2009

Intemperança

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

Há vícios que surgem como a negativa de uma virtude: a intemperança se define como o negativo da temperança. Outros vícios aparentados, como a luxúria, não são iniciados pela partícula privativa, negativa, que é o “in” ou o “a”. A embriaguez, a gula, a luxúria parecem existir por conta própria; a intemperança, não. Ela é um fracasso no temperar (no sentido de moderar, no de clima temperado) nossas paixões. As pessoas não se gabam de ser intemperadas – adjetivo que nem existe nos dicionários. E no entanto ela é muito mais fácil e frequente do que a temperança. Esta, sim, é de difícil conquista.

Nosso tempo não favorece os temperados. É uma época de excessos. O capitalismo libertou o mundo da finitude e dos limites; antes dele um sem-número de controles, como termostatos, evitava os excessos. Um rei vencia seus inimigos; mas, se ficasse poderoso demais, seus próprios aliados e vassalos trocavam de lado, para não se tornarem suas vítimas. O mundo padecia da falta, da escassez, era ameaçado pela fome e pela morte jovem. Mas nos últimos quinhentos anos explodiram toda forma de controle, sejam as que reputamos más, como a mortalidade infantil (que, aliás, só despenca no século XX), ou as que poderiam ser boas, como os limites que impediam o excesso de poder, a proeminência exagerada de um sobre outro.

A intemperança é um desses excessos; é o exagero —tipicamente moderno, hiper-moderno, talvez pós-moderno (mas somente se entendermos o pós-moderno como a continuação, e não a negação, do moderno) — do consumo individual, em especial daquilo que se converte em droga, em adicção. Os atos de comer, beber, fazer amor podem conviver com a temperança; mas, quando se tornam excessivos, ou se constituem em obsessão ou compulsão, compõem o cerne da intemperança. Em outras palavras, a intemperança é a condição do drogado, mesmo que ele se drogue com o que não é droga. Ora, nosso tempo se constrói em torno de compulsões e obsessões.

Drogar-se se tornou uma condição amplamente repartida. As pessoas acumulam ou despendem, mas em ambos os casos agem — ou padecem — em função de algo que contesta sua liberdade, que é a condição obsessiva ou compulsiva. A intemperança pode estar no consumo, mas ela também invade a produção, e talvez seja essa a novidade dela em nossos tempos: não é por acaso que falamos em workaholics, aqueles para quem o trabalho é uma embriaguez. Aquilo que seria a seriedade extrema, aquilo que trezentos anos atrás era a virtude puritana por excelência, hoje se converte em droga da qual alguns não sabem se livrar.

Uma última palavra. Vícios geralmente atraem, virtudes usualmente são difíceis. É raro, ao contrário do que aprendemos, o vício ser punido, a virtude ser recompensada. Mas a intemperança, num tempo que valoriza a saúde, será um dos vícios que prejudicam e matam, um desses poucos males cuja paga é feita de males?


I .

Devo dizer que me sinto paradoxalmente honrado por me caber falar de um vício e não de uma virtude. Falo em paradoxo, pois, normalmente, o que honra são as virtudes, não os vícios — embora, no tempo do apogeu da honra e da nobreza, houvesse uma constante tensão entre o mundo da honra, que é o das aparências, e o da virtude, que é o da alma, do espaço mais interno e íntimo de cada um, sendo que as virtudes não podem estar nas aparências. Mas, de um ponto de vista bastante pessoal, noto que há algo mais instigante, um sabor mais picante, um tempero maior em falar da intemperança do que haveria caso me coubesse abordar a temperança.

Aliás, o termo intemperança não é sequer de uso comum. É mais corrente a palavra temperança, que faz parte das quatro virtudes cardeais da filosofia clássica, que a Igreja cristã recupera dos pensadores que a precedem e que costumamos chamar de pagãos.

Por sinal, os vícios e virtudes que fomos convidados a debater nesta série não são os clássicos. Das virtudes elencadas por Adauto Novaes, apenas uma coincide com as quatro virtudes cardeais da Igreja, isto é, entre iustitia, sapientia, temperantia e fortitudo, aqui neste ciclo somente se falará na sabedoria. Já dos vícios propostos a nosso exame, como não se pode dizer que haja vícios cardeais, o que podemos dizer é que, sendo a temperança uma virtude, será tra­tada pelo seu outro, seu contrário — tarefa esta que me incumbe —, assim como a justiça será abordada pelo viés da injustiça. No fundo, então, três das quatro virtudes serão abordadas, duas pela via torta, que é meu papel; e juntam-se a elas três “novas” virtudes: a amizade, a liberdade e a vergonha, se é que esta é virtude, porque vício seguramente não é. Confesso que tenho dificuldade em entender amizade e liberdade como virtudes, em especial a segunda; e que só entendo a vergonha como sinal de algo virtuoso, que é o pudor, no caso de a privarmos do seu longo papel histórico, que foi o de ser o reverso da honra, da vã glória, e de não a confundirmos com seu papel exposto na psicologia, que foi o de envergonhar-se da sexualidade, o que hoje soa bastante contestável para dar-lhe as características de virtude. Com efeito, na Bíblia, a primeira aparição da vergonha, e uma das primeiras na história escrita, dá-se quando o casal primordial se envergonha da nudez — o que significa que se envergonha, ante o Pai comum, de terem feito sexo; obviamente, o que eu elogiaria como virtude não é essa vergonha pelo ato sexual, mas sim o recato, o pudor, a capacidade de se arrepender de qualquer erro, a capacidade de admitir o erro cometido e a disposição a corrigi-lo.

Sobre o que é temperança, reina certo consenso: sophrosyne, em grego, significa uma “sanidade moral”, que requer o autocontrole e a moderação, que, por sua vez, devem-se a um certo “conhece-te a ti mesmo”. O bom conhecimento de si permite, assim, a moderação. Então não se está longe da prudência, que, por sua vez, não se distancia muito da sapientia, sabedoria. Como Platão define as quatro virtudes cardeais em relação à preservação do todo, e assim as refere à República, temos ali a moderação, como virtude do apetite, significando servir ao todo.[1] As virtudes cardeais são, portanto, essenciais para a sociedade na cultura helênica, e se veem retomadas pelos cristãos, com seus nomes latinizados (iustitia, fortitudo, sapientia e temperantia), só que agregadas às três virtudes teologais (esperança, fé e caridade). Aliás, na versão autorizada da Bíblia em inglês, traduzida por determinação do rei Jaime, a expressão grega engkrateia, que aparece na Epístola do apóstolo Paulo aos Gálatas, cap. 5, v. 22, e que significa autocontrole ou disciplina, é que recebe a tradução de temperança. Temperança é, pois, a capacidade de controlar a si próprio. Seria impróprio associar essa disciplina, que aparece na versão canônica da Igreja Anglicana no momento em que Jaime I, o primeiro monarca Stuart, procura coibir as tendências calvinistas que haviam tido curso mais livre sob a rainha Isabel I, a última Tudor — decisão essa, do rei, que se explica pelo que ele sofrera ou julgara sofrer sob o controle da Igreja Presbiteriana quando reinava somente sobre a Escócia —, e, repito, seria possivelmente impróprio associar essa disciplina aceita pela Igreja estabelecida ao conceito de disciplina que é uma das peças-chave da doutrina de Calvino. Mas, de todo modo, no universo cristão, seja entre os católicos, seja no extremo oposto calvinista, a temperança constitui valor dos mais importantes. A rigor, também se pode dizer que a temperança compareça entre os preceitos principais do budismo[2], de modo que ela cobre um universo bem mais abrangente do que o de uma só religião.
Já a palavra intemperança é menos dicionarizada: seria apenas o antônimo da temperança. Curiosamente, porém, a própria temperança — ou, no budismo, os cinco preceitos básicos que parecem remeter a ela — se define pela negação. Assim, a temperança budista é, antes de tudo, a recusa da intemperança. Da mesma forma, a temperança é um ideal clássico, que conhece hoje uma busca nova, porém talvez mais sob o impacto das espiritualidades ocidentais de referência oriental, que encontram no budismo, no hinduísmo e em outras religiões uma ideia de equilíbrio como algo decisivo. A ideia de proporção e de medida é fundamental para isso.

II.

Mas desejo colocar o foco em duas ideias que têm a ver com o verbo temperar. Quando se fala em temperança, há um parentesco com a prática, hoje caindo em desuso, de temperar a água. Evidentemente, com as facilidades atuais em termos de aquecer e resfriar a água do chuveiro ou da banheira, não é mais preciso todo o trabalho (que havia faz menos de um século) de trazer caldeirões de água fervendo e outros de água mais fria, num laborioso esforço para chegar à temperatura desejada e, mais que isso, mantê-la. Esquecemos quanto era difícil regular a temperatura da água do banho para não ser nem muito quente nem fria, para permitir o contato adequado com a pele — uma água aquecida o bastante para limpar, mas não quente demais a ponto de estragar nossa epiderme. A água diz-se temperada quando está na justa medida para o banho. A temperança começa, assim, com uma relação com os líquidos, e em especial com o líquido mais natural, a água.

Mas nossa “última flor do Lácio”, a meu ver tão rica justamente por ser a última, confere outro sentido — raro em outros idiomas, se é que o têm ao verbo temperar, que é o de dar tempero ou sabor aos alimentos. Aqui estamos longe do projeto de levar a um estado intermediário, nem quente nem frio. Ao contrário, o que se pretende é aguçar o sabor, extremar o tempero do que se vai comer. Curiosamente, esse sentido do temperar se entende para os alimentos, não para os líquidos, com raras exceções — por exemplo, temperam-se sucos de tomate.

É interessante esse descompasso entre o uso tradicional do verbo temperar, que remete à virtude da temperança e foi intenso num passado não tão remoto em termos de datas, mas já fora de nossa experiência pessoal e mesmo oral, e o seu cada vez mais frequente uso atual, que parece neutro em termos éticos: o de temperar o alimento. Contrastam-se, assim, uma temperança ligada à tem­peratura e um tempero que se realiza no picante. Lembremos que o Brasil foi “descoberto” no caminho das especiarias, que a Europa queria recuperar, após perdê-lo, com a queda de Constantinopla, para os turcos — o caminho direto para a Ásia. Penso que uma das razões mais belas para viajar deve ser a busca do tempero. Nos inícios da Idade Média, rezam os mitos que se viajava em demanda do Santo Graal, o cálice em que José de Arimateia recolheu o sangue de Cristo. Já no final desse longo período intermédio entre Antiguidade e Modernidade, demanda-se o sabor, o tempero aguçado. No ano 500, assim se imaginava a busca do sangue de Deus Filho; em 1500 se procurava o sabor; hoje, alguns aproveitam suas viagens internacionais para comprar perfume, seja em Paris, no avião ou na free shopmas em nossos dias é raro buscarmos ao longe, seja o divino, os temperos ou os sabores. Assim, é belo o Brasil ter sido uma estação portuguesa no caminho dos temperos; fomos então uma parada na empreita de fazer o mundo ter maior sabor, de tornar a vida mais gostosa, mais temperada. Obviamente, há razões mais fortes — econômicas, políticas, religiosas — para dar a volta à África, para as navegações, mas insisto nesse tema de uma historiografia hoje em certa medida contestada, que era o da procura das especiarias. Não será este um capítulo fundamental, esquecido, mas que cumpre retomar, de nosso mito de nascimento? Somos uma terra encontrada quando na busca do sabor. Somos um país criado na demanda dos gostos pro­nunciados. Para se fugir do insosso, busca-se a Índia e acha-se o Brasil.

III.

O tempero na época atendia a uma dupla finalidade: primeira, conservar alimentos contra o apodrecer, numa época em que a refrigeração, hoje a forma talvez mais frequente e mais popular de conservação da comida, não podia ser produzida artificialmente; sempre houve alternativas, como as que consistem em desidratar o alimento, como se faz em nossos dias, sobretudo por gosto (e não mais para sua conservação), com a carne-seca, o charque, o jabá — mas foi a geladeira que tornou dispensável o uso do tempero com essa finalidade; segunda, fazer que não perdessem sabor nem ameaçassem a saúde. Para a primeira finalidade, o tempero desempenha um papel preventivo; já no atendimento da segunda, ele reduz o que é insuportável na podridão; pois a comida apodrece; ora, o tempero diminui o que é irritante: a sua percepção. Assim, antes ou depois, preventivo ou reparador, o tempero luta contra a decadência dos alimentos. Esse duplo papel está, evidentemente, a mil léguas da temperança.

Assim se opõem dois sentidos de temperar: o da temperança como virtude, equilíbrio; e o do tempero vinculado à intemperança, portanto a um “vício”. Se sobrecarregarmos de tempero a comida, passaremos mal. Não há dúvida de que podemos fazer um uso temperado do tempero: afinal, um dos usos da pimenta em dose moderada (temperada…) consiste em ajudar a di­gestão, de preferência se a pimenta não for seca. Mas, quando começamos a temperar a comida, geralmente exageramos — e entramos no mesmo universo da embriaguez.

Vejam que, na Wikipédia padrão, a em inglês, quando se consulta intemperance se chega automaticamente ao verbete drunkenness, embriaguez! E, a esta última, segue-se toda a família da luxúria: o sexo em abuso, a bebida em abuso. O abuso, que é próprio do vício, aparece com muita força no vício chamado intemperança. Mas ao mesmo tempo não esqueçamos nosso ponto inicial, isto é, que ele confere sabor. O vício está mais ligado a uma dosagem excessiva — se quiserem, a uma não dosagem, a uma perda do sentido da dosagem, a um desequilíbrio — do que a um “em si” errado. Não há nada de errado em si no tempero, no desejo sexual ou, para a maior parte das pessoas, na bebida alcoólica. A questão toda é a dosagem: bebam com moderação — o que é o equivalente da temperança —, dizem, por determinação legal, as propagandas de bebidas. Então, em si, nada é bom ou mau: tudo está na relação qualitativa entre a quantidade de prazer que se usa e nossa capacidade de absorvê-lo. Daí a enorme dificuldade que há, quando se quer estabelecer uma medida exata do que se pode comer ou beber (o que nossa recente lei, editada entre a concepção deste texto e sua versão final, “resolveu”, proibindo por completo — sem tolerar qualquer dosagem — quem vai dirigir de beber),[3]ou preceitos sobre a vida se­xual, seu uso, seu abuso.

Enquanto há virtudes do sim ou não, como matar/preservar a vida, ignorar/conhecer, em que é claro o que se valoriza e o que não, aqui temos uma certa neutralidade do objeto: a questão está na proporção e não mais no sim ou não. Não é um “não se deve” absoluto. É uma moral do relativo, não no sentido de ser uma moral de segunda ordem, mas justamente porque lida com relações — como, aliás, as melhores morais talvez devam fazer: pode haver moral que não trabalhe com as relações entre as pessoas? Por isso, a quantidade aqui sempre ingressa numa proporção: quanto álcool nosso organismo suporta, quanto tempero aguentamos, quanto e qual sexo nos permite viver com prazer e não em risco.

Tal ideia implica uma regulação da vida. Nós a regulamos fazendo escolhas. Fazendo-as, dosamos. Medimos o mais e o menos: a temperatura e o tempero, a água e a comida. Esse não exagerar se exerce há milênios em nossa cultura pelo médico. É ele quem faz o pharmakon ser veneno ou remédio. Em quantidade enorme, mata. Em pequena, pode salvar. Aplicado a quem dele necessita, é medicamento. Fornecido a quem não o tolera, é droga fatal. É o que leva nossos médicos a mudar a dosagem dos remédios. Ela é relativa ao doente e constitui-se na relação com ele. As doses geralmente começam baixas, depois aumentam e, finalmente, quando desponta a cura, gradualmente se reduzem até serem eliminadas.

Ora, tudo o que falamos até agora mostra que é mais fácil falar da virtude que do vício, tanto que começamos por aquela, e que o nosso tema — a intemperança — nem sempre aparece nos dicionários.

IV.

Depois de milênios de elogios à temperança — como os lemos em Platão ou no cristianismo —, assistimos, desde há menos de 200 anos, a uma certa consolidação da embriaguez como valor também na filosofia. Tal valorização já havia desde muito tempo em várias religiões, com a grande exceção do islamismo. Religiões mais alternativas ou aquelas que destacam os estados alterados de consciência valorizam a embriaguez. Sabemos que boa parte dos acreanos já tomou o Santo Daime. Mas, enquadrada numa espiritualidade, a embriaguez é totalmente diferente daquela de rua, do espetáculo deprimente, porque tornado prosaico, do bêbado se arrastando, daquele cuja “viagem” inebriante perdeu todo o significado que poderia ter na religião. Uma coisa é a transcendência da embriaguez, em que ela — integrada numa fé religiosa — adquire o significado de acesso a algo superior. Outra coisa é a sua laicização, em que se perde o sentido de experiências que, em religiões, teriam forte sentido: cair bêbado num culto religioso significa muita coisa; mas, num bar, nada tem de positivo. Torna-se uma fuga, algo a menos, um deficit de significado. A laicização de certas experiências é, na verdade, sua conversão em prosa, em algo prosaico, mais que a conquista de um espaço leigo. Não é a ascensão ao espaço da liberdade e da diversidade, em que o mérito do que é leigo consiste — é sua perda do significado transcendente, sua abdicação da diferença.

Ora, Nietzsche, provavelmente o maior filósofo de nosso tempo, quando opõe apolíneo e dionisíaco, o temperado e o descontrolado-criativo-desmedido, valoriza a embriaguez. Seria insensato, no autor que escreveu “Deus morreu”, ver a embriaguez como passagem à dimensão do divino. Mas, mesmo assim, ela é o acesso a uma transcendência. Inebriante é o espaço da criação. Não haverá criação, como a preza Nietzsche, sem o inebriamento.[4] O apolíneo também pode ser dito grandioso — afinal, refere-se a um deus de primeira linha e alguns poderiam até recordar que, no monte Olimpo, Apoio ocupa lugar mais alto do que Dionísio/Baco —, mas a criação por excelência está no divino que propicia a tragédia. Para Nietzsche, o par apolíneo-dionisíaco tem uma grandeza que falta ao socrático, terceiro elemento que paira como ameaça por trás da dupla mencionada; mas, mesmo assim, o que se refere à embriaguez parece superior ao que se atém ao equilíbrio. Creio que não seria absurdo dizer que, com o dionisíaco, vai-se além do humano. Não é uma transcendência no sentido de existir um deus acima de nós; há uma transcendência de um divino que é uma possibilidade nossa — aqui, é claro que me permito pensar Nietzsche com termos que não são necessariamente os seus.

Esse divino é uma chaga, não é uma cura que não largue vestígios nem cicatrizes. A ideia hegeliana de que as feridas do espírito se curem sem deixar cicatrizes é totalmente alheia ao mundo nietzschiano. Nele, se há pensamento — algo para além da razão, maior que a razão, como também o será para Heidegger, seu discípulo torto —,[5] é não apenas como um mais-que-a-razão que ainda lembra a razão, mas é em dois sentidos da palavra pensar, o óbvio e majoritário, em que todos a usamos, e o minoritário e quase esquecido em português, embora presente em francês, de pensar como aplicar um curativo sobre o machucado: pensar é sempre pensar a ferida; pensar, nesse sentido, é sempre colocar líquidos que limpam o lugar em que nos machucamos e uma gaze que o protege; e este machucado deixa uma cicatriz, sim. As feridas do es­pírito hegeliano podem não largar marcas, mas as feridas de corte nietzschiano na — como chamá-la? — alma, psique, o que seja, deixam vestígios, como se fossem traumas, mas traumas criativos, traumas que não nos incapacitam, mas que fazem o divino, mesmo coxo, andar, rir, divertir-se. Não é, tudo somado, um final feliz. Não é uma superação, uma Aufhebung em que se preserva tudo o que há de bom nos termos da contradição. Por isso mesmo, o inebriamento conta. Ele não é, como nas religiões em que entramos em transe, algo francamente positivo. É verdade que, mesmo nelas, voltando-se ao mundo normal e prosaico, está-se desgastado. O transe não é só positividade. Tem um custo. Mas, na experiência digamos nietzschiana, moderna ou (quererão alguns) pós-moderna, por não portar o otimismo e o iluminismo da modernidade, o acesso a esse divino como potencialidade do humano tem um preço elevado. Finalmente, ouso sugerir que um tema relevante para Nietzsche, o daquilo que vai além do humano,[6] do Übermensch ou super-homem, pode estar já ensaiado, na sua primeira grande obra, com o papel atribuído ao dionisíaco. Se para Hegel a superação do existente se dá mediante sínteses dialéticas que preservam o melhor do passado, talvez por isso mesmo sua conclusão esteja mais perto do statu quo presente — o que as más-línguas enunciam, denunciando-o como oportunista, como defensor do poder vigente, qualquer que ele fosse, que faria a História terminar, conforme o caso, com a vitória de Napoleão ou com a do Estado prussiano. É talvez aí, aliás, que surge a esquerda hegeliana, que não admite que uma máquina tão incrível como a da História se contente em produzir o poder hoje dominante, mas procura emancipá-la deste e fazê-la gerar um futuro rico, que, em Marx, culminará na proposta do comunismo.

Mas o descontentamento de Nietzsche com Hegel é mais radical. Não procura dar continuidade à dialética, fazê-la andar mais algumas estações — e depois parar, como faz Marx, que leva a máquina de Hegel até a estação da revolução social,[7] mas, no final das contas, apenas muda o lugar da síntese. Não é pouco mudar esse lugar, porque ele deixou de ser o do conformismo para ser o da grande promessa, deixou de ser a defesa da política dominante para ser a da revolução social. Mas é ainda um lugar parado, uma estase definitiva. Com Nietzsche quer-se mais. Aliás, o hoje já quase esquecido Althusser, quando revisita a dialética em seu A favor de Marx, quer uma dialética que não tenha ponto final como o têm aquelas estações de metrô de Paris em que o condutor anuncia “Terminus, tout le monde descend”, “Fim da linha, aqui todos devem descer”.[8] Sua proposta de uma dialética que não seja mais a do par de opostos significa que, se na partida não se lida mais somente com a parceria belicosa da tese e da antítese, na saída tampouco se espera a unicidade da síntese, e menos ainda a da síntese definitiva. Mas aqui nos alongamos. Mais um pouco, e estaremos discutindo por que a dialética de Althusser não deu certo, historicamente, e virei sustentar a hipótese de que ela fracassa, não porque seja má teoria, mas porque os tanques que invadiram Praga cortaram a possibilidade política de um mais-além-do-comunismo, frearam, no mundo da prática humana, uma potencialidade da teoria, produziram uma estase que foi a oposição, sem síntese possível, entre o capitalismo renovado dos anos 1970 e 1980, por um lado, e a estagnação brejneviana, por outro, e com isso a revolução marxista perdeu a riqueza que a dialética revisitada por Althusser procurava renovar.[9] Mas, voltando a Nietzsche, se ir além do humano não é uma superação sem marcas, atrevo-me a dizer que também o que se denomina seu enlouquecimento, quando assina postais em Turim com o nome de Dionísio para Cosima Wagner, a quem chama de Ariadne, é uma experiência que está no diapasão dessa tragicidade cuja leitura assinala sua entrada grandiosa na filosofia: nasce a tragédia, e o pensamento nietzschiano, com o dionisíaco; cessam a obra e o convívio social normal de Nietzsche quando ele se assina Dionísio. Um Dionísio sem Ariadne possível, um Dionísio que não encontrará quem mostre a saída do labirinto: nele, ele agora se confina.

Há século e meio, a embriaguez é uma das grandes vertentes da criação. Isso nada tem a ver com a banal necessidade, que sintam alguns, de beber paracriar. Mas valoriza-se um mundo da ruptura com o prosaico, seja pelas drogas legalizadas ou pelas ilegais. Seja Puccini e sua La bohème, seja Toulouse-Lautrec em meio às dançarinas e à vida boêmia, seja a experiência de Artaud com drogas mais radicais, há uma ideia (ou algo mais profundo que uma ideia, qua­se da ordem de um instinto do qual não se sabe se foi criado ou simplesmente liberado) que diz que, ao se ter contato com o mundo diferente da desmedida, pode-se criar algo novo, rico.

V.

Cabe aqui perguntar, no que diz respeito à arte, por que, desde o começo do século XIX, nela valorizamos tanto a originalidade. Até o final do século XVIII, importava outra coisa, mais artesanal, em que voltamos inúmeras vezes ao mesmo modelo para aprimorá-lo. Deste paradigma, em que conta o modelo que se tenta aprimorar, passa-se — de forma não abrupta — para uma situação em que o que vale é a ruptura dos modelos. Stendhal, por exemplo, está a cavalo entre esses dois mundos. Plagia, como faz nas Crônicas italianas e nos Romances e novelas — ou talvez não plagie, apenas diga que plagia, talvez mentindo.[10] Mas essas histórias, as quais ele afirma que são verdadeiras, e que efetivamente o são [11] (o episódio dos Cenci, por exemplo, que por sinal inspirou peças de teatro a Gonçalves Dias e a Antonin Artaud), são as possi­bilidades da desmedida inscritas num mundo que era tido como sendo o da medida. Em face da época clássica, que preza o modelo que constantemente se aprimora, Stendhal propõe uma era em que se deixa de tratar com modelos; e ele o faz não apenas com seu Julien Sorel, personagem inaugural de sua obra propriamente original, mas também mostrando como, mesmo no interior do chamado classicismo, já havia a, italiana, desmedida. Quando, em meados do século XVIII,[12] um encantador jovem francês servindo em Roma termina o caso que teve com uma princesa italiana e propõe-lhe transformar o que para ela foi uma paixão de perder a alma em uma série de futuros encontros sexuais sem nenhuma transcendência amorosa, ela fica horrorizada e manda matá-lo — isso, depois de ordenar que rezem missas por sua alma impenitente, missas rezadas ainda em vida por um quase morto.

Não por acaso, essa crônica italiana retoma os topoi de Don Juan — o conquistador de mulheres, o pecador impenitente. Aliás, pouco tempo depois, um amigo de Stendhal, Mérimée, retomará vários desses temas em seu conto As almas do Purgatório, que considero ser o último Don Juan: temos aí a conquista amorosa banalizada e em série, o homem que deseja as mulheres, que por sua vez se apaixonam por ele (sentimento que ele não retribui), a desgraça que ele espalha, e finalmente o sentido de sua trajetória, não como uma série apenas de males feitos a mulheres, mas como uma recusa do arrependimento, uma crença pagã de que a vida pode ser apenas prazeres, um descaso pelo fato de que a morte pode sobrevir a qualquer momento e, com ela, nossa submissão ao Juízo Final. É porque podemos, sem prévio aviso, ser julgados por Deus que as missas pelas almas do Purgatório adquirem tanto vulto, quer no conto de Stendhal, quer no de Mérimée. Pois, se uma alma impenitente como a do jovem francês assassinado a mando de sua amante abandonada na Roma do século XVIII vai direto para o Inferno, uma alma amparada por uma sólida rede de pessoas que lhe querem bem pode ser salva, seja no outro mundo, se seus pecados forem veniais e puderem ser purgados, seja ainda aqui, se a visão do Purgatório ajudá-la a arrepender-se, como acontece com o Don Juan de Mérimée.

O que nos lega Stendhal, assim, é o que havia de rebeldia já na era em que dominava o classicismo. O by-product desse legado é a convicção da originalidade. Stendhal plagia, ou diz plagiar, ao mesmo tempo que recupera ou mesmo cria uma riqueza trágica das experiências — é com isso que ele inova.

O francês irresponsável que recusa renunciar aos prazeres tem o mesmo fim que Julien Sorel, que recusa abrir mão de sua identidade e aceitar a versão socialmente construída para seu crime, criando, em seu lugar, uma versão que faz dele um ser irrecuperável para a sociedade dominante. Mas, se o desenho dos dois gestos é parecido, completando-se ambos com a morte do fidalgo num beco de Roma ou do camponês numa guilhotina nos Alpes franceses, um morre por leviandade levada ao fim, outro por um radicalismo irredutível. Para o que nos interessa, que é a ruptura com o modelo dos modelos que se aprimoram e sua substituição pela ideia de novidade, de invenção sem precedentes, digamos que a radicalidade — de Julien Sorel, sobretudo — introduz uma exigência de originalidade.

Stendhal ainda pode plagiar, mas mesmo neste caso seu plágio não se inscreve numa série. Ao contrário, o trato pré-revolucionário com a arte consistia em termos uma série de obras que tratam do mesmo. Don Juan, por sinal, é um grande exemplo disso. Temos um grupo de obras-primas, que incluem Tirso de Molina, Molière, Mozart, o conto de Stendhal e o de Mérimée, e um contingente bem maior de obras pouco ou nada primas. Afirmei que, com Mérimée, a veia se estanca. Ela cessa de ser criativa porque depois dele Don Juan se banaliza, torna-se um mero conquistador de mulheres. Sua experiência é apenas deste mundo. Ele e suas seduzidas estão confinados a um mundo sem transcendência. Por isso, o desespero delas é tão grande, diferente do desespero que sentiriam um século ou dois antes. Não lhes resta mais a saída para o convento, a tentativa de buscar na fé a calma para a paixão que lhes tomou os sentidos e gerou-lhes sensações tão fortes. Por isso, a ação de Don Juan se torna tão banal. Ter um catálogo das conquistas era, ainda para o Don Giovanni, de Mozart, um desafio a Deus. Tê-lo, hoje, é infantilidade. Quando o personagem de Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khouri, faz as duas prostitutas entrarem no apartamento e conta dois números, que são da ordem das centenas (não lembro, mas creio que estavam nos trezentos — bem aquém, portanto, daquelas que, “só na Itália, são já mil e três”), nessa contagem das mulheres que terá possuído naquela garçonnière já não comparece a grandiosidade ofensiva, e sobretudo sacrílega, do personagem que se esgotou em Don Juan. “Don Juan morreu”, poderia ter dito um Nietzsche mais irônico do que ele pôde ser, que em vez de assinar a certidão de óbito de Deus assinasse a de Seu desafiador.

Esgotados os modelos, o de Deus ou o de Don Juan, exaurida a possibilidade de se revisitar e renovar, sem revolucionar, um estoque de moldes de alta qualidade, somos condenados a ser originais. Hoje, para uma obra de arte valer, exigimos que seja original. Isso acarreta um curioso resultado. A mesma obra, se foi pintada em 1880 ou em 1950, vale muito mais ou muito me­nos. Um Cézanne vale porque foi original. Um Cézanne original vale por sua originalidade, nos dois sentidos da palavra: o banal, que expressa apenas sua autenticidade e valor de mercado, e o mais profundo, que atesta sua diferença em face de uma tradição, sua capacidade de ruptura. Em outras palavras, o primeiro e medíocre sentido de originalidade afirma sua identidade, sua inclusão legítima no repertório do autor, o segundo, sua diferença, sua vantagem, que consiste justamente em introduzir um corte na série histórica, uma ilegitimidade de nascença, pois rompe com a linhagem usual, aquela que era de esperar, aquela que faz cada filho seguir seu pai. A arte nos tempos modernos é original cada vez que nasce diferente, diferente da que a precedeu. Os sentidos de originalidade podem até se somar, mas o primeiro é do mercado, o segundo é dos conhecedores — um é filisteu, outro, “original”.

Mas um quadro pintado à moda de Cézanne vale? Tal questão mal se colocaria nos tempos mais remotos. Por que não? Quando Mozart janta com os criados, quando o artista não é um gênio criador, mas um fornecedor de prazeres, uma espécie de chef de cuisine com upgrade, que importa se ele é original ou não? Este é o grande assunto de Van Meegeren, de quem em boa hora uma biografia foi publicada há pouco.[13] Van Meegeren foi processado como traidor, na Holanda do pós-guerra, porque teria vendido peças do patrimônio artístico aos nazistas. Goering comprou dele uma tela que seria de Vermeer. O pintor reluta em dizer a verdade a seus juízes. Quase prefere ser executado como traidor a confessar que a tela é falsa. Mas, se vendeu um autêntico Vermeer, quer dizer que cedeu uma parte da alma holandesa ao ocupante. Contudo, se traficou uma obra falsa, agiu como um membro da resistência. Isso, mesmo que nenhuma das duas versões da história correspondesse à verdade, que parece ser, apenas, parte prosaica — sua vontade de ganhar dinheiro e parte mefistofélica sua vontade de se impor a um ambiente artístico que o desprezara. Finalmente, quando revela a verdade, isto é, a falsificação, ele causa enorme choque — positivo, por razões políticas na opinião pública. Conta-se e pouco importa se a história é verdadeira ou não, porque seu significado, sua “moral”, ultrapassa muito sua veracidade — que, em sua cela de Nuremberg, Goering teria, só então, descoberto a maldade humana. Maldade, para ele, não seria massacrar milhões seria ser enganado sobre a procedência de uma obra de arte. Mas o fascinante, na fraude de Van Meegeren, é que ele não copia uma obra existente. Essas falsificações, como sempre pulularam, não lhe interessam. Ele inventa um possível Vermeer. Recorre a pigmentos de época. Sobretudo, jogando com os topoi do pintor — jogando, mais que isso, com um vazio na sua iconografia sobre o qual os estudiosos especulam completa uma série que parecia truncada, gerando o elo que faltava entre duas fases do artista.

Pois imaginemos que entre Vermeer e Van Meegeren não tivesse havido a ruptura que a modernidade, com sua busca da originalidade, introduziu. Quadros “à moda de Vermeer” poderiam ser vendidos a alto preço. O estoque de modelos vermeerianos não se esgotaria com o artista original, mas continuaria, e seus discípulos melhores poderiam até vender seus quadros por valor superior ao dos quadros do mestre. Mestre, neste sentido, mostra-se um termo contestável. Talvez não seja fortuito que a maior ocorrência do termo “Mestre”, na história da pintura, se dê quando temos, geralmente pintadas no final da Idade Média, obras únicas, das quais sabemos que são coletivas, mas cujo nome do autor ou cujo autor-chefe, melhor dizendo, como hoje um chefe de laboratório científico — nos escapa. Temos assim o “Mestre da [Pintura Tal]”. Uma vez criados os ateliês dos grandes pintores, como Rembrandt, eles têm de fato assistentes, eles são de fato mestres, mas isso não impede, em princípio, que alguém siga o seu molde melhor que eles.

Neste sentido, quem abria uma nova forma de pintar talvez fosse menos importante do que quem nela se esmerasse. Valeria mais o último do que o primeiro. Por isso, talvez se pudesse dizer, em tempos passados, que um artista era insuperável. Ele o seria, na medida em que teria chegado ao arremate de um determinado modelo. Para nós, esse elogio porta veneno. Todos somos superáveis, mas não no caminho que trilhamos. Somos superáveis na medida em que surjam novos caminhos. Quando um caminho se fecha, não é porque se chegou à perfeição nele, à perfeição num sentido remotamente aristotélico, que diria que a potência se completou, que se realizou plenamente. Um caminho se fecha quando morre um artista, ou quando nele morre a arte. Em algumas profissões, quando uma pessoa passa, quebram-se em seu túmulo os seus instrumentos. Simbolicamente, fazemos isso hoje à morte de cada grande artista. Muitas obras que ele poderia ter produzido nunca virão à luz. Duzentos anos atrás, isso não nos preocuparia. Poderíamos encomendar a alguém as óperas que Mozart não escreveu, os quadros que Claude, que foi Lorrain, não pintou. Hoje, essa continuidade causaria, em nós, um certo desdém. O con-tinuador seria um epígono, um artesão, alguém que completa a criação, mas sem a fagulha do gênio. Preferimos o incompleto. Aceitamos que, à morte de um autor, uma incompletude se instaure. Nunca serão escritas as óperas que faltaram nem completadas as obras das quais restaram, apenas, esboços. Gos­tamos de esboços, aliás. Admiramos obras do passado, como o Juramento do jogo da péla, de David, em que a principal personagem — o deputado que não jura, o único monarquista de Antigo Regime, o derradeiro absolutista — fica imóvel em seu assento enquanto os outros exclamam, clamam, proclamam sua fé no mundo que se inicia. Uma das melhores versões para apreciarmos esse estranho Joseph Martin-Dauch, esse tímido que, de súbito, em 20 de junho de 1789, transforma-se de conformista em dissidente, é um esboço cm que ele é mais valorizado do que no quadro completado.

O resultado disso, no plano das artes, é muito paradoxal. Muito espectador, mesmo culto, só completa seu juízo sobre uma obra ao ler a etiqueta que está a seu lado. Assim, se a obra for de Cézanne, é admirável; se for de seu estilo, meio século depois, não. A etiqueta diz a verdade do quadro. Ela enuncia o seu valor. Mas, para um olho que não seja o do connaisseur, porém o de um leigo muito culto, talvez elas se assemelhem. Por que então a assinatura é tão importante?

Falava da dificuldade do leigo culto para saber da autenticidade — melhor dizendo, da data remota — de uma obra. Mas, no campo da atribuição da autoria, erros sérios foram cometidos por grandes críticos. Hoje, o que decide em última instância, quando nem o olho mesmo treinadíssimo dá conta, são análises físicas ou químicas, conduzidas por quem não é artista nem mesmo crítico de arte. Devemos enfatizar este ponto. É justamente quem não precisa entender de arte, nem apreciá-la, que acaba decidindo, nos casos controversos, se devemos ou não vibrar ante a obra. Falei na data da obra mas, na verdade,o que está em jogo é se ela foi original. O que uma análise química ou física permite é saber se a obra é de arte ou de um artesão. Mas, ao lermos a biografia de Van Meegeren, vemos que não foi fácil ele pintar os seus Vermeers. Tomaram-lhe tempo. Exigiram que buscasse pigmentos caídos em desuso. É muito diferente a demora com que se debruça sobre seus Vermeers e o episódio em que pinta, em minutos, um Picasso. Vermeer requer dele muito mais tempo e esforço que Picasso. Para Van Meegeren, certamente isso faz parte do desdém que pode nutrir pelo grande pintor (a nossos olhos) do século XX e de sua admiração pelo grande pintor do XVII. Mas aqui o que queremos indagar é se o tempo gasto, a repetição, em suma, a falta de originalidade do copiador têm alguma importância para quem vai olhar a obra. Porque confundimos duas coisas. Uma é a originalidade, significando a autoria de determinada pessoa, de preferência já falecida. Outra é a qualidade, que pode não ser menor no discípulo que no mestre. Escravizamos o juízo sobre a qualidade ao juízo sobre a originalidade, e acabamos reduzindo esta última a uma questão de data. A expertise em obra de arte se torna, assim, uma espécie de carbono-14, uma arqueologia das pinturas, praticada por quem está fora do mundo da arte. O que ela causa em nós perde em importância.

Dou aqui um depoimento. Há um quadro que aprecio profundamente, e que tenho visto desde 1974, quando pela primeira vez estive em Londres. Tem formato redondo, data do século XV, mostra a Virgem com Jesus, a etiqueta dizia que era de Botticelli. Assim o foi por alguns anos. Contudo, a partir dos anos 1980 ou 1990, ele sumiu da sala nobre que ocupava e desceu para o subsolo, onde ficou com muitos outros quadros, justapostos uns aos outros, em altos biombos cobertos de vidro — uma espécie de estoque do acervo, digamos morto, da National Gallery. Demorei a encontrá-lo, enfurnado que estava. Chama-se “A Virgem e o Menino com São João e um Anjo”, este último me parecendo uma mulher. Hoje é atribuído ao ateliê de Botticelli, mas não ao pintor, dizendo o catálogo que “deve ser a obra de um bom assistente de seu estúdio; [mas] a qualidade não atinge um padrão que permita atribuir a pintura ao próprio Botticelli”. Sem dúvida, o texto é de um crítico que conhece o assunto. Mas sinto falta de meu Botticelli, mesmo que seja um terço, um quarto ou um quinto apenas de Botticelli. Da última vez, ele já nem estava no subsolo. Haviam-no deportado para uma saleta que abre uma vez por semana, por duas horas, quando abre (na semana em que estive, ficou fechada).

Ou pensemos no barroco, que não confere à originalidade a importância que esta adquiriu depois dele.Imaginemos, como esta palestra teve uma de suas versões em Minas Gerais, que uma escola de Belo Horizonte decidisse formar artistas barrocos, que fossem construídas igrejas e esculpida madeira em estilo barroco, tudo se conhecendo de seus grandes predecessores, e fazendo-o em alta qualidade. Poderia construir-se um bairro inteiro barroco na capital do Estado, mais fácil de ir do que a Ouro Preto. Seria um destino turístico muito atraente. Outras cidades poderiam construir seus bairros barrocos fake, seus parques temáticos de arte, arquitetura e urbanismo. Ora, tais ideias nem passam pela cabeça de nenhuma pessoa com um mínimo de sensatez — mas a pergunta é: por que não?

Porque temos hoje a arraigada, quase inextirpável convicção de que um estilo-de-Aleijadinho atual valeria muitíssimo menos do que um Aleijadinho original, ainda que do ponto de vista do gosto do público talvez não haja nenhuma diferença. Contudo, para propor exemplos contrários, cidades completamente devastadas na guerra, como Frankfurt ou Dresden, foram reconstruídas como fakes. Esse também é o caso do Pátio do Colégio, em São Paulo, uma espécie de alma mater da cidade, mas que só existe com material moderno. No entanto, as pessoas admiram, sentem-se em face de algo original. Há, pois, situações em que aceitamos o fake. Penso que isso acontece quando estão satisfeitas as seguintes condições: primeira, que a obra tenha sido des­truída pela guerra; segunda, que tenha sido arrasada por completo ou quase; terceira, que isso valha para a arquitetura e não para a pintura, quando muito para alguma escultura; quarta, que tenhamos certeza de que o refeito resultou idêntico ao que antes existia. Sob essas condições, liberamos todo o prazer estético. Mas, se o quadro não for autêntico, não. Pessoalmente, considero esqui­sita essa repartição das condições em que se admite ou não o prazer estético.

Isso porque, como aceitar que haja uma sorte de válvula ou de catraca que libera ou bloqueia o prazer ante uma obra de arte ou arquitetura? Porque tam­bém acreditamos, o que contradiz o que precede, que haja no prazer algo espontâneo. Talvez, então, seja melhor dizer que não se trata bem de liberar ou não o prazer estético, mas de conferir-lhe — ou não — legitimidade. O termo é mais preciso, e tem a vantagem de explicitar o que até agora estava implícito, semioculto. Trata-se na verdade de um prazer estético admitido, em oposição a um prazer estético rejeitado. O recorte entre ambos marca uma divisão social, que apela a uma formação cultural — supostamente, os mais bem formados só têm prazeres legítimos — e a um requinte, uma sofisticação, uma condição de elite que reparte quem, por exemplo, aceita Paulo Coelho e quem somente se deleita com Guimarães Rosa. Contudo, a divisão de que estava falando não é bem esta. Porque aqui o que temos é uma repartição em função do nome do autor, não da qualidade da obra. Os detratores de nosso escritor que mais ven­de criticam-no porque criticam sua obra. Mas o assunto de que falava se refere aos casos em que apenas a assinatura autêntica distingue o original do que não o é. Ou seja, a obra, a um olhar leigo ou em alguns casos até de um connaisseur, não exibe sua ilegitimidade. E com isso a divisão que eu chamava de curiosa se torna mesmo é engraçada. Por que o fato de eu ter a informação de que, na verdade, determinada obra é do ateliê de Botticelli, ou de um discípulo de Aleijadinho, ou de um talentoso pintor atual que sabe simular o estilo de um grande artista do passado — por que o fato de eu ter uma informação privilegiada — me confere uma superioridade sobre quem a não tem? Não punimos, na Bolsa, quem se vale de informações privilegiadas para ganhar dinheiro irregularmente? Não acreditamos que existem regras do jogo que, mesmo que este gere desigualdades, devem ser iguais para todos? Isto é, nós termos no ponto de partida todos as mesmas oportunidades, nós sermos iguais no começo e nas regras para a história que se abre diante de nós, que vamos escrever juntos e em disputa, é a condição para se legitimar toda sorte de desigualdade que depois há de surgir e crescer. Mas, para concluir, ficamos entre um prazer furtivo, proibido, quase adúltero, o de quem admira a obra sem pedigree, sem autenti­cidade, e um prazer lícito, o de quem se vale de informações privilegiadas — e com isso talvez pouco éticas, talvez ilegais — para admirar o que é mesmo do autor. Mesmo o lícito, assim, está na ilegalidade; e esse seria um balanço perverso desta situação.

VI.

Discutimos longamente estas questões — da originalidade e do enorme anseio por ela que floresce com a modernidade, condenando-se o plágio e desvalorizando-se a cópia, o trabalho sem a fagulha do gênio, da novidade — a propósito da embriaguez. Aparentemente, os temas não se relacionariam; mas só aparentemente: porque a criatividade original se torna relevante junto com uma mudança no significado atribuído à embriaguez, a nossa intemperance que o dicionário converte em drunkenness. Seremos mais geniais se e quando perdermos o controle. O artista se torna personagem ambíguo, louvado e perseguido. A vida do artista pode e talvez deva ser desregrada, sua criatividade pode ser uma embriaguez aceita, seus excessos, admitidos, ao passo que para as pessoas que mantêm um laço social, digamos, “normal”, aquele que faz a sociedade viver e talvez avançar, a temperança é um valor. Convém insistir que estas são convenções, que a própria tolerância da embriaguez artística é uma convenção; porque até sucede que alguns artistas pacatos por vezes construam um papel de loucos para vender melhor — assim como há pessoas com vida interior vulcânica, mas que, para conviver em sociedade, têm de aplacar suas explosões íntimas.Em suma, a temperança não é um valor universal, nem a intemperança, nosso tema, um vício sem exceções. É comum, na verdade, vícios e virtudes terem as regiões de conduta, de profissão, de ethos em que são aceitos e aquelas em que não o são. Geralmente, virtudes são mais prezadas que vícios, mas mesmo assim pode acontecer o contrário. O mapa dos vícios e das virtudes mostra, por sinal, as mudanças sociais. Assim, poucas décadas atrás, o vício do adultério era tolerado no homem — e às vezes até elogiado —, enquanto na mulher era severamente punido; hoje, vivemos uma situação de semineutralidade em relação a ele, porque os dois sexos o praticam, sem punições atrozes, mas também sem a valorização que já existiu: é como se tivesse se tornado um fato da vida, um pouco picante e muito preocupante, que se trata na terapia ou na advocacia, não mais no confessionário.

VII.

A intemperança, de vício, tornou-se valor, e sobretudo em respeito à arte. Daí, proponho uma pergunta que resulta do que dissemos: em que medida nossa vida se tornou artística? Porque a temperança e a intemperança dizem respeito mais à vida da totalidade dos humanos do que à da pequena minoria de artistas. Mas, se a intemperança caracteriza a arte mais recente, ou a imagem de seus autores, se um vício do ethos se converteu em insumo essencial para a criação do artista, será que mudaram as relações entre vida e arte? Passou-se a tratar a vida como obra de arte? Esse é um tema recorrente no século XX. Antes dele, na fase anarquista de Richard Wagner, aparece como crítica à obra de arte e à veneração por ela, crítica essa que, depois, ele renegará por completo. O jovem Wagner não se reconheceria no autor do Parsifal, que manda colocar um cartaz avisando ao público que não deve aplaudir no final do Ato I, dada a elevada atmosfera espiritual com que este se encerra, mas que com “o Mestre” permite, para que a admiração pelos intérpretes possa expressar-se, que os aplausos soem no final da ópera (aplausos ao Mestre, nem se imagine: ele está acima disso). Na verdade, talvez o momento em que a vida se alça mesmo a arte esteja em algumas tragédias, como as de Van Gogh, e semitra-gédias, como a de Gauguin. Nem sei se no caso de Gauguin podemos falar em tragédia. Quando o leiloeiro põe à venda seus quadros na Polinésia, logo após sua morte, zomba deles. Mas Gauguin parece ter vivido feliz seus últimos anos. Um homem que corta uma respeitada carreira de burguês para dedicar-se à arte no fim do mundo pode ter sido feliz. A arte, ali, une-se com a vida de uma forma mais satisfatória. Mas é em Van Gogh que a fronteira entre arte e vida é muito tênue — e sofrida: tomemos o episódio em que ele corta a orelha para dá-la de presente a uma prostituta; o que significa isso? A que esfera pertence? É um momento tristíssimo de sua vida ou é arte? E é arte só porque ele pinta um autorretrato com a orelha cortada, ou já o é porque investiu sua arte de va­lores que o fazem oscilar entre a vida e a morte e, para criar, colocar a própria vida em xeque — em suma, porque sua arte é questão de vida ou morte, de vida e morte, questão da qual não há como sair? Sua saída é matar-se no meio de uma plantação que poderia perfeitamente ter pintado.

Sua arte nada vale enquanto está vivo, o que também foi muito frequente na primeira metade do século XX. Marcos Rey, certa vez, escreveu um breve conto[14] em que o narrador constrói uma máquina do tempo com uma única finalidade: chegar ao famoso campo em que Van Gogh se mata. Puxa conversa com ele e termina por dissuadi-lo de se matar. Compra seus quadros, por uma bagatela, retornando com a máquina do tempo à São Paulo atual. Aluga uma galeria e decide expor as obras, para obter a fortuna que elas valem. Mas ninguém aparece. Surpreso, percebe então que todas as referências a Van Gogh sumiram. Não está nas enciclopédias, nos livros de arte, em lugar algum. Finalmente, descobre que ele, pacífico burguês, morreu com a família numa inundação em Veneza, na década de 1920. O conto é inteligente não só porque mostra como uma possível viagem ao tempo muda o tempo, altera a história, como também porque deixa Van Gogh ligado à sua transgressão, sua loucura, sua morte. Sem o suicídio a arrematar toda uma trajetória navegando entre vida e arte, sua arte nada valeria. Sua vida poderia, de trágica, tornar-se prosaica. Mas sua arte seguiria o rumo de sua vida. Essa conversão do trágico em banal — ou mesmo essa cura, se quisermos forçar os termos — talvez salvasse a vida, se é que salvar aí quer dizer alguma coisa, mas extinguiria sua arte.

A intemperança, mesmo como vício, torna-se assim importante para a criação artística e até para o modo como criamos nossas vidas. Estas não estão mais prontas. Não temos mais um estoque de modelos prêt-à-porter para escolher a vida que será nossa. Inventar um modelo original torna-se um desafio. Em escala de massa, porém, é quase impossível conseguir a originalidade. Nosso problema é que repetir o anterior perdeu muito de seu valor, e criar a novidade mantém-se, como não poderia deixar de ser, excepcional. Então, o que nos resta fazer ao pensarmos não apenas na arte mas na sociedade?

VIII.

Mas por que a intemperança seria um vício? Um vício é algo que causa mal. Mas causa mal a quem? Algo que causa mal somente à própria pessoa deve ser considerado como vício e ser socialmente condenado, ou deveríamos reservar os nomes de vício e mesmo de mal somente ao que causa mal ao outro?

É claro que, me descuidando ou maltratando, posso dizer que causo mal a mim; agir assim pode merecer nossa não-aprovação, mas não digo reprovação ou mesmo desaprovação; seria isso um vício? Deveria ter conotação moral o que prejudica a nós mesmos, ou apenas uma conotação médica? Se eu abusar dos alimentos, da bebida, do sexo, mas sem prejudicar a ninguém, a nenhum outro, por que tecer um juízo moral a respeito? Em outras palavras, os vícios estão nas relações entre as pessoas ou aparecem já na relação da pessoa consigo mesma?

Não tenho certeza a este respeito. Para que seja vício o que me causa mal, é preciso estabelecer que a integridade de si próprio seja um valor. Essa integridade, por sua vez, não pode resumir-se à questão da saúde fisica, mas deve incluir a inteireza moral; neste sentido, uma pessoa que produza um mal interno grande a si mesma pode ser tida por viciada. Mesmo assim, porém, eu entenderia tal questão mais como médica do que como moral. Um vício pode ter um sentido que remete à saúde, mas sem desdobrar-se em efeitos morais. Distinguiríamos o vicio no âmbito da saúde e no da ética. Fumar desbragadamente pode ser um vício na medida em que me prejudica a saúde, da mesma forma que beber em excesso. Contudo, para deixarmos às coisas sua complexidade, lembremos que fumar — um único cigarro que seja — hoje é mal visto e proibido, ao passo que beber moderadamente não o é. Na verdade, a sociedade começou questionando o mal que o tabaco causava aos fumantes passivos, isto é, a quem escolheu não fumar e era penalizado pela opção alheia, mas depois se colocou em cena o mal que o próprio fumante faz a si próprio: passou-se de uma situação em que o mal está na relação, a uma outra em que o mal está no dano causado a si; foi-se de uma sociologia dos danos transmitidos a outrem, para uma doutrina da saúde como algo que todos devem interiorizar e praticar.

O cigarro mata o fumante, ativo ou passivo, somente a longo prazo, mas as leis e a moralidade condenam seu simples uso — enquanto o álcool mata muita gente de imediato, mas a moralidade somente reprocha seu abuso. Ou seja, num caso temos um vício “em si”, ao passo que, no outro, temos um vício de dosagem. Temperança, dissemos desde o começo, tem a ver com dosagem. Do que fazemos uso desmedido, mesmo da comida e dos corpos, tem-se abuso e, pois, intemperança pelo excesso, e não pela natureza mesma do prazer que temos. É só o abuso dos prazeres que constitui a intemperança. Mas o mero uso do cigarro é uma exceção a essa regra, porque já é apresentado como vício.

No entanto, ao passar-se ao mal causado a outrem, o álcool é responsável por mortes em número muito mais elevado do que o tabaco. Daí, por sinal, a recente lei brasileira que proíbe até quem bebeu “com moderação” de conduzir um carro. A sanção legal talvez seja excessiva, pois pessoas que bebam apenas um pouco podem não ter sua coordenação motora afetada, mas tal sanção decorre justamente de não se poder medir, com precisão e prontidão, a partir de qual patamar se está impondo riscos a outrem.

Mas até a comparação que propus entre o tabaco, vício “em si” (embora só mate a longo prazo), o álcool, vício só no excesso (mas que mata muita gente), e o uso do carro individual (que ninguém vê como vício ainda que mate 40 mil pessoas ao ano e aleije várias vezes esse número cada ano apenas nos Estados Unidos), mesmo essa comparação fica externa à questão filosófica: tenho o direito de proteger alguém contra si mesmo? Sob que condições? A resposta será sim, se a pessoa estiver doente, desamparada, em situação de excesso que lhe cause grande sofrimento. Mas até onde vai esse direito meu a protegê-la de si própria?

IX.

Devo dizer que tenho um espírito de viciado. Faço downloads compulsi­vos, compro livros compulsivamente, há épocas em que ouço sem parar uma mesma música, no presente momento Quoi com Jane Birkin e a Habanera, de Bizet, com Maria Callas… minha sorte é não ter assumido nenhum vício ilegal ou nocivo para a saúde; é não ter passado aos atos. Mas o espírito, eu tenho. Ainda não achei o vício adequado a mim, talvez precise achá-lo, ou mais provavelmente é uma sorte não tê-lo achado. Sou um viciado em espírito, mas, de fato, pouco. Isso me custa dinheiro, espaço na minha casa, tempo na minha vida, mas não muito mais.

X.

Se for vício o que causa mal apenas a si próprio, não correremos um risco muito sério de institucionalizar um paternalismo social? Supor-se-á que a sociedade, ou alguma dimensão sua, disponha de um certo saber do que é mais adequado a cada pessoa. Fazemos isso com as crianças e, em relação a elas, é legítimo. Mas não há legitimidade em fazer isso com gente adulta. Assim, a intemperança é mesmo um vício ou um tipo de conduta, caso em que poderia perfeitamente ser aceita ali onde não cause mal a outrem?

Por outro lado, se for vício o que perturba a integridade da própria pessoa e não apenas o que causa mal a outros —, o que define essa integridade? Será a saúde, a felicidade, a pessoa viver o tempo que seu corpo normalmente lhe permitiria. Mas, e se a pessoa se cansar de viver? Quantos não terão tido a experiência de conversar com um parente ou amigo mais velho, a quem o médico disse que parasse de beber ou fumar para viver mais tempo, e a pessoa tenha respondido: Mas, a este preço, não quero viver. E terá dado essa resposta, mesmo sabendo que assim antecipa a morte, só que a antecipa em relação a uma data futura puramente fictícia. E assim terá respondido com muita razão, sabendo bem que meros números — anos a mais de vida — nada significam sem qualidade; sabendo que um ano rico vale mais que uma década pobre; sabendo que a vida é o que nela colocamos. Mas nosso tempo não está preparado ainda para esta sabedoria. Porque, levada a seu termo, ela implicaria que, uma vez exaurida a satisfação com a vida, poderíamos pôr fim a ela. Isso causa pavor.

XI.

Mas, se a intemperança estiver se tornando traço essencial — e mesmo positivo — de nosso tempo?

Talvez a hybris, que conhecemos das tragédias gregas, a “desmedida”, como a traduzimos, tenham afinal dominado nossa época. O que é terrível em Édipo? Não é o que Freud nele enxerga.

O fundador da psicanálise vê como traços essenciais de Édipo o matar o pai e casar-se com a mãe. Mas Freud se enganou ao achar que a grande questão que leva Édipo a ser condenado seja o parricídio seguido de incesto. Talvez o grande problema de Édipo seja que ele quisesse resolver tudo.[15] A peça começa com a peste assolando Tebas. O rei reage perguntando qual o problema e dispondo-se a resolvê-lo. Quer realizar uma anamnese, gerar um diagnóstico, aplicar as medidas necessárias. Como, então, trata-se a peste não pela vacina, mas pelo crime que exige reparação, ele inicia uma investigação — e, nela, a cada etapa lhe pedem que pare. Um a um, todos vão percebendo, antes dele, o que está em jogo. O rei chama o pastor que o encontrou, a ele, Édipo, abandonado na montanha. Chama o adivinho. Todos lhe pedem que desista, todos preferem a peste ao conhecimento do horrível. Essa pulsão de conhecer tudo sem limites é mais do que um ser humano pode merecer. Essa pulsão de tudo resolver é algo que extrapola a dimensão humana que “o grego” admite. A desmedida de Édipo não é bem o parricídio seguido de incesto. É ele querer o conhecimento sem limites e a solução de todos os problemas. Seu problema não está em afrontar as bases da família nuclear. Está em afrontar os limites da condição humana. Seu problema não é com a família. É com os deuses, ou com a separação entre o mundo dos deuses e o dos humanos. A desmedida de Édipo está em querer solucionar mais do que o homem pode solucionar. Para lembrarmos os dois sentidos do verbo poder, em português, isso não quer dizer que o homem não seja capaz de resolver; quer dizer que não lhe é lícito fazê-lo. Qual a alternativa que lhe resta? Deixar as coisas como estão.

Imaginemos um Édipo Rei que termine bem. O happy end seria a peste continuar, matando boa parte dos tebanos. Mas ele continuaria casado com a rainha e ao lado de seus filhos. Vê-se que não é, na verdade, um final feliz. Não há final feliz possível na tragédia. O próprio do trágico é não ser possível nenhum happy end. O próprio do trágico é essa impossibilidade de solução. Uma vez comecei um conto cômico sobre um personagem que reescrevia as grandes obras trágicas dando a cada elas um final feliz, porque prosaico. Ora, isso não é possível em Édipo. É mais plausível na Ilíada e na Odisseia. Daria para imaginar Menelau desistindo de ir atrás de Helena, consolando-se com substitutas. Obviamente, com isso deformamos a obra, nem é preciso dizer, mas sempre há algum leitor que não nos entende e por isso me explico. Mas não seria possível tornar Édipo Rei prosaico, caseiro. A causa de sua tragicidade é ele querer saber de tudo e resolver tudo. Para sermos mais precisos, não é “tudo” o que ele quer conhecer. Lembrem que um dos passos iniciais de sua história é o enigma da Esfinge. Que animal, pergunta ela, tem quatro pernas de manhã, duas ao meio-dia, três ao entardecer? A resposta é o homem — criança que engatinha, adulto que caminha, velho que se apoia num cajado. De que se trata a pergunta e a resposta, então? Pretende-se saber o que é o homem. Ora, não é à toa que a peste está no começo e no fim da história. Ela na verdade nunca deixou Tebas, ela apenas tirou férias. Deu tempo, um longo sursis, para que Édipo se casasse, tivesse filhos, e eles crescessem. Deu tempo para a prosa e o prosaico. Mas a mesma solução para a peste, no início, que é Édipo saber quem é o homem, é o que causa sua volta no final, que é Édipo imaginar saber quem é o homem. Quem traz a peste é justamente aquele mesmo príncipe que, por uma longa geração, fez as pessoas serem poupadas dela. Salvou-as da Esfinge, condenou-as pelo crime que ficou impune.

Ora, há loucura maior do que querer saber quem é o homem? E o paradoxo é: há loucura maior do que um médico vienense, dois mil e quatrocentos anos depois, ler esta peça e acreditar que com ela descobre o enigma de quem é o homem? Não estará ele repetindo a mesma desmedida de Édipo? Não estará ele se colocando no lugar grego de Édipo? Porque o lugar moderno ou vienense de Édipo é o do parricida incestuoso, mas o lugar grego é o de quem quer tudo conhecer. E ainda podemos acrescentar a acusação de Jeffrey Masson a Freud, que, segundo ele, teria deixado de lado a realidade do abuso sexual contra as crianças, transformando um dado social frequente e abominável em mera vida mental, interiorizando na mente das crianças, uma vez tornadas adultas, a ideia de que fantasiaram e não viveram de fato o abuso sexual, fazendo, em suma, que as vítimas se tornem uma segunda vez vítimas, porque agora se tornam culpadas de evocar uma violência cuja realidade o médico vienense denega. Na verdade, o grande argumento de Masson é que, se há tanto abuso sexual de crianças hoje, quando elas têm muito mais chances de relatá-lo, por que ha­veria menos quando o silêncio das crianças, como o das mulheres estupradas, como o dos negros humilhados, era muito maior, pois lhes faltava qualquer apoio das instituições e, além disso, se reclamassem, seriam perseguidos com todo o rigor e a maldade que aquele mentiroso tempo vitoriano era capaz de ter? Não deixa de ser curioso que o homem que desmantelou as asserções, de fato, sobre as quais se fundava a moralidade vitoriana (isto é, de que a sexuali­dade não existia, de que seria possível uma vida sem fantasias sexuais) veja-se, assim, acusado de cumplicidade com o que havia de mais criminoso em sua própria época. Mas o argumento de Masson tem peso e não pode ser descarta­do com a rapidez a que os psicanalistas têm recorrido. Isso tudo, somado, lança dúvidas sobre os decifradores de enigmas, tebanos ou vienenses.

No mundo moderno, a hybris é o pão nosso de cada dia. O que fazemos o tempo todo? Algum país lida com a economia sem pretender sua ininterrupta expansão? Vejam o que são estatísticas: quase todas elas propõem uma expansão cada vez maior, econômica em primeiro lugar, mas também em outros campos da vida social. Li, quando preparava esta palestra, que o governador de Minas Gerais propunha como meta, na saúde, não o aumento do número de atendimentos, mas a queda da mortalidade infantil. Concordo plenamente e admiro a iniciativa. Mas há nisso o elemento de Édipo Rei que não funciona na Antiguidade e triunfa na modernidade: aquele que investiga, diagnostica, prescreve, planeja, age. Daí essa expansão ilimitada a que assistimos e que toma conta de nosso mundo. Vejam o computador. Boa parte de vocês (pelo menos quem não trabalha com arte e não precisa de enorme memória RAM e de recursos gráficos que ocupam muito espaço), em suma, quem basicamente escreve (artigos, e-mails) e ficaria contente com um computador de vinte anos atrás, não precisaria atualizar-se constantemente com hardwares e softwares dos quais vai fazer pouquíssimo uso, e que lhe custará caro. Ficaríamos sem cores, sem fontes além de Pica e de Courier New. Mas nossas máquinas não travariam tanto e não teríamos despendido tanto dinheiro renovando, cada três ou cinco anos, nossos equipamentos, em especial para integrar recursos dos quais fazemos pouquíssimo uso. Quanto do Office 2007 utilizamos? Há aplicativos nos quais muitos de nós nunca sequer entramos. Ora, onde foi que, nas ultimas décadas, demos uma parada no desenvolvimento tecnológico? No voo supersônico. O Concorde não deu certo e, ao longo de três décadas, só voou em casos excepcionais, até um parafuso na pista matar cem turistas alemães e o avião ser aposentado. Bem antes disso, já se tinha percebido que ele não ia dar certo. Aceitamos que sempre gastaremos doze horas para chegar à Europa — esbodegados. No Atlântico Norte, a expectativa de chegar a Nova York num horário nominal anterior àquele em que se deixou Londres ou Paris — isto é, voar quatro horas para cobrir seis fusos e portanto sair da Europa ao meio-dia para aterrissar nos Estados Unidos às dez horas da manhã — foi devidamente enterrada. Convivemos, todos, razoavelmente bem com isso. Nas outras invenções, não. Nelas reina a hybris.

Nossa sociedade deu à intemperança um espaço que nunca houve antes. Não estabelecemos mais o equilíbrio como modelo. Pode haver bolhas, como a geração-saúde, a homeopatia, os vegetarianos. Mas a mainstream de nossa sociedade valoriza muito a desmedida, a conquista do a-mais, esse avanço ilimitado. Então, será que condenamos mesmo a intemperança, a embriaguez, o excesso, ou o fazemos apenas em certas regiões da experiência humana? Será que, para quem manda na política e na economia, o negócio essencial não é essencialmente a desmedida? Há décadas que a indústria dominante, o motor da economia no país, é a automotiva. Em São Paulo entram 600 a 800 carros novos por dia. A utopia do carro. Mesmo em cidades como Brasília, construída há quase meio século e que preservou ao menos o Plano Piloto de maiores congestionamentos por quase todo esse tempo, o trânsito está piorando sensivelmente. Mas não lidamos com a indústria do carro como lidamos com a do fumo. Ainda não vi um carro adesivado: “O ministério informa que carro faz mal à saúde”. Não aparece isso nos anúncios ou nos documentos de compra e venda. Conta-se que um professor de economia norte-americano perguntou a seus alunos o que achariam de uma invenção que engendraria grande prosperidade, mas mataria 40 mil pessoas por ano e aleijaria 200 mil? A resposta deles foi que ela não deveria ser implantada. Mas, exclamou ele, é a indústria automobilística! Penso às vezes que, com os enormes engarrafamentos, o carro está a ponto de passar a ser vendido, não mais por concessionárias, mas por imobiliárias. Talvez Julio Cortázar tenha antevisto algo parecido em seu conto Autopista del Sur, que trata de um enorme congestionamento que dura semanas, a ponto de se formarem novas sociabilidades, como a de um casal que gera um nenê.

Será então que não falamos muito em temperança, saúde, etc., quando quem manda está no ritmo do excesso? O que vale para Bush, Lula valerá para Obama, para todos os que governam? É uma fuite en avant, como dizem os franceses, quando, para fugir-se a um problema, cria-se outro. E esse ritmo do excesso é celebrado, ao mesmo tempo que na vida das pessoas privadas é condenado. Não haverá, nisso tudo, uma enorme mentira constitutiva? A distribuição da intemperança e da temperança não estará baseada numa grande falsidade?

Porque embriaguez e excesso, uns podem ter em doses maciças, outros não. Atribui-se a Stalin uma frase que é obra-prima da Realpolitik: uma pessoa que morre é uma tragédia, um milhão é uma estatística. Talvez ele tenha captado muito bem a coisa: governantes lidam com estatísticas, nós com tragédias, que são o que afeta pessoas privadas, indivíduos. A intemperança é preocupante no indivíduo. Quem não se preocupará se um ente querido engordar, beber em excesso, drogar-se? Mas, em escala, em escala grande, em grande escala, é o que se quer. O que é melhorar a economia se não drogar a sociedade inteira? O que é a economia, se não infundir o excesso em grande escala?

Como fica então a questão dos valores — uma vez que estamos aqui para pensar vícios e virtudes? Nossa conclusão é um pouco triste. A hostilidade a certos vícios, sejam vícios em si ou por excesso, talvez seja um resíduo, uma compensação, eleita por uma sociedade ou um poder intemperado, a fim de prosseguir em sua rota destemperada. Condenar o excesso local, o fumo, a embriaguez individual — que seguramente são problemas sérios, mas só quando adquirem escala e dimensão —, enquanto não se condenam aqueles que abusam em escala social, eis o que fica longe de resolver os dramas, quem sabe as tragédias, de nosso tempo.

Notas

[1] Em comparação: a sabedoria calcula, e assim vê o todo; a coragem, que diz respeito ao espírito, preserva o todo; e a justiça, virtude fundadora, exige o autoconhecimento e o cuidado com a alma.

[2] Abster-se da bebida e do que causa o descuido, o descaso, é o quinto preceito; os anteriores mandam abster-se de tirar a vida, de tirar o que não me foi dado, da má conduta sexual e da fala mentirosa.

[3] A lei brasileira converteu, em 2008, a simples presença de álcool no sangue — ou seja, algo que em muitos casos ainda está distante da embriaguez — em crime por si só. Ou seja, aquilo que era uma espécie de coadjuvante da contravenção acedeu à condição mais grave de crime em si mesmo. Essa criminalização do álcool foi aplaudida pela grande maioria da opinião, pela redução, constatada, de acidentes no trânsito, de violência doméstica e outros efeitos que apontam para a intemperança alcoólica como forte inimigo público. Note-se que a embriaguez alcoólica geralmente é considerada atenuante nos crimes, com a única exceção da condução no trânsito, em que agravava a contravenção — e, agora, se constitui como crime.

[4] A embriaguez pode, porém, ser elogiada. No pensamento moderno, é Nietzsche quem mais a celebra. Assim, temos, de um lado, um elogio da moderação, uma condenação da hybris ou desmedida, a propos­ta de uma vida harmônica, que convergeriam no ideal pagão do apolíneo e no cristão da vida casta; e, de outro, uma exaltação do excesso, da embriaguez, do caráter ou elemento dionisíaco, por nos propor­cionarem a criação, a criatividade, a ruptura do convencional. Evidentemente, a embriaguez é elogiada num contexto nada prosaico. A linguagem da prosa, dos números, do gestor público, da estatística atesta os males do álcool, como os do fumo. Já a linguagem da arte, da ruptura, da transgressão exalta suas qualidades — sua capacidade de, ao mundo, trazer o novo. Essa diferença pode opor um sentido literal a um metafórico da embriaguez. O próprio uso da palavra e de seus sinônimos já nos fornece uma pista importante. Quando falamos em Dionísio, Baco e Nietzsche, escolhemos embriaguez e inebriamento. Jamais diremos que o semideus tão apreciado era bêbado! Não diremos que a bebedeira é positiva para a criação artística. A palavra embriaguez tornou-se informalmente o termo genérico, com possível, mas leve, conotação positiva; inebriamento converteu-se em sua versão mais regional, bastante positiva em termos artísticos (incluindo a própria filosofia, ao aproximar-se da arte e mostrar-se criativa); e bebedei­ra ficou reservado à conduta, hoje totalmente despida de valor místico ou criativo, ao excesso laicizado de bebida alcoólica, com efeitos somente deploráveis — várias sortes de violência.

[5] Por discípulo torto, não entendemos nenhum demérito. Ao contrário, sugerimos justamente que Hei-degger, ao mesmo tempo que é o discípulo principal de Nietzsche, o que melhor colhe sua herança e dela cuida, também é muito mais que discípulo: é um pensador original. Pensamos, aqui, em seu O que se chama pensar.

[6] Ver, no filme 2001: uma odisseia no espaço, de Kubrick, o momento quase final em que se vai para “Júpiter e mais além”. O filme foi lido por alguns — Olgaria Matos, na época, assim o comentou — como nietzschiano. Em seu começo, passa-se da dimensão animal para a do homem, quando se descobre o uso da ferramenta. No seu final, passa-se desta dimensão para outra que desconhecemos — mas que está além de Júpiter. Ora, conota-se o grande deus grego e romano com as significações de expansão, crescimento e poder, em todos os sentidos desta última palavra, potestas e também potentia. Ir além do humano pela conquista do mais, pela expansão, eis a potencialidade com que se abriria um novo milênio.

[7] Que Edmund Wilson chamará, em seu livro que culmina em Lênin, de estação Finlândia, o nome daquela em Petrogrado na qual desembarcou o líder bolchevista para deflagrar a revolução comunista.

[8] Em francês, a lei se diz no presente do indicativo. Em português, diz-se na forma composta do deve + infinitivo ou no futuro. Por isso, uma tradução literal “todos descem” seria errada. O presente, para nós, descreve um fato. Em francês, ele prescreve.

[9] Não sou althusseriano, embora o tenha lido muito quando jovem. Não sustento que Althusser tenha feito a melhor leitura de Marx ou que pudesse salvar o marxismo. Apenas entendo que fazia parte de um debate rico que, se não tivesse sido travado pelos tanques soviéticos, poderia ter permitido que desabro­chasse o romance entre a propriedade social dos meios de produção e a democracia. Do jeito que o pai ciumento abortou o romance de Praga, acabou até a possível compreensão do que queira dizer proprie­dade social dos meios de produção — nenhuma alternativa à propriedade estatal ou privada subsistiu em escala capaz de ter dimensões mundiais.

[10] Das pesquisas de Henri Martineau — por muito tempo o maior dos stendhalianos ou, pelo menos, o maior dos primeiros stendhalianos o que fica é a percepção de como o autor “embaralhava as pistas”, isto é, não apenas mentia, inventava, mas fazia-o de maneira criativa, num mais-que-a-mentira, num para além da mentira que seria, também, um para além da verdade.

[11] As histórias são verdadeiras. O que é discutível é se Stendhal de fato comprou os manuscritos que ele diz ter utilizado, ou se recorreu a outras fontes. Henri Martineau, o maior de seus primeiros estudiosos, alertou para quanto ele mentia ou, como dizia Martineau, “embaralhava as pistas”.

[12] Stendhal, em “San Francesco a Ripa”, nas Crônicas italianas.

[13] Ver Frank Wynne, Eu fui Vermeer: a lenda do falsário que enganou os nazistas (São Paulo: Companhia das Letras) 2008).

[14] Marcos Rey, “O homem que salvou Van Gogh do suicídio”. Foi convertido em minissérie e exibido em 1986 na TV Globo.

[15] Essa observação inicial é de Jean-Pierre Vernant.

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