2006

Intolerância religiosa e a morte de um intelectual

por Newton Bignotto

Resumo

Em 1600, Giordano Bruno, monge italiano da Ordem do Dominicianos, ouvia a sentença que o declarava herético, impenitente e obstinado. Dias depois foi queimado vivo. Assim como o julgamento e a posterior condenação de Sócrates na Grécia antiga, a condenação de Bruno, no início da modernidade, revela a oposição da filosofia à ideias e dogmas ligados à religião e à vida política.

Após ser denunciado por um antigo aluno, o filósofo de Nola passa por um demorado processo nos tribunais da Inquisição durante o qual ele demonstrou vontade de salvar a sua vida, mas não de abdicar de suas convicções filosóficas.

Uma vez que os documentos completos foram perdidos, a publicação do sumário do processo foi o que permitiu estudar os anos de cativeiro e as ideias de Giordano Bruno.

Na análise do processo destacam-se três grupos de acusações. O primeiro dizia respeito às afirmações libertinas e injuriosas à fé católica, relatadas por todos os seus acusadores. O segundo refere-se às proposições de caráter teológico e diz respeito, sobretudo, à cristologia de Bruno. O último grupo refere-se à filosofia do nolano.

Para Giordano Bruno o que conta é a filosofia nolana, quer dizer, o projeto pelo qual ele quer estabelecer, depois de Copérnico, que a Terra se move e que existem mundos inumeráveis num universo infinito.

Bruno soube criar, a partir de uma visão de mundo dominada pelo ecletismo e pela a sua arte da memória, uma filosofia da natureza e uma cosmologia que ajudaram a escrever uma das páginas mais importantes da formação da modernidade. A nova cosmologia que ajudou a desenhar, tinha profundas consequências no campo da teologia enquanto ciência que se ocupa de Deus, e devia levar também a uma reforma das religiões.

Bruno foi silenciado por ter compreendido que a fusão platônica entre o saber e o poder é um ideal talvez irrealizável. O fiiósofo nolano também denuncia o silêncio na figura do intelectual cínico, do acadêmico pedante, do sábio bajulador ou do adorador do poder, que aderem às forças dominantes de uma época e ao pensamento único.


No dia 8 de fevereiro de 1600, depois de quase oito anos de detenção, Giordano Bruno foi conduzido à residência do cardeal Mandruzzo para ouvir, na presença de oito cardeais inquisidores e de algumas testemunhas ligadas à Igreja, além de uma multidão de curiosos, a sentença que o declarava herético impenitente e obstinado.[1]

De acordo com as regras do Santo Ofício, depois da condenação ele foi entregue ao governador de Roma para ser punido. Bruno não tinha a menor ilusão quanto ao significado da sentença que fora proferida, mas, ainda assim, diante de todos afirmou confiante aos cardeais, como relata uma testemunha ocular do ocorrido: “Tendes mais medo ao proferir a sentença do que eu que a recebo”.[2]

Dias depois — 17 de fevereiro —, ele foi queimado vivo no Campo dei Fiori, lugar tradicional de suplício das vítimas da Inquisição em Roma. Nesse mesmo largo, uma estátua de bronze domina hoje a área central, como se o desafio lançado naquele dia frio do inverno romano continuasse a se dirigir aos que acreditavam triunfar ao condenar à morte uma das mentes mais férteis e criativas da Renascença.

O suplício de Bruno reeditou no começo da modernidade um conflito que acompanha a filosofia praticamente desde o seu nascimento. Afinal, o julgamento e a posterior condenação de Sócrates serviram ao longo dos séculos como uma espécie de cena inaugural que, ao ser relembrada, permite aos leitores recuperar o sentido de um saber cujo nascimento se deu na luta contra outras formas de conhecimento, que não admitem contestação. A morte de Sócrates adquiriu ao longo dos séculos valor paradigmático ao opor a filosofia a ideias e dogmas ligados à vida religiosa ou a sistemas políticos, que fazem da preservação de seus espaços de poder o fim último de todas as atividades relacionadas com seus membros.

O perigo da filosofia parece vir da natureza do conhecimento que propõe e da liberdade que exige para o seu desenvolvimento, que acaba por colocar em risco o poder daqueles que exercem o mando em todas as suas formas. Nesse sentido, Platão foi o digno sucessor de Sócrates ao perceber que uma concepção do saber baseada na busca livre pelos fundamentos da natureza e da vida em comum vai de par com uma nova ideia do poder. A República é uma decorrência natural da condenação de Sócrates, pois Platão compreendeu como poucos que não é possível separar saber e poder. Isso não significa dizer que a filosofia seja um discurso cujo objeto principal seja a política, ou uma prática cujo fim seja o mando. O ideal platônico encena um encontro, que tornaria possível a fusão entre duas esferas, que afetam diretamente a vida dos homens. Governar segundo a filosofia é para o herdeiro de Sócrates a única maneira de resolver um conflito que de outra maneira parece sempre ameaçar a possibilidade de uma busca independente da verdade. Platão percebeu ao longo da vida que esse era um ideal difícil de ser realizado e preferiu propor em sua última grande obra um sistema de legislação que pelo menos pudesse preservar alguns aspectos da república ideal.

O realismo da posição expressa nas Leis não modifica em nada sua compreensão dos laços que unem a busca pelo saber e a disputa pelo poder.[3]

Giordano Bruno não foi como Sócrates um cidadão integrado na vida de sua cidade. Mesmo no seio da cristandade foi marginalizado e condenado a uma vida errante e mesmo de miséria. Ao ser encarcerado não contava com amigos para sua defesa nem com apoios nos meios políticos ou eclesiásticos romanos. Jogado nos cárceres da Inquisição, foi o filósofo solitário que durante anos contou apenas com as próprias forças para defender suas ideias e tentar salvar a sua vida.

Por isso, o desafio que lançou pouco antes de sua morte soa até hoje como um grito excepcional e desafia nossa compreensão. Se alguns pretenderam que se tratava apenas de um desatino e de um ato desesperado, talvez tenha sido apenas para calar uma interrogação que coloca na ordem do dia uma questão tão antiga quanto nossa civilização e que nos obriga a repetir a mesma pergunta sobre a relação entre poder e saber, que presidiu o momento inaugural da filosofia no Ocidente.

De nossa parte, não acreditamos que Bruno tenha se deixado levar pelo desespero quando desafiou os seus algozes. Ele lutara durante muitos anos para preservar a sua vida, para simplesmente se perder num ato patético e irresponsável. De forma extraordinariamente corajosa, Bruno preferiu seguir seu caminho no lugar de simplesmente reconhecer a força de seu oponente.

Estamos conscientes, no entanto, de que, expondo o martírio do filósofo de Nola desse ângulo, corremos o risco de ressaltar o lado heroico de seu comportamento, dando lugar ao mito, em detrimento do estudo de um processo humano muito mais complexo e complicado. Na verdade, o exemplo de Bruno é importante talvez pelo fato de que, ao longo de sua vida, não foi o exercício do poder, pelo menos em sua forma corriqueira, que o interessou, e que a filosofia ocupou sua existência quase de forma integral.

No curso de seu processo, ao ser acusado de querer se tornar capitão, para gozar pela força dos bens dos outros, ele respondeu com toda a simplicidade que nunca tinha dito nada semelhante, pois “nunca quisera exercer outra profissão que aquela de filósofo e de se ocupar com as outras ciências”.[4] A análise do processo de Bruno, e de algumas passagens de sua obra, permite um estudo da questão da relação entre poder e saber de um ângulo interessante.

Se em alguns momentos da história essa luta se revestiu de uma disputa em torno da forma de organização do poder e de seus limites, em Bruno é o direito de pesquisar e de interrogar o mundo que está em cena. Como observou Vedrine: “Bruno não se interessava pela reforma dos costumes e só se ocupa de ação política de forma indireta. Para ele o que conta é a filosofia nolana, quer dizer, esse imenso projeto pelo qual ele quer estabelecer, depois de Copérnico, que a Terra se move e que existem mundos inumeráveis num universo infinito”.[5]

Como observa, no entanto, Vedrine, não devemos nos equivocar quanto à indiferença de Bruno no tocante à política em suas formas mais corriqueiras e sua solidão nos cárceres da Inquisição.[6] De fato, ele foi um indivíduo especial mergulhado em seus projetos e em busca de uma nova filosofia, mas, como muitos outros pensadores, místicos e religiosos de seu tempo, compreendia que esse esforço representava uma ameaça para os poderes vigentes.

As acusações que o ligavam ao pretendente ao trono da França, ou mesmo seu suposto desejo de fundar uma seita, são certamente exageros, que denotam a grande força da interrogação filosófica que levava a cabo e a percepção de que, junto com outras ações percebidas como ameaça, faziam tremer o edifício já abalado do poder eclesiástico. Sozinho em seu sofrimento, Bruno fazia parte dos grupos heréticos, revoltados e proféticos, que contribuíam para abalar as estruturas da sociedade cristã, que se apegava às suas formas medievais de organização do poder para tentar sobreviver ao terremoto anunciado da modernidade.[7]

A Igreja católica, a seu modo, soube compreender o verdadeiro desafio lançado por Bruno. Em pleno século XIX, no clima da reunificação italiana, um conjunto de intelectuais de vários países e de cidadãos romanos resolveu homenagear aquele que fora vítima da intolerância da Inquisição, construindo uma estátua no lugar de sua execução. O conflito velho de alguns séculos explodiu, como a significar que, para além das vicissitudes históricas, comportava algo que transcendia aos fatos particulares. Em um primeiro momento, a construção da estátua foi negada pelos membros do conselho municipal, para ser autorizada depois que manifestações estudantis em janeiro de 1888 fizeram explodir o conflito com a polícia e obrigar ao fechamento da universidade por vários dias.[8]

Em 9 de junho de 1889 a estátua foi inaugurada. Nesse dia, o papa Leão XIII, que havia ameaçado deixar a cidade em protesto, se recolheu diante da estátua de São Pedro, no Vaticano, para se opor à multidão que foi ao Campo dei Fiori assistir à inauguração da estátua daquele que continuava a ser um herege e a merecer punição.[9]

A hostilidade da Igreja católica a Bruno permaneceu ao longo dos séculos, até hoje. Em pleno século XX, com o mundo em guerra, o cardeal Mercati, que descobriu e publicou o sumário do processo do nolano, afirmou sem ambiguidades que, “assim como outras instituições legítimas, a igreja tem direito e dever de estabelecer e propor o credo e de legiferar em seu campo propondo sanções, que não serão do agrado de todos em todos os séculos, mas que respondem às concepções e aos usos dos tempos”.[10]

O mesmo traço de intolerância que dominou o processo continuou a perseguir a memória do supliciado, como a demonstrar que sua vida e sua obra tocaram em uma tecla que está longe de refletir apenas os ares do tempo. Bruno incomoda, com toda a sua ambiguidade. E mesmo pelos paradoxos de sua obra, por colocar em cena um conflito que interpela o poder e seu uso dos saberes, fazendo do intelectual, em suas muitas figurações, o agente de uma disputa que não se dá sem colocar em questão, ao mesmo tempo, os dois polos em conflito.

O LONGO PROCESSO

Em 1591 Bruno estava na Alemanha quando aceitou o convite de um jovem veneziano para retornar à Itália. Mocenigo havia lido algumas obras do nolano. Quando soube que ele se encontrava em Frankfurt, decidiu convidá-lo para ensinar-lhe a “arte da memória” e, muito provavelmente, algo sobre magia. O interesse por magia, pela astrologia, por alquimia, e muitos saberes desse tipo, era comum na Renascença e fazia parte da vida de muitas cortes, assim como do campo de interesses de muitos intelectuais.

Em que pese a circulação de obras e os debates que ocorriam em alguns centros, não podemos dizer que esses saberes eram estudados em toda a liberdade e eram objeto de um esforço real de elucidação. Longe disso, a Renascença se caracterizou, de um lado, pela grande mistura entre filosofias, nem sempre concordantes, com saberes supostamente oriundos de velhas tradições e descobertas científicas, que ganhavam corpo envoltas em linguagens muitas vezes confusas e incompreensíveis, e, de outro lado, pela preocupação crescente da Igreja católica, mas também das novas Igrejas protestantes, com a ameaça que o ecletismo professo de muitos pensadores fazia correr aos dogmas centrais da fé cristã.

Bruno sintetizou como poucos esse espírito aberto e curioso do século XVI. Assim como Alberti fora o modelo do pensador universal do século anterior,[11]  ele  soube  conciliar  seu  desejo  de  conhecer  outras filosofias, diferentes das que aprendera em seus anos de formação na Igreja católica, com a vontade de produzir um saber racional capaz de oferecer ao leitor uma síntese poderosa dos muitos caminhos da investigação humana sobre o mundo.

O leitor atual talvez não se dê conta do esforço de racionalização expresso na obra do nolano, quando se deixa levar por sua linguagem barroca, por sua imaginação sem freios e por suas metáforas sugestivas.[12] Mas o fato é que Bruno soube criar, a partir de uma visão de mundo dominada pelo ecletismo e por uma mistura muitas vezes difícil de ser compreendida, uma filosofia da natureza e uma cosmologia que ajudaram a escrever uma das páginas mais importantes da formação da Modernidade.

Mocenigo, no entanto, não estava interessado em uma nova visão sobre o universo, ou sobre sua ontologia. É provável que não tivesse nem mesmo a formação necessária para entender o alcance do projeto filosófico bruniano. Como muitos aristocratas do período, ele se fascinara com saberes pretensamente herdados da Antiguidade, que abriam as portas para a manipulação de forças ocultas, que de outra forma permaneciam dispersas e escondidas. A “arte da memória”, que havia encantado antes Henrique III e a corte francesa, e a magia natural eram o pórtico para um mundo diferente e inteiramente desconhecido. O contato com Bruno e as lições que recebeu, longe de apavorá-lo, muito provavelmente o decepcionaram e talvez estejam na raiz de sua denúncia do filósofo à Inquisição. Seu desejo de magia esbarrou em uma estrutura mental muito mais complexa e sofisticada, que era inacessível a um aristocrata de cultura mediana, que sonhava atingir esferas elevadas do saber pelo caminho curto da magia. A decepção e a certeza de que Bruno não ensinava o que sabia estão na raiz de seu ato. A frustração e a arrogância de Mocenigo perderam o nolano, e não o medo de seus supostos poderes, ou uma preocupação exagerada com as heresias e com a doutrina da fé. Afinal, o que prometia a “arte da memória”? Em primeiro lugar, cabe lembrar que não se tratava de algo pertinente apenas à obra de Bruno. Muito pelo contrário, ele fora buscar em seus contemporâneos e no passado ferramentas para dominar a memória, que era a chave para a compreensão de muitos segredos da natureza.[13] Partindo de uma série de “intenções”, o nolano formula no De umbris idearum[14] uma série conexa de conceitos, uma “arte” que, segundo ele, “é necessária para ordenar todas as operações da alma, mas é também a fonte de muitos métodos, por meio dos quais, como mediante muitos órgãos, se pode experimentar e obter uma memória reforçada da arte”.[15] Uma metafísica de fundo platônico, inspirada na revisão feita por Plotino e Marsilio Ficino, oferece os meios para compreender e depois agir no mundo usando as “cadeias áureas”, que unem céu e terra, luz e trevas, enfim, os contrários que a experiência natural tende a separar.

A “arte da memória” propriamente dita é um desdobramento, uma aplicação prática, das ideias metafísicas sustentadas antes. Na elaboração do sistema complexo de referências, que compõem tanto a parte chamada teórica quanto a parte prática, que visa ensinar a reter os conteúdos expostos na primeira, abundam símbolos e sinais oriundos da tradição  egípcia,  do  hermetismo  renascentista  e  da  cabala.[16]

Bruno emprega-se em seu livro a produzir uma série de diagramas e de rodas, contendo letras e signos de várias línguas e tradições, que remetem a exercícios sequenciados através dos quais o domínio progressivo de alguns segredos da natureza se dá por meio da língua e de seus desvãos. As rodas cheias de letras, encaixadas de forma precisa, que ajudam a criar a memória, são parte de uma arte que desvela os segredos naturais, o significado do mundo sensível, “fazendo com que as coisas sejam perceptíveis à vista através da pintura e da escultura, enquanto, do outro lado, através da escrita, torna a palavra durável e imutável, que de outra maneira se apagaria no nada”.[17]

Para o leitor atual, tanto o livro dedicado à “arte da memória” quanto aquele que lhe fornece a base teórica parecem difíceis e necessitam, para ser compreendidos, de um grande conhecimento de suas raízes platônicas e da forma como diversos saberes se cruzaram no século XVI, num movimento de busca que desprezou em grande medida o espírito de sistema que dominara a Idade Média.

Mocenigo, um jovem arrogante e pretensioso, não podia compreender que a famosa “arte” da qual Bruno tanto se gabava era no fundo uma ferramenta para devolver ao indivíduo sua capacidade de agir no mundo natural através da busca das combinações que ligam os elementos naturais. O fundamento da ação humana para a filosofia nolana é a vida interior, único fórum no qual se pode realizar a síntese entre uma teoria e uma prática fundadas em uma metafísica platônica e uma visão eclética do mundo. Ao contrário das fórmulas mágicas e simplificadas, que incendiavam a imaginação de tolos como Mocenigo, Bruno oferecia uma filosofia difícil e uma arte que só podia ser exercitada nos quadros de uma visão global do funcionamento da natureza e da alma humana.

No dia 23 de maio de 1592, Giordano Bruno foi entregue à Inquisição depois de ter sido feito prisioneiro por seu hospedeiro na noite anterior. Quando ficou claro que a decisão do nolano de retornar à Alemanha era definitiva, e que ele não ensinaria mais nada além do que já fizera nos poucos meses em que permaneceu livre na Itália, Mocenigo recorreu à violência e à denúncia para se vingar daquele que fora seu professor. A prisão do filósofo levanta até hoje dúvidas quanto às razões que o levaram a aceitar um convite que o colocava em risco e que acabou sendo fator determinante em sua sorte.

No curso do século XIX, no auge do romantismo, levantou-se a hipótese de que Bruno havia sido levado a correr riscos por conta de sua nostalgia da pátria.[18] Essa hipótese fantasista deu origem a outras especulações, dentre as quais a ideia defendida por Corsano,[19] e depois por Firpo,[20] de que Bruno, depois de muitos anos de pesquisa e investigação, estaria convencido de que era possível conduzir um processo de renovação do mundo cristão a partir de uma reforma religiosa, que teria por base suas próprias convicções. Iludido quanto a seus meios e quanto à possibilidade de ser bem acolhido, “o retorno à Itália seria uma tentativa vaga e prudente, quase uma missão de reconhecimento para testar as reações do mundo católico a partir de uma posição que tornava possível bater em retirada e ao mesmo tempo testar in loco as primeiras experiências de seu próprio poder ilusório”.[21]

Essa hipótese tem o mérito de mostrar quais eram as preocupações de Bruno nos anos que antecederam sua queda e de que forma evoluíra sua filosofia. Ao chamar a atenção para sua preocupação constante com a magia e seu desejo cada vez mais intenso de agir, os dois autores ajudam a desvelar um pouco da personalidade de um homem que atravessara muitas fronteiras, disputara contra muitos intelectuais e que ainda tinha capacidade de se manter fiel às suas ideias, comportamento que será o seu até o final.

Ao mesmo tempo, Firpo chama a atenção para dois textos menos conhecidos do período, que fornecem um quadro preciso do “estado da arte” da filosofia nolana que, partindo das pesquisas sobre a “arte da memória”, elaborara uma cosmologia e uma ontologia radicais que, como mostra o estudo do De magia[22] e do De vinculis,[23] procurava unir os muitos elementos que povoavam o universo fecundo e vasto deste que foi um dos pensadores mais fecundos da Renascença.

Bruno pensava em tirar proveito de seu retorno à Itália, ele o fazia em um momento, como observou Yates,[24] em que muitos acreditavam que a vitória de Henrique de Navarra sobre a Liga Católica e o perfil conciliador do novo papa Clemente VIII mudariam as coisas na Europa, permitindo uma reconciliação de velhos adversários. Em alguma medida Bruno se iludia quanto à independência de Veneza e quanto à sua própria mobilidade. A prova é que Mocenigo declarou ter ouvido da boca do acusado que não temia a Inquisição, pois não fazia mal a ninguém.[25] Mas também calculava seus riscos, pois, antes de se instalar na casa de seu futuro acusador, havia passado algumas semanas em Pádua — o que levou Aquilecchia a supor que ele desejava um posto de professor  na  universidade  da  cidade[26] —,  e  se  preparava  para  partir quando foi feito prisioneiro.

A verdade é que, na ausência de um documento escrito pelo próprio Bruno, é mais razoável supor que seu retorno se deveu a um conjunto de fatores, que misturam as esperanças do filósofo com a vontade manifesta de muitos atores importantes da cena pública da época de acabar com as guerras religiosas. O isolamento pessoal do nolano não significa que ele não compreendia o que se passava e que mergulhou numa aventura suicida e sem saída. Havia riscos, é claro, mas ele se acostumara a viajar sem ser inquietado e contava com o exemplo de outros intelectuais, que depois de uma vida errante acabaram se reconciliando com a Igreja católica.

Bruno acreditava poder influenciar a reforma dos costumes religiosos e revolucionar seus fundamentos. Esse desejo, por mais desmedido que fosse, deve ser compreendido no contexto europeu de então e inserido em uma concepção do saber que misturava as fronteiras dos conhecimentos. Uma disputa sobre cosmologia tocava necessariamente a teologia e a política, mesmo se os pensadores nem sempre estivessem conscientes da extensão de seus argumentos. No caso de Bruno, como veremos, ele estava consciente do alcance da revolução da qual participava e levou até o fim as suas convicções.

Diante das acusações da Inquisição, no entanto, a atitude do nolano está muito longe da do herói que corre para o martírio. Na denúncia de Mocenigo se destacam inicialmente oito acusações: a de que Bruno defendia opiniões contrárias à santa fé; tinha opiniões erradas sobre a Trindade, a divindade do Cristo e a encarnação; professava falsas opiniões sobre o Cristo; tinha opiniões erradas sobre a missa; sustentava a existência de mundos múltiplos e eternos; acreditava na transmigração das almas; se ocupava de artes mágicas e de adivinhação; e não acreditava na virgindade de Maria.[27]

Numa segunda carta de denúncia, datada de 25 de maio de 1592, Mocenigo ainda acrescentaria o fato de que Bruno pretendia servir-se de manipulações mágicas, que ele se recusava a ensinar a seu aluno caso insistisse em retê-lo em Veneza.[28]

Uma análise superficial das denúncias mostra que elas levam em conta dois aspectos importantes: a relação do filósofo com a religião católica e sua filosofia. Bruno, ao longo de seu processo em Veneza, procurou sempre separar as proposições filosóficas das teológicas; assumiu seus pretensos erros no tocante às questões de doutrina religiosa e preservou suas convicções teóricas expressas em seus escritos filosóficos. Ao longo de suas deposições, insiste sobre o caráter restrito de suas teorias, quando afirma, por exemplo, que “a matéria de todos esses livros, para falar de maneira geral, é filosófica”, a “razão natural”, e não a fé, guiou suas reflexões.[29]

Sem ambiguidade, ele declara: “Fundei minha doutrina sobre o sentido e a razão e não sobre a fé”.[30] São muitas afirmações que podem nos levar a acreditar que era essa a sua convicção e que ele procurava escapar mostrando estar de acordo com as regras impostas pela Igreja.

As coisas, entretanto, eram mais complexas. No momento de sua prisão, Bruno tentou, antes de tudo, preservar a sua vida. Ao alegar a separação entre verdade da fé e verdade da razão, buscava se situar em um terreno que durante muito tempo fora a válvula de escape para pesquisas que contrariavam as verdades teológicas, mas que não pretendiam ter validade no campo da religião. Um grande precursor de Bruno na investigação sobre o infinito cosmológico — Nicolau de Cusa — pôde continuar tranquilo durante a sua vida, depois de assegurar o caráter meramente especulativo de suas conclusões.

Sabemos que a estratégia de Bruno fracassou, mas, antes de analisar a continuação de seu processo e as razões de seu insucesso, é necessário perguntar se, do ponto de vista das convicções religiosas de Bruno, a separação que ele propõe entre as duas esferas do conhecimento era verdadeira. Mais tarde faremos a mesma pergunta do ponto de vista de sua filosofia.

Para Bruno a religião é, em primeiro lugar, essencial para todos os povos. No Spaccio de la bestia trionfante ele mostra que somente a religião pode fornecer uma armadura moral e uma orientação para as pessoas comuns, que de outra forma se sentiriam perdidas num mundo que não compreendem. Essa visão geral da função da religião vai de par com um preconceito explícito contra a “multidão”. No La cena de le ceneri ele diz que “é melhor procurar fora da multidão o que é verdadeiro e conveniente, pois dela não sai nunca nada de digno e precioso”.[31] A separação entre o sábio e povo não implica de modo algum que a verdade deva ser imposta pela força.

Ao contrário, deve se proceder “extirpando, por meio de uma argumentação bem escolhida, a crença que eles possuem em seu saber, livrando-os tanto quanto possível de suas estúpidas opiniões, através de raciocínios penetrantes e persuasivos, para colocá-los em condição de compreender”,[32] o que de outra maneira ficaria escondido para as mentes menos privilegiadas. Essa convicção acompanhou Bruno mesmo quando sua vida estava em perigo, pois mais de uma vez afirmou que os apóstolos converteram mais gente do que a Inquisição, já que tinham recurso à argumentação e nunca empregavam a força.[33]

No tocante às suas ideias religiosas, Bruno afirmou sempre que preferia a religião católica e, no curso de seu processo, evitou tanto quanto possível afrontar os inquisidores sobre temas fundamentais como a divindade do Cristo, ou a natureza da Trindade. Em seus escritos, no entanto, sua posição era bem mais complexa. Como mostrou Yates em seu livro clássico,[34] Bruno mergulhou de cabeça na corrente de estudos da religião egípcia — que ele acreditava estar próxima de ser restaurada[35] — e na busca pelos saberes herméticos. Em suas pesquisas sobre a memória, assim como em seus escritos cosmológicos, o filósofo mistura elementos herméticos com a cabala e a magia.

A cabala e a magia, assim como o hermetismo, faziam parte do campo de investigação de muitos dos filósofos renascentistas influenciados pelo platonismo. Desde Marsilio Ficino, que os tratou de forma muito prudente, os tratados antigos de magia, as imagens e os livros referentes a esses saberes passaram a interessar um número crescente de pensadores insatisfeitos com a camisa-de-força imposta pela Igreja e pelo tomismo dominante. Nesse sentido, não há nada de extraordinário no recurso a essas fontes por parte de Bruno. A cabala chegou até ele muito provavelmente pelas considerações de Pico della Mirandola, que foi um dos primeiros filósofos de primeiro plano a se interessar pelo assunto.[36]

De forma geral, Bruno buscava nesses saberes ferramentas para a ação do filósofo no mundo. No De magia, ele resume essa posição quando diz: “Tal como a empregamos entre filósofos, a palavra mago designa um homem capaz de aliar o saber ao poder de agir”.[37] O saber requerido, no entanto, é derivado do conhecimento da natureza e de seus laços internos; é uma filosofia da natureza tanto quanto uma cosmologia. O que permite a ação mágica é a unidade das forças naturais. “É preciso afirmar com segurança e conservar no pensamento”, diz Bruno, “que todas as coisas são cheias de espírito, de alma, de potência superior de Deus ou de divindade e que o intelecto e a alma estão em toda parte, mesmo se não fazem tudo em todos os lugares.”[38]

Como resume Leon Jones: “Religião e ciência possuem um objetivo comum e a magia é a ferramenta para atingir esse objetivo”.[39] O estudo das concepções religiosas de Bruno é um campo rico e complexo de trabalho, que mereceu a atenção de muitos especialistas do período nas últimas décadas. Para nós interessa observar a tolerância que perpassa sua crença em toda a sua extensão. Como já mostramos, mesmo suspeitando da capacidade de grande número deles para encontrar a verdade, ele nunca aceitou o uso da força em matéria religiosa, preferindo sempre a persuasão por argumentos como método de convencimento. Em seu depoimento ele chega a dizer que compreende o trabalho da Inquisição, mas isso mostra apenas seu equilíbrio e a vontade de sobreviver.[40]

Não seria razoável imaginar que, prisioneiro da Inquisição e acreditando poder escapar, ele passasse a criticar uma instituição que temia e conhecia havia muito tempo. Um segundo ponto essencial é que a religião de Bruno, e sua crença na magia, convergiam para um culto interior, voltado para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas e não para um novo ritual, baseado em imagens e manipulações.[41]

Como resume muito bem Yates, para Bruno, “a verdadeira religião deve abandonar toda disputa e controvérsia, pois ela se ocupa da alma”.[42] De forma ainda mais eloquente, a estudiosa afirma que: “Por mais estranha que seja a religião mágica de Bruno, por mais extraordinário e apavorante que fosse seu egipcianismo interior, nem um nem outro violava a lei do amor como faziam os sectários. Eis o lado nobre do entusiasmo heróico”.[43] Se o nolano tinha um projeto religioso ao retornar para a Itália, se desejava fundar uma seita dos “giordanistas”,[44] como lhe foi imputado durante o processo, tudo isso estava envolto em um profundo respeito pela vida alheia e uma clara percepção dos riscos e das misérias produzidos pela intolerância religiosa e seus massacres.

O fracasso de Bruno em se livrar do processo ainda em Veneza, mesmo à custa de uma condenação, não pode de forma alguma ser-lhe atribuído, ou ser considerado um acaso, como sugere Firpo. Ao longo de suas deposições, ele procurou ser claro e evitar polêmicas. No que era impossível negar, aceitou a culpa, e mesmo pediu a condenação. Quanto a seus livros, ciente de que os inquisidores tinham um conhecimento muito limitado de seus escritos, evitou falar mais do que era necessário. Além disso, as deposições das primeiras testemunhas citadas por Mocenigo lhe foram favoráveis, na medida em que não acrescentavam nada às acusações iniciais e se limitavam a relatar os encontros que cada uma delas tivera com o acusado e suas impressões gerais, que no máximo conduziam, por exemplo, Ciotti a afirmar que “ele se dizia filósofo e mostrava ter lido muitas coisas”,[45] ou ainda de poder “ensinar a arte da memória e de conhecer outros segredos semelhantes, mesmo se não se conheça ninguém com quem ele tenha concluído um acordo, ao contrário, todos os que lidaram com ele sobre essas questões acabaram insatisfeitos”.[46] O livreiro Jakob van Brecht, por seu turno, conhecia apenas três livros de Bruno (Cantus Circeus, De memória, De lampe combinatoria), e ouvira dizer que “era um homem universal, mas que não tinha religião alguma”.[47]

A questão que nos interessa abordar diz respeito à possibilidade de que ele fosse absolvido por um crime que, não podemos esquecer, concernia às suas opiniões sobre matérias religiosas e filosofia e nada mais. Nosso problema é interessante porque implica uma questão de ordem geral, mas pode ser tratado em um contexto bem específico e sobre o qual possuímos vasta documentação.

Ora, depois dos estragos provocados pela Inquisição medieval, essa instituição havia feito sua reaparição no mundo ibérico, para depois ressurgir na Itália em bases muito próximas das de sua fundação. Com o avanço do protestantismo, a Igreja católica julgou necessário reagir aumentando a repressão sobre aqueles que de alguma forma se desviavam dos dogmas, ou manifestavam alguma liberdade de opinião. Em 1542, por meio da bula Licet ab initio, a velha instituição foi recriada para lutar contra os novos perigos.[48]

O ponto central era a defesa da fé e o inimigo principal, as heresias. De maneira geral, “a heresia era, aos olhos da Igreja, um pecado do intelecto, e o herético, uma pessoa que conscientemente esposava um erro doutrinal”.[49]

A perseguição às heresias se tornou algo muito complexo com a multiplicação das seitas e a propagação do protestantismo. Além do mais, novos inimigos foram surgindo, ao lado dos tradicionais contestadores dos dogmas, com a revolução filosófica e científica que se iniciou na Renascença. Os velhos manuais de inquisidores foram sendo aperfeiçoados e deram lugar a instruções cada vez mais detalhadas, que visavam ajudar os membros dos tribunais da Inquisição, nas diversas partes do mundo católico, a  cumprir  corretamente a  sua tarefa.[50]

De forma resumida, podemos dizer que o alvo inquisitorial tinha cinco marcas: os hereges, os produtores de heresia, os magos e assemelhados, os blasfemadores, e os que atacavam o Santo Ofício.[51] Os procedimentos inquisitoriais eram extremamente codificados, previam várias fases, seguiam normas estritas, e podem ser estudados em detalhes até hoje pelo grande número de documentos que eram produzidos a cada processo.[52] O núcleo de toda essa verdadeira máquina de guerra era a perseguição a todos os que ameaçavam o poder da Igreja católica. A complexidade procedimental não deve, no entanto, nos induzir ao erro.

Os objetivos da Inquisição eram muito claros e passavam por cima de considerações de qualquer ordem. A simples suspeita de heresia era passível de punição, mesmo se não ficasse clara a ameaça ou a intenção de provocar danos ao poder eclesiástico. Para além da repressão direta, a Inquisição promoveu uma verdadeira política de terror contra os espíritos e foi fator de esfacelamento do tecido social, na medida em que permitia que se abrisse um processo a partir de simples denúncia. É verdade que existiam salvaguardas. A denúncia falsa era punida. Mas o mal estava feito. Um “pecado do espírito” é algo suficientemente vago para passar por provas tangíveis no momento de sua comprovação.

No curso de seu processo veneziano, Bruno parece acreditar que podia se safar jogando segundo as regras do jogo. A leitura de suas deposições mostra que ele respondia com segurança, evitava as armadilhas e aceitava declarar-se culpado sobre pontos especificamente de doutrina religiosa. Contrariamente ao que afirma Yates,[53] a transferência para Roma era frequente nos processos da Inquisição conduzidos nas diversas cidades italianas, mas não necessária. Havia apenas uma acusação formal contra ele e, segundo os procedimentos da Inquisição, ele podia ser julgado e até mesmo liberado. O que aconteceu, então? Bruno não contava com a intervenção de Roma e talvez tenha superestimado seu poder de persuasão. Seu grande engano foi certamente o de imaginar que lidava com uma instituição verdadeiramente permeável à argumentação. Sem poder se defender, acabou sendo transferido para a prisão da Inquisição em Roma, depois que Veneza se acovardou diante das pressões e preferiu entregar um filósofo acusado de heresia em vez de defender sua tão cara autonomia.

UMA FILOSOFIA DE GUERRA

A publicação do sumário do processo[54] permitiu que tivéssemos acesso ao que é hoje o documento mais significativo para estudar os anos de cativeiro de Bruno, uma vez que os documentos completos se perderam em virtude da transferência efetuada por Napoleão para Paris.[55] Em vez de retornar à sua origem, os documentos acabaram sendo vendidos como papel velho, o que determinou sua perda definitiva.

Bruno ficaria preso em Roma até sua morte, em fevereiro de 1600. Foram longos anos de sofrimento e isolamento. Os prisioneiros da Inquisição não podiam se comunicar com os de outra cela e não podiam escrever ou ler livros, mesmo os que não tinham relação com o processo. Na época da Páscoa e no período de Natal, eles eram recebidos pelos inquisidores e podiam apresentar pedidos concernentes a necessidades materiais mais imediatas. Podiam também solicitar um número limitado de folhas para escrever, mas todas deveriam ser entregues aos inquisidores. O processo seguia o ritmo da instituição e não havia limitação ao tempo de detenção ou menção a direitos dos prisioneiros, para além dos regulamentos internos da própria instituição. Além disso, as ações dos inquisidores eram quase sempre secretas.[56] Todos os seus atos eram tomados tendo em vista a repressão implacável da heresia. A ideia de que sem provas não há crime só existia formalmente, pois na prática a suspeita de heresia resultava em detenção nos cárceres da Inquisição até que se chegasse, segundo o ritmo escolhido pelos inquisidores, a alguma resolução.

No curso do processo era nomeado um advogado, mas sua função não era defender o acusado, ou preservar a legalidade do processo, mas simplesmente levá-lo a confessar.[57] Essas observações não devem, no entanto, nos levar ao engano de que todos, ou a maioria dos acusados, terminavam na fogueira. Ao contrário, na maior parte dos casos a pena de morte não era aplicada, pois a abjuração indicava que a luta contra os que se desviavam estava tendo sucesso. Conhecendo a Inquisição, Bruno tentou preservar sua vida ao longo de quase todo o seu processo.

Se a defesa feita junto aos inquisidores de Veneza parecia augurar uma pena leve, a situação de Bruno só piorou na prisão romana. Toda a energia empregada para conduzi-lo a Roma não levou à aceleração do processo. Uma vez colocado fora de combate, o filósofo foi parcialmente esquecido. No curso do ano de 1593, duas novas denúncias proferidas por um frade, que fora prisioneiro com Bruno em Veneza — Celestino de Verona —, e por um outro detento — Francesco Graziano — agravaram ainda mais o caso. O frade Celestino terminou sendo queimado pela Inquisição, em um processo acelerado por sua completa loucura. Seu estado mental não o impediu, entretanto, de apresentar aos inquisidores novas denúncias, que se relacionavam quase sempre com as blasfêmias que Bruno teria proferido e sua crítica constante aos dogmas da fé católica. Assim, entre outras coisas, Celestino acusou Bruno de vituperar contra o Cristo, de afirmar que Moisés era um mago hábil, que os profetas eram homens astuciosos, que o culto dos santos era ridículo, que ele desejava agir com violência contra sua ordem caso fosse forçado a retornar.[58] A deposição de Graziano, um copista mais equilibrado que Celestino, ainda piorou a situação do nolano, pois à crítica ao culto das imagens, e outros pontos já mencionados, ele ligou as concepções propriamente filosóficas de Bruno e suas constantes críticas a aspectos da doutrina cristã.[59]

Os documentos que possuímos não nos permitem seguir em detalhe essa fase do processo, mas a verdade é que, por mais grave que tenham sido as denúncias, e mesmo considerando a lentidão do processo inquisitorial, no final de 1594 todas as fases, o que incluía ouvir novamente todas as testemunhas, que podiam confirmar ou não os depoimentos e ainda acrescentar algo, já haviam sido cumpridas e os inquisidores  estavam  prontos  para  proferir  a  sentença.[60] Em  16  de fevereiro de 1595, por intervenção direta do papa, a Inquisição decidiu examinar mais detalhadamente os livros de Bruno, sobretudo porque uma boa parte lhe era desconhecida até aquela data. Essa nova etapa consumirá muitos anos, sendo que o exame efetivo só começou quase dois anos depois da ordem papal.[61]

No dia 16 de dezembro de 1596, durante a visita de final de ano, Bruno foi informado das “censuras” proferidas contra seus livros. No dia 24 de março de 1597 ele pôde apresentar uma defesa parcial de suas ideias e foi instado a abandonar imediatamente sua tese da existência de múltiplos mundos, sob pena de ser interrogado de forma “estrita”, o que muito provavelmente era um eufemismo para a tortura tradicionalmente praticada pela Inquisição.[62] Começa então a fase do processo na qual a filosofia de Bruno ocupa o lugar central e na qual a tortura faz sua aparição definitiva. Não possuímos documento direto que comprove a tortura, mas dois fatos devem ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, tratava-se de um procedimento corriqueiro da Inquisição, praticado desde o século XIII.[63] Não há razão objetiva para supor que o filósofo de Nola tenha sido poupado. Quando ocorria de faltarem testemunhos confiáveis, como no caso de Bruno, no qual apenas Mocenigo preenchia os requisitos necessários, a Inquisição romana tendia a desprezar as denúncias feitas por indivíduos como Celestino, ou tomá-las com cautela,[64] mas, em vez de inferir a inocência do acusado, recorria à tortura, para forçá-lo a admitir o que negara até então, talvez pela simples razão de que eram falsas as acusações. Como resume muito bem Canosa: “A tortura sobre a intenção constituía um meio para obter a confissão do imputado não sobre o fato, mas sobre seu pensamento sobre o fato”.[65] Diante da negativa de Bruno em assumir suas doutrinas filosóficas como heréticas, a tortura era um meio considerado normal.

Em segundo lugar, um decreto da Congregação do Santo Ofício, do dia 9 de setembro de 1599, mostra que os inquisidores propuseram sem ambiguidade que o filósofo fosse torturado, para que alguns aspectos de seu pensamento pudessem ser esclarecidos.[66]

Alguns intérpretes afirmam, na trilha de Mercati, que o processo de Bruno não tinha nada a ver com a liberdade de pensamento e concernia exclusivamente à sua suposta heresia e a sua tendência a blasfemar. Essa afirmação é facilmente desmentida à luz do sumário do processo publicado pelo próprio Mercati. De fato, não podemos dizer que apenas a filosofia do nolano estava em questão. Um exame atento das proposições e respostas mostra, como sublinhou Firpo, que podemos destacar três grupos de acusações.[67]

O primeiro dizia respeito às afirmações libertinas e injuriosas à fé católica, relatadas por todos os seus acusadores. O segundo refere-se às proposições de caráter teológico e diz respeito, sobretudo, à cristologia de Bruno. O último grupo refere-se à filosofia do nolano e está centrado em suas proposições originais em matéria de cosmologia e ontologia. Este último grupo reúne acusações que foram feitas por Mocenigo como fruto do exame dos livros de Bruno. A leitura do sumário permite-nos afirmar sem ambiguidade que, se a motivação inicial do encarceramento do filósofo pode ser circunscrita no quadro das denúncias vagas do jovem aristocrata veneziano, e parecia indicar um processo corriqueiro nos quadros de perseguição das heresias pela Inquisição, foi o caráter revolucionário da filosofia do nolano que produziu a determinação dos inquisidores em levá-lo à abjuração ou à fogueira.

Para que possamos entender a atitude de resistência de Bruno e seu desafio final, vale a pena seguir alguns passos de seu pensamento. Como não nos é possível fazer uma exposição detalhada dos pontos centrais de sua filosofia, vamos nos limitar a apontar algumas teorias, que aparecem em suas respostas aos inquisidores. Se esse procedimento não permite uma compreensão alargada de sua cosmologia ou de sua ontologia, tem o mérito de chamar a atenção para os pontos que eram considerados importantes pela Inquisição. A análise do sumário mostra que alguns temas foram recorrentes no processo: a questão da pluralidade dos mundos, a afirmação da infinitude do universo, a existência de uma “alma do mundo” e sua relação com as almas individuais, a afirmação do movimento da Terra. Nenhuma obra em particular oferece ao leitor um tratamento sistemático de todas essas questões, mas podemos recorrer a uma delas para nos guiar em nossa breve exposição. Trata-se da La cena de le ceneri, que foi citado várias vezes durante o processo e permite, ao lado de outros de seus chamados Diálogos italianos, uma compreensão dos principais  conceitos brunianos.

O primeiro dos diálogos citados faz parte dos escritos londonianos e contém a estrutura das críticas de Bruno a Aristóteles, que estavam no centro das questões dos inquisidores. O diálogo não fornece nem uma teoria acabada sobre o infinito, nem uma ontologia, que decorra da afirmação de novos princípios cosmológicos — o que é feito em seus outros Diálogos italianos —, mas mostra o alcance dessas proposições e a clareza que, já em 1584, Bruno tinha do significado de sua filosofia. Um aspecto interessante é o fato de que ele, mesmo no meio de sua vida agitada e cheia de dificuldades, tinha esperança de mostrar que o caminho que escolhera era o melhor. Ainda no primeiro diálogo do La cena de le ceneri, ele expõe um ponto de vista que vai acompanhá-lo ao longo de seu processo: “Apesar da solidão”, afirma Bruno, “o solitário pode e poderá alcançar a vitória, triunfando no final sobre a ignorância geral”.[68] Essa confiança em seu saber será sua marca durante toda a vida e terá, como veremos, um papel importante em seu último ano de existência.

No contexto do livro que estamos analisando, a afirmação de que o sábio solitário pode derrotar a ignorância faz parte do elogio rasgado de Copérnico, classificado de “grande espírito, maduro, atento e profundo”.[69] Bruno manterá essa opinião sobre o sábio polonês durante toda a vida. No De immenso et innumerabilibus, o filósofo de Nola diz que o sábio foi responsável por seu despertar, quando ainda acreditava na visão de mundo guiada pelo aristotelismo.[70]

Para compreender essa relação entre os dois pensadores, é preciso observar que a crítica ao modelo cosmológico medieval permitiu a Bruno avançar por terrenos muito mais áridos e mover uma verdadeira guerra a Aristóteles.[71] O astrônomo havia, segundo Bruno, conseguido “liberar o espírito humano”,[72] mas faltava o passo para a esfera mais complexa da metafísica, único conhecimento que conduz à busca “das coisas constantes e seguras”.[73] Ele foi para Bruno a alavanca que permitiu mover as antigas concepções e colocar o mundo em movimento. Curiosamente, ao acreditar ultrapassar Copérnico, por buscar as raízes metafísicas da revolução operada segundo modelos de investigação presididos pela confiança nas matemáticas, Bruno perdeu a trilha que levava diretamente à ciência moderna. Nesse sentido, sua contribuição ao nascimento da física moderna foi limitada, sobretudo devido à sua incompreensão do papel que a matemática poderia ter na elaboração de uma nova física.[74] Isso não invalida, entretanto, a importância de seus escritos em domínios como a cosmologia e a moral.

O tema do movimento da Terra esteve no centro das observações dos inquisidores e, em certo sentido, eles demonstraram compreender o papel que essa ideia tinha no sistema bruniano.[75] Para ele, a ideia segundo a qual a Terra era o centro do universo decorria de um engano no uso das informações fornecidas pelos sentidos. Não se trata, nesse momento do texto bruniano, de criticar o uso dos sentidos como fonte do conhecimento. Ao contrário, suas conclusões eram corretas exatamente porque ele agia “se apoiando não sobre a autoridade, mas sobre o vivo testemunho dos sentidos e da razão”.[76] Os sentidos podem se enganar, e para mostrar isso Bruno recorre às leis da perspectiva e da óptica para demonstrar as razões de nossos enganos, quando usamos nossa percepção imediata das coisas para tentar responder ao problema mais amplo da natureza do universo.[77] Esse erro pode ser corrigido pela razão, assim como ela se alimenta dos dados sensoriais para formular hipóteses. O problema aparece quando uma determinada teoria passa a ser a única forma de autoridade na matéria, fechando as portas para novas investigações.

Na continuação do diálogo ele dará o passo decisivo para o abandono da cosmologia aristotélica: a afirmação da existência de um universo infinito, não apenas como hipótese especulativa, mas como realidade. Para chegar a essa conclusão, Bruno tinha pelo menos duas fontes de inspiração, às quais ele recorre em vários momentos de sua obra: Lucrécio e Nicolau de Cusa.[78] Bruno desenvolverá a prova da infinitude do universo em seu famoso diálogo De l’infinito, universo e mondi, mas os elementos centrais de sua doutrina se espalham por toda a obra. Como observa Del Prete, nesse livro Bruno se apoia sobre dois argumentos principais para provar a infinitude do universo. Em primeiro lugar, partindo do ponto de vista da física, ele se baseia na ideia da uniformidade do espaço para mostrar que não há razão para falarmos de centro do universo nem para limitarmos os mundos. No La cena de le ceneri ele já afirmara que “não existe corpo algum sobre o qual possamos dizer de forma absoluta que ele ocupa uma posição mediana, ou extrema, ou intermediária, entre dois termos; só podemos falar da posição de um corpo relativamente a outros corpos e com relação a outros termos forjados com esse propósito”.[79]

Ora, a consequência natural é que existem inúmeros outros mundos iguais ao nosso, que “só se diferenciam pelo tamanho maior ou menor, da mesma forma que nas outras espécies dos seres vivos a desigualdade é o produto das diferenças individuais”.[80]

O segundo grupo de argumentos mobilizado para provar a infinitude do universo é de ordem metafísica. Resumidamente, podemos dizer que Bruno tira uma consequência diferente do que era largamente aceito pelos pensadores tomistas, a saber, a infinitude de Deus. Ora, para ele, um infinito em potência, no qual vontade e necessidade coincidem, só pode gerar um infinito em ato. Na verdade, ao colocar o problema do infinito no centro de sua filosofia, Bruno lança uma ponte entre a cosmologia e a metafísica. As duas pontas da equação são Deus e a natureza, e, por isso, nenhum sistema de pensamento que não dê conta de explicar a relação entre os dois infinitos pode parar de pé. A filosofia de inspiração aristotélica praticada por pensadores católicos até admitia a infinitude de Deus, mas fazia do infinito material mera possibilidade especulativa. A questão central para Bruno passa a ser a de saber como a multiplicidade de seres finitos é produzida pelo ser uno e infinito que é Deus.[81]

Para compreender a ação de Deus, que não é mais uma força exterior ao mundo, o nolano atualiza a ideia platônica de alma do mundo. No tratado De la causa, principio e uno, ele define com precisão esse conceito: “A alma do universo é princípio formal e natureza eficiente; é princípio de vida, vegetação e sentido em todas as coisas, que vivem, vegetam e sentem”.[82] O motor de todos os seres passa a ser, portanto, um princípio interno, ao qual Bruno já se referia no La cena de le ceneri, quando afirmava que “não existem outros motores extrínsecos suscetíveis de colocar em movimento esferas imaginárias e de mover corpos como se estivessem pregados nas esferas”.[83]

A conclusão de Bruno não podia ser mais direta: o universo é uno e indivisível;  Deus  se  identifica  com  o  mundo.[84] Essas  conclusões  não podiam esconder o profundo desacordo do pensador com relação às doutrinas centrais da Igreja. Mesmo se não podemos deixar de lado as complicações e as dificuldades de uma filosofia que aproxima natureza, Deus e infinito, seu caráter subversivo não pode ser negado. Bruno estava consciente do alcance de suas formulações, e mesmo de seu profundo desacordo com as Escrituras. No La cena de le ceneri ele chega a dizer que o papel da Bíblia não era o de esclarecer nossa razão natural, o que era uma forma de dizer que uma filosofia da natureza não podia se valer de nada expresso nos livros sagrados. De maneira ainda mais ingênua, ele manifesta sua grande confiança em seu pensamento dizendo que, “depois de ter refletido bastante, todos podem perceber que essa filosofia [a filosofia nolana] não somente contém a verdade, mas que ela é muito favorável à religião”.[85] Sua metafísica unitária, aliada à sua cosmologia infinitista, era uma verdadeira declaração de guerra ao pensamento dominante da Igreja católica.

Como resumiu muito bem Del Prete:

Um universo uniforme, no qual a noção peripatética de lugar foi suplantada por aquela de espaço; no qual não há mais centro nem periferia; no qual os astros são movidos por suas almas e não pelas órbitas celestes; onde os planetas são semelhantes à Terra e as estrelas são sóis circundados por outros planetas, que nos são invisíveis; um universo eterno e infinito, única imagem de um Deus, que não poderia deixar de produzi-lo. Eis a herança que Bruno deixou para os seus contemporâneos.

Uma análise detalhada do pensamento de Bruno mostraria seus pontos obscuros e contradições,[86] mas a herança que deixou foi suficiente para inscrevê-lo definitivamente na história da cosmologia ocidental e contribuiu para abalar o edifício aristotélico-tomista, que servia de refúgio para uma Igreja que não hesitava em recorrer à violência para garantir o seu poder. Nesse sentido, o processo do nolano é um acontecimento privilegiado, assim como foi o julgamento de Sócrates, para entendermos os caminhos sinuosos que dominam a relação entre saber e poder.

1599: SABER E PODER

O ano de 1599 marca uma virada no processo protagonizada em grande medida pelo cardeal Belarmino, célebre por ter participado também do processo contra Galileu e por ter tido seu processo de canonização iniciado ainda no século XVII.

Depois de tantos anos, o caso parecia cada vez mais complicado. Em 12 de janeiro de 1599, Belarmino, que era membro do Santo Ofício desde 5 de fevereiro de 1597, tomou o comando das ações, propondo que um conjunto de proposições heréticas retiradas dos autos deveria ser proposto ao réu para que ele abjurasse. Não conhecemos o teor dessas oito proposições, mas foi em torno delas que se desencadeou a batalha final.

O desaparecimento do processo é de lamentar, mas não nos leva a ficar totalmente no escuro. Afinal, as oito proposições certamente não diferiam das muitas que se acumularam ao longo dos anos e serviram muito provavelmente somente para testar a boa vontade do acusado. Caso ele aceitasse abjurar, como já havia feito em Veneza, um conjunto de proposições definitivas lhe seria submetido. O comportamento de Bruno nesse período suscitou admiração e perplexidade.[87]

Durante o ano, ele deu mostras de estar disposto a abjurar da maneira mais humilde, ao mesmo tempo que foi pouco a pouco cristalizando sua resistência aos ataques de Belarmino. No começo do ano — 15 de fevereiro —, ele aceitou as condições impostas pela Inquisição e afirmou o caráter herético das proposições apresentadas pelo tribunal. No lugar de um final rápido, o processo continuou seu percurso lento. Em abril Bruno apresentou um escrito no qual defendia sua causa. Somente em agosto Belarmino se pronunciou a respeito, acusando-o mais uma vez de manter sua fidelidade a alguns pontos de detalhe, que, no entanto, comprometiam sua intenção de abjurar. Os inquisidores continuavam a duvidar da vontade de Bruno de abdicar e declararam, sugerindo a tortura, que não compreendiam todos os aspectos do processo. Depois de sete anos de detenção, e sem fatos novos, os membros do Santo Ofício mantinham a mesma posição do início.

Foi provavelmente a profunda intolerância de seus algozes o que determinou seu comportamento a partir de setembro de 1599. No dia 16 de setembro foi lido um escrito de Bruno no qual ficava clara a contradição entre o desejo de reconhecer seus erros e a tenacidade com a qual ele defendia suas ideias. No dia 21 de dezembro a espiral de resistência do acusado chegou a seu ponto culminante. Diante de uma congregação perplexa, Bruno, durante a famosa visita dos prisioneiros, afirmou que “ele não devia e não desejava se retratar, e que ele não sabia sobre o que deveria se retratar, nem sobre qual matéria”.[88] A sorte do filósofo de Nola estava selada. Várias tentativas foram feitas para que ele voltasse atrás, mas ele seguiu determinado até a morte.

A posição de Bruno naqueles meses finais de 1599 não pode ser inteiramente desvendada pelos documentos que nos restam. Uma coisa é certa: depois de anos de cativeiro, e do manifesto desejo de se salvar, ele compreendeu que não poderia viver e salvar suas ideias. Belarmino não era nenhum tolo; longe disso, ele sabia que a filosofia de Bruno ameaçava o poder eclesiástico e, na lógica da Inquisição, devia ser destruída, para que o poder se conservasse. Foi provavelmente esse aspecto de sua luta contra a Inquisição que se tornou claro naquele ano para Bruno. Seu desejo de se salvar foi acompanhado o tempo todo pela tentativa de argumentar com seus juízes.

Sabendo que se tratava de teólogos instruídos, o nolano teve a ilusão de que era possível argumentar e quem sabe convencê-los. Seu erro foi justamente o de ter pensado sua posição como a de um oponente, que pode derrotar o outro usando com habilidade as armas que possuía. Diante de Belarmino, e de suas astúcias, ele compreendeu finalmente que não podia vencer nem mesmo no menor detalhe. A filosofia de Bruno era para ele sujeita a debates e argumentos. Mesmo com seu temperamento difícil, Bruno acreditava piamente nisso. Para a Inquisição, a filosofia de Bruno era uma arma política voltada contra seus interesses. Para que a Igreja fosse preservada, não se podia fazer a menor concessão. Preservar a vida do filósofo era possível, desde que ele mudasse de lado, que confessasse seu total fracasso. O nolano se comportou como se o processo fosse uma luta entre duas concepções filosóficas, entre dois saberes. Ele não soube perceber a tempo que o que estava em jogo era uma luta entre dois poderes. Do ponto de vista do poder, a luta é sempre entre dois adversários que visam ao poder e nunca entre saber e poder. A periculosidade do nolano estava justamente no fato percebido pela Inquisição de que a aplicação de seus preceitos determinava a queda de muitos dos pressupostos do poder eclesiástico. Bruno queria pôr em prática suas ideias, e sua vontade de ação era uma das razões de sua volta para a Itália. Mas, mesmo com toda a sua arrogância intelectual, ele acreditava que a única arma cabível era a argumentação. Depois de muitos anos, talvez ele tenha finalmente percebido que a arma da Inquisição era a força em todas as suas versões, que a única coisa que interessava a seus juízes era sua derrota total.

Ao longo de nossa exposição, tivemos a ocasião de comentar alguns momentos do processo de Bruno e seguir sua estratégia de defesa. Como religioso da Ordem dos Dominicanos, ele estava consciente das dificuldades que enfrentava e da quase certeza de uma condenação. Ao longo dos anos ele demonstrou uma vontade clara de salvar a sua vida, mas não de abdicar de suas convicções filosóficas. Como vimos, para ele os estudos filosóficos, a nova cosmologia que ajudou a desenhar, tinham profundas consequências no campo da teologia, pelo menos enquanto ciência que se ocupa de Deus, e deviam levar também a uma reforma das religiões.

O estudo da relação de Bruno com a Inquisição não deve nos conduzir ao erro de imaginar que a posição do herói é a condição natural do intelectual. O nolano foi capaz de resistir à violência da instituição repressiva e de preferir sua “filosofia” à visão de mundo defendida pelos que detinham o poder. Mas sabemos o preço que pagou e, sobretudo, como esse caminho foi difícil e sujeito às circunstâncias de uma luta desigual. Não há parâmetro razoável para comparar a atitude de Bruno com a vida normal de um intelectual moderno, ou mesmo para comparar com a atitude de Campanella, que fingiu estar louco para escapar de seus algozes, mesmo tendo de passar uma boa parte de sua vida atrás das grades.

O recurso a nosso autor é importante por servir de paradigma para o estudo de uma relação que contém sempre uma oposição inescapável e um problema da relação entre saber e poder. O herói é uma posição extrema, porque obriga o sujeito do saber a ocupar uma posição oposta àquela dos que detêm o poder e a pagar com a vida a defesa de suas convicções. Nas sociedades contemporâneas, este é um dos casos possíveis, mais comum do que desejaríamos que fosse, mas não é o único. Nos países democráticos, a oposição é muito mais sutil e pode ser vivida fora de seus extremos. Ao conduzir nossa reflexão para o terreno raro do heroísmo e da repressão brutal, aprendemos a medir corretamente os limites dentro dos quais se produz o silêncio dos intelectuais. Bruno e tantos outros foram silenciados por terem compreendido que a fusão platônica entre os dois polos é um ideal que talvez não possa se realizar jamais.

Há, no entanto, um segundo silêncio que Bruno não cansou de denunciar na figura do intelectual cínico, do acadêmico pedante, do sábio bajulador ou do adorador do poder, que dissolve a tensão entre saber e poder em favor de uma adesão desencantada às forças dominantes de uma época, às formas de pensamento único e ao apelo enganador de que nas condições normais da vida política a apatia pode ocupar o lugar da disputa aguda entre os extremos que separam o exercício livre da reflexão.

Se não podemos exigir que os intelectuais se comportem como Bruno, e talvez isso não seja nem mesmo desejável, pois sinaliza a existência de uma forma de poder que não admite contestação, podemos pelo menos esperar que, em um momento de incertezas como o nosso, eles não se comportem como aqueles que Bruno não cessou de criticar e que, seja pelo seu silêncio, seja pela adesão total às formas estruturadas de repressão da diferença, acabaram enviando-o junto com tantos outros para a fogueira.

Notas

[1] Decreto da Congregação do Santo Ofício de 8 de fevereiro de 1600, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, Paris, Les Belles Lettres, 2000, doc. 67, p. 489

[2] Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis quam ego accipiam”, Caspar Schoppe a Conrad Rittershausen, carta de 17 de fevereiro de 1600, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 71, p. 507. O autor da carta era um jovem luterano convertido ao catolicismo, que estivera presente e relata com grande precisão o acontecimento. Personagem arrogante e carreirista, seu testemunho é, no entanto, bastante confiável, tanto pela proximidade do evento quanto pela riqueza de seu relato.

[3] Para um estudo detalhado do diálogo, ver Leo Strauss, Argument et actio des “Lois” de Platon, Paris, Vrin, 1990.

[4] Cinquième constitut de Bruno, Veneza, 3 de junho de 1592, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 15, p. 121.

[5] Hélène Vedrine, Censure et pouvoir. Trois procès: Savonarole, Bruno, Galilée, Paris/Haia: Mouton, 1976, p. 64.

[6] Hélène Vedrine, La conception de la nature chez Giordano Bruno, Paris, Vrin,1967, p. 349.

[7] Para um estudo dos movimentos heréticos italianos do século de Bruno, ver Delio Cantimori, Eretici italiani del Cinquecento, Torino, Einaudi, 1992. Para uma visão pessoal do papel da heresia e da contestação na Itália da Renascença, Giovanni Artieri, Roghi e duelli: eretici, martiri, provocatori, Milão, Mondadori, 1993.

[8] Enzo Mazzi, Giordano Bruno. Attualità di um’eresia, Roma, Manifesto Libre, 2000, p. 20.

[9] Ibidem, p. 21.

[10] Angelo Mercati, Il sommario del processo di Giordano Bruno, Cidade do Vaticano, Biblioteca Apostólica Vaticana, 1942, p. 12.

[11] Sobre esse ponto, ver Carlos Antônio Leite Brandão, Quid Tum? O combate da arte em Leon Batista Alberti, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2000.

[12] Hélène Vedrine insistiu com propriedade sobre o verdadeiro racionalismo que estrutura o pensamento de Bruno em La conception de la nature chez Giordano Bruno, op. cit., p. 361.

[13] Um livro clássico sobre o tema é o de Frances A. Yates, L’art de la mémoire, Paris, Gallimard, 1987.

[14] Giordano Bruno, L’arte della memória. Le ombre delle idee, Milão, Mimesis, 2001, pp. 19-74.

[15] Ibidem, p. 34.

[16] Nesse ponto o grande clássico, apesar das críticas que sofreu e dos progressos no estudo da matéria, continua sendo o de Frances A. Yates, Giordano Bruno et la tradition hérmetique, Paris, Dervy, 1996.

[17] Giordano Bruno, L’arte della memória. Le ombre delle idee, op. cit., p. 80.

[18] Essa hipótese foi levantada, entre outros, por Bartholomess. Hélène Vedrine,Censure et pouvoir, op. cit., p. 66.

[19] Antonio Corsano, Il pensiero di Giordano Bruno nel suo svolgimento storico, Florença, Sansoni, 1954.

[20] Luigi Firpo, Introduction, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., pp. XX-XXIII.

[21] Ibidem, p. XXV.

[22] Giordano Bruno, De la magie, Paris, Allia, 2004.

[23] Giordano Bruno, Des liens, Paris, Allia, 2004.

[24] Frances A. Yates, Giordano Bruno et la tradition hérmetique, op. cit., p. 401.

[25] Deuxième Dénonciation de Mocenigo, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 3, p. 9.

[26] Giovanni Aquilecchia, Giordano Bruno, Paris, Les Belles Lettres, 2000, p. 70

[27] Ver, a esse respeito, Luigi Firpo, Introduction, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., p. XXXI

[28] Deuxième Dénonciation de Mocenigo, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 3, p. 11.

[29] Troisième constitut de Bruno, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 13, p. 61.

[30] Deuxième constitut de Bruno, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 11, p. 57.

[31] Giordano Bruno, La cena de le ceneri, em Dialoghi italiani, Florença, Sansoni,1985, vol. I, p. 48.

[32] Ibidem, p. 44.

[33] Quatrième constitut de Bruno, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 14, p. 95.

[34] Frances A. Yates, Giordano Bruno et la tradition hérmetique, op. cit., pp. 365-85.

[35] Ibidem, p. 365.

[36] Ver, a esse respeito, Charles Mopsik, Cabale et cabalistes, Paris, Albin Michel, 2003, p. 70.

[37] Giordano Bruno, De la magie, op. cit., p. 12.

[38] Ibidem, p. 61.

[39] Karen Silva de Léon-Jones, Giordano Bruno and the Kabbalah. New Haven/Londres: Yale University Press, 1997, p. 9.

[40] Quatrième constitut de Bruno, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 14, p. 97

[41] Frances A. Yates, Giordano Bruno et la tradition hérmetique, op. cit., p. 368.

[42] Ibidem, p. 373.

[43] Ibidem.

[44] Bruno negou essa acusação durante a fase romana do processo. Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 51, p. 257.

[45] Premier déposition de Giovan Battista Ciotti, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 7, p. 19.

[46] Ibidem, p. 25.

[47] Dépositon du libraire Jakob van Brecht, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 8, p. 29.

[48] John Tedeschi, The prosecution of heresy, Binghamton/Nova York:  Medieval and Renaissance Texts and Studies, 1991, p. 127.

[49] Ibidem, p. 144.

[50] Para um estudo geral da Inquisição no período que nos interessa, ver Francisco Bethencourt, L’Inquisition à l’époque moderne, Paris, Fayard, 1995.

[51] Romano Canosa, Storia dell’Inquisizione in Itália dalla meta del Cinquecento allá fine del Settecento, Roma, Sapere, 2000, vol. V, p. 211.

[52] Ibidem, pp. 225-45.

[53] Yates afirma: “A lei exigia todavia que ele fosse enviado para Roma, onde o processo se arrastou”. Frances A. Yates, Giordano Bruno et la tradition hérmetique, op. cit., p. 412. Como mostram alguns especialistas da questão, a relação de Roma com as províncias eclesiásticas era estreita e tensa. Os inquisidores romanos vigiavam as ações de seus colegas, mas não existia a obrigação de transferência de todos os processos. Ao contrário, uma boa parte dos casos era julgada em seu lugar de origem. A esse respeito, ver John Tedeschi, The prosecution of heresy, op. cit., p. 128.

[54] Já fizemos referência ao trabalho de Mercati. Estamos usando aqui a versão revisada e acrescida de novos documentos por Luigi Firpo, que serviu como referência por ocasião da publicação das obras completas do filósofo levada a cabo pela editora Les Belles Lettres.

[55] Luigi Firpo, Introduction, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., pp. X-XVII.

[56] John Tedeschi, The prosecution of heresy, op. cit., p. 132.

[57] Ibidem, p. 137.

[58] Luigi Firpo, Introduction, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., pp. LXXXIII-LXXXVI.

[59] Ibidem, p. XCIII.

[60] Ibidem, p. CXXVII.

[61] Ibidem, p. CXXXIV.

[62] Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 49, p.241

[63] John Tedeschi, The prosecution of heresy, op. cit., p. 141.

[64] Ibidem, p. 135.

[65] Romano Canosa, Storia dell’Inquisizione in Itália dalla meta del Cinquecento allá fine del Settecento, vol. V, p. 230.

[66] Décret de la Congrégation du Saint-Office, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 61, p. 451.

[67] Luigi Firpo, Introduction, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., pp. CLIV-CLVI.

[68] Giordano Bruno, La cena de le ceneri, op. cit., p. 35.

[69] Ibidem, p. 28.

[70] Giordano Bruno, De immenso et innumerabilibus, em Opere di Giordano Bruno e di Tommaso Campanella, Milão/Nápoles, Riccardo Ricciardi Editore, 1956, p.737.

[71] Para um estudo sobre o debate entre os dois filósofos, ver Stefano Ulliana, Una modernità mancata: Giordano Bruno e la tradizione aristotélica, Roma, Armando,2004.

[72] Giordano Bruno, La cena de le ceneri, op, cit., p. 48.

[73] Ibidem, p. 28.

[74] Para uma avaliação da relação de Bruno com as matemáticas, ver Hillary Gatti,Giordano Bruno e la scienza del Rinascimento, Milão, Raffaello Cortina, 2001. O capítulo 9 trás uma análise detalhada da questão, nas pp. 173-206.

[75] O tema aparece já no primeiro diálogo do Cena e se repete no terceiro. Giordano Bruno, La cena de le ceneri, op. cit., p. 90.

[76] Ibidem, p. 91.

[77] Ibidem, pp. 94-103

[78] Seguimos aqui o estudo de Antonella del Prete, Bruno, l’infini e les mondes, Paris, PUF, 1999, p. 38.

[79] Giordano Bruno, La cena de le ceneri, op. cit., pp. 103-4.

[80] Ibidem, pp. 106-7.

[81] Ver, a esse respeito, Maria Jesús Soto, Metafísica del infinito em Giordano Bruno, Pamplona, Universidad de Navarra, 1997, p. 30.

[82] Giordano Bruno, De la cause, du principe et de l’un, em Oeuvres complètes, Paris, Les Belles Lettres, 1996, vol. III, p. 13.

[83] Giordano Bruno, La cena de le ceneri, op. cit., p. 109.

[84] Giordano Bruno, De la cause, du principe et de l’un, op. cit., p. 273.

[85] Giordano Bruno, La cena de le ceneri, op. cit., p. 126.

[86] Para um estudo aprofundado da metafísica de Bruno, ver Tristan Dagron, Unité de l’être et dialectique: l’idée de philosophie naturelle chez Giordano Bruno, Paris, Vrin,1999.

[87] Muitos autores tentaram com maior ou menor sucesso compreender o processo psicológico de Bruno nesse ano capital. Ver, a esse respeito, Eugen Drewermann, Le testament d’un héretique ou la dernière prière de Giordano Bruno, Paris, Albin Michel, 1994; Jean Rocchi, L’irréductible. Giordano Bruno face à l’Inquisition, Paris, Éditions Syllepse, 2004.

[88] Visite de prisonniers au Saint-Office, Roma, 21 de dezembro de 1599, em Giordano Bruno, Documents. Le procès. Oeuvres complètes, op. cit., doc. 64, p. 463.

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