa claramente o ponto de vista missionário, inexistente na Relação de Gonneville: “Eis aqui vários milhões de homens, que trago aos pés de Vossa Santidade, para suplicar-lhe com tanta humildade quanto instância que Ela queira admiti los no Redil Sagrado cuja direção a Providência Divina lhe confiou, e fora do qual não há salvação”.

A questão que aí se coloca não é mais a da descoberta e do comércio, mas a da salvação das almas. A apresentação da história de Gonneville e dos índios encontrados contém, por isso, diferenças relevantes. A ênfase é posta sobre a cordialidade dos índios, o batismo de Essomericq, e sobre sua obrigação pessoal como herdeiro do índio. E, novidade importante, o abade alarga as responsabilidades, evocando uma dívida da Europa com relação aos índios, pelo fato de seu antepassado ter sido levado artificiosamente, e por não ter sido cumprida a promessa do capitão:

Os originários dessas terras desconhecidas receberam os europeus com veneração, e os trataram, durante uma estada de seis meses, com uma cordialidade toda particular. Estes, não desejando voltar sem trazer alguns habitantes dessa nova região (segundo a prática ordinária e comum dos descobridores de novas terras), manejaram tão industriosamente a crédula simplicidade de seus hospedeiros que obtiveram, do próprio chefe, um de seus filhos para vir à Europa, com fingimentos e grandes promessas de o devolver instruído em todas as coisas que eles mais admiravam na pessoa dos cristãos; e, entre outras, os segredos de nossas armas, e o meio de vencer, com facilidade, seus mais temíveis inimigos: o que os austrais desejavam com um incrível ardor. Por essa habilidade, aquele índio foi conduzido à França, onde viveu até um tempo de que restam ainda várias pessoas vivas. Ele foi batizado, e assim teve a felicidade de estar entre os primeiros cristãos das nações meridionais. Recebeu, com o batismo, o nome do capitão, o qual, para reconhecer de certa maneira a boa recepção que lhe fora concedida pelos austrais, e para cumprir aquilo que a razão o obrigava a fazer em favor daquele que ele havia artificiosamente transportado, de seu meio a lugares estrangeiros, arranjou lhe algumas modestas vantagens e um casamento que o tornava seu parente, do qual saíram muitos filhos, um dos quais foi meu avô paterno; e agora, pela extinção dos ramos mais velhos, eu me encontro como chefe e decano da família desse primeiro cristão das terras austrais, e nessa qualidade vejo-me  na obrigação de cobrar à Europa cristã a execução das promessas feitas pelos seus.

Por um hábil recurso discursivo, o abade transforma a razão da viagem de Essomericq. Segundo Gonneville, este havia sido enviado à França para aprender o manejo das armas de fogo, que lhes permitiria vencer seus inimigos. Para o abade, o pior inimigo dos índios é o Diabo, e por isso a Igreja deveria socorrê-los. Também a tempestade que jogou a nau nas costas daquelas terras tem seu significado alterado, e a questão da dívida de Gonneville é reiterada como dívida coletiva: “Arosca confiou seu filho àqueles que um golpe do Céu, mais do que um golpe de Tempestade, tinha jogado em seus portos, e entregou-o sob promessa. É questão de honra para a França manter sua palavra para com aquele que recebeu os franceses com tanta cordialidade. Ela deve pagar essa velha dívida, e até mesmo pagar juros por tão grande atraso”.

Mostrando-se bem informado dos abusos cometidos pelos europeus em suas colônias, o abade faz uma ressalva: em nenhuma hipótese se faria qualquer violência contra os índios, nem seriam tomadas as suas terras. Posição ousada para uma época em que as metrópoles desejavam ampliar seus impérios coloniais, o que implicava a dominação dos nativos pela força.

O abade Paulmier havia recuperado o documento da Relação por razões alheias à evangelização. Como havia sido exigido de sua família que pagasse um imposto devido pelos estrangeiros e seus descendentes, o abade solicitara e obtivera do rei Luís XIV, em 1658, a autorização para obter uma cópia daquele documento, prova de que seu antepassado fora trazido à França involuntariamente, e não devolvido por razões independentes de sua vontade. Por uma “carta compulsória”, o então jovem rei ordenou ao almirantado de Rouen que desse ao abade uma cópia autenticada do documento. E, mais ainda, dispensou a família do pagamento do imposto, por considerar que a família era nobre, sendo o próprio Essomericq um “príncipe” e um “embaixador”. O rei também enfatiza a questão da promessa: “Não sendo razoável que os descendentes daquele Binot sejam agora incomodados, porque as promessas que outrora lhe fizeram não foram cumpridas”.

A carta de Luís XIV confirma o que se sabe por outras vias: que até aquela data ainda não havia preconceitos raciais, e que as relações com os outros povos eram avaliadas em termos de hierarquia social e de etiqueta diplomática. É preciso também levar em conta que o rei necessitava, naquele momento, do apoio dos nobres, e que a família do abade já lhe havia prestado relevantes serviços. Independentemente dessas razões, interessa-nos agora a nova imagem de Essomericq: de “índio simples”, segundo Gonneville, ele é agora promovido a “príncipe” e “embaixador”. Na mesma época, o aristocrata Cabart de Villermont deixou registrado o relato que ouvira do próprio abade Paulmier.[6] O que é interessante no relato de Villermont é o modo como ele trata o ressarcimento de Essomericq, que, segundo ele, recebeu um dote do capitão “para impedir que ele caísse na miséria” em França, já que em seu país “nada lhe teria faltado”. Como se vê, a imagem dos dois países era então bem diversa da que se teria nos séculos seguintes: a Europa reconhecia seus bolsões de miséria, e achava que no mundo dos índios nada faltava.

Outro conhecido do abade Paulmier, Étienne de Flacourt, referiu a história de Essomericq num livro sobre a ilha de Madagáscar, supondo que ali se situasse a “Terra de Gonneville”.[7] Como Flacourt era o diretor-geral da Companhia Francesa do Oriente, seu ponto de vista não é nem o do abade (religioso), nem o da corte (hierárquico), mas o do colonialista (pragmático). Depois de evocar a história de Gonneville, Flacourt observa: “Digo essas coisas para fazer notar a nossa França que ela deve aplicar-se particularmente à descoberta das Terras Austrais, a plantar nelas a fé e o comércio, já que os seus foram os primeiros a lá chegar, que eles foram ali bem recebidos, que os de lá não opuseram nenhuma dificuldade a enviar os seus em França, onde vive ainda sua posteridade, para nos fazer lembrar que não devemos negligenciar os países meridionais, dos quais podemos tirar tanto proveito quanto os espanhóis tiram dos ocidentais, e os portugueses e outros nossos vizinhos dos orientais”.

SÉCULO XVIII- O OLHAR COLONIALISTA

Durante o século XVIII, a França empenhou-se em descobrir novas terras que ainda não tivessem dono. Tendo perdido seus territórios na Índia, no Canadá, na Louisiana, e também seus privilégios de comércio com o Oriente, restava aos franceses buscar as hipotéticas “Terras Austrais”. Nesse contexto, renasce o interesse pela “Terra de Gonneville”. Várias expedições foram enviadas à sua procura, mas apenas foram encontradas algumas ilhas antárticas. Ainda não se sabia, então, que a “Terra de Gonneville” era o Brasil e que, de há muito, esta pertencia aos portugueses.

A viagem de Gonneville é ressaltada como “descobrimento francês”, e as terras de Essomericq passam a interessar mais do que o próprio. Entretanto, a imagem do índio e a do capitão permanecem praticamente inalteradas. Em sua Histoire de Lisieux, de 1745, Dubois dá ênfase ao aspecto político: Arosca governava um “cantão”, Essomericq era um “príncipe” que partira acompanhado de “um criado”. Um pormenor dessa versão merece destaque: o destino de Essomericq é qualificado de “infelicidade”, mantendo-se, portanto, a visão idílica da “Terra de Gonneville”: “Quanto ao jovem Essomericq, que ele não tinha meios de levar de volta à casa, Gonneville tratou de compensá-lo por essa infelicidade fazendo-o casar se com uma de suas parentas e instituindo-o seu herdeiro”.

No fim do século XVIII, um certo barão de Gonneville dirigiu várias cartas ao ministro da Marinha.[8] Esse barão era certamente um mentiroso e provavelmente um interesseiro, pois se dizia descendente do capitão de Gonneville (que, como sabemos, não teve filhos) e um servidor desinteressado da Coroa francesa. Independentemente das intenções e das invenções do barão, suas cartas nos interessam pelo que revelam da ideologia da época. Nelas, Essomericq continua sendo chamado de “príncipe”, e sua genealogia é apresentada como uma fantástica “dinastia Arosca”, que iria de Arosca I a Arosca V.

Mas o principal interesse do barão, que coincide com o da Coroa francesa, é a “Terra de Gonneville”, que ele supõe situada na Antártida. Assim, sua argumentação é toda no sentido da exaltação de seu “antepassado” como heróico descobridor, e nos direitos da França sobre essa descoberta: “Se acreditais, senhor, que essa anedota pode figurar em vossos arquivos, peço-vos que ali a insirais, menos para honrar a família do que para enaltecer os fastos da Marinha […] porque sei que todos os portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses se vangloriam de terem sido os primeiros a penetrar nas regiões do Sul, e que nos censuram por querermos concorrer com eles na partilha de suas conquistas”. Podemos ver, portanto, que no século XVIII a história de Gonneville era vista pelo ângulo colonial e, assim, a terra interessava mais do que as pessoas envolvidas. Os protagonistas aparecem apenas em função do projeto colonial: Gonneville como descobridor francês, Essomericq como prova da descoberta.

SÉCULO XIX: O OLHAR HISTORICISTA

Na primeira metade do século XIX, tendo se verificado que a “Terra de Gonneville” permaneceria inidentificada, e que não havia mais terras austrais por descobrir, diminui o interesse pela história do capitão e do índio. Apenas na província natal do capitão, alguns historiadores de meados do século fazem referência a ambos, por uma questão de orgulho regional.[9] A grande virada com relação à história de Gonneville se deu em 1869, quando a cópia autenticada da Relação foi encontrada na Bibliotheque de l’Arsenal, em Paris, e em seguida editada pelo geógrafo e historiador M. D’Avezac. D’Avezac era um pesquisador reconhecido, membro do Institut de France. Suas conclusões, fundamentadas num saber geográfico, histórico e etnológico, são as únicas até hoje reconhecidas como científicas. Foi ele quem situou a “Terra de Gonneville” no Brasil, a partir dos dados de latitude contidos na Relação e do movimento das correntes no Atlântico Sul. Foi ele também quem identificou a tribo de Essomericq como sendo carijó, pelas numerosíssimas coincidências das observações de Gonneville com as dos jesuítas contemporâneos e imediatamente posteriores.

Entretanto, mesmo os melhores historiadores e etnólogos brasileiros deram, até hoje, pouca atenção ao estudo de D’Avezac. Apesar do cearense Tristão de Alencar Araripe, que em 1886 traduziu a Relação e sintetizou as conclusões do geógrafo francês,[10] os historiadores brasileiros de nosso século que referem a viagem de Gonneville baseiam-se quase todos na Histoire du Brésil français au XVIe siècle, de Paul Gaffarel,[11] que é eivada de erros.

A síntese da história, dada por D’Avezac em sua introdução, é rigorosamente fiel aos documentos e testemunhos de época. Mas como é injunção de qualquer discurso, este traz as marcas ideológicas de seu tempo, nos adjetivos de conteúdo moral:

A memória [da viagem de Gonneville] foi revivida pouco depois da metade do século XVII, por um concurso fortuito de circunstâncias interessando à família do jovem selvagem Essomericq, confiado por seu pai em 1504 ao capitão Gonneville, trazido por este à França, e que aí continuou morando sem jamais ser repatriado. Tendo adoecido gravemente durante a travessia, ele foi batizado por piedosa precaução, e o capitão Gonneville, seu padrinho, lhe deu o prenome de Binot; mais tarde, vendo-se na impossibilidade de reconduzi-lo até seu pai, como havia prometido, o bom gentil-homem, que não tinha filhos, garantiu uma parte de seus bens, seu nome e suas armas a seu afilhado, casando-o com uma rica herdeira sua parenta.

Na narrativa de Gaffarel o componente ideológico é muito mais evidente. Já no prefácio de seu livro, o historiador declara sua posição: “O autor deste livro pertence ao pequeno número de franceses que acreditam ainda na importância e mesmo na necessidade da colonização”. Depois de observar que a França não triunfou na Louisiana, no Canadá, nas Antilhas, no Hindustão, declara que “ao menos deixamos ali lembranças imperecíveis e ardentes simpatias, pois nunca marcamos nossa passagem, como tantos outros, com sangue e ruínas”. O objetivo patriótico de lembrar “a história demasiadamente esquecida de nossas colônias francesas” influencia suas referências a Gonneville. Empenhado em convencer os leitores de que foram os franceses que descobriram o Brasil, Gaffarel diz que “Gonneville continuou a obra de Jean Cousin”. Ora, a viagem de Cousin, que teria sido anterior à de Cabral, nunca foi provada. Com esse patriotismo todo, Gaffarel não se detém na figura de Essomericq, interessando-se apenas pelo heróico capitão francês.

Já Tristão de Alencar Araripe, do lado brasileiro, interessa-se mais pelo índio do que pelo capitão. Araripe é sóbrio de estilo, corretíssimo em suas informações, e convincente em sua argumentação. Expõe as conclusões do “exímio geógrafo D’Avezac”, e afirma, por sua conta, que não há provas de viagens de franceses antes de Gonneville, e que estas “não existiram”. Ao falar da obra do abade Paulmier, Araripe refere apenas os fatos, sem nenhuma adjetivação ou comentário: “O cônego autor da memória era bisneto de Essomericq, índio trazido de sua terra pelo navio francês, que ali fora ter. Este índio, adotado pelo capitão Binot Paulmier de Gonneville como filho, casou-se em França com uma parenta do mesmo capitão, e aí viveu dilatado tempo, falecendo em 1583, com 95 anos de idade, sem jamais regressar ao seu país natal”.

A última referência a Essomericq no século XIX se encontra na Nouvelle biographie normande, de Oursel (Paris, 1886), no verbete “Gonneville”: “A relação de sua viagem foi publicada, em 1663, pelo abade Binot Paulmier de Gonneville [sic], cônego de Lisieux, bisneto de um menino selvagem chamado Essomericq, que Gonneville tinha adotado”. O qualificativo selvagem, também usado por D’Avezac, não era então percebido como pejorativo; pertencia ao vocabulário “científico” da historiografia positivista. Na expressão “menino selvagem”, ecoa a fascinação geral do fim do século XIX pelos casos de jovens criados fora da sociedade humana, como Victor de l’Aveyron e Kaspar Hauser. A “selvageria” ganhara novas conotações à luz da teoria darwiniana da evolução.

SÉCULO XX: UMA DÍVIDA DE CINCO SÉCULOS

Desde o estudo de D’Avezac, essa história não foi mais objeto de análise. O interesse por ela persistiu apenas na Normandia, onde historiadores, na maioria amadores, vieram a acrescentar-lhe alguns adendos. Na virada do século, Henry Le Court publicou um artigo intitulado “Três cônegos de Lisieux descendentes de um rei índio”,[12] no qual informava que, além do abade Paulmier, outros parentes seus tinham exercido essa função eclesiástica. Alguns anos depois, M. Boissais dedicou outro estudo à família do capitão e à descendência de Essomericq.[13] Boissais, como os outros historiadores locais, trabalhava em função da glória daquele que ele chama de “célebre marinheiro”, e Essomericq só lhe interessa como prova da viagem. Mas talvez por deferência para com os descendentes, em cujos arquivos ele encontrou os dados de seu estudo, faz questão de chamá-lo de “príncipe”, e observa:

M. d’Avezac, falando do filho do rei Arosca, escreve de bom grado: “o selvagem Essomericq”. Não podemos aceitar esse epíteto. Com efeito, o que sabemos dos costumes dos índios mostra que eles eram bem organizados, dóceis, prestativos, possuidores de virtudes domésticas, aptos a receber nossa civilização, diferentementede outras tribos que permaneceram até hoje na situação em que se encontravam há quatro séculos. O que prova, aliás, que Essomericq se tornou logo um civilizado, e que o sangue que corria em suas veias era de boa estirpe, é que seu filho mais velho foi oficial da infantaria e tomou parte nas guerras contra os huguenotes. Ele tinha se casado com Jeanne de Robillard, da poderosa casa dos senhores de Louvagny.

Os preconceitos do autor não poderiam aparecer mais claramente. A rejeição da palavra selvagem é apenas tópica. A partir da oposição selvagem X civilizado, que ele endossa, os Carijó são promovidos à categoria de civilizados, porque eram dóceis e aptos a receber a lição dos europeus e, afinal, de “boa estirpe”(de bon aloi), porque um dos descendentes de Essomericq lutou contra os protestantes e se casou com uma nobre.

Os mesmos preconceitos europeus estampam-se na obra escrita em francês por um autor brasileiro dos anos 20, Mário de Lima-Barbosa (Les Français dans l’histoire du Brésil).[14] Um capítulo é aí dedicado a Essomericq, evidenciando a simpatia do brasileiro por esse conterrâneo. Mas a imagem positiva do índio se deve ao fato de este ter conseguido europeizar-se. O capítulo se intitula “Um índio do Brasil incorporado à família francesa”. No relato de Lima-Barbosa, o “príncipe” deixara “os lugares encantatórios” em que nascera para “iniciar-se no manuseio completo das armas da civilização”. O “grande marinheiro” lhe deu educação esmerada e, pelo casamento, “ingressou na família de seu amigo e protetor”. A história toma assim um ar de conto maravilhoso, segundo o modelo de “Cinderela”. Esse relato subentende que a terra de Essomericq era bonita (encantatória), mas irreal porque não civilizada; que o príncipe era ingênuo, quase tolo (o autor diz que ele foi para a França com a “cabeça cheia de sonhos”); e que sua maior sorte foi ter encontrado um padrinho francês, civilizado e rico. Percebe-se que a fonte principal de Lima-Barbosa é o patriótico Gaffarel.

Na década seguinte, Affonso Arinos de Mello Franco, em sua obra O índio brasileiro e a Revolução Francesa,[15] narra o destino de Essomericq com uma ênfase ainda maior em sua promoção social: “Este venturoso Carijó, que tão prodigiosa reviravolta teve na vida, passando da condição de bárbaro nômade, habitante de um mundo perdido, a nobre e abastado cidadão de um grande país, com o seu lar organizado e a sua família constituída, deve ter sido o primeiro brasileiro que pisou terras de França”.

O livro de Affonso Arinos é notável por seu pioneirismo em mostrar o papel da teoria do “bom selvagem” no ideário preparatório da Revolução Francesa. Mas a obra apresenta-se hoje bastante envelhecida, por seu estilo e suas fontes. E, principalmente, mostra o quanto os intelectuais brasileiros, até meados de nosso século, eram afrancesados por sua formação, e submissos à visão francesa do Novo Mundo. As fontes de Affonso Arinos, para a história de Essomericq, são Gaffarel e Bougainville (Voyage autour du monde), daí certas imprecisões. Aparentemente, ele não tomou conhecimento direto nem da publicação da Relação por D’Avezac, nem da tradução da mesma por Tristão de Alencar Araripe no século XIX.

Desde o livro de Affonso Arinos, ninguém mais se interessou particularmente pela história de Gonneville e de Essomericq. Os manuais de história do Brasil fazem brevíssimas referências à viagem de 1503, e em geral repetem os erros de Gaffarel e seus seguidores.[16] A Normandia, e em especial a cidade de Honfleur, continuou homenageando seu herói navegador, com placas e comemorações. Mas se esqueceu completamente de Essomericq. Quando, em 1989, fiz uma viagem a essa região em busca de maiores informações para meu livro, livreiros e bibliotecários sabiam de Gonneville, mas mostravam-se espantados e até incrédulos quando eu lhes dizia que corria sangue índio nas famílias normandas, já que não apenas Essomericq, mas numerosos índios do Brasil nelas se integraram no século XVI.[17]

A confirmação desse esquecimento e desse espanto está numa publicação local de 1988, assinada por Jacques Auzoux, prefeito da cidadezinha de Courtonne, onde viveram Essomericq e seus descendentes.[18] O prefeito conta que recebera, em 1981, uma carta de São Paulo, escrita por um senhor que queria saber se o índio Essomericq estava enterrado em sua cidade. A perplexidade do prefeito foi total: “Que vamos fazer com esse índio que nos cai das nuvens? De qualquer maneira, é preciso responder a esse senhor, a polidez o exige, mas responder-lhe o quê? Que acusamos a recepção de sua carta? Que estamos espantados de que esse ilustre índio repousa talvez em nosso cemitério? Que compulsamos nossos arquivos e, resultado, nenhum vestígio de índio casado ou falecido em nossa comuna, e terminar essa carta com a fórmula habitual: ‘Sinto muito, senhor, queira aceitar etc.’?”. Depois de pesquisas em bibliotecas normandas, o prefeito encontrou algumas coisas sobre a história. É o que ele narra, como uma novidade, em seu opúsculo.

Mas o esquecimento não foi tudo o que aconteceu a Essomericq; o pior estava ainda por vir. Depois da publicação de meu livro na França, recebi através de meu editor o trabalho inédito de um historiador amador, Jacques Lévêque de Pontharouart, sobre Gonneville e o abade Paulmier.[19] Ora, para esse senhor, o capitão de Gonneville simplesmente não existiu, portanto, não fez viagem nenhuma. Segundo ele, foi tudo inventado pelo abade Paulmier, para ser nomeado vigário apostólico das “Terras Austrais” pelo Vaticano. O abade, que ele qualifica de “abade esperto”, teria redigido a Relação, a carta compulsória de Luís XIV, e teria mentido para as testemunhas Flacourt e Cabart de Villermont, que repetiram suas balelas. E ainda mais: o antepassado do abade, de nome Binot Paulmier de Gonneville, não foi um índio mas um huguenote que comandou um ataque seguido de saque na catedral de Lisieux em maio de 1562. Eis que o nosso índio se transforma num huguenote tão “selvagem” quanto ele! Essa intolerância arraigada, que leva a ver como “selvagem” tanto o Outro da outra margem do Ocidente como o Outro mais próximo (o huguenote), ilumina, à distância de quase cinco séculos, a então surpreendente afinidade manifestada por Jean de Léry com relação aos Tupinambá.

Em 1993, Pontharouart expôs abruptamente sua tese numa reunião da Société d’Histoire de Normandie, o que foi logo veiculado de modo escandaloso pelo jornal Paris-Normandie, causando a indignação do presidente da Société, Jean-Pierre Chaline, e do respeitado historiador Michel Mollat. Chaline rebateu vigorosamente a tese de Pontharouart, cujas “provas”, diga-se de passagem, são facilmente contestáveis.

A tese de Pontharouart não nos interessa por ela mesma; ela nos interessa como ideologia, como imagem. Depois de três séculos de especulações, imprecisões e idealizações, construídas sobre magros mas autênticos documentos, a única história “cor-de-rosa” dos Descobrimentos é dada como não tendo ocorrido. E o índio é recalcado, como uma lembrança incômoda para o imaginário europeu. Como ocorreu desde os primeiros encontros, os discursos sobre os índios revelam mais acerca dos enunciadores europeus ou europeizados do que sobre os próprios índios. Um colóquio intitulado “Les figures de l’indien”, realizado em 1988 em Montreal, abria-se com a seguinte observação: “Talvez o exame da figura do índio não seja mais do que a história de um jogo de ilusões, no qual o índio – que para começar não habitava a Índia – não era nem o objeto nem o beneficiário. Figura, também, de figurante nesse teatro em que ele não tem direito de palavra mas se contenta em representar o papel que lhe deram”.[20] Em 1992, por ocasião da comemoração da descoberta da América, alguns manifestantes “politicamente corretos” quiseram corrigir essa injustiça histórica adotando uma posição inversa, igualmente ideológica. As imagens do Europeu e do Índio trocaram de sinal. Ocorreram assim, em alguns discursos, a demonização do Europeu e a santificação do Índio. Embora simpática, essa postura é discutível. Angelizar o índio, tanto quanto demonizá-lo, é um modo de desconhecer o índio real. Além disso, trata-se de uma postura a-histórica, porque é generalizante e não leva em conta a consciência possível do europeu do século XVI, para o qual a conquista de territórios, a colonização e a evangelização significavam algo bem diverso do que significam hoje. Esse discurso antieuropeu se esquece de que a imagem do “bom selvagem” pertence ao imaginário europeu, e que a reivindicação dos direitos do índios só se tornou possível porque houve a declaração igualmente europeia dos direitos do homem.

A análise dos estudos sobre Gonneville e Essomericq se detém, por motivos mais do que óbvios, em meu livro, último em data. Estou certa de que no século XXI, se alguém se dignar a examinar meu texto, verá aí as marcas da ideologia de nossa época. Embora sem maiores pretensões, meu estudo está embasado nas posições atuais sobre as viagens de descoberta e na etnologia mais recente, e minhas conclusões se encaminham no sentido do relativismo cultural, do respeito à alteridade, da ecologia – preocupações de nosso tempo.

A posição que assumo pessoalmente, no fim de meu livro, é a de encarar essa história como alegórica, simbólica e instigadora de reflexão. A história de Gonneville e Essomericq, tal como ela ocorreu de fato, é irrecuperável. Tudo o que possuímos são uns poucos documentos, testemunhos da época subsequente e, desde então, uma glosa sempre recomeçada e transformada, segundo a ideologia dos sucessivos historiadores. Resta nos perguntar por que essa história ainda fascina os que se interessam pelo maior encontro com a alteridade que foi a descoberta da América.

Em seu livro História de lince,[21] Lévi-Strauss atribui o trágico mal entendido desse encontro à disparidade das predisposições de um lado e de outro. Enquanto os ameríndios tinham, em suas culturas, um lugar reservado à acolhida do Outro como tal, os europeus chegaram e agiram dispostos a tranformar o Outro no Mesmo. Por ocasião do lançamento de seu livro, em 1991, Lévi-Strauss dizia, em entrevistas, que as comemorações da descoberta deviam ser “um ato de contrição e de piedade” pelos índios e suas culturas. E especulava: “O que teria ocorrido se, ao invés daquele desprezo e daqueles massacres, os brancos tivessem tratado os índios de igual para igual?”. A pergunta é reconhecida por ele como ociosa, já que a história foi outra e não pode ser refeita. Entretanto, na mesma entrevista, ele reafirmava a importância dos mitos para o pensamento, não apenas para o pensamento selvagem, mas para o pensamento em geral.

Seguindo essa orientação de Lévi-Strauss, inclino-me a encarar a história de Gonneville e Essomericq como um mito benfazejo, inspirador de nossa atitude para com os índios de hoje, os índios vivos frequentemente tão desconhecidos, esquecidos e ocultados como o remoto Essomericq. O “bom encontro” que foi um dia possível, mesmo que de modo episódico, pode despertar em nós o desejo da repetição. Devemos também refletir sobre a questão da promessa e da dívida de Gonneville, insistentemente lembrada através dos séculos. Todos os “brancos”, os “civilizados”, incluindo nós mesmos, os americanos de hoje, têm uma dívida para com os índios, uma dívida que não data de “vinte luas”, mas de cinco séculos. Como essa dívida pode ser paga? Dando-lhes uma “esmerada educação”? Integrando-os à nossa chamada civilização? Devolvendo-lhes ou garantindo-lhes suas terras e o direito à diferença cultural?

Essomericq, como a imensa maioria de seus congêneres, não foi interrogado nem se manifestou sobre o assunto. Mas os nossos índios vivos estão tomando cada vez mais a palavra, e eles devem ser consultados, agora, sobre como podemos pagar essa dívida.

NOTAS

  1. Vinte luas. Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil (1503-1505). São Paulo: Companhia das Letras, 1992 (2· ed., 1996). Tradução francesa: Le voyage de Gonneville (1503-1505) et la découverte de la Normandie par les indiens du Brésil. Trad. Ariane Witkowski. Paris: Éditions Chandeigne, 1995.
  2. Tratei dessa questão no último capítulo de meu livro, intitulado “O silêncio de Essomericq”.
  3. M. d’Avezac (ed.), Campagne du navire l’Espoir de Honfleur, 1503-1505. Relation authentique du voyage du capitaine de Gonneville es Nouvelles Terres des Indes. Paris: Challamel, 1869. Manuscrito pertencente à Bibliotheque de l’Arsenal, Paris, sob a cota MSS 3221, HF 24 ter. O fato de o documento original ter se perdido, e de não haver nele menção expressa ao Brasil, ocasionou certa desconfiança por parte de alguns historiadores. Entretanto, o caráter oficial da cópia autenticada não deixa dúvidas sobre a existência do documento anterior, e as deduções de D’Avezac são aceitas pelos melhores especialistas.
  4. Hélene Clastres, Terra sem mal, o profetismo tupi-guarani. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1978.
  5. Mémoires touchant l’établissement d’une mission chrétienne dans le troisieme monde, autrement appelé la Terre Australe […l. Paris: Cramoisy, 1663.
  6. Anotações transcritas por Charles de Brosses. ln: Histoire des navigations aux Terres Australes. Paris: Durand, 1726.
  7. Histoire de la grande île de Madagascar. Paris: Gervais Clouzier, 1661.
  8. Cartas do barão de Gonneville, 1783, Bibliotheque Nationale de Paris, seção de manuscritos, cota n. a. fr. 9439.
  9. Verbetes referentes a Gonneville na Biographie normande, de Lebreton (Rouen, 1858), e no Manuel de bibliographie normande, de Frere (Rouen, 1860).
  10. “Primeiro navio francez no Brasil”. Revista Trimestral do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brasil, t. XLIX, vol. 2, Rio de Janeiro, 1886.
  11. Paris: Maison neuve, 1878.
  12. “Trois chanoines de Lisieux issus d’un roi indien”. ln: Études d’histoire normande. Lisieux, 1900.
  13. Binot Paulmier, dit le capitaine de Gonneville, commandant du navire “L’Espoir”, 1503-1505. Sesorigines, son voyage, sa descendance. ln: Annuaire de5 départements de la Normandie. Association normande, 1912.
  14. Les Français dans l’histoire du Brésil. Rio de Janeiro/Paris: Briguiet/Blanchart,1923.
  15. O índio brasileiro e a Revolução Francesa As origens brasileiras da theoria da bondade natural. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
  16. Carlos da Costa Pereira tratou do assunto em seu livro História de São Francisco do Sul (Florianópolis: Editora da UFSC,1984), mas estava mais interessado na localização exata do ponto em que Gonneville abordou do que na pessoa do mesmo ou na de Essomericq.
  17. Devo, entretanto, a alguns prestativos arquivistas normandos, contatados posteriormente, muitas de minhas referências.
  18. “Histoire d’lssoméric, authentique prince indien”. ln: Mon village. Courtonne-laMeurdrac, 1988.
  19. Le navigateur Paulmier de Gonneville et l’abbé Paulmier de Courtonne, original inédito, 1994.
  20. Gilles Thérien (org.), Lesfigures de l’Indien. Montréal: Université du Québec à Montréal, 1988
  21. Histoire de lynx. Paris: Plon, 1991; História de lince. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

    Tags

  • Afonso Arinos de Mello Franco
  • arosca
  • Binot Paulmier de Gonneville
  • bom selvagem
  • Brasil
  • capitão Gonneville
  • Claude Lévi-Strauss
  • Descobrimento do Brasil
  • Essomericq
  • europeus
  • França
  • Gaffarel
  • índios
  • mau encontro
  • olhar missionário
  • Pero Vaz de Caminha
  • Relação da viagem do capitão Gonneville
  • terras austrais
  • tribo carijó
  • Tupinambás