2013

Futuro(s) presente(s)

por Marcelo Jasmin

Resumo

Antigos e modernos pensaram a tradicional tripartição do tempo a partir da inscrição dos seres humanos no seu próprio presente. Encontra-se nas “Confissões” de Santo Agostinho a afirmação de que passado e futuro não dispõem de existência própria, pois só existem no tempo presente. O passado só existe no presente através da memória; o futuro através de sua participação na expectativa de cada contemporâneo. Por isso, os tempos não deveriam ser nomeados como passado, presente e futuro, mas sim presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras. Também Hobbes notara, em prefácio à sua tradução da Guerra do Peloponeso de Tucídides, que apenas o presente tem existência na natureza. As coisas do passado, quando existem, só o são na memória, enquanto as do futuro não existem, senão como expectativa e ficção que ocupam a mente presente. É da projeção para um tempo que ainda não há, daquilo que se crê ou se deseja no presente, que se constitui o futuro. Ao longo dos séculos, os serem humanos viveram regimes diferenciados de futuridade associados às experiências adquiridas em seu próprio tempo e àquelas acumuladas e registradas nos anais da memória coletiva e da história. Chegou-se a supor até o futuro como a repetição do já conhecido ou como a reposição de um equilíbrio por algum motivo perdido. O futuro, então, se concebia numa espécie de “continuum” temporal com o já acontecido. Em versões religiosas desse regime, o presente se ampliava até a chegada de um futuro projetado como acontecimento cósmico que, por exemplo, na forma do Juízo Final, encerraria a própria experiência do tempo. Em outros momentos, associados à noção de modernidade, o futuro passou a ser concebido como projeção progressiva de uma linha evolutiva determinada,

portador de um tempo novo capaz de novidades radicais e de rupturas em relação a tudo que antes se conheceu. A temporalização das utopias da liberdade e da igualdade, do liberalismo e do comunismo, ou a sociedade científico-tecnológica do positivismo, foram alguns rebentos dessa imaginação generosa que afirmou a capacidade humana de criar, com seus próprios meios, e a despeito de qualquer divindade transcendente, a vida boa na Terra dos homens. Nessa modernidade, o horizonte das expectativas descolou-se do espaço de experiências (Koselleck) para alcançar a forma do “télos”, com frequência associado a uma redenção que conferiria sentido à História. Neste registro, o tempo presente transformara-se numa espécie de átimo, ponto fugaz de passagem de uma força que vinha do passado para construir o futuro bom, belo e justo. Por isso mesmo, o tempo deveria ser acelerado pela ação para abreviar a duração do vale de lágrimas e realizar o próprio da razão. As sucessivas experiências catastróficas do século XX, inaugurado pela primeira guerra mundial, encerrado sob a ameaça da destruição planetária pela ação da própria humanidade, e cortado pelo horror dos campos de concentração e da demonstração cabal da capacidade de autoextermínio induzido pela espécie, derrotaram as expectativas otimistas do progresso e trouxe sombras para o horizonte da experiência presente do futuro. Não sendo o futuro a repetição do conhecido, nem um “télos” antecipável pela razão a partir da projeção histórica de um motor imóvel qualquer, como articular experiência e expectativa ou pensar o sentido da história no contexto de um mundo contemporâneo? Um experimento possível reivindica, simultaneamente, pensar o futuro fora do registro “cronocida” do mal anunciado fim da história, e afastar-se das concepções temporais que, ao longo do século XIX, formularam o futuro como “coisa”, como algo passível de “fabricação”, o que supunha que a história estaria “disponível” à manipulação humana. Mas se tal crítica parece ser indispensável, há o que por no lugar daquela estrutura temporal moderna, teleológica, fabricável? Navegando pelo nevoeiro do tempo presente, tateando na busca de alternativas possíveis, trata-se de investigar princípios que mantenham ativa uma imaginação generosa do porvir associada ao cuidado com tudo o que habita o percurso no tempo.


APRESENTAÇÃO: O FUTURO QUE NÃO É MAIS O QUE ERA

Futuro presente explora alguns argumentos que visam contribuir para o pensamento de noções de futuro que possam ser compatíveis com a nossa condição contemporânea. Em dois textos anteriores, produzidos no contexto dos ciclos das Mutações, organizados por Adauto Novaes, procurei mostrar como experiências e noções que tratamos como naturais em nossa linguagem ordinária e em nossa convivência cotidiana são construções históricas e sociais culturalmente definidas. Assim, tentei apresentar a historicidade tanto da noção de história universal como da experiência do progresso, buscando compreendê-las como invenções civilizacionais, modos de crer, de sentir e de viver no tempo, cujo caráter cultural, isto é, não natural, podia ser estabelecido[1].

Pesquisa semelhante pode ser realizada em relação à noção de futuro. Trata-se de averiguar como aquilo que nos acostumamos a chamar simplesmente “o futuro”, um substantivo singular precedido por artigo definido, é também parte de uma construção social específica da temporalidade, no sentido de um cronótopo, para usarmos um termo de Bakhtin apropriado por Hans Ulrich Gumbrecht em suas reflexões para uma sintomatologia do presente, ou de um regime de historicidade, de que nos fala o historiador francês François Hartog em suas pesquisas sobre o tempo. Penso que, hoje, os modelos tradicionais e modernos de temporalidade, ora associados à noção clássica de uma história mestra da vida, ora à perspectiva da história universal orientada por um télos como coisa que se constrói, não operam mais como no passado recente[2]. As investigações acerca do contemporâneo parecem apontar para a constituição de outro tipo de estrutura temporal no qual um presente, cada vez mais alargado, não é hospitaleiro para um pensamento generoso sobre o futuro. O futuro, hoje, nos parece, simultaneamente, ameaçador e imprevisível. Somos incapazes de qualquer prognóstico para um prazo mais longo, dada a opacidade de nosso horizonte atual. Ao que parece, em comparação com o vivido e concebido em fins do século XVIII e por todo o XIX, vivemos uma experiência de temporalidade marcada pela ausência de direcionalidade. No curto prazo, conseguimos, no máximo, reiterar um futuro que se apresenta como uma espécie de “mais do mesmo”, o anúncio da chegada de um fim para a história, uma espécie de cronocídio[3].

Para voltar à formulação de Octavio Paz que me serviu de referência na elaboração do já citado texto sobre a história universal, deveríamos reconhecer que vivemos uma espécie de “ocaso do futuro”[4]. Viveríamos, hoje, escreve ele em 1990, a consciência da finitude dos recursos naturais e da espoliação humana que pôs em risco a sobrevivência da própria espécie. A ciência e a técnica, tradicionais aliadas na tarefa de ultrapassar os limites impostos pela natureza, teriam nos levado às armas nucleares e à refutação “devastadora” da noção de progresso inerente à História. O otimismo iluminista acerca do destino do sujeito histórico moderno, a humanidade, fora destruído pelas experiências dramáticas do século XX: as duas guerras mundiais, os totalitarismos, os campos de concentração, a bomba atômica. O fim do mundo comunista, em 1989, apontaria a falência das hipóteses, filosóficas ou históricas, que acreditavam conhecer as leis do desenvolvimento histórico. Acrescentaríamos, hoje, que a penúltima experiência comunista, a da China, transformou-se em deslavado capitalismo com controle estatal e lamentáveis restrições à liberdade e a direitos individuais e coletivos.

Nenhuma perspectiva serena seria, hoje, capaz de apontar uma racionalidade intrínseca à História que garantisse, ou pelo menos vislumbrasse, uma noção de futuro virtuoso. As sociedades construídas em nome do futuro intrínseco às leis do progresso histórico resultaram nos “cárceres gigantescos”, burocráticos e perversos, que negaram as expectativas generosas de redenção das iniquidades. Enfim, nos encontramos diante de um futuro opaco, incerto, atemorizador, e a ação política pensada como construtora segura do futuro tornou-se objeto de desconfiança após os seus resultados nefastos perpetrados no século XX.

Para discutir tais argumentos, organizei a minha exposição em três partes: a primeira delas apresenta algumas das fontes que originaram o futuro presente que dá título ao texto: um poema de Kaváfis, as Confissões de Santo Agostinho, a teoria da história de Reinhart Koselleck. Em seguida, discuto como o estudo das relações entre experiência e expectativa pode ser um caminho interessante para a inteligibilidade das formas mais frequentes com que lidamos com a articulação entre passado, presente e futuro, e observo, resumidamente, como a análise dos conceitos de movimento permite caracterizar formas específicas desta articulação temporal. Em terceiro, me arrisco a delinear traços para uma configuração possível do lugar atual do futuro em nossa experiência contemporânea e, de volta ao poema de Kaváfis, registro o que ali encontrei como inspiração possível para o pensamento contemporâneo do futuro.

As fontes do futuro presente

Um poema de Kaváfis

A minha disposição inicial ao elaborar o presente texto foi, como tem sido, explorar argumentos a partir de minhas áreas de estudo, especialmente a teoria política e a teoria da história, que pudessem fornecer sugestões e alguma inteligibilidade ao tema do “futuro que já não é mais o que era”. Contudo, no percurso da pesquisa, não me abandonava o sentimento de estar embotado em limites muito estreitos no que encontrava ali para lidar com o tema, especialmente quando, na revisitação das infindas e gravíssimas mazelas do desgraçado século XX, quis insistir na pergunta pela possibilidade de manter ativa alguma imaginação generosa acerca do futuro que não se confundisse com o mais do mesmo da técnica.

Foi no contexto deste enfrentamento com o “ocaso do futuro” que eu me deparei com um belo poema que, embora diga, como o diz, de coisas outras que mobilizam o meu corpo e as minhas emoções, que me fascina por seu volume poético e por sua beleza, um poema que insistiu em interpelar, incansavelmente, os meus modos de pensar os temas da filosofia da história, das relações temporais entre passado, presente e futuro, das condições da ação humana no tempo de agora, como que exigindo que eu os refizesse. Falo de Ítaca, escrito pelo poeta grego Konstantino Kaváfis, publicado em 1911, antes, portanto, que o século XX manifestasse toda a sua lancinante crueldade.

Antes de transcrever e me aproximar do poema, quero sublinhar que não tenho nem competência nem intenção de fazer análise poética. Também não tenho qualquer pretensão, até porque não acredito nela, de dizer o que quis o poeta ao escrever o seu poema. A minha apropriação dos versos de Kaváfis é de certa forma selvagem, desacertada, ingênua talvez. Tomarei o poema, na bela tradução de José Paulo Paes, tal como ele me provoca e me convida ao pensamento dos temas da História e do futuro presente.

Se partires um dia rumo a Ítaca,

faz votos de que o caminho seja longo,

repleto de aventuras, repleto de saber.

Nem Lestrigões nem os Ciclopes

nem o colérico Posídon te intimidem;

eles no teu caminho jamais encontrarás

se altivo for teu pensamento, se sutil

emoção teu corpo e teu espírito tocar.

Nem Lestrigões nem os Ciclopes

o bravio Posídon hás de ver;

se tu mesmo não os levares dentro da alma,

se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.

Numerosas serão as manhãs de verão

nas quais, com que prazer, com que alegria,

tu hás de entrar pela primeira vez um porto

para correr as lojas dos fenícios

e belas mercancias adquirir:

madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,

e perfumes sensuais de toda espécie,

quanto houver de aromas deleitosos.

A muitas cidades do Egito peregrina

para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.

Estás predestinado a ali chegar.

Mas não apresses a viagem nunca.

Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim,

rico de quanto ganhastes no caminho,

sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.

Sem ela não te ponhas a caminho.

Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.

Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,

e agora sabes o que significam Ítacas[5].

O poema, como o li, evoca altivez e serenidade na lembrança da volta de Ulisses para Ítaca. Faz o elogio da viagem como caminho do conhecimento e da sabedoria. Também diz do envelhecimento, mas não como dor ou lamentação; pelo contrário, como a aventura da experiência que enriquece o espírito. Ainda que na Odisseia o caminho seja de volta, Ítaca não deixa de ser um futuro, um lugar onde quer chegar o viajante. Importa, todavia, sublinhar que no poema de Kaváfis este querer chegar não pode ser reduzido à pressa da viagem sob o risco de perdê-la, de perder a aventura, de perder o saber. O percurso, ele mesmo, é tão importante, e por vezes mais importante que o porto final. Pois é no caminho que se experimentam as riquezas e as belezas que a viagem tem a oferecer.

Podemos conceber Ítaca, o lugar, como um fim – a própria morte ou o télos. Prefiro, contudo, vê-la na sua dimensão propiciadora de um início, um princípio, o motivo pelo qual o navegante se lança do porto ao mar. Penso então que, ao mesmo tempo em que o elogio do percurso revela a sabedoria do desfrute do presente, de cada um dos agoras que se transformam nas muitas paragens da navegação, sem uma motivação inicial não haveria viagem, pois do porto não haveria por que sair. Um equilíbrio delicado se anuncia aqui: Ítaca deve estar sempre presente na mente do viajante, embora este deva cuidar para não se obsedar pela chegada. A obsessão pelo fim tem efeitos cruéis: ao chegar, o viajante encontra uma Ítaca pobre, decepcionante, e não sabe com ela lidar, já que despido da riqueza e da sabedoria esfumadas na aceleração do tempo em direção ao fim. Se o desejo do futuro deve estar sempre presente na mente do viajante, como princípio que conduz a viagem, o cuidado com o caminho oferece o necessário para desfrutá-lo, a cada porto, a cada douto, a cada aroma. Nos versos de “Ítaca”, tal como os li, o futuro, o que nos motiva à viagem, é sempre uma presença no agora. Eis aí uma primeira fonte de meu futuro presente.

Agostinho e a tripartição do tempo

A noção de um futuro presente vem de longa tradição filosófica e podemos apreendê-la na obra de Santo Agostinho, especialmente nos argumentos que constituem o famoso Livro XI de As confissões, dedicado ao Homem e o Tempo. Agostinho se pergunta: “que é, pois, o tempo?”. Conhecemos a sua resposta: ainda que o tempo seja algo que experimento inequivocamente em meu cotidiano, que posso reconhecer nas rugas do meu rosto, que compreendo quando alguém fala dele para mim, se tento defini-lo, se tento apreendê-lo “só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito”, fracasso. O tempo escapa à minha capacidade de explicá-lo: “Se ninguém mo perguntar, eu sei [o que é o tempo]; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”[6].

Não me interessa retomar os muitos meandros da reflexão agostiniana. Quero reter as ponderações do bispo de Hipona ao fundamentar a impossibilidade da existência própria tanto das coisas passadas como das coisas futuras. As coisas passadas e futuras só têm existência no presente, através da rememoração e da antecipação. Dizemos, ordinariamente, que os acontecimentos passados são relatados pela memória. Mas, como nos adverte Agostinho, eles não têm sequer existência na memória. O que a memória narra são “as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos [passados], os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios”. E aquele que afirma predizer o futuro está apenas a enunciar “as imagens já existentes (no presente) das coisas que ainda não existem”. Neste caso, são os prognósticos que têm existência, não as coisas futuras elas mesmas. Por isso, conclui Agostinho, haveríamos de adotar uma nova terminologia: os tempos não deveriam ser nomeados passado, presente e futuro, mas sim presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras[7] •

O pretérito só tem existência como imagem na memória, como recordação, enquanto o futuro é projeção da esperança, de maneira que ambos os modos temporais se dão no presente. Na conclusão desta brevíssima referência às Confissões de Agostinho retenho a extraordinária intuição de que a totalidade da estrutura temporal – a articulação entre passado, presente e futuro – só tem existência no tempo presente. Enuncia-se, aqui, uma segunda inspiração do que se constituiu como o futuro presente.

Koselleck, experiência e expectativa

Poderíamos, certamente, recorrer a outros momentos da tradição filosófica ocidental para pensar essa recusa da existência própria dos modos temporais do passado e do futuro. Restrinjo-me, aqui, à companhia da teoria contemporânea da História, minha fonte primeira, especialmente às categorias meta-históricas propostas pelo historiador alemão Reinhart Koselleck, e à reflexão de Hans Ulrich Gumbrecht acerca do cronótopo historicista, ambos herdeiros e continuadores deste longo percurso filosófico que passando, contemporaneamente, pelo Ser e tempo de Heidegger e pelo Verdade e método, de Gadamer, desenvolveu a intuição agostiniana em outras direções.

Em primeiro lugar, se saímos do âmbito de uma fenomenologia da consciência ou da psicologia interior da alma, registro em que se instalava a reflexão de Agostinho, em direção à noção de historicidade e a um registro de natureza histórico-sociológica, podemos reconhecer que, para além da consciência de cada indivíduo, também os grupos sociais, épocas e mesmo sociedades inteiras experimentam, em cada momento de seu presente, relações distintas entre passado e futuro. Neste sentido, o tempo não é apreendido como uma grandeza física, natural, ou como estrutura intrínseca à consciência, mas como fenômeno histórico e cultural.

Em segundo lugar, ao considerarmos a historicidade das construções sociais da temporalidade, poderemos afirmar que há uma história do tempo ou, mais precisamente, uma história das distintas experiências, sensibilidades e representações mentais coletivas dos modos da estrutura temporal. Uma história que diz de como as diversas sociedades e culturas perceberam e lidaram com o tempo no seu presente de existência. Em terceiro, se quisermos tornar as categorias psicológicas agostinianas aplicáveis a esta história do tempo social, poderemos afirmar que, para cada ponto da aventura humana na Terra, é possível reconhecer uma forma específica de relação entre experiência expectativa que conforma o horizonte de ação dos membros de cada comunidade.

Finalmente, se estes comentários fazem sentido, devemos reconhecer que também as formas atuais de lidarmos individual e socialmente com o tempo são dependentes de modos particulares – portanto contingentes, não necessários, nem universais – de vivenciarmos, conscientemente ou não, as relações entre experiência e expectativa que se dão no nosso presente.

Reformulando as categorias psicológicas de Agostinho para transformá-las em categorias formais, meta-históricas, que possam tratar das condições de possibilidade de toda história, Koselleck amplia e formaliza a intuição da memória e da esperança, respectivamente, como experiência e expectativa.

A experiência é o passado atual, aquele no qual os acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a história é sempre concebida como experiência alheia[8].

Podemos dizer que a experiência constitui o passado presente, aquelas parcelas do que, embora em si já não seja mais, permanece ativo, em sua latência (Gumbrecht) e em seus efeitos, consciente ou inconscientemente, na vida cotidiana atual. Para mim, este passado presente ganha a forma linguística de um “já não mais, mas ainda aqui”. E se o correlato futuro tradicional do passado como o “já não mais” é o “ainda não”, nos termos que quero desenvolver o futuro presente é uma espécie de “ainda não, mas já aqui”. O que haverá, por certo, não há aqui, mas a expectativa do seu haver sim.

Todavia, é preciso notar que passado presente e futuro presente não são propriamente “conceitos simétricos complementares” porque a correlação entre experiência e expectativa não se dá na forma de uma “imagem especular recíproca”. Experiência e expectativa possuem for­ mas diferentes de ser. A assimetria entre as duas dimensões é pensada, por Koselleck, a partir de uma intuição sobre o tempo que se encontra numa carta de Goethe, de 1820: a experiência já feita, afirmava o escritor, se apresenta “concentrada em um ponto”, ao passo que a experiência a ser feita se desdobra numa infinidade de pontos adiante. Em termos do próprio Koselleck, a “experiência, uma vez feita, está completa na medida em que suas causas são passadas, ao passo que a experiência futura, antecipada como expectativa, se decompõe em uma infinidade de momentos temporais”[9]. Ao sublinhar esta diferença de forma entre experiência e expectativa, e afirmando que o tempo deve ser expresso por metáforas espaciais, Koselleck formula as noções de “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativas”.

O espaço de experiências concentra o conjunto daquilo que, não havendo mais, constitui o estoque do sabido, mesmo que em parte não consciente. Isso não significa, entretanto, que a experiência passada permaneça, sempre, idêntica a si mesma, imóvel, concluída em definitivo no pretérito. Com frequência, corrigimos as informações que nos chegam do passado, e sobre o passado, quando as consideramos equivocadas. Novas experiências no presente também nos fazem revisitar o que já aconteceu, reintegrando outras memórias, ressignificando antigas lembranças, redescrevendo processos até então conhecidos de outros modos, refazendo, presentemente, a experiência passada. Se aprendermos com o tempo, as experiências já adquiridas poderão modificar-se, mas podemos pensar, para manter as metáforas espaciais de Koselleck, que tais experiências redescritas se rearticulam num espaço.

Por sua vez, a forma temporal da expectativa presente lança-se como horizonte que se refaz a cada ponto do percurso. A expectativa é constituída por “esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade”[10]. Tudo o que se espera poder acontecer adiante se inscreve num horizonte que se desloca junto com aquele que se move. Sem dúvida, o que se pode expectar depende do estoque de experiências a que se tem acesso no presente, deriva daquilo que já se viu, do que se acreditou ou do que se quis ver acontecer. A depender da natureza das experiências que se dão no presente, podemos tanto reforçar como refazer as nossas expectativas. Nas palavras de Koselleck:

Expectativas baseadas em experiências [conhecidas ou esperadas] não surpreendem quando acontecem [e se tornam fatos presentes]. Só pode surpreender aquilo que não é esperado. [Neste caso, do aconteci­ mento de algo não previsto pelo horizonte de expectativas…] estamos diante de uma nova experiência [que rompe os limites do horizonte anterior]. Romper o horizonte de expectativa cria, pois, uma experiência nova. O ganho de experiência ultrapassa então a limitação do futuro possível, tal como pressuposta pela experiência anterior. Assim, a superação temporal das expectativas organiza nossas duas dimensões [experiência e expectativa] de uma maneira nova[11].

Para concluir esta terceira inspiração do futuro presente, podemos dizer, a partir das categorias meta-históricas de Koselleck, que é na determinação dos modos particulares de articulação entre o espaço de experiências e o horizonte de expectativas das diversas formações sociais que podemos compreender as formas do tempo social. É a estas construções sociais da temporalidade que podemos chamar, seguindo Gumbrecht, de cronótopos, ou, segundo Hartog, de regimes de historicidade. Neste registro, uma história do futuro seria a história dos horizontes de expectativa experimentados, na temporalidade, por aqueles agrupamentos humanos que deixaram vestígios que somos capazes de ordenar.

Expectativa e experiência

Dois modos básicos de temporalidade social

De posse dessas categorias, passo agora a expor os traços mais característicos dos dois principais modelos de temporalidade mundana conhecidos pelo mundo ocidental. De modo geral o argumento segue o delineamento básico proposto pela história conceitua! de Koselleck, especialmente em seu livro Futuro passado e em seu verbete sobre a História que consta do Dicionário histórico dos conceitos fundamentais[12]Nesses textos, Koselleck apresenta o argumento de que a historiografia, isto é, o conhecimento e a escrita crítica das histórias, desde sua invenção pelos gregos do século v a.C. até meados do século XVI (pensemos no Renascimento italiano), constituía-se da tarefa intelectual de narrar os acontecimentos considerados dignos de rememoração para, retirando-os do alcance do inevitável esquecimento, transformá-los numa aquisição para sempre. Enquanto uma estrutura geral de crença, cria-se que o sábio condutor dos assuntos públicos – o príncipe, o cidadão – seria sempre capaz de encontrar, nas narrativas escritas pelos historiadores, situações semelhantes, análogas àquelas que a ação humana teria de enfrentar no presente e no futuro, de modo que o ator, provido com a experiência exemplar de seus antepassados em situações semelhantes, agiria de modo mais prudente, menos inocente, e com maiores chances de acerto do que aqueles ignorantes das histórias. O passado, ou melhor, aquelas ações e situações particulares imortalizadas pelas histórias sob a forma de narrativas exemplares, era então concebido como fonte primordial de orientação da ação e da decisão política, na cidade, na diplomacia e na guerra. Por isso mesmo a História era Mestra da Vida, antecipando, pela narrativa das experiências alheias, aquilo que se poderia apresentar, no futuro, ao príncipe ou ao cidadão.

Isso não significava que não houvesse mudanças ou inovações no decurso do tempo, mas tais novidades eram absorvidas no modelo sem que rompessem a estrutura temporal que lhe era própria – uma espécie de continuum temporal no qual o que se esperava poder acontecer no futuro já estava inscrito na tradição. A possibilidade de um evento que de fato alterasse esta relação de proximidade entre passado, presente e futuro só era esperada como acontecimento cósmico ou sobrenatural que escapasse à autoria humana[13].

A possibilidade cultural de falarmos em uma história universal baseada no progresso consistente e infinito da humanidade em direção à realização da razão e da felicidade na Terra, através da ação dos próprios seres humanos, dependeu de um conjunto amplo de mudanças em vários campos da experiência social, a partir do qual se estabeleceu a quebra daquele continuum temporal tradicional e se imaginou um futuro cada vez mais heterogêneo em relação ao presente e ao passado. O mundo artesão e camponês, no qual a maior parte da experiência social fora vivida até o século XVI, concebia a repetição das mesmas coisas do passado no futuro, num contexto mental marcado pela estabilidade da natureza humana e pela regularidade das condições de vida. No mundo moderno, por contraste, ampliou-se a assimetria entre passado e futuro, especialmente a partir da experiência das novidades representadas pelas grandes navegações, pelo desenvolvimento do comércio mundial, pelos avanços da erudição e das descobertas científicas, em particular a lei da gravitação universal de Newton. Este mundo, que passou a se ver cada vez mais como novo, imaginou que à sua frente outras aventuras inéditas iriam acontecer, não por intervenção divina, mas pela própria extensão e intensificação da capacidade humana. No século XVIII, ao formular que o homem seria capaz não só de perfectibilidade, como na expressão de Rousseau, mas também de aperfeiçoamento, como em Condorcet, capaz não apenas de alcançar determinado ideal substantivo, como em Hobbes, mas de poder aprimorar-se e ao mundo indefinidamente, como em Kant, a consciência europeia decretou a falência daquela antiga crença na história mestra da vida e, com ela, a da sua estrutura temporal.

O futuro não estaria mais identificado com a repetição do já conhecido e registrado nas narrativas dos historiadores, mas como um momento temporal em que o diverso, o heterogêneo, a novidade radical poderiam acontecer. No registro do progresso, o futuro não só admite a novidade radical, mas promete um mundo melhor. O tempo aparece aqui como o agente portador da mudança em direção a uma civilização superior. Em vez de enaltecer o passado como aquela dimensão em que se poderia encontrar a experiência e a sabedoria necessárias à orientação da vida presente, o olhar iluminista virou-se para a frente, para imaginar que um futuro mais luminoso do que tudo o que até então se experimentara na dimensão sublunar do vale de lágrimas forneceria orientação para as ações humanas no presente. O passado, antigo lugar da exemplaridade, tornava-se aquilo que se desejava abandonar, o que se queria e se devia ultrapassar, ainda que mantivessem vivas as lições relevantes para a prudência. O otimismo das Luzes projetou um futuro que se descolava da sabedoria antiga para alcançar, com a realização progressiva da Razão, um mundo liberto da ignorância, das superstições, das iniquidades e do erro interessado, um mundo de felicidade, construído pelos homens, na Terra dos homens. O horizonte de expectativas se descolava do espaço de experiências.

O desdobramento deste modelo moderno, desde fins do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, estará na base da elaboração das filosofias da História e de uma variedade de programas políticos que, apesar de suas diferenças, compartilhavam pressupostos centrais. Em primeiro lugar, o já referido suposto de que o tempo é, em si mesmo, portador de mudança necessária, de modo que nenhum fenômeno humano deveria resistir à sua transformação temporal. Em segundo, “que esta mudança inevitável teria ritmos regulares cujas estruturas [ou cujas ‘leis’] poderiam ser identificadas”, de modo que a “mais nobre tarefa” do historiador não seria mais salvar do esquecimento as ações dignas de serem transformadas em aquisições para sempre, mas sim, justamente, encontrar as regularidades ou motores que pudessem explicar o desenvolvimento da aventura humana na Terra, de seus primórdios ao presente. Em terceiro, a transformação produzida por essa regularidade era concebida teleologicamente, isto é, se dirigiria a uma meta passível de ser identificada, antecipadamente, pela razão. Daí a sempre complexa relação entre agência humana e determinação que encontramos nas teorias históricas do período, como, por exemplo, em Kant, Hegel e Marx[14].

Apreendemos aqui uma radical transformação da experiência da História. Àquele conjunto descosido de histórias exemplares reunidas num mesmo espaço de experiências, assistimos à singularização da História agora compreendida como uma totalidade temporal. Àquele continuum de experiências entre passado e presente, assistimos à instauração da assimetria crescente entre espaço de experiências e horizonte de expectativas. A repetição das situações históricas é substituída por um movimento dinâmico de mudança permanente. A este fenômeno chamamos temporalização. Em outras palavras, a História passa a ser experimentada como uma só para toda a humanidade, que, da pré-história ao presente, percorreu um só passado e caminha em direção a um mesmo futuro, dado que dotada de um sentido previamente definido. É esta nova totalidade temporal da história humana que viabilizou a imaginação de um futuro como algo objetivado – por exemplo, a sociedade civil que dispensa universalmente o direito (Kant), o comunismo (Marx) etc. – e que seria passível de fabricação pela ação humana, agora a responsável pela aceleração ou pelo retardo de sua construção.

Os conceitos de movimento da modernidade

Tal transformação é especialmente observada na história dos conceitos e é possível verificar como a abertura moderna do horizonte de expectativas e a sua progressiva assimetria em relação ao espaço de experiências opera nas estruturas temporais no interior mesmo da linguagem. Tomemos, por comodidade, os conceitos políticos.

Do mundo grego até meados do século XVIII, podemos afirmar que as categorias aristotélicas deram conta do conjunto, então considerado finito, de possibilidades de ordenamento constitucional de um povo. Como sabemos, partindo do estudo da experiência de 158 constituições, das quais apenas a de Atenas chegou até nós, Aristóteles, em sua Política, definiu as três formas normais de governo – a realeza ou monarquia, a aristocracia e a república ou regime constitucional – em função do número daqueles que governam, quando governam para todos. Ao mesmo tempo, definiu as suas degenerações – a tirania, a oligarquia e a democracia -, também em função do número dos que governam, mas quando governam para si mesmos, em seu próprio benefício. Com variações terminológicas e adaptações empíricas, tais categorias elaboradas a partir da experiência permaneceram operantes, ordenando o horizonte de expectativas das formas possíveis de governo até o século XVIII, quando Montesquieu introduziu o despotismo como uma das formas estáveis de governo, embora corrupta em si mesma. Ao que parece, ao longo desse amplo período, ainda que novos contextos tenham produzido a agregação de novos significados às camadas tradicionais dos termos aristotélicos, não houve necessidade de abandoná-los.

Entretanto, a partir daí, entre os anos 1780 e 1850, a linguagem europeia (nas suas diversas expressões) sofreu um processo amplo de transformações que expressa e configura a ultrapassagem progressiva dos fundamentos da ordem tradicional. A semântica dos conceitos fundamentais dá a conhecer tanto a ressignificação de termos tradicionais adaptados ao novo tempo – como revolução ou história -, como a invenção de neologismos – socialismo, cesarismo ou comunismo -, criados para nomear as novidades da experiência contemporânea. Mostra, ainda, que a forma geral da linguagem se modifica ao se submeter a um conjunto de processos simultâneos, como os de democratização, temporalização e de ideologização. Ao mesmo tempo em que a base de referência dos conceitos se dilata e designa um número cada vez mais amplo de atores (por exemplo, fala-se cada vez menos dos direitos dos ingleses ou dos nobres e mais dos direitos do Homem e do Cidadão), os atores políticos se apropriam desses conceitos ampliados para imprimirem sentido à sua experiência contemporânea e reivindicarem perspectivas de abertura para um futuro novo. A linguagem, que é um índice das mutações em curso no mundo social, é também arma imprescindível nos combates que gestam estas mesmas mudanças.

Particularmente notória a este respeito é a criação dos chamados conceitos de movimento, que trazem consigo uma nova relação entre experiência e expectativa.

Desde o fim do século XVIII, um número[…] crescente de conceitos políticos e sociais orientou-se para um futuro novo e heterogêneo, que não se baseava em qualquer experiência prévia e [que, por isso mesmo, não podia…] ser testado por referência ao passado. Estes não são conceitos […] coevos à experiência registrada, mas pré-concepções [pre-conceptions]. O que é antecipado por tais conceitos modernos é inversamente proporcional à experiência passada. A razão para isto é extralinguística: as interações crescentemente complexas de nossa era moderna, interligados como estamos agora ao redor do mundo, tornaram-se cada vez menos acessíveis à experiência pessoal direta. Tal estado de coisas possui consequências semânticas e também estabelece novas precondições semânticas para a linguagem política e social. Os conceitos tornam-se necessariamente mais abstratos, ao mesmo tempo mais gerais e menos descritivos que nunca. A temporalização (Verzeitlichung) dos conceitos modernos deve ser compreendida em termos deste contexto. Muitos conceitos básicos, sobretudo aqueles que designam movimentos – [os] ismos -, confluem na reivindicação de que a história futura deve diferir fundamentalmente da passada. Entre tais conceitos estão “progresso”, “desenvolvimento”, “emancipação”, “liberalismo”, “democratização”, “socialismo” e “comunismo”[15].

Tomemos o caso de comunismo. Em 1847, Marx e Engels foram encarregados de escrever uma espécie de “Confissão da Fé da Liga (ou Aliança) Comunista”. Plenamente conscientes das conotações religiosas de tais conceitos, decidiram recusar os termos luteranos (Glaubensbekenntnis, Bund) no seu título para produzir um ato deliberado de inovação linguística cujas consequências duradouras conhecemos. Escolheram, num fraseado inovador, apresentar o Manifesto do Partido Comunista[16]Naquele momento, o uso do termo comunismo introduzia um programa inteiramente novo que, embora pudesse ser aproximado de outras proposições igualitárias e socialistas, queria justamente se diferenciar delas. Aliás, queria se diferenciar delas e de todas as demais posições anteriores já elaboradas no mundo político, antigo ou moderno, para instaurar um horizonte de futuro compreendido como novidade radical. O termo comunismo, naquele momento, não tinha nenhuma base experiencial, não podendo reivindicar nenhum exemplo histórico. Em 1848, o comunismo é pura expectativa. É verdade que a tentativa do Manifesto, como a de Engels em textos posteriores, seria apresentar o comunismo como uma proposição científica na medida em que, diferentemente das proposições consideradas utópicas, corresponderia ao desenvolvimento histórico material da luta de classes e das suas contradições naquele capitalismo europeu. Thomas Morus chamou a sua criação genial “não lugar” de “u-topia”, sugerindo reconhecer a impossibilidade factual de sua realização no mundo dos homens. Já a utopia de Marx e Engels, pelo contrário, ao ser temporalizada, projetou a expectativa de um futuro como resultado de uma dialética histórica, ainda que sem as credenciais da experiência.

Se voltarmos, agora, às categorias políticas aristotélicas e a seus usos até hoje, veremos que as formas de governo correspondiam a experiências realizadas que conferiam um conteúdo factual aos conceitos que as demarcavam. Mas as proposições políticas que, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do século XX, visaram a uma alteração radical do ordenamento da vida social foram obrigadas a criar neologismos por não encontrarem, nos termos tradicionais, nenhuma correspondência para as suas projeções. Em graus diferenciados, isso valeu para o liberalismo, o socialismo e o comunismo, no século XIX, como para o fascismo e o nazismo no XX. Em todos os casos, em seus momentos originais de elaboração, tais conceitos inflaram-se de expectativa, transformando-se em conceitos de movimento. Ao que parece, quanto menor foi a carga descritiva, o conteúdo de experiência, desses conceitos, maior o quantum de expectativa que deles se pôde extrair[17].

Experiência e expectativa hoje

Penso que hoje lidamos com esses mesmos conceitos de modo diverso. Nossa linguagem ordinária os mobiliza num registro prenhe de experiência e com baixa expectativa, invertendo a equação: quanto maior a carga de experiência, menor a expectativa que derivamos do uso linguístico ordinário desses termos. Hoje, precisamos ser bons garimpeiros da linguagem para encontrarmos, fora do vocabulário religioso, conceitos prenhes de expectativa e praticamente sem nenhuma referência empírica experiencial. De algum modo, vivemos até mesmo a experiência inversa: termos que até recentemente pareciam anacrônicos, ultrapassados, deixados para trás, como república ou virtude cívica, por exemplo, encontraram uma nova hospitalidade na discussão da filosofia política contemporânea. Não se trata de restauração, nostalgia, uma volta ao passado, mas do reconhecimento de que coisas do passado que foram deixadas para trás, desprezadas no caminho pelo futurismo do progresso redentor, talvez tenham algo a nos dizer hoje.

E o que dizer, afinal, do futuro, hoje, aquele conceito que, teoricamente, deveria ser o portador da carga máxima de expectativa e da mínima de experiência? Podemos manter ativa essa antiga equação? Não é justamente isso o que se está a discutir neste livro e no ciclo de conferências que o originou? O futuro não é mais o que era, entre outras coisas, e talvez, principalmente, porque ele perdeu a sua dimensão de expectativa direcional e totalizante.

Ou tememos o futuro – o aumento do buraco da camada de ozônio, o aquecimento global, a ameaça nuclear rediviva a cada acidente natural de grandes proporções, o esgotamento de inúmeros recursos naturais que não são renováveis etc. – e queremos adiar esse futuro, transferi-lo para mais longe, ou pensamos o futuro como intensificação do já existente – mais tecnologia, mais democracia etc. Num caso como no outro nos aproximamos do que Hans Ulrich Gumbrecht chamou um “presente amplo de simultaneidades”, em que o passado não é mais algo que queremos deixar para trás e a chegada do futuro não é o que queremos acelerar[18].

Não há mais como crer na possibilidade epistemológica de descortinar um ponto de vista a partir do qual se possa apreender a totalidade da história universal e fornecer-lhe a sua explicação e o seu sentido. Não há mais – ou não cremos mais que haja – uma racionalidade intrínseca à História que possa ser conhecida pela razão e que desvende o télos da caminhada temporal da humanidade. Por isso mesmo as grandes narrativas estão, pelo menos até segunda ordem, suspensas e substituídas por histórias locais, miúdas, particulares, sempre referidas à posição particular e contingente do observador. Perdido o télos, não há mais fundamento universal para uma ação do sujeito histórico na construção de um futuro antecipável pela razão. Parece que o futuro, de novo, a Deus pertence, e podemos elaborar cenários e análises de risco, enquanto contratamos seguros contra todos os imprevistos que podemos imaginar, mas não prognosticar. Como se o futuro tivesse se reduzido a uma espécie de risco presente e a ação estivesse totalmente desprovida de qualquer eficácia na ausência do télos.

Há quem fale de “cronocídio”[19] como a experiência contemporânea da imobilidade temporal associada a isso que já se chamou de pós-modernismo, por não sabermos que nome dar a essa outra configuração que não se pode reconhecer nos termos em que formulamos o cronótopo historicista. A experiência da imprevisibilidade, associada à sensação de não direcionalidade das mudanças presentes e ao temor das ameaças que preenchem o horizonte adiante, pareceria ter nos lançado numa necessária estagnação, ainda que esta pareça estranha quando vista ao lado da permanente aceleração da inovação tecnológica e da correria de nossos cotidianos…

Eu prefiro um caminho um pouco distinto, que compreende a nossa experiência atual do tempo não como ocaso do futuro tout court ou como um cronocídio. O que me parece estar em jogo, hoje, é a falência daquele tipo de horizonte de expectativa associado aos conceitos de movimento e às modernas filosofias da História. Com frequência, temos confundido, na linguagem ordinária, o fim de dada concepção temporal, histórica e culturalmente determinada, com o fim do tempo ou do futuro tomados metafisicamente.

Em termos um pouco mais técnicos, o que estaria em crise seria o cronótopo do tempo histórico, aquela articulação específica entre passado, presente e futuro que foi sustentada pela experiência de uma modernidade talvez jovem, prenhe de expectativa e com pouca experiência das consequências de seus próprios conceitos. É como se, na inversão entre o quantum de experiência e aquele de expectativa presentes na nossa linguagem temporal, tivéssemos abandonado qualquer possibilidade de se conceber um futuro. Talvez possamos surpreender aqui uma espécie de sinédoque que toma o gênero (o tempo e o futuro) pela espécie (o cronótopo e o tipo de futuro inscrito no cronótopo historicista respectivamente).

Para encaminhar o encerramento, gostaria de sublinhar dois pontos do percurso que vim fazendo até aqui sobre o tema do futuro presente, dos quais retiro duas sugestões, muito tímidas e incipientes, a título de conclusão, para pensarmos o futuro hoje.

Em primeiro lugar, apesar de uma tendência cotidiana de naturalizarmos o tempo e a sua tripartição tradicional – passado, presente e futuro -, os significados que atribuímos e os usos que fazemos do tempo são cultural e historicamente situados. Se nos for permitido generalizar, diríamos que a cada época distinta corresponde uma experiência particular da estrutura temporal, uma relação histórica e socialmente específica entre passado, presente e futuro. Em segundo lugar, dado que a ação humana se dá no contexto desse tempo histórico, social e cultural, aquilo que se crê poder fazer, ou não, depende dos modos de compreensão e experimentação dessa estrutura temporal.

Em outras palavras, sendo o futuro uma expectativa sempre experimentada no presente, talvez não se deva simplesmente recusar a presença do futuro, mas sim investigar se e como é possível falarmos em futuros compatíveis com a nossa recusa de um futuro como télos ou como coisa que se pode fabricar. E digo futuros, assim no plural, porque tal recusa talvez exija também a crítica (e talvez a rejeição) da singularização da linguagem que acompanhou a constituição da estrutura temporal historicista moderna.

Penso que melhor seria imaginarmos o futuro como plural de possibilidades, e mais próximo de nossa experiência, e que possa ser pensa­ do como desdobramento de princípios ou inspirações da ação, mas não como produto de uma fabricação, não como resultado de uma técnica. Abandonarmos o modo imperativo do será, associado à arrogância das filosofias da história e dos programas políticos construtores de um futuro objetificado, como coisa, e pensarmos, a cada ponto, o que poderia ser ao agirmos animados por princípios da experiência, sem pretensão teleológica determinada. Pensar o tempo futuro sem que este, em sua luminosidade, ofusque o cuidado com o presente, não o transforme em mero meio, mero momento de passagem para algo que se realizará e nos redimirá adiante.

Retorno a “Ítaca”

E são estas breves sugestões, a da pluralização do futuro e a da substituição da expectativa teleológica que orientava a ação pelo compromisso com princípios derivados da experiência, que me trazem de volta ao poema de Kaváfis. Repito que não se trata de interpretá-lo poeticamente, nem de determinar um conteúdo para o poema ou dizer o que quis o poeta. Apenas compartilho o que me veio à mente quando, preocupado com o tema da história e do futuro, li e ouvi os versos do poema.

Em primeiro lugar, o rebaixamento da certeza do valor exclusivo do ponto de destino final que vem associado à apreciação do percurso da viagem. Sem dúvida o poema não se refere à história de um povo ou da humanidade. Mas ouço ali, antes de tudo, o cuidado com o caminho e tudo aquilo que nele se encontra. Não se pode, na pressa de logo chegar ao télos do desejo, desprezar o que a viagem dá ao navegante. Porque aqui, me parece, o meio, a viagem, o como se viaja, são também fins a que se almeja. A experiência da viagem importa tanto ou mais que a chegada ao destino final. E ainda que a viagem seja também o meio de chegar a algum lugar, o cuidado com o que há no percurso se impõe. No caminho, nada é puro meio, nada é só instrumento. O que há é digno de ser apreciado, desfrutado, e num tempo que é regulado pela própria experiência do desfrute e do saber, não pela pressa da realização do télos. O presente e o percurso não podem ser sacrificados em sua multiplicidade para a redução ao único da chegada.

O destino, ao final do poema, se pluraliza. Sábio, agora, sabes o que significam Ítacas. Ítacas, se são projeções do desejo presente, tornam-se entidades mentais que, por mais que brilhem na expectativa que faz soprar a vela do barco, tornam-se pálidas quando se alcança o porto de destino. Mas tal palidez não é atributo do lugar a que se chegou, e sim a consequência do ofuscamento traiçoeiro produzido pela expectativa, pelo desejo do vir a ser. Ítacas são o que são, vidas reais, humanas, nos limites do que nos é dado ser. Não há redenção, não há salvação, nem o triunfo final da verdade, da felicidade, do gozo total. O que há é a tensão permanente entre a expectativa e a experiência, entre o que foi, o que é e o que projetamos como o dever ser. Mas nada disso deve ser lido como um mero registro da decepção. É o reconhecimento do que há e do que pode haver, assim como da distância entre o que se quis encontrar e onde se chegou.

Não se trata, portanto, de uma ode ao desencanto. Até porque o poema me permite desvelar outra dimensão de futuridade que não está associada ao télos da chegada, mas à possibilidade de a viagem se dar. Tem todo o tempo Ítaca na mente, pois, sem ela, por que haveria de sair do porto? Esta outra Ítaca que se apresenta no início da viagem é a inspiração, é o princípio que orienta a ação. É o que nos faz agir. Neste ponto, não se trata mais nem de um télos imaginado, nem da Ítaca que o viajante encontrou ao chegar, mas daquela com a qual, e pela qual, saiu do porto. E é essa dimensão plural e não objetificada da futuridade que muito me interessou no poema. É a possibilidade de recusar o duplo cronocídio: aquele do futuro como coisa que anula a experiência do presente; aquele do presente estagnado, da repetição infinita do mesmo, da rotinização da mudança que abandonou qualquer imaginação do que pode vir a ser.

Notas

  1. Os textos são, respectivamente: Marcelo Jasmin, “As armadilhas da história universal”, Mutações: a invenção das crenças. São Paulo: Edições Sesc SP, 2011, pp. 377-403, e “A moderna experiência do progresso”, Mutações: elogio à preguiça, São Paulo: Edições Sesc SP, 2012, pp. 453-480. 
  2. Não é simples determinar a cronologia deste passado recente. A crítica do futuro pensado como télos histórico e como coisa a ser construída veio sendo feita desde a própria origem das filosofias da história e podemos encontrá-la em Herder, no romantismo e ao longo de todo o século XIX, como em Tocqueville, em Nietszche e em Burckhardt. Penso que, se não antes, no período que se estende entre as experiências da Segunda Guerra Mundial e da queda do muro de Berlim, tal crítica expandiu-se, ganhando ares de consciência difusa no mundo ocidental. 
  3. A sugestiva noção de cronocídio me foi sugerida pela leitura de Mikhail Epshtein e Edward Skidelsky; “Chronocide: Prologue to the Resurrection of Time”, Common Knowledge, v. 9, Issue 2, Spring 2003, pp. 186-98. Como se verá adiante, uso-a sem adotar as conclusões dos autores. 
  4. Octavio Paz, La quête du présent, Discours de Stockholm, Paris: Gallimard, 1990. 
  5. Konstantinos Kaváfis, “Ítaca”, Poemas, trad. José Paulo Paes, Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, pp. 146-147. 
  6. Santo Agostinho, As confissões, 3ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 217-218. 
  7. Idem, ibidem, pp. 220-222. 
  8. Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semdntica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto/Puc-Rio. 2006, pp. 309-310. 
  9. Idem, ibidem, p. 310. 
  10. Idem, ibidem. 
  11. Idem, ibidem, p. 313. 
  12. Reinhart Koselleck, historia/Historia, Madri: Trotta, 2004. 
  13. No ambiente cristão, este evento seria o Juízo Final que não só alteraria a relação específica entre as três dimensões temporais como aniquilaria o próprio tempo, inscrevendo os salvos e os danados no regime da eternidade em que o tempo não existe. Neste sentido, tratava-se de um cronocídio, de um aniquilamento do tempo enquanto tal. 
  14. Hans Ulrich Gumbrecht, “How anthropological is time? About ‘Effects of Revolution’ in different chronotopes”, mimeo. Versão inglesa de “Naskol’ko antropologichno vremia? Ob ‘effektakh revolutsii”‘, Antropologiia Revolutsii: Sbornik statei po materialam XVI Bannykh chtenii zhurnala “NLO”. Moscou, 2009. 
  15. Reinhart Koselleck, “Uma resposta aos comentários sobre o Geschichtliche Grundbegriffe”, História dos conceitos: debates perspectivas. Rio de Janeiro: PUc-Rio/Loyola/IUPERJ, 2006, p. 99. 
  16. Reinhart Koselleck, “Sorne reflections on the temporal structure of conceptual change”, Main currents in cultural history: ten essays, Amsterdã: Rodopi, 1994, pp. 7-16; Reinhart Koselleck, “Urna resposta…”, op. cit. 
  17. Ver a noção de “produção compensatória” entre experiência e expectativa nos conceitos de movimento em Reinhart Koselleck. Futuro passado…, op. cit., p. 326. 
  18. Ver, por exemplo, Hans Ulrich Gumbrecht, “Depois de ‘Depois de aprender com a história’, o que fazer com o passado agora?”, Aprender com a história o passado e o faturo de uma questão, Rio de Janeiro: FGV, 211, esp. pp. 40 ss. 
  19. Mikhail Epshtein e Edward Skidelsky, “Chronocide: Prologue to the resurrection of time”, op. cit. 

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