2002

Liberdade e outros direitos

por Carlos Frederico Marés

Resumo

O ser humano é o único ser vivo que estabelece regras para viver a liberdade. Inventou o Estado para protegê-la, e a liberdade foi sendo entendida cada vez mais como um direito individual regido pela razão. Depois das teorias sobre a submissão da natureza ao homem, teoriza-se o pacto social que desemboca na propriedade privada, isto é: o poder sobre as coisas se exerce quando a elas se agrega o trabalho livre. Locke justificava assim a acumulação capitalista. Voltaire dirá que propriedade é liberdade e que os camponeses “serão livres para vender seu trabalho a quem quiser pagá-los melhor”. No entanto surge uma contradição no sistema: o trabalho servil não gera propriedade legítima, mas a liberdade de contratar um trabalho não é liberdade de não trabalhar. De início o Estado pune a vadiagem. É ilegal desejar uma vida que apenas supra a própria subsistência. Depois, com a miséria crescente, e para combater o socialismo, o Estado-Providência busca organizar a força de trabalho. Mas ele vai logo degenerar em autoritarismo e ditaduras. A liberdade é agora ameaçada pelos julgamentos arbitrários, sem contar que os avanços da técnica são incapazes de acabar com a fome. No final do século XX um problema maior se apresenta com a poluição do meio-ambiente. Impõem-se novos valores, como a proteção do planeta e o direito dos povos à vida e aos seus conhecimentos ancestrais. Direitos coletivos tornam-se um novo paradigma, obrigando o ser humano a refazer o velho pacto social e o sentido da liberdade


INTRODUÇÃO

Quem é mais livre? O animal que vive nos pastos, nas matas, nos prados? A ave que ganha o céu, corre nas nuvens e pousa onde suas patas permitem e seu atávico saber ordena? A planta que estende seus braços, sustenta suas ramagens e se agarra à terra lançando raízes profundas e seguras? Ou o homem que é livre para sonhar com a terra distante e capaz de usar seu livre pensar e articular um plano para romper os grilhões que o prendem a um trabalho forçado?

A liberdade de todos tem limite, mas o ser humano é o único que a conceitua e o único que estabelece regras para vivê-la, e as muda. O animal solto nos prados corre todos os perigos da vida, o inimigo está à solta e sua liberdade é orientada para escapar, simular, fugir da garra de seus predadores. Conhece seu território e sua força, não teoriza a liberdade, apenas vive seus limites.

A ave parece mais livre. Os limites de sua anatomia a levam muito alto ou apenas permitem vôos rasantes e não podem mudar o seu destino. Não é verdade que ganha os céus e voa, voa, quanto e como queira. Umas são tão pequenas e rápidas que suas asas, perfeitas para parar no ar, não servem para longos e suaves passeios levados pela simples vontade de observar o mundo. Outras, tão exímias mergulhadoras, não podem se afastar das praias e deixar de ver distante o infinito das águas. Algumas não têm liberdade de empoleirar-se nos mais altos pinheiros para de cima olhar as coisas da terra, porque não permitem suas patas, nem as pesadas asas de caminhante.

A árvore, pobre liberdade das árvores, estica os rijos braços e se agarra à terra, quase imóvel, como condição de vida, com raízes cujo caminho estanca no encontro do alimento. É claro que sempre há plantas que vivem livres nos rios, mas cujo destino e movimento obedecem cegamente ao curso das águas.

Todas estas liberdades estão marcadas em limites de espaço e tempo. Mesmo as árvores que parecem tão prisioneiras a suas raízes migram lançando suas sementes ao longe.

Nenhum ser, entretanto, tern qualquer chance de exercer sua liberdade quando disputa o espaço e o tempo com o humano.

Os animais que vivem livres nos pastos, nas matas e nos prados, e as plantas que disputam o lugar ao sol ou à sombra com a liberdade que suas raízes lhes proporcionam, vêem com horror a chegada do machado de ferro, do arado e dos sucedâneos mecânicos e químicos que transformam a agricultura em espaço territorial proibido às plantas e animais livres. O ser humano cercou a liberdade dos outros transformando-a em sua propriedade.

A liberdade que tem sido falada, pensada e teorizada é a liberdade humana, a liberdade de todos os homens e mulheres, de cada um, independente de condição ou estado. Esta liberdade humana tem sido perseguida através dos tempos, e a modernidade a elevou à categoria de parâmetro de condição humana.

A LIBERDADE E O ESTADO

Inventou-se o Estado para ser o guardião da liberdade. Esta liberdade cada vez mais foi sendo entendida como individual, de cada um. Os outros seres, a natureza, já tinham deixado de ser livres. Antes mesmo da modernidade, e encerrada em toda doutrina cristã, ocidental e agrícola, o ser humano já havia teorizado acerca da submissão da natureza ao homem. Bartolomé de Las Casas, no século xvi, fazia eco aos antigos quando afirmava: “Dios hizo sin diferencia a todas las criaturas que son inferiores al hombre para la utilidad de ias dotadas de razón y al servicio de todas ias gentes”.[1]

A ideia era de que a natureza serviria ao homem. Desconstituída a liberdade de todos os seres, se inicia a construção moderna da liberdade de todos os homens. Cada homem haveria de ser livre para organizar-se em sociedade, para pactuar a vida coletiva. O contrato social é obra de homens livres!

Na teoria, antes do Estado, civil e organizado, havia o estado de natureza, de guerra, dizia Hobbes, de paz, contrapunha Locke. O estado de natureza é aquele onde ainda não havia sido firmado ou formado o Pacto, isto é, onde as liberdades humanas ainda não tinham se encontrado para formular as regras do convívio social.

Locke em seu Segundo tratado sobre o governo civil[2] estuda isso que chama de estado de natureza. Fundamentado em Richard Hooker, afirma que a igualdade natural dos seres humanos gera um estado de liberdade, diferente de um estado de licença. Esta diferença está marcada pelo fato de que, apesar da liberdade sem controle de dispor de si e de suas posses, a pessoa não tem liberdade para destruir-se a si mesma, nem para destruir, sem nobre razão, os seres que possui. Considera que neste estado a única lei que obriga a todos e condiciona a forma de governo é a razão. Se a lei, ou a razão, é violada, todos têm igual direito de reprimir tal violação e isto cria um estado de igualdade no qual não há superioridade nem jurisdição de um sobre os outros.

Este estado natural de liberdade, diz Locke, pode gerar um estado de guerra e de inimizade, fazendo com que haja momentos alternados de guerra e de paz. A continuidade de um estado de guerra leva à escravidão, que para Locke não é mais do que um estado de guerra continuado entre um legítimo vencedor e seu cativo. Esta situação se inverteria se houvesse um pacto para que o vencedor limitasse seu poder em troca de que o outro obedecesse às leis estabelecidas.

A partir deste raciocínio, facilmente se chega à ideia do pacto social, porque a liberdade, para o homem em sociedade, é a de se submeter ao que haja sido estabelecido por consentimento no seio do Estado. E o estabelecido, que limita a liberdade, há de ser feito em leis que sejam ditadas pelo poder legislativo de acordo com a missão que todos lhe hão confiado. Esta é a base do contrato social. Como o limite da liberdade é o contrato social, ou o conjunto de leis de uma nação, estas leis têm que ter forte dose de legitimidade, isto é, o reconhecimento de todos, porque é nela que se assenta o poder de limitar a liberdade de cada um.

Não podemos esquecer que a modernidade é irmã gêmea do mercantilismo e que, por isso mesmo, a legitimidade necessária à manutenção do contrato social são os direitos individuais. Ou dito de outra forma, os limites da liberdade individual são aceitos porque trocados pelos direitos individuais, ou pelo direito de livremente acumular bens e deles dispor pela venda ou troca.

A liberdade protegida é a individual. Todo o raciocínio da modernidade se insere no contexto da individualidade, como se a única forma de exercer a liberdade fosse o exercício de uma individualidade excludente. Tanto e tão profundamente está arraigada esta ideia que o jurista espanhol Nicolás López Calera, ao iniciar sua obra ¿Hay derecbos colectivos?, em que defende a necessidade e imperiosidade de reconhecer os direitos coletivos, afirma que diz isso apesar de seu amor à liberdade.[3] Quer dizer, considera o individualismo, ou os valores individuais, o verdadeiro critério da liberdade. A liberdade individual seria, então, o espaço/tempo em que cada ser humano age sem nenhuma restrição moral, legal ou social. É o exercício, a realização de uma vontade absoluta. Esta razão individual desembocou imediatamente e sem contemplações em propriedade privada. Basta seguir o raciocínio de Locke para se observar este fenômeno evidente.

Depois de analisar a liberdade dos seres humanos e negar a escravidão, Locke expõe sua teoria sobre a legitimidade da propriedade privada, que se assenta sobre o trabalho livre. Isto é, o individualismo, a liberdade e o trabalho consensuado são a base, para ele, da legítima propriedade. Com isso armou a defesa teórica da propriedade burguesa, absoluta, que viria a se transformar no direito fundante das constituições liberais próximas.

Até Locke a civilização cristã entendia a propriedade como uma utilidade, um utendi, a partir dele e na construção capitalista, passa a ser um direito subjetivo independente. Locke retoma a ideia de que a origem ou o fundamento da propriedade é o trabalho humano, isto é, o poder sobre as coisas se exerce na medida em que se agrega a elas algo de si, o trabalho. Isto sob o argumento de que cada um é proprietário de seu corpo, sendo o trabalho uma extensão dele. Mas este trabalho há de ser livre. A liberdade é seu fundamento. Nem o trabalho escravo nem o servil podem criar legítima propriedade, porque somente tem sentido (especialmente para o mercantilismo) falar em propriedade que possa ser transferida. Então, o trabalho livre gera uma propriedade livre, que pode livremente ser vendida, trocada, comprada. A troca, venda e compra são também obra de homens livres.

O raciocínio utilizado por Locke para chegar da liberdade à propriedade é extremamente arguto. O trabalho livre gera a propriedade, mas a ninguém é lícito apropriar-se mais do que está

capacitado a consumir, ou a ninguém é lícito ter como propriedade mais do que pode usar. Diz, então, que tudo o que uma pessoa possa reter será sua propriedade, mas se alguma coisa se deteriora sem uso, fere o direito natural de todos a usar das coisas que Deus criou na natureza. Estabelece, portanto, um limite à propriedade: “Todo lo que uno pueda usar para ventaja de su vida, antes de que se eche a perder, será lo que le está permitido apropíarse mediante su trabajo. Mas todo aquello que exceda lo utilizable, será de otro”.[4]

Nesta perspectiva, Locke aprofunda a ideia de santo Tomás de que o direito de propriedade se restringe ao uso, porque tudo o que exceda ao utilizável será de outro. Entretanto Locke agrega um conceito, o de corruptível, deteriorável, e afirma que o excedente, para não pertencer ao proprietário, tern que estar em risco de se deteriorar. Afirma então que não é a falta de uso que descaracteriza a propriedade, mas a possibilidade de que esta falta de uso o ponha em deterioração. Se uma pessoa colhe mais frutos do que pode comer está avançando na propriedade comum, mas se não são frutos deterioráveis, se são bens duráveis que não se deterioram, pode os ter à vontade. Normalmente os bens permanentemente duráveis, como a pedra, não têm utilidade humana e, portanto, não há interesse em se discutir a propriedade. Por isso, e para isso, a sociedade inventou bens não deterioráveis com valor universal, como o ouro, a prata e, finalmente, o dinheiro, já então passível de acumulação.

Locke, assim, admite que o excedente, desde que não seja corruptível, deteriorável, pode ser acumulado e, claro, o corruptível pode ser trocado pelos não corruptíveis, afirmando que a sociedade civil e o governo foram criados exatamente para garantir esta acumulação:

[…] es claro que los hombres han acordado que la posesión de la tierra sea desproporcionada y desigual. […] mediante tácito e voluntario consentimiento, han descubierto el modo en que un hombre puede poseer más tierra de la que es capaz de usar, recibiendo oro o plata a cambio de la tierra sobrante; oro y plata pueden ser acumulados sin causar dano a nadie […]. […] en los gobiernos, las leyes regulan el derecho de propiedad, y la posesión de la tierra es determinada por constituciones positivas.[5]

Locke em sua construção teórica justifica a acumulação capitalista, reconhecendo que a propriedade pode ser legítima e ilimitada se se transforma em capital, em ouro, em prata, em dinheiro. É evidente que não poderia imaginar o resultado dessa acumulação para o século XX, nem mesmo sonharia com a Revolução Industrial e a violentíssima acumulação primária dos séculos XVIII e XIX, mas defendia as ideias mercantilistas de então, garantindo a legitimidade teórica e moral para a propriedade privada, acumulável, disponível, alienável, como um direito natural.

Com a introdução da noção de bens corruptíveis, se afasta de santo Tomás, que não admitia a acumulação qualquer que fosse, e neste sentido é um verdadeiro mercantilista.[6] Deve-se notar que sobra como limite da propriedade em Locke a ilegitimidade da propriedade de bens corruptíveis não trocados, portanto, não é lícito a alguém possuir mais bens corruptíveis do que possa usar sem transformá-los em capital. Sua teoria não veria com bons olhos a queima de estoques para manutenção de preço, por exemplo. Isso significa que o capitalismo foi mais longe e extirpou do conceito de propriedade qualquer conceito ético que pudesse subsistir em Locke.

Não se pode deixar de falar na propriedade em Locke sem estabelecer uma relação muito estreita com o trabalho e a liberdade. Estas relações seriam importantíssimas para a economia política posterior, porque demonstram que a possibilidade de acumulação está diretamente relacionada com a possibilidade de adquirir, comprar, trabalho alheio. Como o trabalho gera legítima propriedade, se se compra trabalho alheio se está comprando legítima propriedade, dizia Locke. Mais tarde Ricardo e depois Marx iriam estudar o trabalho como a medida de valor das mercadorias.

Quer dizer, Locke inicia sua reflexão afirmando que a única propriedade legítima é a produzida pelo trabalho pessoal e somente pode se acumular até a quantidade corruptível. Se o bem não é corruptível é infinitamente acumulável, mas como se juntam tantos bens? Com a possibilidade de pagar pelo trabalho alheio, já que o trabalho livre produz propriedade legítima. A mesma liberdade que tem o trabalhador para gerar propriedade, tem para vendê-la. O negócio realizado entre duas pessoas livres é o contrato. Assim, o homem livre pode vender, a quem livremente quiser comprar, o seu trabalho. (Marx diria mais tarde que o que se vende não é o trabalho, mas a força de trabalho.)

Não há, na modernidade, propriedade legítima sem liberdade. Voltaire, em seu Dicionário filosófico, foi muito mais direto ao considerar a propriedade da terra um direito natural e necessário ao bem-estar de todos. Aliás o verbete propriedade é uma defesa apaixonada das virtudes da propriedade privada, de quanto a sua existência podia ser benéfica para todos, mesmo para os trabalhadores que não a podiam usufruir.

Voltaire diz que a propriedade é liberdade. Exatamente essa era a contradição da terra, a propriedade feudal. Relativa e ligada a servos não proprietários, contrapunha-se a outra propriedade nascente, de homens livres, que livremente contratavam sua força de trabalho. O novo proprietário absoluto determinava quando, como e o que plantar, visando não à subsistência dos envolvidos no processo, mas à troca vantajosa, ao mercado, o lucro. A terra estava deixando de ser a fonte de todos os bens de consumo da família, do servo e do nobre que a detinha, para ser a produtora de mercadorias que deveriam render lucros aos capitais investidos na produção. A lógica da propriedade da terra estava sendo profundamente alterada: de produtora de bens de imediato consumo para quem a trabalhava, a produtora de bens que pudessem ser transformados na nascente indústria; com isso produziria não bens consumíveis ou corruptíveis, mas capital infinitamente acumulável. E a base desta mudança é a liberdade: homens livres, contratantes, vendem o seu trabalho e compram as suas necessidades. Não é à toa que a política que nasce com a ideia é o liberalismo.

“Da Suíça à China, os camponeses possuem terras próprias. Somente o direito de conquista pode despojar os homens de um direito tão natural”,[7] dizia Voltaire em seu Dicionário filosófico. Acreditava que fosse positiva a transformação da terra em direito de propriedade exclusiva ainda que expulsasse os servos, os camponeses, porque os transformaria em homens livres, que livremente poderiam vender sua força de trabalho:

Todos os camponeses não serão ricos, e não é preciso que o sejam. Carecemos de homens que tenham seus braços e boa vontade. Mas até esses homens, que parecem o rebotalho da sorte, participarão da felicidade dos outros. Serão livres para vender o seu trabalho a quem quiser pagá-los melhor. A liberdade será a sua propriedade. A esperança certa de um justo salário os sustentará.[8]

É claro que a defesa de Voltaire está lastreada na ideia de que a sociedade civil e o governo baseados na propriedade e no trabalho livre trarão não só riqueza mas felicidade aos homens, a todos os homens. E note-se que Voltaire sempre foi considerado pessimista.

Na era dos direitos positivos, das constituições positivas, quando o Estado foi “constituído”, as suas leis esqueceram os preâmbulos e pequenas diferenças entre perecíveis ou não perecíveis, toda propriedade passou a ser direito subjetivo e até mesmo direito natural. Os tímidos limites que os pensadores imaginaram para a propriedade absoluta de terras e outros bens deixaram de existir. Os Estados constitucionais reconheceram na propriedade a base de todos os direitos e, mais do que isso, o fundamento do próprio Direito, a liberdade, passou a ser tão-somente a possibilidade de contratar trabalho ou coisas, sendo o trabalhador despojado, pela compra e venda, de tudo aquilo quanto sabia fazer para suprir a própria vida.

A LIBERDADE E A TERRA

Enquanto os teóricos elaboravam a justificativa moral, política e jurídica para a nascente propriedade fundada na liberdade, na realidade das sociedades europeias a transformação ocorria. O caso de Portugal é elucidativo.

A abundância de terras e a falta de trabalhadores que se estendia por praticamente toda a Europa, talvez ocasionada pela peste negra, pelo êxodo rural, pela expulsão dos mouros na península Ibérica, fizeram crescer o valor do trabalho humano. Especialmente somado ao interesse de produção de bens que se pudesse mercadejar, cada vez ganhava mais importância o produto da terra para vender na cidade e não o trabalho ao serviço de outrem, que apenas garantia a subsistência de quem trabalhava, isto é, o trabalho livre. Por isso, dizia Virgínia Rau ao analisar a ocupação territorial portuguesa depois da expulsão dos mouros: “Para levar o homem a romper o brejo, empunhar o machado para lutar contra a floresta e a pegar no arado para arrotear a terra brava, só a concessão de terrenos e de liberdade pessoal seriam estímulos suficientemente fortes para o conseguir”.[9]

A propriedade da terra em Portugal esteve sempre ligada à obrigatoriedade de cultivo.[10] Assim, o título de propriedade era, na verdade, a própria posse. Nesse sentido o valor da terra está diretamente ligado ao valor do trabalho, posto que nada vale a terra sem o trabalho que a fecunda. Toda a construção do direito de propriedade ou do direito de usar e dispor da terra, especialmente em Portugal, está ligada à liberdade do trabalho. O trabalho livre e a livre propriedade da terra são pressupostos do ulterior desenvolvimento da modernidade e do próprio mercantilismo.

As leis de Portugal e Espanha dessa época são abundantes em tratar do valor da moeda, do salário, normalmente estipulado em seu máximo, e das jornadas, sendo estabelecido como um dia de trabalho o exercido de sol a sol; determinava-se também a perseguição aos vadios. Todas estas medidas legislativas tinham em vista a produção agrária. É ainda Virgínia Rau que em seu precioso livro nos ensina:

Em Portugal, data do século XIII, de 1211, o primeiro diploma legislativo que manda perseguir os vadios, e da mesma centúria é também o primeiro que se ocupa do tabelamento do preço de certos gêneros e da taxa dos salários dos servidores rurais — a lei de D. Afonso III, de 26 de dezembro de 1253. A partir de então a “população que vivia de soldada estava sujeita a prescrições rigorosas para a compelirem a trabalhar”. Traça-se definitivamente uma linha divisória entre o homem trabalhando por conta própria e o assalariado. Assim como a fortuna determinava gradações e distinções de alcance jurídico entre os indivíduos da população ordinária, era também o direito de propriedade sobre bens avaliados em trezentas libras e a posse de bois para lavrar a terra que libertavam o homem da obrigação de trabalhar por conta alheia.

São inúmeras as leis, a partir daí, que tratam do trabalho e das remunerações, das obrigações de trabalhar e contra a vadiagem. Apesar disso cada vez fica mais difícil e não adiantam as leis contra os vadios e que estabelecem salários máximos; os braços livres exigem mais soldos ou se negam a trabalhar simplesmente. É nesse momento histórico que surge em Portugal a lei de sesmarias, provavelmente a primeira lei agrária da Europa digna desse nome. Com ela passam a ser condição de propriedade da terra o seu cultivo, evidentemente convivendo com o sistema feudal, e ocupação, que vai paulatinamente perdendo espaço territorial e político.

É curioso observar que o sistema que se funda no homem livre persegue e pune a vadiagem. Isso significa que o homem não é livre para não se integrar ao sistema. É ilegal, porque fere o pacto social, desejar uma vida que apenas supra a própria subsistência. O pacto social é o pacto do mercado. Por isso os índios, ciganos, ribeirinhos, quilombolas, pequenos proprietários rurais que exploram a terra com seu trabalho direto e de sua família são tão malvistos e protegidos pela lei.

Aqui aparece com clareza a contradição do sistema: não tem sentido o trabalho servil, porque não gera a propriedade legítima, é necessária a liberdade de escolha, o contrato livre de trabalho, mas a liberdade de contratar um trabalho não é a liberdade de não trabalhar, ou dito de forma mais direta, a liberdade de não produzir bens capazes de suprir mercados, isto é, de se transformar em dinheiro. A liberdade é apenas a de se inserir no mercado como produtor ou consumidor.

A liberdade individual se transforma em liberdade de assinar um contrato, para venda ou aquisição de uma propriedade, mesmo que ela seja o seu trabalho, força de trabalho ou produto de trabalho. Quem nada tem, tem seu trabalho para vender.

A terra, ela mesma se transformou em mercadoria e, então, a liberdade de andar pelos campos, matos e sertões se transformou em violação de direitos, agressões à propriedade. Como propriedade para o sistema é liberdade, andar soltos pelo mato, sem ter título de propriedade, é violação à liberdade.

Em nome da liberdade, do contrato livre ou do liberalismo, no século XIX se expulsou quem pudesse viver livre nos campos e matas, para integrala todos homens e mulheres num sistema produtivo baseado na propriedade privada. A esperança é que fosse gerado tal volume de riquezas que a todos abastasse, conforme a visão triunfalista de Voltaire. Ao contrário, gerou miséria, e tanta e em tal monta, que no final do século já se via o fracasso do sistema, a ponto de o papa Leão XIII, em 1881, preocupado com o avanço do socialismo, promulgar a carta encíclica Rerum Novarum na qual defende a humanização do contrato de trabalho, diminuindo a liberdade contratual, mas garantindo a propriedade privada, também como uma liberdade.

O liberalismo havia fracassado, se fazia necessário uma reforma, revolução ou renovação de conceitos e de atitudes para pôr fim à miséria crescente. A oferta socialista era razoável: fim da propriedade privada e economia planejada para solucionar problemas sociais, dirigida pelo Estado. A contraposição a isso teria que dar ao Estado não o poder total da economia, mas a possibilidade de intervenção na ordem econômica com a missão de proteger as populações carentes. Em nome da liberdade, uma vez mais, se entrega ao Estado força para intervir nos contratos e no exercício da propriedade privada. Uma vez mais a liberdade é cantada em prosa e verso, é invocada, é exigida.

A LIBERDADE NO SÉCULO XX

O socialismo, Bismarck, a Rerum Novarum, a socialdemocracia europeia, a Revolução Mexicana e a Russa, a Primeira Guerra Mundial, cada um a seu modo, e associados a muitos outros fenômenos sociais, promoveram a revisão da modernidade, seu aprofundamento ou a relativização do liberalismo.

O contrato totalmente livre sofreu com a Constituição do México (1917) e logo em seguida com a da República de Weimar (1919) um forte abalo: a liberdade contratual e a propriedade absoluta passaram a se subordinar ao interesse público. A liberdade propalada no século XIX, de dispor de suas coisas como lhe bem aprouvesse, de negociar suas necessidades como quisesse, retirou de muitos o fruto do trabalho e acumulou em poucos o resultado dos negócios. A conclusão foi óbvia: miséria, fome, desespero, guerra e socialismo.

Para combater o socialismo crescente, o capital e seus teóricos formularam a ideia de um Estado de bem-estar social, isto é, que pudesse prover ao cidadão meios de subsistência e garantias de reposição da força de trabalho, em um Estado forte e presente. O Estado-Providência surge como uma solução à cada vez mais aberrante miséria do capitalismo e uma alternativa imposta aos povos que já não mais o queriam suportar.

Mas o Estado-Providência pressupunha uma intervenção nas liberdades individuais. A degeneração em autoritarismo, em criação de ditaduras arbitrárias, racistas e xenófobas foi um passo curto, e a Alemanha, Itália, Grécia, Portugal, Espanha e boa parte da América Latina se viram mergulhadas em regimes de terror.

O que menos contava para esses regimes era exatamente a liberdade. Mas volta aqui a pergunta inicial, que liberdade? Se a velha modernidade tinha na liberdade contratual o seu âmago, a nova modernidade já não se importava com que o contrato fosse controlado pelo Estado, impondo, por leis, cláusulas obrigatórias, normas protetoras. A nova modernidade passou a se preocupar com a liberdade de movimentos, com a injustiça da prisão, com os julgamentos arbitrários e de exceção.

O sistema jurídico se organizou de tal modo que estabeleceu princípios de direito penal protetor da liberdade individual contra a aplicação de pena privativa de liberdade. Passou a se universalizar a anterioridade da lei penal, a presunção de inocência, prescrição, limites máximos de tempo e idades mínimas de punibilidade etc. A liberdade passou a ser protegida por um direito muito rígido, o direito das penas ou dos crimes.

Apesar de todas as violações havidas, apesar da força que se deu aos Estados, altamente militarizados, a miséria, a grande inimiga dos seres humanos, continuou incólume. Pior que isso, aumentou! A modernidade não foi capaz de acabar com a fome apesar dos sensacionais avanços da técnica, da ciência e dos materiais. Inimiga calada e perversa, a fome continuou dizimando populações, e a liberdade, seja a contratual, seja a de ir e vir, em nada contribuía para amainá-la.

No final do século XX, apesar da festa organizada com a queda do Muro de Berlim, a liberdade está ameaçada em todos os lados da Terra. Vascos, palestinos, ciganos, curdos, armênios, índios e muitos outros povos tentam sobreviver como tais e a intolerância marca seus adversários, ficando a liberdade cada vez mais distante, como um sonho que se esvanece na rouquidão da fome, da morte e da miséria absoluta. A liberdade volta a se agasalhar nas palavras dos poetas.

O final do século XX, entretanto, não vê só a liberdade individual fugir-lhe das mãos como areia fina. Um problema ainda maior se apresentava à frente da modernidade: a natureza reage aos séculos de agressão humana: a poluição das águas, do ar e da terra ameaça tornar inviável o planeta ao ser humano. A natureza fugiu da prisão!

A LIBERDADE E OS DIREITOS COLETIVOS

Os paradigmas que tão zelosamente a modernidade criara, dividindo o mundo em Estados nacionais soberanos com a função de garantir o direito individual de propriedade e liberdade, se desmoronam ante os olhos atônitos de quem acreditou que a história havia chegado ao fim e o ser humano encontrara o paraíso.

Em reação natural, evidente e inteligente, os humanos começaram a se reagrupar ou a revitalizar antigos valores comuns e criar novos valores com a preocupação de autoproteção e proteção do planeta. Os povos, esquecidos em sua dimensão étnica e cultural, começaram a reivindicar processos próprios de repartição de riquezas e defender direitos aos seus conhecimentos ancestrais e à vida. Outros grupos, vítimas de contaminações provocadas pela ânsia da acumulação capitalista ou por equívocos de planejamentos estatais centralizados, se formaram no intuito de encontrar soluções para um planeta doente, cuja causa visível é a exclusão, o desperdício e a opulência senhorial.

Surge clara no horizonte do Direito uma nova categoria jurídica: os direitos coletivos, que já não são mera soma de direitos subjetivos individuais, mas pertencem a um grupo, cuja titularidade é difusa porque não pertence a ninguém em especial. Cada um pode promover sua defesa, como se titular individual fosse, mas nunca em benefício próprio, mas de todos.

Este direito não pode ser dividido por titulares, uma eventual divisibilidade de seu objeto fará com que todos os titulares do todo continuem sendo titulares das partes. Não são passíveis de alienação, portanto não podem ser reduzidos ao patrimônio de um indivíduo, são inalienáveis e, portanto, imprescritíveis, inembargáveis, intransferíveis. Não têm valor econômico, em si, para cada indivíduo, mas somente pode tê-lo para a coletividade, exatamente por isso é inapropriável individualmente. Portanto, para a existência deste direito a liberdade individual já não conta, porque não é capaz de modificá-lo. Mas ao contrário, a liberdade do indivíduo, entendido como membro de uma coletividade (único sentido que pode ter a palavra indivíduo), se transforma em liberdade coletiva.

Os direitos coletivos surgem como novo paradigma e, em grande medida, afrontam as velhas liberdades individuais que tinham como assento e princípio a propriedade privada. Porque há um direito coletivo ao meio ambiente, o proprietário dos meios de produção já não pode produzir qualquer coisa, nem de qualquer forma; terá que observar o direito de todos de ter protegido o ar, as águas, as plantas e os bichos. O proprietário da terra poderá lavrá-la, mas já não basta produzir bens consumíveis para cumprir sua função, tem que produzir de tal forma que a vida se sustente. Aos poucos, e ainda como sonho, o que deve mudar é a lógica da sociedade. O que se deve contar não é a acumulação de bens, ainda que incorruptíveis, mas a possibilidade de vida humana no planeta.

O ser humano, para ser livre, antes tem que estar vivo. Curioso, entretanto, é que para continuar vivo depende da harmonia do planeta. Harmonia quer dizer liberdade de todos, inteligentes ou não. Mas se todos têm liberdade, cada um deverá respeitar a liberdade dos outros e o velho pacto que o ser humano fez consigo mesmo tem que ser refeito, para nele incluir outras partes que, não sabendo assinar, se comprometem a continuar vivas.

A liberdade ganhará, então, a dimensão da poesia vivida!

 

[1] Bartolomé de Las Casas, Obra indi genista. Madri: Alianza Editorial, 1985, p. 556

[2] John Locke, Segundo tratado sobre el gobierno civil: un ensayo acerca del verdadero origen, alcance y fin del gobierno civil. Barcelona: Altaya, 1994. (Todas as citações e referências a Locke estão baseadas esta edição.

[3] Nicolás López Calera, ¿Hay derechos colectivos?: individualidad y socialidad en la teoría del derecho. Barcelona: Anel Derecho, 2000.

[4] John Locke, op. cit., p. 59

[5] Locke, op. cit., p. 74. Estudo mais profundo sobre este tema desenvolveu Macpherson em seu livro The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke.

[6] Como o dizia C. B. Macpherson: “E basta nos referirmos aos tratados econômicos de Locke para vermos que era um mercantilista para o qual a acumulação de ouro era um alvo correto da política mercantil, não como um fim em si mesmo, mas porque acelerava e aumentava o comércio”, p. 216.

[7] François Marie Arouet de Voltaire, Cartas inglesas; tratado de metafísica; dicionário filosófico, p. 271.

[8] Voltaire, op. cit., p. 272.

[9] Ver Virgínia Rau, Sesmarias medievais portuguesas, p. 28.

[10] Portugal tem como data de fundação a sagração de D. Afonso Henriques como seu primeiro rei, em 1143.

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