1998

Maquiavel e o novo continente da política

por Newton Bignotto

Resumo

A descoberta de novas terras não alterou a percepção que se tinha do tempo, mas levou Maquiavel (1469-1527) a reconhecer que o novo traz perigo e que a política precisava ser pensada de outra forma. Como criar novos regimes em situações complicadas, como a da Florença de seu tempo? E o que seria uma boa fundação? A inovação depende da fortuna e da virtù do ator político. E Maquiavel retoma a tradição antiga para ousar “entrar por uma via ainda não percorrida”, colocando-se, de certo modo, no papel de fundador. A virtù do Príncipe se manifesta no produto das ações e não no cumprimento de regras supostamente universais de boa conduta. O terreno do político é sempre minado por interesses egoístas, o que não impede que uma boa ordem seja possível. Mas Maquiavel insiste no aspecto positivo dos conflitos (como na república romana que ele toma por modelo), mais importante que a busca da paz. Como os navegadores solitários que não sabiam exatamente onde nem mesmo se chegariam, o fundador em política não tem como prever tempestades em alto-mar. Assim ele deve impor-se por todos os meios, abandonando a referência tanto à razão platônica quanto à vontade divina dos medievais. Mas a ação do Príncipe não é puro relativismo: a religião faz de seus atos algo que ultrapassa uma simples vontade tirânica. A arte de fundar é uma combinação na dose certa do recurso à força e do reconhecimento da transcendência da religião. Mas só uma fundação contínua permite resistir à corrupção e ao desgaste do tempo.


Não ignoro que a natureza invejosa dos homens, sempre prontos a criticar e lentos a elogiar a ação dos outros, torna toda descoberta de novas ordens e modos tão perigosa para seu autor quanto é para os navegadores à procura de mares e terras desconhecidas. No entanto, animado por esse desejo, que me leva sem cessar a fazer o que é vantajoso para todos, me determinei a abrir uma rota ainda não trilhada, na qual, sem dúvida, terei muita dificuldade de caminhar.[1]

Dessa maneira Maquiavel abre o que foi uma das etapas mais importantes de sua viagem pelo território da natureza humana e das relações políticas. Vivendo numa Florença acostumada a saudar os feitos de seu filho Américo Vespúcio com tochas nas janelas das casas, o secretário florentino pouco se ocupou de navegação ou dos mistérios das novas terras. Ao longo de seus trabalhos não encontramos referências específicas aos descobrimentos e nada nos leva a crer que o atarefado secretário tenha encontrado tempo para se dedicar a estudos que não guardavam relação com a vida política de sua Itália natal e com os afazeres dos homens públicos. Seus esforços se concentraram na exploração dos recônditos da vida política e de suas múltiplas determinações.

Para se lançar nesses mares revoltos, no entanto, ele se serviu de ferramentas que pareciam estar ao dispor de todos: os clássicos da Antiguidade e a observação do cotidiano dos homens. Como compor nesse contexto uma nova compreensão da vida em comum que pudesse se comparar às grandes navegações? Como falar de compreensão inédita da realidade para um tempo que se acostumara a elogiar o passado? Maquiavel herdou dos humanistas do século XV a confiança nos antigos, mas teve junto com seus contemporâneos a sensação de que algo de novo se forjava nas experiências variadas que iam aos poucos transformando a face do mundo conhecido. Realizar, na esfera do conhecimento da política, façanhas semelhantes às dos navegadores nos oceanos parece ter sido sua grande ambição.

Nossa própria época, no entanto, não nos capacita a entender o que se passava na mente de um pensador florentino, preocupado com a política e com a recuperação do passado. De fato, estamos de tal maneira convencidos de que a história é o lugar do aparecimento do novo e de que é possível procurar formas diferentes das que existiram no passado para nosso modo de viver que, mesmo não apostando na ideologia do progresso, não concebemos mais um mundo que não mude suas estruturas essenciais numa velocidade espantosa. Ora, essa vertigem da história, sobre a qual tantos historiadores já falaram, pode nos fazer esquecer, não somente que o mundo não mudava tão rápido, mas, sobretudo, que mesmo o imenso impacto que teve sobre a mente dos homens o anúncio do descobrimento de novas terras não alterou de imediato a percepção que se tinha do tempo e de seu desenrolar.[2] Além do mais, as imensas novidades, que punham à prova certezas estabelecidas havia muito em diversos domínios da vida, não se propagaram a ponto de suplantar as preocupações graves advindas da instabilidade política, das guerras e das ameaças da peste.[3] Assim, no momento em que escreve Maquiavel, o sentimento de mudança se acompanha do desejo de estabilidade, que faz com que muitas das formas de pensamento do passado continuem a vigorar de maneira decisiva, mesmo em círculos cultos e dispostos a explorar novas terras imaginárias.

Para tentarmos, então, compreender a alusão às navegações logo no começo dos Discorsi, vale a pena recordar o ambiente no qual ele foi lido pela primeira vez e para o qual se destinava de forma prioritária. Maquiavel, depois de ter escrito O príncipe logo após a derrocada da República florentina, se integrou no grupo de jovens intelectuais que se reunia nos jardins da casa dos Rucellai, e que ficou conhecido como os Orti Oricelari. Na verdade, a casa da família já servira de refúgio para os letrados da geração anterior, quando o pai, Bernardo, que falecera em 1514, recebia os amigos aristocratas decepcionados com os rumos da república governada por Soderini e da qual Maquiavel era o secretário.[4] À época de nosso autor, no entanto, o ambiente já era muito diferente. Nas reuniões se encontravam tanto os partidários dos Médicis quanto os republicanos radicais e os savonarolianos.[5] Os temas eram variados e a literatura muitas vezes era mais importante do que a filosofia e a política. Seja como for, foi para esse grupo seleto de homens cultos que nosso autor escreveu e apresentou seu escrito e foi certamente pensando neles que começou os Discorsi se referindo às grandes navegações.

Mas seria prematuro tentar entender o significado da referência com base em acontecimentos ligados às grandes descobertas. De fato, talvez seja mais prudente reter do trecho, em primeiro lugar, que as descobertas dos navegadores já faziam parte do universo simbólico das classes letradas a tal ponto que serviam de elemento para uma apresentação que tinha com certeza a ambição de captar, como era próprio da época, a benevolência dos auditores. Assim, a nosso ver, o que deve chamar nossa atenção é que Maquiavel reteve das atividades dos navegadores, sobretudo, o perigo que corriam os aventureiros e não propriamente o caráter espetacular das terras, que aos poucos se incorporavam e alargavam os domínios conhecidos do mundo. De forma simplificada poderíamos dizer que Maquiavel reconhece que o novo traz perigo e que esses riscos ele está disposto a correr ao tratar de matéria nova em política. A simplicidade dessa proposição, no entanto, está longe de permitir uma compreensão real do problema que representava uma teorização do novo. Uma coisa era reconhecer a novidade, outra muito diferente incluí-la nos quadros mentais da época e sobre ela teorizar. Nossa hipótese é que essa foi a aposta de Maquiavel e a isso está ligada a fortuna crítica de seu trabalho.

Dois aspectos podem nos ajudar a esclarecer nossa hipótese. Em primeiro lugar, vale lembrar, como já mostrou Gilbert,[6] que durante o governo de Soderini e mesmo antes no período de Savonarola, os florentinos estavam confrontados com uma clara percepção de que o mundo mudava e necessitava de novas ferramentas para ser compreendido. A escolha preferencial dos que tentavam pensar a política era a razão[7] e, por isso, autores como Aristóteles, que forneciam modelos racionais para o estudo das relações sociais, eram citados e serviam de referência não apenas em debates eruditos, mas em discussões de caráter eminentemente prático levadas a cabo em diversas instâncias da vida institucional da cidade.[8] Ao lado dessa confiança no poder da razão, para esclarecer o que se passava com o mundo, estava a percepção de que forças externas podiam atuar e fugiram ao controle dos agentes, mesmo dos mais esclarecidos. Entre essas forças eram citadas Deus, a necessidade e a fortuna.[9] Ora, todas elas expunham os limites da razão e mostravam com clareza que não havia como se ver livre das incertezas do mundo. No tocante a Deus havia, é verdade, a confiança, pelo menos por parte dos florentinos, de que Ele ajudava a cidade nos momentos difíceis, como bem mostrara Savonarola no início do período de sua influência sobre os destinos dela.[10] Mas essa crença na preferência divina não era suficiente para anular a percepção de que a fortuna agia segundo uma lógica que não podia ser controlada pela razão. Mesmo para os que tentavam contê-la nos quadros de um referencial cristão de mundo, estava claro que seu poder era imenso e escapava do controle dos homens.

Podemos dizer, portanto, que a ideia do novo não estava associada necessariamente a um bem. Ao contrário, o novo só aparecia enquanto tal, para homens como Bernardo Rucellai, quando era fruto do acaso, obra de uma deusa caprichosa, que pouco ligava para os destinos dos homens e suas penas. De maneira geral, uma das figurações do novo era o produto da contingência do mundo e, portanto, se mostrava como aquilo que escapava ao poder dos homens. O perigo era, assim, a característica essencial da novidade, mesmo se nem sempre pudesse ser tomada como pura negatividade, pois, é claro, a fortuna também ajudava os homens em diversas situações.

O segundo aspecto diz respeito à mudança de comportamento que ocorreu em Florença com a queda da República. A velha aristocracia continuou em grande medida alijada do poder. Os jovens, muitos dos quais participavam das reuniões dos Orti Oricellari, mantiveram intacto o velho sonho de renovação que acompanhava a política florentina desde o final do século XV. Esse desejo de renovação, que muitas vezes era expresso por meio de longos debates sobre questões constitucionais, tinha em Maquiavel um guia quase natural. Como mostra Albertini, referindo-se aos jovens auditores dos Discorsi: “Indubitavelmente Maquiavel representou uma das experiências decisivas de suas juventudes: uma personalidade fascinante, capaz de reunir a sensibilidade pelos problemas atuais, a experiência política e a capacidade de acreditar em uma renovação política e espiritual”.[11] Mas essa liderança natural não tornava menos perigosa a empresa de pensar novas formas políticas. No contexto italiano, colocar o problema da melhor forma já implicava uma tomada de posição, uma vez que não se concebia a busca pela melhor constituição e pelos melhores exemplos como um simples debate entre eruditos. Além do mais, a geração dos Orti Oricellari havia substituído a crença na razão pelo elogio da força e o gosto pelas ações radicais.[12] Maquiavel conhecia seus companheiros e certamente nutria a esperança de convencê-los do acerto de suas proposições.

Existem evidências de que nosso autor foi plenamente convincente quanto a seus própositos iniciais. Nardi, um dos frequentadores do círculo de debates, dizia:

[…] e a Cosimo e aos outros companheiros já tinha escrito e dedicado Nicolau Maquiavel seus Discorsi, obra de novo argumento e ainda não tentada, que eu saiba, por ninguém. Porque o dito Nicolau era muito amado por eles, tendo recebido mesmo, como sei, algum emolumento. De sua conversa se gostava imensamente, sendo todas suas obras objeto de grande apreço, de tal forma que dos pensamentos e ações desses jovens Maquiavel não pode ser despido de toda responsabilidade.[13]

Que ele tenha convencido seu auditório de que estava prestes a partir para uma grande aventura, pode ser depreendido das palavras que acabamos de citar. Quais eram as terras que pretendia explorar é algo que não se revela de imediato. Se seguirmos, no entanto, as trilhas do texto, veremos que o primeiro tema abordado será o da criação de novas formas políticas. Ora, para Maquiavel “não há nada mais difícil de empreender, de resultado mais duvidoso e de conduta mais perigosa do que a introdução de novas instituições”.[14] Assim como a travessia dos grandes mares tornava as aventuras marítimas no Mediterrâneo algo ultrapassado e sem sentido, pensar as novas formas políticas no contexto da época parecia ser o exercício intelectual mais vigoroso e arriscado a que um pensador podia se lançar, pois o obrigava não só a negar o valor de referência da tradição como afirmar a capacidade de teorizar sobre a política em toda sua extensão.

A recepção das obras de Maquiavel demonstra que de fato ele tinha uma grande ambição ao escrevê-las e que a navegação que pretendia empreender podia se identificar com essa meta grandiosa.[15] Como não é possível no espaço de um texto nem mesmo esboçar uma visão geral de seu longo percurso, vamos concentrar nossa atenção na seguinte questão: de que forma é possível pensar a criação das novas formas políticas? Como dar conta na teoria do que desafia os poderes normais dos homens e altera suas relações com o tempo? Em termos clássicos vamos procurar em Maquiavel o correspondente a uma teoria da fundação. Ora, pensar esse tema implica delimitar o terreno no qual os homens realizam as tarefas inerentes ao ato de gestação, e pensar não só as consequências desse passo extremo mas também os vínculos que os atores políticos estabelecem nesse momento com o passado e com o futuro.

O PRÍNCIPE NOVO

A primeira hipótese que devemos investigar é a de que o estudo da figura do príncipe novo, que segundo vários autores representa o núcleo do tratado mais conhecido de nosso autor, fornece o lugar correto para se pensar a questão que nos interessa.[16] De fato, em sua obra, Maquiavel se propõe a estudar a criação de novos regimes em situações extremamente complicadas. O que devemos nos perguntar é se as situações analisadas nos primeiros capítulos do Príncipe podem ser tomadas como uma teorização da fundação de novos regimes ou se o objeto das análises difere do que poderíamos chamar, sem muita precisão ainda, de fundador ideal.

Nosso ponto de partida será a afirmação de Pocock de que O príncipe é um tratado sobre a “inovação” e de que ele comporta uma tipologia dos inovadores.[17] Como observa o intérprete, a escolha desse eixo temático impõe a Maquiavel o desafio de pensar a imersão do ator político no reino da fortuna, o que é inevitável no caso dos que pretendem alterar a ordem vigente.[18] Ora, como sugere Pocock e de maneira ainda mais radical Lefort,[19] ao colocar o problema da mudança dos regimes com base na lógica da fortuna, Maquiavel insere no texto uma outra variável essencial que é a da virtú do ator político. Ou seja, na verdade, a escolha feita é pela polaridade, já conhecida pelos humanistas,[20] e não simplesmente pela consideração da importância da instabilidade do mundo dos homens representada pela figura da deusa romana.

Para chegar a uma resposta convincente para nossa questão, parece­nos que uma boa estratégia é a de analisar os casos mais extremos da criação dos novos principados, quando o príncipe parte para a criação de um regime sem poder contar com as armas fornecidas pela tradição e pelos costumes. Essas situações, descritas sobretudo a partir do sexto capítulo do Príncipe, são interessantes exatamente porque expõem o problema da fundação em sua situação mais difícil, ou seja, aquela na qual o confronto entre virtú e fortuna ocorre no terreno ideal para ser observado pelo estudioso da política.[21]

Logo no começo do capítulo, Maquiavel explicita as condições necessárias para uma boa compreensão da situação dos novos regimes: “Digo, pois, que nos principados novos, nos quais há um príncipe novo, se encontrará mais ou menos dificuldade para conservá-lo segundo seja mais ou menos virtúoso aquele que o conquistou”.[22] Ao enumerar, no entanto, os que passaram para a história na condição de príncipes que conquistaram sem a ajuda da fortuna, ele cita personagens de uma envergadura diferente dos exemplos que dominam seu tratado. Seus heróis são ninguém menos que Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo. Estamos sem dúvida diante dos grandes fundadores e temos todas as razões para concentrar nossa atenção em suas ações, se quisermos descobrir o pensamento de nosso autor sobre a questão.

Mas o que nos revela o capítulo? Depois de enumerar os feitos de Moisés, e de mostrar quão difíceis foram as tarefas desses atores, somos confrontados com um enunciado de caráter geral: “Se quisermos raciocinar corretamente sobre essa questão devemos examinar se esses inovadores se apoiam sobre suas próprias forças ou se dependem de outros; isto é, se para executar suas obras têm necessidade de rezar ou podem recorrer à força”.[23]

Maquiavel não hesita em dizer, numa crítica direta a seu contemporâneo Savonarola, que apenas podem sobreviver os que sabem e podem recorrer à força quando necessário. Os profetas desarmados estão destinados ao fracasso, como bem demostrara a história recente. O que nos interessa, no entanto, é que nesse momento do texto encontramos um paradigma da boa fundação, daquela operada pelos grandes homens: ela ocorre sempre quando a dependência em relação aos caprichos da fortuna é mínima e quando a virtú é tal que sabe migrar do território do convencimento para o da força sem tergiversar.[24] Esse quadro geral mostra que podemos estabelecer uma hierarquia dos inovadores, como quer Pocock, e que essa hierarquia nos fornece uma linha de continuidade preciosa entre os fundadores, os profetas e os príncipes inovadores.[25] O caso exemplar, portanto, é o dos que enfrentam a maior dificuldade possível e sabem vencê-la “permanecendo potentes, seguros, honrados e felizes”. Os príncipes que quiserem sobreviver e inovar devem, assim, escolher por modelo os grandes fundadores, pois um dos ensinamentos do pensador florentino é justamente que eles não pertencem a um mundo diferente, mas ao mesmo universo de dificuldades e desafios.

Que conclusões podemos retirar então, desse capítulo, para nosso propósito? Nossa primeira conclusão parcial é a de que o estudo da fundação é o estudo da virtú nas condições extremas da vida política. Aquela na qual nenhum fator positivo externo vem corroborar os esforços dos atores em sua tarefa de criar novas formas de vida em comum. Mas é óbvio que não podemos pretender chegar a um saber teórico sobre como produzir tal virtú. Ela pode ser objeto de nossas análises apenas na medida em que a história nos fornece exemplos de sua existência. Assim, resta ao estudioso da política se debruçar sobre os fatos do passado, que narram os acontecimentos memoráveis de criação de novos regimes, para tentar construir um saber objetivo sobre como fundar ou como produzir uma inovação radical no reino das cidades existentes. Tal saber, veremos adiante, não pode ser confundido com o saber do próprio fundador, mas ele é o conhecimento racional possível sobre a questão que nos ocupa.

Se nossa conclusão é correta, podemos agora nos perguntar se o príncipe fornece uma teoria que responda às nossas indagações. De fato o livro continua explorando o par conceitua! que nos pareceu essencial para uma abordagem correta do problema da criação. Mas os exemplos seguintes não contêm outros casos que pudessem se encaixar no modelo extremo do fundador, que se ampara na própria virtú.

O sétimo capítulo inverte a premissa do anterior e lida com os inovadores que se amparam na boa fortuna. O exemplo escolhido é o de César Borgia,[26] príncipe não destituído de virtú, mas que se viu derrotado pela própria fortuna que o colocara num ponto elevado da vida política italiana. Seu caso demonstra que a inovação pode ter um preço alto para os que se lançam em uma aventura na qual nunca é possível controlar todas as variáveis. Com ele, no entanto, não retornamos ao universo privilegiado dos grandes fundadores. Se não há como negar que existe uma continuidade entre os diversos inovadores, que são objeto de estudo do Príncipe, também não podemos deixar de notar que ao sair do território privilegiado de homens como Rômulo, estamos adentrando uma terra que não possui as mesmas possibilidades daquela com a qual se depararam os grandes atores políticos do passado.

Talvez pudéssemos formular de outra maneira a ideia de que a obra mais conhecida de nosso autor é um tratado sobre a inovação. Podemos manter nosso acordo inicial com Pocock, introduzindo, todavia, uma interpretação diferente da hierarquia dos inovadores proposta por ele. A continuidade apontada existiria quando consideramos os atores que se lançam na cena pública pela conquista de novos espaços. Ela não teria, no entanto, o mesmo significado quando o objeto é o saber possível sobre a criação de novas formas políticas. O inovador é o ator que tenta romper as barreiras de um mundo já povoado pelo embate entre a fortuna e a virtú e dele se aproveita para realizar suas próprias obras. Os fundadores, que agem seguindo apenas a própria virtú, fazem algo mais. Eles possuem em comum com os inovadores, e por isso pertencem a seu universo, o fato de tentar provocar mudanças no curso do mundo segundo um plano que a eles pertence. Eles desafiam igualmente a tendência dos velhos regimes de conservar suas instituições para evitar a ação do tempo. Mas ao abrir a caixa de Pandora, os fundadores não querem só inovar; eles querem criar a melhor forma possível para resistir ao poder devastador da passagem do tempo e romper com os laços do passado. É nesse mundo inexplorado que se situa, a nosso ver, o verdadeiro problema teórico da fundação, que não se confunde inteiramente com o da inovação, embora partilhe o mesmo terreno e possa ser formulado com base nos termos gerais que permitiram a Maquiavel pensar o príncipe novo.

Estabelecer uma diferença entre a fundação das repúblicas e as conquistas que instituem novos principados implica, é claro, uma tomada de posição em relação à interpretação da obra maquiaveliana.[27] A principal consequência é a consideração de que só o estudo da obra dedicada às repúblicas pode nos ajudar a construir um conhecimento coerente sobre a criação de novas formas políticas em condições extremas e ao mesmo tempo adequadas ao aparecimento do regime mais potente. De um outro ponto de vista, podemos dizer que a temática da fundação lida com a introdução de novas formas no tempo, enquanto a inovação descreve a situação mais geral da interação das cidades existentes com o tempo já instituído da história.

Nossas considerações nos permitem compreender por que Maquiavel não retorna às figuras do passado depois de tê-las erigido em modelo no sexto capítulo. Na verdade, nessa altura do texto, ele assinalou uma rota pela qual passaria alguns anos depois, mas que não podia ser pesquisada sem mudar inteiramente de rumo. Trata-se, portanto, de uma continuidade e de uma ruptura. Continuidade entre os atores que deviam lidar com a fortuna e ruptura entre os que dela dependiam e os que podiam se fiar apenas em sua própria virtú. Essa grande navegação pelas terras desconhecidas das potencialidades da condição humana e de seus riscos maiores, ele empreenderia com armas diferentes das usadas na construção da figura do príncipe novo.

Devemos, assim, retornar ao nosso ponto de partida para continuar nosso percurso.

RETORNO AOS “DISCORSI”: A IMITAÇÃO

O tema da fundação comporta uma necessária referência à questão do saber ou, mais especificamente, ao saber possível nos domínios da política. Nos clássicos gregos essa referência se torna mais importante do que os problemas práticos próprios à criação de uma nova forma política, uma vez que a busca do regime ideal implica uma sabedoria que não pode ser pensada apenas do ponto de vista objetivo da criação de novas leis, mas por uma referência direta à busca da verdade e da transformação dos diversos atores sociais envolvidos no processo político por uma paideia adequada. Nosso desafio agora é, portanto, o de saber de que maneira Maquiavel retoma certos pontos da tradição e os transforma, dado que vamos partir da tese de que há nele uma ruptura radical com o passado.

O leitor que parte em busca de uma “teoria da fundação” em Maquiavel tem logo no prefácio do primeiro livro dos Discorsi o texto com o qual começamos nossa exposição, uma demonstração da importância da questão para o autor. Com efeito, a primeira afirmação do secretário florentino é a de que pretende se aventurar por terras novas à procura de “novas ordens e modos”, mesmo conhecendo a malignidade da natureza humana e sua propensão à crítica e ao desprezo pelo trabalho alheio. Postura radical e explícita, que corre o risco de transformar Maquiavel no alvo de todas as críticas, pois ele não nega que vai “entrar por uma via que ainda não foi percorrida”, mesmo com todas as dificuldades que se anunciam.

Ora, esse começo é essencial não só pelo tom ousado mas porque confirma, ainda que de maneira indireta, que o objeto de seu livro é o estudo da criação de novas formas de governo. O que chama a atenção, no entanto, não é o anúncio de que a fundação está no centro de suas preocupações, mas o fato de que da maneira como Maquiavel coloca as coisas nesse início o leitor é confrontado com a ideia de que pode ser ele o fundador, uma vez que não hesita em dizer que vai entrar por vias desconhecidas e que seu discernimento pode não ser o mais adequado.

Alguns intérpretes já levantaram a hipótese de que o verdadeiro “príncipe novo” era o próprio Maquiavel. Tal hipótese se baseia em grande medida no fato de que O príncipe desmantela de ponta a ponta a reputação dos homens políticos italianos, que pareciam dotados de capacidade de ação aos olhos dos contemporâneos do secretário florentino, mas também porque, nesse movimento crítico, apenas a detenção de um certo saber parece propiciar os mecanismos para se enfrentar as diversas forças em luta no campo da política. Não deixa de ser razoável aos olhos dos leitores a ideia de que, se essa afirmação é verdadeira, ninguém melhor do que o próprio Maquiavel para ocupar o lugar do criador de novos principados. Ora, nos Discorsi o que é apenas uma possibilidade no Príncipe se enuncia com todas as letras logo no Prefácio: Maquiavel se coloca no lugar do fundador.[28]

A ousadia, no entanto, é tamanha que devemos nos precaver quanto ao seu verdadeiro significado. De fato, logo depois de ter anunciado o caminho das novas terras, nosso autor coloca em questão sua capacidade de trilhá-lo, transformando sua habilidade em descobrir novos “modos” em mero e modesto ato da antecipação das necessidades do tempo presente. Esse primeiro movimento, visando afastar a suspeita de uma pretensão desmedida, se completa quando Maquiavel, repetindo o lugar-comum do humanismo cívico, afirma que o verdadeiro caminho é o da imitação dos antigos. A crítica que parecia ser enunciada de um ponto de vista verdadeiramente novo se reduz ao elogio dos antigos e de sua virtú, o que estava longe de chocar os auditores dos Orti Oricellari. Assim, ao escolher comentar os livros de Tito Lívio, pretende aumentar a utilidade desses estudos, embora a empresa seja difícil: “[…] ajudado por aqueles que me encorajaram a portar esse fardo, espero levá-lo suficientemente longe para que reste pouco caminho a ser percorrido até o objetivo final”.[29]

O leitor que, surpreendido pelas declarações iniciais, se sentir apaziguado por esse apelo à imitação, terá certamente caído na armadilha maquiaveliana que, anunciando um novo mundo, se apoia na força da tradição para expô-lo à luz do dia. Apelar para o passado como forma de convencimento não muda em nada a proposta inicial e nem anula o que já foi dito, apenas sugere que as ferramentas necessárias para levar adiante tão grande tarefa se encontram disponíveis, embora, como observa Maquiavel, os homens políticos de seu tempo são pouco hábeis no manuseio desse arsenal. Criticando seus contemporâneos, por não se servirem dos instrumentos necessários para a fundação de novas repúblicas, ele observa que o conhecimento das coisas antigas tem um estatuto semelhante ao do conhecimento das coisas naturais, pois, ao não procurar imitar as ações dos antigos, agem “como se o céu, o sol, os elementos, os homens tivessem mudado o movimento, a ordem e a potência em relação aos de antigamente”.[30]

A última afirmação deve ser nuançada, pois nada indica que Maquiavel estivesse preocupado com uma teoria das coisas naturais. Ela implica, no entanto, a confiança de que a empresa proposta não é desmesurada e que pode se ancorar numa forma específica de conhecimento e ser o objeto dos discursos que se seguirão.

FUNDAÇÃO E NECESSIDADE

Depois do apelo inicial, o tom do discurso maquiaveliano muda, para se adequar ao longo fôlego das reflexões que se seguirão. A mesma sinuosidade da introdução, no entanto, será a marca da obra que continuará seu comércio com a tradição e seu movimento de distanciamento e de ruptura. Ao falar do nascimento de Roma, Maquiavel diz que as repúblicas podem ser fundadas ou por um habitante do local ou por um estrangeiro, o que nos permite estabelecer uma classificação irrefutável dos diversos fundadores de acordo com sua origem. Mas seguiríamos um falso caminho se acreditássemos que essa classificação, com sabor levemente aristotélico, tem um significado especial ou um alcance teórico importante. O que Maquiavel visa é sobretudo mostrar a exemplaridade romana e descartar Florença como modelo de fundação livre. Usando o mito florentino da origem sem amarras da cidade, ele procura mostrar de um lado a importância da fundação livre, de outro que sua cidade natal não podia aspirar a esse título.[31]

Mais importante é a descrição que faz da liberdade do próprio fundador: “São livres os edificadores de cidades quando alguns povos ou sob o poder de um príncipe ou por si mesmos são obrigados pelas doenças graves ou pela fome ou ainda pela guerra a abandonar a pátria e procurar novas terras”.[32] Pode parecer estranho que a liberdade do fundador seja descrita com base nas condições objetivas de sua obra e que a necessidade seja escolhida como o parâmetro para medir a liberdade. Mas é justamente nessa escolha que se manifesta a coerência do discurso maquiaveliano. Se a liberdade do fundador fosse uma condição subjetiva, e se devêssemos medi-la a priori para determinar a qualidade de seu trabalho, estaríamos diante de uma curiosa teoria, ou de uma metateoria da fundação, que nos permitiria enunciar um saber positivo sobre a origem das formas políticas, anterior à ação efetiva de fundação. Ou, dizendo de outra maneira, o saber do legislador seria secundário em relação ao saber do filósofo, que sobre ele se manifestaria de forma direta e positiva. A arte da fundação seria uma arte derivada, dedutível de conhecimentos que escapariam ao próprio ator que a efetua. Ora, essa hipótese implicaria ou a aproximação de Maquiavel com os clássicos gregos ou a incoerência de sua obra. Como as duas possibilidades nos parecem absurdas, preferimos acreditar que Maquiavel tem razão em afirmar que a liberdade do fundador está associada à necessidade, pois só nessa condição não existe a alternativa da conservação. O fundador que age sob o império da necessidade, está confrontado com um dilema do qual não pode fugir: ou cria uma forma política capaz de resistir ao tempo e às ameaças dos outros povos, ou está condenado à dependência e à morte.

A liberdade aqui é extrema, pois seu oposto é necessariamente a servidão ou a morte. Por isso, não faz sentido falar de um saber anterior: diante da alternativa proposta, a reflexão sobre a fundação é sempre posterior e a medida do conhecimento do fundador é feita a partir do resultado de sua obra, ou para usar os termos de Maquiavel, pela manifestação de sua virtú. Aliás, ele mesmo resume a situação extrema na qual se encontram os grandes fundadores: “É nesse caso que se conhece a virtú dos edificadores e a fortuna do edificado: a qual é mais ou menos maravilhosa segundo é mais ou menos virtuoso aquele que esteve em seu princípio “.[33]

Essa última afirmação lança nova luz sobre um dos pontos essenciais da teoria maquiaveliana da fundação. Como vimos, a liberdade do fundador se manifesta nas condições extremas da pura necessidade. Ora, se estamos certos em dizer que não existe em Maquiavel um saber abstrato que preside a ação de criação das formas políticas, devemos nos perguntar pelo estatuto da própria obra que estamos analisando. A afirmação citada nos permite escapar do dilema de uma teoria que se pronunciaria sobre aquilo que assevera não ser possível falar. Na verdade, para Maquiavel, o objeto de estudo não é um suposto saber do fundador, mas sua virtú, e essa se manifesta no produto das ações e não no cumprimento de regras supostamente universais de boa conduta. Assim, podemos abandonar, temporariamente, a ideia de que Maquiavel deseja “se colocar no lugar do”, pelo menos no sentido que daríamos a esse gesto no interior da obra platônica. Nosso autor pode falar da fundação sem necessariamente desejar fundar, pois seu paradigma é o da ação no tempo e não o de um espaço vazio no qual se forja o sentido da existência de um povo. A verdadeira polaridade não é liberdade-necessidade, mas sim virtú-necessidade, e nada indica que para falar da virtú seja necessário ser virtuoso.

Não estamos com isso descartando pura e simplesmente a hipótese de que Maquiavel manifesta ambições no começo de seu livro que podem ser interpretadas como sendo as de um fundador; estamos mostrando que, se esse é o caso, o caminho maquiaveliano é tortuoso e sua descoberta depende de uma análise demorada de seu discurso. Por enquanto, podemos afirmar que a escolha de Roma como modelo é plenamente justificada se considerarmos os parâmetros que foram propostos, e que podemos seguir nossa busca dos passos que constituem um saber sobre a fundação.

FUNDAÇÃO E TEMPO

No início do segundo capítulo do primeiro livro, Maquiavel explicita o que entende por fundação ideal:

De tal forma que se pode chamar feliz a república que foi obra de um homem tão prudente, que lhe deu leis, que lhe permitem viver seguramente sem que as mesmas sejam corrigidas. E se vê que Esparta observou as suas por mais de oitocentos anos sem corromper-se e sem tumultos perigosos.[34]

Sobre essa condição podemos fazer duas observações. A primeira, e que faz eco às nossas conclusões anteriores, é que o ato da fundação cria sua própria coerência e será tanto mais forte quanto maior for a unidade de seus princípios. Daí o elogio feito a Esparta e a seu fundador, que conseguiu impor leis que duraram longo tempo. Mais uma vez, o secretário florentino não nos fala do ponto de vista de Licurgo, mas dos que apreciam sua obra e a consideram perfeita. A segunda observação diz respeito à condição que Maquiavel considera como sendo a de maior felicidade: ter durado, sem se corromper, mais de oitocentos anos.

A eficácia de uma fundação pode assim ser medida por sua resistência à passagem do tempo, sem que sejamos obrigados a enunciar condições abstratas que deveriam ser cumpridas por uma boa constituição. O exemplo escolhido – Esparta – tem um significado especial, porque sabemos que também Platão o utilizou para descrever a paideia dos habitantes do regime ideal. No caso de Maquiavel, a cidade é julgada feliz, e seu fundador transformado em paradigma, pela duração e resistência que manifestou ao tempo. Suas instituições não são citadas no capítulo em questão, mas são analisadas em outros trechos dos Discorsi, sendo sempre abordadas como produto de uma vontade superior sobre a qual só podemos falar porque conhecemos a objetividade de sua obra. Nada indica, no entanto, que possamos imitar suas formas. O que está em questão é o sentido dos atos de Licurgo, que parecem conter o essencial de uma boa fundação. Já para Platão, Esparta interessava na medida em que formava seus cidadãos de uma maneira que deveria ser imitada na construção do regime ideal. Embora a cidade não fosse ela mesma ideal, continha elementos do regime que merece o nome de ideal. De maneira aproximativa, podemos dizer que no caso de Maquiavel o primado é dado ã ação e o caráter exemplar é deduzido do que a ação nos mostra; no caso de Platão, a ação interessa somente na medida em que manifesta traços de uma composição ideal, que é acessível em primeiro lugar a um saber que merece o nome de teórico. Seja como for, nessa comparação surge um elemento que sabemos ser fundamental em toda teoria da criação: o tempo. Esse elemento apareceu, pela primeira vez, quando Maquiavel fez o elogio da resistência da constituição dos lacedemônios à corrupção, mas é na consideração da possibilidade que certas formas políticas têm de se tornarem melhores que seu significado se manifesta por inteiro: “As outras, que não tiveram uma fundação perfeita mas que tiveram um princípio bom e apto a tornar-se melhor, podem, pela ocorrência de acidentes, tornarem-se perfeitas”.[35] A possibilidade de que um regime possa se transformar, assumindo uma feição que não lhe foi dada no momento inicial, acaba com a ilusão de que apenas as cidades privilegiadas por um ato único e perfeito no começo são o objeto de nossa atenção. Ao contrário, Maquiavel parece sugerir que essas são as menos interessantes para o estudioso, na medida em que não podemos chegar ao mesmo saber de seu fundador, que se encontra fora do tempo. As que são transformadas no tempo são nosso verdadeiro problema, pois se mostram numa dimensão que nos é acessível a partir do parâmetro que vimos ser o adequado para a análise da questão que nos interessa: a dimensão da ação. Isso não retira a importância de Esparta, mas, como dirá Maquiavel, faz de seu sucesso um mero produto do acaso. Ora, para o teórico interessam as mudanças efetuadas nas condições mais difíceis, lá onde necessidade e virtú se encontram reunidas, o que faz com que essas formas nunca se ordenem sanza pericolo.

OS CONFLITOS SOCIAIS

Se não podemos ter o mesmo saber dos grandes fundadores, também não podemos afirmar que nosso autor se contenta com afirmações genéricas, que sugeririam um ingênuo relativismo. Ao contrário, delimitado o lugar do qual podemos falar sobre a fundação, ele se lança numa longa caminhada de construção de um discurso coerente sobre a criação das formas políticas. O primeiro passo é dado, definindo a natureza dos homens, ou melhor, o que dela se manifesta, quando está em questão o domínio da política e das leis. As afirmações de Maquiavel, nesse terreno, são diretas e sem ambiguidades, e ele as repete em várias partes de suas obras: “Como demonstram todos os que se ocupam de legislação e como a história está cheia de exemplos, é necessário, para os que criam as leis de uma república, supor os homens ruins e dispostos a praticar a maldade sempre que lhes for permitido e tenham a ocasião”.[36] Ao contrário do legislador dos clássicos gregos, que tinha por tarefa montar um sofisticado sistema de educação, capaz de colocar o bem comum como parâmetro da ação de todos na cidade, e isso apesar das diferenças inevitáveis existentes entre os homens, o fundador de Maquiavel opera num terreno minado, no qual não é a razão que preside nossas relações com a coisa pública, mas os interesses egoístas de cada um e o medo.

Essas afirmações, no entanto, não ocupam o mesmo lugar da antropologia platônica, sustentada pelas longas discussões sobre a natureza da alma, pela análise detalhada dos comportamentos associados aos diversos regimes, pela íntima conexão entre a ontologia do Bem e o estudo da natureza humana.[37] O secretário florentino não coloca uma antropologia negativa no lugar da antropologia dos clássicos gregos. O que ele procura mostrar é que, no tocante à política, ou às relações sociais, não podemos esperar nada de positivo a priori dos homens que pudesse indicar por exemplo uma propensão para o bem público. Isso não quer dizer que não sejamos capazes de fazer o bem em conjunto, mas sim que, quando isso acontece, e o modelo romano é a prova dessa possibilidade, devemos atribuí-lo à perícia dos legisladores ou à maior virtude de um povo, o que nada tem a ver com a natureza dos homens tomados individualmente.

O quarto capítulo se abre justamente colocando a questão da virtude romana. Ora, para que o discurso de Maquiavel fosse coerente era preciso aceitar a exemplaridade romana, e para que ela pudesse servir de paradigma para as investigações sobre a política era necessário descobrir uma origem que não pudesse ser atribuída a uma peculiaridade da natureza dos romanos.

Diante da evidência de que o povo romano havia manifestado uma virtude superior na política, a tradição havia consagrado como explicação duas causas: a primeira atribuía à boa fortuna a origem da grandeza romana, a segunda à sua virtude militar. Ora, em ambos os casos estamos diante de fatores que não podem ser explicados racionalmente e que, portanto, não podem servir para ancorar uma nova teoria sobre a política, como era a ambição manifesta de Maquiavel: A solução de nosso autor, longe de desprezar o ponto de partida tradicional, procura integrar os dois fatores: “Que lá onde existe uma boa milícia devem existir boas leis e raras vezes ocorre que não haja também boa fortuna”. O que é pura abstração, se tomado isoladamente, torna-se compreensível se ligarmos os dois fatores pela ideia da criação da buona ordine. Ora, o que Maquiavel sugere, e que escapa da indeterminação escondida nas soluções tradicionais, é que a melhor maneira de se compreender os sucessos e fracassos dos homens em suas vidas em comum é partir da análise de suas ações concretas e de seus resultados, e não de suposições vagas que não podem ser compreendidas por instrumentos analíticos disponíveis para os que querem estudar o mundo dos homens.

O passo seguinte será o de transformar o que é pura negatividade no homem em fator positivo na vida política. Desde o título do capítulo, Maquiavel sugere uma ruptura com a tradição ao afirmar que a desunião entre a plebe e o Senado fez de Roma uma cidade livre e potente. Mas é ao dizer que toda cidade está partida ao meio em dois humores inconciliáveis que essa ruptura se consolida: “[…] que se considere que em todas as repúblicas existem dois humores diferentes: o do povo e o dos grandes. Todas as leis favoráveis à liberdade nascem da desunião entre eles[…]”.[38] O que era apenas recusa de uma antropologia, se converte numa alavanca poderosa para o estudo da política. Os homens de fato não desejam o bem dos outros, mas não querem ser prejudicados em seus interesses, o que os leva a transformar o terreno da política num campo de guerra. Nessa conversão, no entanto, longe de se transformar no lobo dos outros, como em Hobbes,[39]o homem de Maquiavel encontra-se com os outros que também resistem à opressão, ou com os que desejam o poder. Essa dissimetria entre os elementos constitutivos das cidades faz com que a política seja a expressão dos conflitos e não a busca da paz, como para os medievais.

Chegamos, assim, a um ponto essencial para pensar a fundação. Se de fato não podemos ocupar o lugar do legislador, corno já mostramos, a teoria dos conflitos nos assinala um ponto de partida essencial para toda a obra legislativa. Em relação a ela não podemos mais agir como se buscássemos um novo território em mar aberto. Na obra de Maquiavel a afirmação da natureza conflituosa das sociedades é a terra firme anunciada no Prefácio.

Para provar sua tese, Maquiavel recorre em primeiro lugar à história romana, erigida em exemplo de virtude e de capacidade de ação, mas seu discurso logo ganha um outro tom, fortalecido pela convicção de que atingiu um novo patamar. É assim que ele retorna ao velho problema da educação e da lei para iluminá-lo com suas novas luzes sobre a natureza da política. Falando sobre as sociedades consideradas virtuosas, ele afirma: “[…] porque os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis e as boas leis dos tumultos que muitos criticam de maneira inconsiderada”.[40] Em Platão, a formação dos cidadãos pela educação constitui o núcleo da atividade criativa do legislador; em Maquiavel, ela é o produto de uma ação política que tem seus fundamentos nos conflitos que dividem o corpo social. O fundador maquiaveliano não se descuida de uma boa educação, mas esta é o resultado de um equilíbrio dinâmico, que, antes de dar aos habitantes condições de compreender o sentido do bem comum, deve criar leis que canalizem a natural ambição dos homens: “[…] digo que toda cidade deve ter meios que permitam ao povo desafogar sua ambição”.[41]

O discurso maquiaveliano vai, assim, inspirado na afirmação do caráter positivo dos conflitos, se revestindo de um tom cada vez mais afirmativo. Aos que viam em suas proposições uma aposta no caos, ele atacava dizendo: “E o desejo dos povos livres raras vezes são perniciosos para a liberdade, pois nascem ou da opressão ou da suspeita de que poderão sê­ lo”.[42] Essa afirmação, para ser inteiramente compreendida, depende de uma análise do papel da liberdade em Maquiavel. Interessa-nos, no entanto, o fato de que a impossibilidade de ocuparmos o lugar do fundador é transformada pela descoberta dos alicerces sobre os quais a arte da fundação deve se exercer. O problema do desejo maquiaveliano de ocupar a posição do criador de leis não desaparece, mas é transformado pelo fato de que antes de dizer a quem deve pertencer esse encargo é preciso demonstrar a verdade do discurso que está na base dessa pretensão.

O MODELO ROMANO

Para tornar explícito o que acredita ser os fundamentos da boa obra de um fundador, Maquiavel observa que só podemos seguir a estratégia já referida de estudar as cidades reais e suas instituições. Em acordo com seu apelo no 15º capítulo do Príncipe, é o retorno a uma certa “verdade efetiva” das coisas que torna razoável o estudo que estamos empreendendo.[43] Assim, o capítulo, que segue à revolução da afirmação da natureza positiva dos conflitos, começa com o enunciado de que, para os fundadores de uma república, é essencial estabelecer uma guarda para a liberdade e “segundo essa guarda foi mais ou menos bem posta, durará mais ou menos a liberdade”.[44]

Ora, a escolha de um parâmetro de duração, baseado na liberdade, parece indicar que tínhamos razão em considerar a criação de uma república a obra humana mais importante e a mais adequada para servir de exemplo para os que querem estabelecer uma teoria da fundação. No entanto, devemos estar atentos para os limites dessa escolha. De um lado ainda estamos falando de república em termos genéricos e nada indica que essa maneira de proceder reflita corretamente a história dos povos. Ou seja, não existe apenas uma forma de regime republicano e dentre os existentes nem todos lidam com a proteção da liberdade da mesma forma. Isso nos conduz a pensar que, se as referências analisadas são boas, é preciso que elas coincidam com situações históricas reais e que não podem ser abarcadas pelo simples apelo ao nome dos regimes livres. Dizendo de outra maneira, é necessário conciliar os instrumentos teóricos de que dispomos até agora com uma análise pertinente das instituições republicanas conhecidas. De outro lado, não podemos esquecer que ainda nos falta explicitar o saber possível sobre o fundador e que obviamente não se confunde inteiramente com os conhecimentos sobre seu trabalho.

Depois de uma referência explícita ao fundador de repúblicas, Maquiavel toma um caminho muito mais longo para tratar do tema que parecia central em suas reflexões. De fato, a continuação do capítulo se organiza novamente em torno de uma análise das instituições à luz da divisão do corpo social em dois humores diferentes: o dos que querem dominar e o dos que não querem ser oprimidos.[45] Num primeiro momento, podemos tentar compreender a natureza diferente das repúblicas históricas segundo a escolha que fazem em relação à guarda da liberdade. As de cunho aristocrático apostam no caráter nocivo dos movimentos e tumultos da plebe e no fato de que o contentamento dos grandes será sempre um fator de estabilidade, tanto por evitar a confusão provocada pelos desejos da plebe quanto por satisfazer a vontade de poder dos que são mais aptos para exercê-lo.[46]Por isso colocam no centro de seu corpo de leis algumas que asseguram o domínio dos nobres. No outro extremo estão as que dão ao elemento popular o privilégio de defender a liberdade, mesmo ao preço de tumultos e disputas contínuas com os poderosos.

Longe de simplesmente manifestar sua preferência por um modelo ou por outro, Maquiavel pretende mostrar que a divisão apresentada não resume o universo das repúblicas existentes. De fato “quem examina sutilmente tudo chegará a essa conclusão: ou se considera uma república que quer construir um império, como Roma, ou uma para qual basta manter­se”.[47] Portanto, para escolher entre os regimes republicanos que a história nos apresenta, é preciso definir critérios adequados ao que se quer considerar como prioritário. A combinação dos fatores apresentados para difenciar os regimes não conduz nosso autor, no entanto, a um ingênuo relativismo. De fato, não podemos excluir nenhum dos modelos, mas nada impede que analisemos suas limitações e potencialidades.

Para começar, o secretário florentino mostra que a vontade de conservar das repúblicas consideradas estáveis, como Esparta e Veneza, pode ser perigosa na medida em que “o medo de perder gera movimentos tão animados quanto o desejo de conquistar”.[48] Além do mais, o sucesso alcançado por elas se deveu muito mais à fortuna do que a uma virtude especial (il caso piu che la prudenza). Assim, embora se constituam em referência obrigatória para os que querem pensar a criação de novas formas, elas não fornecem necessariamente o caminho perfeito para os fundadores. Vale lembrar, a esse respeito, que essas considerações se esclarecem diante das afirmações que havíamos feito antes de que é sob o império da necessidade e contando exclusivamente com sua própria virtú que se revelam os grandes criadores. No contexto florentino, essa advertência servia para mostrar aos que erigiam Veneza em modelo, que havia outros fatores a ser considerados além da duração de suas instituições.[49] Da mesma forma que os príncipes novos, que se apoiavam sobre a boa fortuna, naufragavam, como foi o caso de César Borgia, as repúblicas que não desejavam expandir suas fronteiras também corriam riscos semelhantes, mesmo se a história parecia dar razões a seus partidários.

Aqui, na verdade, estamos diante de dois problemas diferentes. De um lado está o fato de que Maquiavel constrói nos Discorsi um argumento para escolher, entre os possíveis, o regime que corresponda à sua concepção de melhor forma de governo. Nesse particular, como já mostrou Sasso,[50] o critério da potência se mostra decisivo e a comparação entre as repúblicas mais famosas é a ferramenta da qual ele se serve para escolher Roma como modelo. Esse não é nosso tema, mesmo que não possamos deixar de lado suas conclusões. Do outro lado está justamente a busca, que nos interessa, de conceitos que permitam pensar a fundação de novos regimes. Nesse particular, não basta manifestar a preferência e apontar os critérios utilizados para chegar aos resultados propostos. É preciso mostrar a coerência interna dos argumentos e sua articulação com a história, que serve de campo de experiência, para que possamos efetivamente falar de uma teoria da fundação e não apenas de uma análise histórica dos feitos dos grandes homens.

Acreditamos que a continuação do texto nos fornece um conjunto de considerações que apontam para o que estamos procurando. Aos que criticavam Roma por seus movimentos sociais, Maquiavel responde: “[…] de modo que querendo retirar de Roma as razões de seus tumultos destruíam também as razões de sua potência”.[51] Esse argumento, que contrapõe as repúblicas tumultuárias às repúblicas ditas estáveis, do ponto de vista do que poderíamos chamar de lógica da potência, serve para realizar a ponte com uma outra ordem de considerações que já estavam presentes no Prefácio. Assim, nosso autor procura mostrar que permitir a manifestação das diferenças não é apenas uma estratégia para se construir um império, mas também a forma mais adequada para se estar de acordo com “as coisas humanas”. Um exame detalhado delas mostra, com efeito, “que não podemos pretender destruir um inconveniente sem que surja um outro”.[52] Essa referência às “coisas humanas” tem num primeiro momento um significado pouco específico, uma vez que nos permite apenas pensar um parâmetro para a ação dos homens que escapa às suas determinações. É claro que com isso não se está tentando teorizar o indeterminado, o que seria puro contrasenso. O que Maquiavel busca, desde o Prefácio, é mostrar que existem padrões de regularidade que, mesmo expressos em termos gerais e por vezes abstratos, dão-nos a possibilidade de fincar certas balizas capazes de nortear nossas ações. Assim, se não podemos descobrir os desígnios da fortuna, podemos saber que a luta que ela trava com a virtú se dá dentro de um mundo que comporta repetições e possui referências passíveis de serem descobertas. Essas marcas “naturais” permitem ao teórico pensar o mundo da política sem ficar reduzido à mera contemplação passiva da luta entre forças antagônicas.

Retornando à comparação entre as diversas repúblicas, Maquiavel vai então mostrar que aquelas baseadas no modelo romano respondem melhor às exigências das “coisas humanas”, pois “estando todas as coisas em movimento e não podendo estar paradas, convém que subam ou desçam, e a muitas coisas que a razão não induz, induz a necessidade”.[53] Podemos, portanto, fazer a defesa do modelo romano não apenas como aquele mais capaz de criar um império, mas como o que pôde fazê-lo exatamente porque levou em conta as determinações gerais da natureza humana. Dentre elas está a de ter criado suas instituições sob o impacto dos constrangimentos produzidos pela necessidade. Às condições descritas no começo se juntam a certeza, contra a tradição, de que Roma foi o produto de uma virtú superior e não o fruto predileto da fortuna.[54]

Com a análise do caso exemplar de Roma ganhamos a possibilidade de trilhar o caminho anunciado no Príncipe e que ficara fechado com as navegações nas águas turvas do próprio tempo e lugar de Maquiavel. Roma permite explorar, pela visita do passado, o cenário do aparecimento do novo em sua forma mais radical. Com ela estamos em condição de pensar a fundação do ponto de vista da construção do edifício institucional, que sustenta a virtú do fundador. Por isso, não só os capítulos seguintes, dedicados à dimensão legal da criação dos novos regimes, são essenciais para nossos propósitos, mas todos os que se dedicam a problemas semelhantes, fazem parte de maneira ampla da teoria maquiaveliana da fundação sustentada nos Discorsi.

Chegando a esse ponto estamos como o navegador que depois de uma aventura foi capaz de desenhar os mapas que lhe permitem retornar ao mesmo ponto e continuar sua aventura. Como não podemos continuar nossa análise do texto buscando todos os detalhes dessa cartografia do novo, é hora de voltarmos nossa atenção para o fundador. Ou seja, definidas as condições de possibilidade de um discurso racional sobre o novo, resta ainda saber o que é possível dizer sobre o ator privilegiado da fundação.

A SOLIDÃO DO FUNDADOR

O nono capítulo aborda um tema sui generis na literatura política: a solidão do fundador. Ele é essencial para pensarmos a relação entre razão e fundação e para compreendermos a natureza do lugar ocupado pelos grandes criadores. Num primeiro momento podemos ser levados a acreditar que o movimento que vai do domínio da razão ao saber e deste à criação de um estado ideal é necessariamente o que deve presidir toda criação política. Assim o pensou Platão, assim boa parte da crítica atual acredita poder barrar os efeitos terríveis das sociedades totalitárias pelo apelo à dimensão racional do discurso democrático e pela confiança nas estruturas erigidas segundo suas exigências.[55]Maquiavel sugere uma visão bem mais radical dos riscos que comportam as ações políticas, sobretudo as de criação de novas leis.

Tomando como referência o comportamento de Rômulo[56] e seus atos extremos, nosso autor sugere uma regra geral para a compreensão do momento da fundação:

Mas deve ser estabelecida como regra geral que nunca, ou muito raramente, se viu uma república ou um reino ser bem constituído desde o começo, ou perfeitamente reformado depois, senão por um indivíduo solitário. É mesmo necessário que aquele que concebeu o plano forneça ele mesmo os meios para sua execução.[57]

Essa afirmação, que tem a ambição de se constituir em regra universal, define com clareza o lugar que o ato de fundação ocupa na vida política. De fato, se considerarmos que o corpo político é o fruto da vontade humana, que dela depende inteiramente, somos conduzidos a pensar que não existem para os fundadores referências exteriores à sua prática que possam ser comunicadas aos que virão a constituir uma nova sociedade.

Ou seja, tomada em sua radicalidade, não existe um “antes” da fundação que possa presidir os atos do fundador. Não se trata é claro de pensar um estágio da existência humana anterior à história e nem mesmo de aproximar indevidamente Maquiavel dos contratualistas, mas de mostrar que a criação de uma nova forma é um ato radical para os que dela participam. O fundador opera em um momento especial da vida política e por isso age de maneira especial. Ao contrário dos príncipes, que querem reformar formas existentes, os criadores são como os navegadores, que nunca sabiam exatamente aonde chegariam, ou se iriam encontrar novas terras ou a morte.

A solidão é, assim, ao mesmo tempo condição de possibilidade e fator de risco. Em primeiro lugar, para conquistá-la, o fundador precisa se impor por todos os meios: “Assim, um hábil ordenador de leis, que prefere sinceramente o bem geral a seus interesses particulares e sua pátria a seus sucessores, deve empregar toda sua indústria para atrair para si todo o poder”.[58] Entrando nesse território, no entanto, não há como evitar a ira da fortuna, assim como não se podia prever tempestades em alto-mar. Ao definir essa condição básica para o ato dos fundadores, Maquiavel se afasta duplamente da tradição. Dos gregos, antes de tudo, porque não concebe um canal de comunicação entre o ator político privilegiado e a razão. Platão já sabia que esse momento é especial e que ele mobiliza forças extremas,[59] mas nunca pensou na solidão como uma condição primordial da ação dos fundadores, uma vez que existia sempre a possibilidade de definir o território da razão como terreno comum entre os homens. Maquiavel, ao contrário, insiste na solidão, justamente por acreditar que ela pode ser útil para a ação, embora não possa ser usada como mediador no momento preciso no qual o fundador age. Ele se afasta também dos medievais por não imaginar outro fundamento para a lei senão o da vontade do criador solitário. Desaparece a referência obrigatória à vontade divina, embora não a importância da religião, como veremos a seguir.

Nessas condições, podemos compreender a importância do modelo romano. Se a solidão é a condição essencial, a referência ao bem comum e ao princípio republicano de anterioridade do público em relação ao privado fornece a possibilidade para o teórico se pronunciar sobre a qualidade da fundação. Do ponto de vista objetivo é sobre a obra que se pode falar. É sobre o produto da ação que se calcam os julgamentos dos homens. Por isso, o recurso à violência, que pode se tornar necessário, como já nos tinha ensinado Opríncipe, deve ser analisado com base em parâmetros fornecidos pelo exame dos regimes existentes, pois, como diz Maquiavel, “não é a violência que repara, mas a violência que destrói que deve ser condenada”.[60] Sobre a intenção e o saber do fundador não há nada que possa ser descoberto, ou sobre o que se possa construir um saber teórico. Não há como ensinar a fundar. Podemos apenas recorrer ao exemplo dos grandes homens, Moisés, Sólon, Licurgo, que já haviam servido para ilustrar a hierarquia dos inovadores para pensar o problema, sem tentar ocupar o lugar que foi deles.[61] Enquanto ato, que inscreve na história as intenções dos atores políticos, a fundação se situa fora do tempo, e por isso não deve ser confundida com as muitas ações de renovação e reforma próprias ao território habitado pelos príncipes do tempo de Maquiavel e que haviam sido estudadas em sua obra anterior. Ao mostrar que o fundador deve estar sozinho, nosso autor o retira do mundo corriqueiro da política, mas não o livra dos perigos e das artimanhas da condição humana.

Uma das grandes astúcias do fundador, que pode ser conhecida pela força de sua obra, é a de compreender a excepcionalidade de sua condição e a natureza profunda das coisas dos homens. Se para fundar é preciso estar só, para tornar perenes as leis deve-se abandonar o poder absoluto da origem, para torná-lo obra coletiva. Assim, diz Maquiavel: “O fundador terá a sabedoria e a virtú para não deixar como herança a autoridade que teve entre as mãos. Os homens estando sempre mais prontos a seguir o mal que inclinados a imitar o bem, seu sucessor poderia usar por ambição os meios dos quais se serviu virtuosamente”.[62] As leis serão o receptáculo objetivo dos segredos do primeiro momento, revelando não o que foi visto durante a travessia, mas a terra imaginada no silêncio das noites solitárias. Compreendemos agora a importância do estudo de aspectos legais das instituições, empreendido por Maquiavel ao longo dos Discorsi, mas muito particularmente nos primeiros capítulos, que definem a escolha maquiaveliana do modelo republicano romano como o da melhor forma política possível. O teórico não pode ter o mesmo saber do fundador, pois esse está fora do tempo e da história e nesse sentido não pode ser comunicado nem mesmo por meio de regras práticas. Mas isso não o impede de analisar a qualidade de sua obra, uma vez que ela se manifesta necessariamente na história à qual, ao contrário, é sempre possível se referir. Ora, a natureza da fundação está expressa em grande medi­ da nas leis e regras que regem a relação coletiva, e é essa dimensão palpável das sociedades que dá uma das medidas de sua força. É claro que não podemos julgar uma república apenas por suas determinações legais, mas é por elas que podemos medir a fecundidade do campo político aberto aos diversos atores. Numa república corrompida até mesmo um grande homem teria dificuldades extremas para agir e restaurar o sentido original das leis, enquanto em um corpo social sadio é possível esperar as ações mais gloriosas de que somos capazes.[63]

FUNDAÇÃO E RELIGIÃO

Quando se trata de pensar os fundadores, Maquiavel propõe uma hierarquia, que muda o sentido daquela proposta por Pocock, para compreender os inovadores. Logo no começo do décimo capítulo ele diz:

Dentre todos os homens elogiados, não existe nenhum que seja tão célebre quanto os fundadores de uma religião. Depois deles vêm os que fundaram repúblicas ou reinos [por outro lado] são destinados ao ódio e à infâmia os que destroem as religiões, que dissipam os reinos e as repúblicas, os inimigos do talento, da coragem, das letras e das artes úteis e honradas para a espé­ cie humana, como são osímpios, os violentos, os ignorantes, os preguiço­ sos, os baixos e vis.[64]

Poderíamos ser tentados a colocar a religião antes da política na ordem das coisas mais importantes, repetindo talvez o mesmo erro que Maquiavel condenara em Savonarola. Mas não nos parece ser esse o sentido do capítulo, porque não houve uma mudança de rumos no pensamento de nosso autor que justifique tal interpretação. É mais razoável continuar nossa investigação observando a singularidade do momento de fundação de um novo regime. É dessa consideração que podemos deduzir que um dos feitos do fundador é justamente escapar dos vícios e defeitos que podem ser o resultado de sua ação. Antes, portanto, de procurar entender a importância da religião para a política, devemos nos perguntar pelo significado da hierarquia proposta.

A primeira coisa que devemos observar é que Maquiavel coloca num continuum os fundadores, em suas melhores expressões, e os personagens abjetos da vida pública. Ora, num sentido diferente, ele chega à mesma conclusão que Platão no quarto livro das Leis, quando observa que entre os tiranos e os fundadores de repúblicas existe uma evidente proximidade.[65] No caso do pensador grego, no entanto, o fundador pode se servir de um jovem tirano para seus fins, mas não ocupa seu lugar, uma vez que possui um saber de tal natureza que pode tentar a construção da cidade ideal servindo-se apenas de seus conhecimentos. Para o pensador florentino, ao contrário, o que é especial na condição do fundador é que ele divide com o tirano sua solidão. Um escolhe criar um regime vigoroso e potente, e por isso transfere para as leis o poder que detivera; o outro o conserva entre as mãos e faz de seus desejos a regra da vida pública. O que devemos compreender é que, visto da cidade, o lugar do fundador contém muitas possibilidades e não apenas as que são o alicerce da república. Daí a conclusão a que chega quanto à crítica feroz dirigida aos tiranos: “[…] que tendo podido gozar da honra imortal de ter fundado uma república ou uma monarquia, preferem estabelecer uma tirania, não percebendo quanto renome, honra, segurança e paz e repouso de espírito troca por infâmia, vergonha, crítica, perigo e inquietude”.[66]

Podemos agora tentar esclarecer o papel das religiões na fundação de novos regimes. Nosso ponto de partida é a afirmação, à qual Maquiavel procura conferir universalidade, de que “jamais existiu um ordenador de leis extraordinárias que não tenha recorrido a Deus”. Essa exigência se completa com a ideia de que “lá onde já existe uma religião, é fácil introduzir a disciplina e as virtudes militares, mas onde existem somente as virtudes militares sem religião, essa última só é introduzida com muita dificuldade”.[67]Reconhecemos aqui as duas dimensões com as quais já havíamos lidado no momento em que começamos nosso percurso: para criar novos regimes é preciso combinar o uso da força com a persuasão. Um desses fatores isolado leva ao desastre ou à instabilidade. Assim, Maquiavel considera infelizes as cidades que não podem recorrer à força da religião e devem se refugiar na autoridade de um príncipe cuja vida acaba sendo o limite da própria existência da cidade que governa. Mas a comparação entre os fundadores que recorreram à disciplina militar – como Rômulo – e os que criaram religiões – como Numa – não pode servir para produzir uma ideia deturpada da própria função do elemento religioso na criação política.

De fato, como já mostrou Lefort,[68] a vantagem concedida a Numa nesse momento do texto não visa reforçar uma hierarquia artificial entre os criadores da república romana, mas mostrar a especificidade de sua história, que viveu, em momentos diferentes, os atos essenciais à formação de toda república gloriosa. O que devemos observar é que a insistência na importância das religiões nos ensina algo a respeito da fundação em geral. Ao passar da solidão, na qual concebe o sentido de seus atos, para o uni­ verso das leis, o fundador deve apagar os traços que ligam sua vontade ao conjunto institucional, que estrutura o corpo político. Esse enraizamento das leis não pode ser realizado pela força, mesmo se manifesta e contínua, pois esse é o recurso dos tiranos, sempre condenados ao fracasso. Ele é realizado pela religião, que situando a norma fora da história, torna-a plenamente aceitável na história. Dando conteúdo transcendente à solidão do fundador, a religião faz de seus atos a expressão de algo que ultrapassa sua simples vontade. Por isso, Numa dizia conversar com as ninfas, pois de outra maneira não seria obedecido por homens vigorosos e habituados à guerra. É nesse sentido que Maquiavel afirma: “Não é suficiente, para a felicidade de uma república ou de uma monarquia, ter um príncipe que governa sabiamente durante sua vida, é necessário que ele lhe dê leis capazes de mantê-la depois de sua morte”.[69]

Para escapar dos efeitos do tempo, Maquiavel recomenda então às repúblicas e aos príncipes “conservar em toda pureza a religião, suas cerimônias e o respeito devido à sua santidade”.[70] Só assim o ciclo de vida de seus governantes, a particularidade da virtude de seus grandes homens, não se confundirão com seu próprio destino, embora sejam os fios que tecem sua trama e definam sua resistência. A verdadeira arte de fundar é, portanto, a combinação na dose certa de recurso à força e transcendência. Nesse sentido, acreditamos que estávamos certos ao sugerir que o terreno adequado para o estudo de nosso problema é o da criação das grandes repúblicas, único no qual todos os elementos componentes do momento inaugural da vida pública podem ser devidamente explorados pelo teórico da política.

A FUNDAÇÃO CONTÍNUA

Chegamos ao nosso destino. Maquiavel não podia na verdade ocupar o lugar do grande fundador, pois, como vimos, ele se revela na ação e na história. Nessas novas terras há uma enormidade de coisas que devemos aprender para erigir um saber renovado sobre a política. Num certo senti­ do, essa foi a grande ambição do secretário florentino: compreender de uma maneira nova a política, servindo-se do único campo de experimentação possível para o teórico: o da história. Mas no meio de todas as dificuldades para conhecermos o universo das relações políticas resta uma interrogação sobre a preservação do sentido original da obra dos grandes criadores. Como não perder, no interior do campo de batalhas entre a for­ tuna e a virtú que caracteriza a existência das cidades e dos reinos, o sentido da obra dos grandes fundadores? Como conservar, no tempo, o que foi gestado fora dele segundo uma lógica que não pode ser exposta em termos inteiramente positivos?

No começo do terceiro livro dos Discorsi temos a resposta para nossa indagação. Maquiavel sugere tratar da fundação do ponto de vista da duração. Ora, mais uma vez é a partir da regularidade das coisas naturais que podemos descobrir o caminho para uma exposição consistente sobre o tema. De fato, “tudo o que existe nesse mundo possui limites para sua duração”, e como não estamos falando de objetos naturais, mas de corpos mistos, “tais como as religiões e as repúblicas, digo que as transformações salutares que podem sofrer são as que os conduzem a seus princípios”.[71] Assim, a observação da naturalidade da corrupção, o simples passar do tempo, impõem um desgaste na obra do fundador, que não pode ser evitado por uma ação produzida pelo próprio demiurgo das formas políticas, quando ele ainda opera fora do mundo normal dos “corpos mistos”. Por mais perfeita que seja sua construção, em contato com o tempo ela se desgasta e se vê condenada ao desaparecimento. Desse ponto de vista, não há nada que possa ser feito, pois não é possível agir contra a natureza, mesmo com toda a virtú dos grandes homens.

Maquiavel exprime a inexorabilidade do processo de corrupção associada ao único remédio possível: o retorno às origens. “Existe uma verdade mais clara que o dia: que esses corpos devem perecer se não se renovam e essa mudança só pode ser em direção a seu próprio princípio”[72]. É possível, portanto, imaginar uma ação que evite a rápida degenerescência dos corpos políticos e ao mesmo tempo conhecer seu sentido: o retorno ao começo. Podemos talvez imaginar que se trata de instaurar uma espécie de circularidade artificial no interior dos regimes, uma vez que a circularidade natural os condena a desaparecer, não lhes sendo possível refazer o ciclo de transformações próprio aos corpos que não se perdem com o passar do tempo, como é o caso das estrelas.

Dentre os artifícios possíveis, nosso autor destaca dois: um acidente exterior ou o efeito de uma prudência interior. Quanto ao primeiro, centrado na fortuna, como mostra o exemplo romano de renovação a partir da invasão dos gauleses, o importante, a nosso ver, não é tanto a constatação de que a fortuna pode estar na origem do retorno às origens e, portanto, ter um papel positivo, mas o que foi possível fazer com as condições criadas por ela. Nesse ponto podemos voltar à nossa análise anterior do papel da religião na criação das formas políticas, para determinar a direção a ser tomada pelos atores da renovação. Se o que mostra Maquiavel a respeito dos fundadores das religiões é verdadeiro, quando o regime corre perigo é a hora para refazer sua rede simbólica, que no momento da criação havia servido para instaurar o sentido de unidade enquanto corpo político. Retomar a confiança na religião, exigir o cumprimento estrito das leis, é a maneira de trazer os homens para o terreno fértil dos primeiros momentos, quando ainda não era possível falar de corrupção.

O segundo caminho para o retorno à fundação é o que podemos nomear como o da virtú. Ele pode ocorrer tanto pela instituição de uma lei quanto pelos atos extraordinários de um homem, como foi o caso de Brutus. Ele nasce da percepção de um ator, ou de vários, de que é preciso barrar o processo do tempo. Não se trata simplesmente de fazer face a uma situação extraordinária, mas de saber compreender a importância da corrupção para a vida política ordinária. Deixada de lado, ela não tarda a irromper na cena pública de maneira devastadora. Assim, dentre os imperativos da ação política virtuosa se encontra a capacidade de lidar com o caráter inexorável do tempo e com seus efeitos. Uma grande república será a que for capaz de realizar uma ação de fundação contínua como parte de sua estratégia de sobrevivência. Maquiavel, aliás, ao concluir sobre os dois caminhos, o da fortuna e o da virtú, para se operar esse ato, confirma nossa opção primeira de estudar a questão nos Discorsi e não no Príncipe, pois mais uma vez ele mostra que é lá onde estamos diante apenas da virtú que encontramos os grandes fundadores. Também no tocante à fundação contínua ele nos aconselha a escolher a mesma via, “de sorte que esse feliz efeito seja o produto de uma boa lei ou a obra de um bom cidadão, mais do que o fruto de uma causa externa, porque, ainda que esse remédio possa ser útil, como vimos no caso romano, é tão perigoso de ser empregado que não se toma desajável”.[73]

E no que consiste esse retorno? Segundo nosso autor, referindo-se à ação dos grandes romanos:

Seria desejável que não se passasse mais de dez anos sem que um desses grandes gestos fossem perpetrados. Esse espaço de tempo é suficiente para mudar os costumes e alterar as leis e, se não ocorre algo que renove as punições e preencha os espíritos de um terror salutar, em breve se encontram tantos culpados que não é mais possível puni-los sem perigo.[74]

Podemos definir, portanto, não somente o prazo, mais ou menos aleatório de dez anos,[75]para que os corpos mistos sejam conduzidos à origem, mas sobretudo o sentido do gesto: reinstaurar o terror inicial. Ora, a associação da fundação ao terror não deve nos surpreender, mas é inegável que ela acrescenta algo à nossa compreensão da questão que nos interessa. Como já vimos, o fundador não pode contar com a ajuda da natureza humana para impor o respeito às leis que institui. Os homens sempre dispostos a praticar o mal devem ser convencidos, pela força se necessário, a obedecer. Na solidão de sua posição o criador de novas leis deve fazer tremer os que porventura tiverem a veleidade de não aceitá-las e para isso conta com todas as armas sobre as quais já falamos. O retorno às origens apenas reforça o que já era sabido do primeiro momento.

A associação, no entanto, entre terror e criação e a necessidade de se repetir o sentido do gesto inaugural mostra algo que o estudo da fundação do ponto de vista que empreendemos até agora poderia mascarar. Todo ato criador precisa deitar raízes, e daí, como vimos, a importância da religião. Mas ao convencer, ou forçar os homens a obedecer, o fundador também é obrigado a lançar sua obra no tempo, condição evidente da prpria existência da vida política. Ora, não existe forma política que não estja submetida ã ação da corrupção, portanto não existe fundação que não traga. em si a necessidade de uma fundação contínua. Se não podemos falar do ponto de vista dos criadores de repúblicas, somos confrontados à evidência de que suas obras são tanto o ponto de partida para a compreensão do significado de seus atos quanto o primeiro passo para o estudo da política em geral. Se podemos, portanto, como procuramos demonstrar, falar de uma teoria da fundação, ela só se torna consistente na medida em que faz parte de uma teoria geral da política. A separação entre fundação e vida política ordinária é pertinente do ponto de vista analítico, mas não serve para descrever o mundo complexo e múltiplo que se abre com a introdução perigosa de novas ordens e modos e a descoberta de um novo continente da política.

NOTAS

  1. MAQUAVEL. “Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio”, em Opere. Milão. Riccardo Ricciardi ditore, 1954. A partir daqui vamos nos referir sempre a esse texto comoDiscorsi. As traduções são de nossa responsabilidade.
  2. Sobre a noção de tempo na Renascença ver J. R. HALE. A Europa durante o Renascimento, Lisboa. Presença, s. d., cap. 1.
  3. Para um panorama geral e ambicioso da Europa e de suas transformações ver J. R. HALE, The civilization of Europe in the Renaissance, Londres. Fontana Press. 1994.
  4. Sobre esse período dos Orti Oricellari ver F. GILBERT. Machiavelli e il suo tempo. Bolonha. II Mulino, 1977. O primeiro capítulo trata de Bernardo Rucellai, mas o livro todo é precioso para a compreensão do ambiente intelectual florentino do começo do século XVI.
  5. Para uma análise dos Orti Oricellari ver o clássico de Rudolf von ALBERTINI, Firenze dalla Repubblica al Principato. Turim. Einaudi. 1970. Um estudo mais recente sobre a geração intelectual de Maquiavel é o de G. SILVANO, “Vivere civile ..e “governo misto” a Firenze nel primo cinquecento. Bolonha. Pàtron, 1985. Sobre os partidários de Savonarola na política florentina ver Lorenzo POLIZOTTO. The elect nation:The Savonarolian movement in Florence 1494-1545. Oxford. Clarendon Press. 1994.
  6. F. GILBERT, Machiavelli e il suo tempo. cap. 2.
  7. Idem. ibidem. p. 95.
  8. Ver Gene BRCCKER. Firenze nel Rinascimento. Florenca. La Nuova Italia. 1980.
  9. F. GILBERT, Machiavelli e il suo tempo. p. 96.
  10. Ver a esse respeito D. WEINSTEIN. Savanarole et Florence. Paris. Calmann-Levy, 1973.
  11. R. von ALBERTINI. Firenze dalla Republica al Principato. p. 72.
  12. Ver a esse respeitoF. GILBERTO. Machiavelli e Guicciardini, Turim. Einaudi, 1970, pp. 114-22.
  13. NARDI. cit. por R. von ALBERTI, Firenze dalla Republica al Principato. p. 72. nota 2.
  14. MAQUIAVEL. O príncipe, em Opere, cap. VI.
  15. Strauss defende com brilho essa hipótese de leitura da obra maquiaveliana como um grande desafio contra a tradição. Ver Leo STRAUSS, Pensées sur Machiavel. Paris. Payot. 1982
  16. A leitura do Príncipe a partir da figura do príncipe novo foi sugerida por F.CHABOD. Scritti su Machiavelli. Turim. Einaudi, 1964: mas foi com J. G. A. POCOCK. The Machiavellian moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, que encontrou sua melhor expressão teórica e é a que vai nos interessar aqui.
  17. J. G. A. POCOCK. The Machiavellian moment, p. 158.
  18. II Pri11cipeis a study of the new prince-we know this from Machiavelli é:orres­ pondence as well as from interna! evidence – or rather of that class of politícal innovators to which he belongs”. Idem, ibidem, p. 160.
  19. C. LEFORT, Le travail de l’oeuvre. Machiavel, Paris, Gallimard, 1973.
  20. Ver a esse respeito E. GARIN, Scienza e vita civile nel Rinascimento italiano, Bari, Laterza, 1985, cap. 1.
  21. Para um balanço recente do tema da virtú em Maquiavel ver Harvey C. MANSFIELD, Machiavelli’s virtue, Chicago, University of Chicago Press, 1996. Ver sobretudo o primeiro e o décimo capítulo.
  22. MAQUIAVEL. O príncipe, cap. VI.
  23. Idem, ibidem.
  24. A melhor análise do problema da força em Maquiavel, a nosso ver, se encontra em C. LEFORT, Le travail de l’oeuvre. Machiavel, pp. 346-68.
  25. J.G.A. POCOCK, The Machiavellian moment, p. 172.
  26. Sobre a ligação de Maquiavel com esse príncipe ver G. SASSO, Machiavelli e Cesare Borgia. Storia di un giudizio, Roma, Elenchos, 1966.
  27. Nesse sentido continuamos de acordo com POCOCK, The Machiavellian moment, p. 180. e em desacordo com as teses defendidas por M. HULLIUNG, Citzen Machiavelli, Princeton, Princeton University Press, 1983. Sustentamos mais longamente nossa leitura do caráter republicano da obra de Maquiavel em N. BIGNOTTO, Maquiavel republicano, São Paulo, Loyola. 1991.
  28. Interessante a esse respeito a obra de H. C, MANSFIELD, Le prince apprivoisé, Paris, Fayard. 1994.
  29. MAQUAVEL, Discorsi, Prefácio.
  30. Idem, ibidem.
  31. Sobre o mito de Florença como cidade livre ver o clássico H. BARON, THe crisis of the early Italian Renaissance, Princeton, Princeton University Press, 1966.
  32. MAQUAVEL. Discorsi, liv. 1, cap.1.
  33. Idem, ibidem.
  34. Idem, ibidem, cap. 2.
  35. Idem, ibidem.
  36. Idem, ibidem, cap. 6.
  37. Muito interessante a esse respeito o livro de J. CHANTEUR, Platon, Le désir et la cité, Paris, Sirey. 1980.
  38. MAQUAVEL. Discorsi, liv. 1, cap.4.
  39. Para a relação entre Maquiavel e Hobbes ver R. ESPOSITO, Ordine e conflito, Nápoles. Liguori, 1984, cap. V.
  40. MAQUAVEL. Discorsi, liv. 1, cap.4.
  41. Idem, ibidem.
  42. Idem, ibidem.
  43. Para um estudo detalhado da ideia de “verdade efetiva” ver C. LEFORT, Écrire. A ‘épreuve du politique, Paris, Calmann-Levy, 1992.
  44. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 5.
  45. Essa referência aos dois humores constitutivos da cidade é recorrente na obra de Maquiavel, o que nos leva a considerá-lo como um ponto fundamental para a compreensão de sua filosofia política. Ver Discorsi, liv. 1, cap. 5.
  46. “Dall’altra parte, chi difende l’ordine spartano e veneto dice che coloro che met­tono la guardia in mano di potenti fanno due opere buone: l’una che ei satisfanno piu all’ambizione di coloro ch’avendo piu parte nella republica per avere questo bastone in mano, hanno cagione di contentarsi più; l’altra che lievono una qualitá dagli animi inquieti della plebe, che è cagione d’infinite dissensioni e scandoli in una republica, e atta a ridurre la Nobilità a qualche disperazione che col tempo faccia cattovi effetti. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 5.
  47. Idem, ibidem.
  48. Idem, ibidem.
  49. A esse respeito é de fundamental importância o capítulo de F. GILBERT dedicado à questão em Machiavelli e il suo tempo, Bolonha, II Mulino, 1977, parte 1, cap. 3.
  50. Ver G. SASSO, Niccolo Machiavelli, Bolonha, II Mulino, 1980.
  51. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 6.
  52. Idem, ibidem.
  53. Idem, ibidem.
  54. Este é o tema do primeiro capítulo do segundo livro dos DIscorsi, e marca uma ruptura clara com a tradição romana, e depois humanística, de ver na cidade eterna o produto da fortuna.
  55. Estamos pensando, é claro, em alguns aspectos do pensamento de Apel e de Habermas.
  56. Sobre a fundação de Roma do ponto de vista da historiografia contemporânea ver P. GRIMAL, Virgile ou la seconde naissance de Rome, Paris, Flammarion, 1989; A. GRANDAZZI, La Fondation de Rome, Paris, Les Belles Lettres, 1991.
  57. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 9.
  58. Idem, ibidem.
  59. Um exemplo claro disso se encontra no livro IV de As leis. Ver PLATÃO, Oeuvres Complètes, Gallimard, 1953.
  60. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 9.
  61. “Potrebbesi dare in sostentamento delle cose soprascritte infiniti esempli, come Moises, Licurgo, Solone ed altri fondatori di regni e di republiche, e quali poterono, per aversi attribuito un·autorità, formare leggi aproposito dei bene comune…” Idem, ibidem.
  62. Idem, ibidem.
  63. Não vamos abordar aqui o tema da corrupção, mas já o tratamos mais detidamente em nosso livro, Maquiavel republicano, cap. IV.
  64. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 10.
  65. PLATAO, As leis, IV, 709a-711c.
  66. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 10.
  67. Idem, ibidem, cap. 11.
  68. C. LEFORT, Le travail de l’oeuvre. Machiavel, pp. 488-91.
  69. MAQUIAVEL, Discorsi, liv. 1, cap. 9.
  70. Idem, ibidem, cap. 12.
  71. Idem, ibidem, liv. 3, cap. 1
  72. Idem, ibidem.
  73. Idem, ibidem.
  74. Idem, ibidem.
  75. Leo Strauss foi, entre os intérpretes contemporâneos de Maquiavel, um dos que maior atenção dedicou à questão dos números empregados por ele ao longo de sua obra. Sobre o capítulo que estamos analisando em particular ver Leo STRAUSS, Pensées sur Machiavel, Paris. Payot, 1982, pp. 185-8.

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