Mistérios de um mundo sem mistério
por Jorge Coli
Resumo
Se nos colocarmos na óptica da racionalidade, a obra de arte é antes de tudo um objeto a ser destrinchado. O poder compreensivo e racional emana em mão única. A obra-objeto subordina-se ao sujeito que a cataloga, define, classifica, sintetiza, analisa, interpreta.
Ocorre que os instrumentos reflexivos da racionalidade são incapazes de apreender o pseudo-objeto, já que lhes escapa sua natureza de sujeito. Ao tentar dominar e submeter a obra de arte, criam um outro objeto, ilusório, porque sem substância, ersatz, ectoplasma, vazio, que os contenta porque submisso. O verdadeiro encontra-se fora de seu alcance.
No exterior da razão, esse algo é indizível, pelo menos quando levado pelas palavras corretas e próprias às construções interpretativas. A inteligência exigida e secretada pela obra de arte, sua lucidez específica, são diversas. Elas estão contidas num gesto, numa inflexão da voz, num olhar, numa rima, no tom de um céu, no volume de um seio, nas proporções de uma janela, numa metáfora, no som do violino ou do trombone. Esses e infinitos outros são momentos de um todo que adquire sentido através de uma percepção sensorial, de uma intuição. Um veículo indispensável são as emoções, em todas as suas gamas – é a experiência insubstituível. Nós compreendemos, graças a elas, e não pelo recado do conceito.
Apreender uma obra ou fazê-la são atos que se pressupõem ou que dependem do mistério. As certezas cientificistas de nosso tempo, os racionalismos pouco sábios, não toleram a ideia de que algo lhes escape, temem as trevas e creem na luz universal, tão enganadoramente perturbadora. Entretanto, é inútil excluir o mistério – ele está em nós e em torno de nós. As obras de arte nos ensinam a conviver com ele.
Arte de um lado, ciência, tecnologia, racionalidade do outro. Antigo debate que pulsa como uma exigência oculta num mundo dominado pela máquina das teorias operacionais. O debate, no entanto, falseia numa falha: os planos não são os mesmos. Perceber, sentir, essas noções caras a Merleau-Ponty, pressupõe um corpo, capaz de inserir o homem no mundo, num estrato mais profundo do que o conceito, do que a formulação pela linguagem. “Sou inapreensível na imanência” é a frase de Klee citada em O visível e o invisível: inapreensível sobretudo pelas categorias mentais, bem formuladas, mas imanência apesar de tudo, “sentida”, percebida: “Nosso contato mudo com as coisas, quando elas não são ainda coisas ditas”, indica o autor.
O pensamento privilegiado nessas relações experimentadas, vividas, perde a imaterialidade que lhe permite vazar-se em palavras e fórmulas. Manifesta-se como arte: “coisa”, matéria organizada que objetiva e o instala no mundo; sujeito e subjetividade concreta, palpável, capaz de “pensar” por afetos. Mais ainda, pensamento vivo, que se modifica ao interagir com a contemplação.
Essa matéria objetivada é, por consequência, sujeito, ativo e agente. Vale voltar para os campos confrontados no início. Se nos colocarmos na óptica da racionalidade, a obra de arte é antes de tudo um objeto a ser destrinchado. O poder compreensivo e racional emana em mão única. A obra-objeto subordina-se ao sujeito que a cataloga, define, classifica, sintetiza, analiza, interpreta. A natureza da razão é ativa, ela dá existência, pelos seus meios, a objetos que sem ela estariam num limbo, fora, ou à espera do batismo cognitivo que determina.
Ocorre que os instrumentos reflexivos da racionalidade são incapazes de apreender o pseudo-objeto, já que lhes escapa sua natureza de sujeito. Ao tentar dominar e submeter a obra de arte, criam um outro objeto, ilusório, porque sem substância, ersatz, ectoplasma, vazio, que os contenta porque submisso. O verdadeiro encontra-se fora de seu alcance.
No exterior da razão, esse algo é indizível, pelo menos quando levado pelas palavras corretas e próprias às construções interpretativas. A inteligência exigida e secretada pela obra de arte, sua lucidez específica, são diversas. Elas estão contidas num gesto, numa inflexão da voz, num olhar, numa rima, no tom de um céu, no volume de um seio, nas proporções de uma janela, numa metáfora, no som do violino ou do trombone. Esses e infinitos outros são momentos de um todo que adquire sentido através de uma percepção sensorial, de uma intuição. Um veículo indispensável são as emoções, em todas as suas gamas – é a experiência insubstituível. Nós compreendemos graças a elas, e não pelo recado do conceito.
Apreender uma obra ou fazê-la são atos que pressupõem ou que depedem do mistério. As certezas cientificistas de nosso tempo, os racionalismos pouco sábios, não toleram a ideia de que algo lhes escape, temem as trevas e creem na luz universal, tão enganadoramente torva. Entretanto, é inútil excluir o mistério, ele está em nós e em torno de nós. As obras de arte nos ensinam – dura tarefa – a conviver com ele.
Alguém, debruçado sobre o objeto artístico, tentando compreendê-lo segundo diversas configurações históricas, poderá deparar-se com duas sensações imprecisas e frustrantes.
A primeira é a de um poço sem fundo. Por menos que se ofereça vazão às associações livres, por mais que se restrinja aos quadros de percepção de uma ou outra época, por rigorosos que sejam os parâmetros determinados para a análise, sobrará a convicção de que, mesmo dentro dos limites impostos e escolhidos, a matéria examinada é instável e não se revela por inteiro.
A segunda é de que, sejam sutis, fluidos e finos os instrumentos abstratos empregados nessa tarefa, eles se mostrarão grosseiros e desproporcionados diante do objeto fugacíssimo.
Essas constatações, banais em princípio, levam-nos a perceber a inadequação do conceito diante da obra. Embora não haja remédio, a faculdade discursiva, as formas articuladas do pensamento só se podem fazer por meio da generalidade conceitual, e a razão, esquelética, esquemática, esquadrada, conduz à compreensão da densidade espessa, proteica, própria à arte.
Mas, justamente, de que compreensão se trata? Se nos colocarmos na óptica da razão, a obra de arte é antes de tudo um objeto a ser destrinchado. O poder compreensivo e racional emana em mão única. A obra-objeto subordina-se ao sujeito que a cataloga, define, classifica, sintetiza, analisa, interpreta. A natureza da razão é ativa, ela dá existência, pelos seus meios, a objetos que sem ela estariam num limbo, fora, ou à espera do batismo cognitivo que ela determina.
Casos caricaturais, porque mais grosseiros, mas tão correntes, levam ao extremo uma tal situação. Um processo interpretativo possui sua bela lógica, sua forte coerência. Se é estático, parece ter previsto todas as categorias possíveis; se é dinâmico, avança no tempo, revela uma história necessária, demonstra todo o sentido do passado, prevê sem falhas o futuro e vive de transições.
A obra de arte encontra aí lugar certo: o de exemplo. Seu papel é manifestar concretamente a verdade do conceito geral: ela é a testemunha, a confirmação. Modestamente, seu ser se esvazia e ela se torna o veículo da interpretação ampla; deixa de existir para que a estrutura abstrata ou teórica brilhe ainda mais forte.
Para evitarmos referências indígnas, tomemos um grande texto, os Conceitos fundamentais da história da arte, de Heinrich Wölfllin. Sua ordenação é conhecida. De um lado, as célebres cinco classificações formais de oposição que definem classicismo e barroco. De outro, análises de obras de arte, segundo as categorias enunciadas. Essa clareza, no entanto, esconde algo de paradoxal.
Wölfllin tinha o projeto de transformar a história da arte numa ciência das formas – não é mera coincidência o fato de que escreveu seu livro no momento em que surgia a abstração nas artes plásticas. Sua trajetória, entretanto, não foi a da pura especulação, ela foi indutiva. Wölfllin parte de uma grande proximidade com as obras, estabelecida pelo menos desde seu Renascença e Barroco. É o exame concreto da produção desses períodos que o induz às categorias opostas. Lançadas no universo das abstrações racionais, demasiado simples para serem realmente satisfatórias, mas pela própria simplicidade multo sedutoras, elas logo foram utilizadas fora da delimitação temporal que lhes dera origem, e passaram a absolutos universais: basta pensar na utilização que delas fez Eugeni d’Ors.
O paradoxo secreto surge da leitura. De um lado, na exposição dos opostos, a clareza nítida, tão geral que só pode servir, seriamente, como instrumento pedagógico a ser manipulado com precaução; a insatisfação diante de definições que se mostram adequadas apenas para alguns casos estrategicamente escolhidos. A relação mecânica ilustra-se a si mesma, as obras se enquadram, se uniformizam, desaparecem diante do jogo fascinante dos contrários. De outro lado, as análises, longamente desenvolvidas na segunda parte do livro, ricas de observações, seguem com agudeza e precisão os problemas muito específicos de um quadro, uma estátua, um edificio, descobrem associações, obrigam-nos a ver mais e melhor, forçam-nos à inteligência.
A complexidade analítica faz esquecer o esquema, e, através do texto, os objetos percebidos tornam-se mais visíveis, mais presentes, mais densos. O esquema, entretanto, por si só, não engendrará nunca tais análises. Aqui está o paradoxo: não são seus instrumentos que permitem a Wölfflin as análises finas, porque estão muito aquém delas. E conhecer tais instrumentos não levará jamais leitor algum a proceder a uma análise como o faz Wölfflin.
Os poderes da razão são fortes, por causa da sensação segura que ela provoca. Não é esse discorrer nuançado dos Conceitos fundamentais que penetrou, de maneira decisiva, no pensamento sobre as artes do nosso século. A posteridade consagrou sobretudo as categorias da oposição: como elas são cristalinas, como dividem tão claramente a história das artes em dois, em cinco, em dez! Elas tiveram inegável papel fecundador. Mas o paradoxo continua: a classificação não é o passaporte infalível para a compreensão do objeto; e dentre os que dela se serviram, só alguns chegaram a resultados satisfatórios. Certamente aqueles que, de fato, não precisavam delas.
Poderíamos dizer simplesmente que o emprego de conceitos teóricos, intérpretes e ordenadores, não basta: “Hay que poner talento”. Mas não se trata aqui apenas de uma virtuosidade instrumental. O exemplo de Wölfflin sugere que existe uma natureza diversa da compreensão num momento e no outro de seu escrito. Num, a obra está submetida, dissimulada. No outro, ela ressurge, mais rica, depois da leitura.
A diferença encontra-se no abandono da posição determinante ocupada pela razão, de onde emanam raios luminosos que dão existência ao objeto opaco. Na segunda parte do livro de Wölfflin operou-se uma reviravolta. O objeto não é mais explicado, ele é explicante. Ou melhor, ele é o sujeito do qual uma observação minuciosa, fiel, atenta, busca extrair lições.
Sujeito, e sujeito pensante, com o qual é preciso aprender, como se aprende com o mais intrincado e profundo sistema teórico. Não, entretanto, com os mesmos meios. É forçoso aceitarmos que existe um pensamento, uma reflexão sobre o mundo, sobre o homem, sobre as coisas, que não se dá no âmbito do conceito e da razão.
Racionalistas puros e duros traçarão a linha divisória e denominarão, com pejo, o oposto, o avesso, como aquilo que não é o que sou: irracional. A razão possui alguma coisa de militar, necessariamente sempre alerta contra os inimigos que a rodeiam, inimigos informes, anormais, perigosos. A nostalgia de uma razão impossível, sucumbida diante dos delírios, possui a angústia vã da vigília, o medo certeiro do descanso: é assim que o pintor nos ensina – o sono da razão produz monstros.
A obra de arte, entretanto, fala dos monstros, da noite, do terror, e também do harmônico, do luminoso, do calmo – e mesmo do racional, mas a seu modo. Nada se passa numa inteireza franca ou numa transparência, nada se reduz à definição – quando ele existe, o raciocínio rigoroso está comandado por algo que o ultrapassa e que pode revelá-lo como falácia.
No exterior da razão, esse algo é indizível, pelo menos através das palavras corretas e próprias às construções interpretativas. As inteligências exigidas e secretadas pela obra de arte, sua lucidez específica, são diversas. Elas estão contidas num gesto, numa inflexão da voz, num olhar, numa rima, no tom de um céu, no volume de um seio, nas proporções de uma janela, numa metáfora, no som do violino ou do trombone. Esses e infinitos outros são momentos de um todo que adquire sentido através de uma percepção sensorial, de uma intuição. Um veículo indispensável são as emoções, em todas as suas gamas, é a experiência insubstituível. Nós compreendemos através delas, e não pelo recado do conceito.
Qualquer página de Henri Focillon – cuja familiaridade com as obras de arte engendrou um sistema interpretativo geral e orgânico -, uma de suas análises sobre Dürer ou Prud’hon, por exemplo, traz, a cada linha, fulgurâncias, iluminações, associações inesperadas e definitivas. Isso provém menos das generalidades desenvolvidas que da força heurística de um estilo. Porque, no texto de Focillon, as mãos pensam. Elas não transcrevem, obedientes servas, as ideias acabadas que o cérebro gerou. Elas, pondo umas atrás das outras as palavras, muito concretamente, produzem a percepção esclarecedora do objeto.
Focillon escreveu um Elogio da mão, essas mãos do ceramista que sabem dar forma ao barro. Sentem a consistência da argila, percebem o momento em que devem ceder ou apertar, e da massa informe – ininteligível – nasce a perfeição do vaso.
Henri Matisse uma vez deixou-se filmar pintando. Seus quadros eram executados rápida, certeiramente. Mas o cineasta fez a fita correr em câmera lenta – o gesto então, não o pintor, decompunha-se em paradas, hesitações, escolhas.
Apreender a obra ou fazê-la são atos que pressupõem ou que dependem do mistério. As certezas cientificistas de nosso tempo, os racionalismos pouco sábios, não toleram a ideia de que algo lhes escape, temem as trevas e creem na luz universal, tão enganadoramente torva. Entretanto, é inútil excluir o mistério, – ele está em nós e em torno de nós. E as obras de arte nos ensinam – dura tarefa – a conviver com ele.
Da mesma forma, muitos pensamentos suficientes e autoritários decidiram terminar, de uma vez por todas, com a ideia insuportável de gênio. Não podemos explicá-lo, portanto, ele não existe. Fruto de um obscurantismo perverso ou de um idealismo reacionário, além de não existir, ele deve ser insultado. Os antigos, os renascentes, os românticos, com enfoques diversos, sabiam, porém, que a criação artística provém do inexplicável. E que os artistas, maiores ou menores, assenhorearam-se de um poder que não é concedido a todos, e que, eles próprios, artistas, dificilmente conseguiriam no-lo descrever. Genialidade e mistério, noções incômodas em tempos de causalidades explicativas. Mas contidas nas obras de arte, que nos fazem penetrar nos negrores da não razão.
Os românticos foram direto ao cerne. Deram-nos a experiência das trevas, do sem destino, do sem sinal. Mostraram-nos que todos os sinais são falsos, não em nome de um sentido superior, mas porque não há sentidos. Lançaram-nos na angústia do mistério, onde certas vozes falam mais sabiamente que outras: as da loucura, as da criança, as da mulher, as do povo, as do demônio, todos esses seres que não foram iluminados pela razão, mas que sabem exprimir as falas das trevas.
Penetremos num teatro. As luzes se apagam, a orquestra ataca com sons que nos deixam os nervos à flor da pele. Alguém, interpretando um canto assustador, nos narra coisas terríveis. É noite, e muito escuro. Uma mulher toma seu amado por um outro, que a ama, mas que ela odeia. O heroi, objeto de paixão, não sabe quem ele próprio é; possui uma falsa mãe, cigana e louca, assombrada por fantasma sedento de vingança. Do amor maternal o arranca a amada em perigo. Ela devia entrar num convento, mas onde, neste mundo, os refúgios pacíficos? Fogem os dois. Da mulher amada, o arranca a mãe em perigo, prestes a ser, queimada numa fogueira. Enfim, o heroi é executado pelo próprio irmão, que desconhecia a fraternidade aterradora. Essa trajetória desvairada faz com que se cumpra o destino absurdo, despertado por uma maldição que recai impiedosamente sobre cada um.
É inútil lembrar quanta zombaria vitimou Il Trovatore de Verdi e toda as situações inverossímeis das óperas românticas, como o comportamento incoerente dos personagens, movidos por paixões que não se explicam – que, exatamente, não possuem razões. Tudo é inteiro e denso, e só pode entregar-se assim. Toda tentativa de esmiuçamento, de recorte, de detalhe, está fadada ao fracasso.
Torna-se muito difícil, precedidos por práticas analíticas que exigem cadeias causais e a abolição de todo acaso, aceitarmos hoje esse amálgama disparatado de ações sem sentido.
O incompreensível é absurdo, dirão as análises racionais. Que mecanismos psicológicos, que situações sociais, históricas, econômicas, políticas dão conta de tais quimeras? A atitude romântica justamente, por sua vez, denuncia: eles não dão conta. E, ao afastamento determinado pela razão, faz emergir, torna visível, palpável, presente, a espessura do desconhecido, a experiência do terrível, por meio dos choques, das comoções, dos arrepios. Mas haverá aqui uma oposição entre o racional e tudo o que está fora da razão? Visto do lado da ortodoxa positividade lógica, não há dúvida: o irracional é o não ser da razão, que o recusa e estigmatiza. Fora de tais parâmetros, entretanto, não descobrimos o terrível inimigo das justezas racionais, os implacáveis espíritos negando e ameaçando sem trégua o reino harmonioso dos universais que regulam o bem. Descobrimos apenas que se trata de não razão, isto é, de um outro domínio, pelo qual podemos ser levados a perceber o mundo e os seres, a uma sabedoria que não cabe nas equações. Atinamos que os caminhos emocionais, intuitivos, sao modos também de conhecimento, mais profundos até, embora impronunciáveis, ou tão pouco, ou de outro modo. Poderíamos chegar ao princípio de uma razão dilatada, uma razão que desconfiasse dos seus próprios silogismos, e que aprendesse a respeitar, se não como superiores, pelo menos como iguais, essas outras sendas de saber.
Talvez pudéssemos ir mais longe, e pensar mesmo os grandes sistemas filosóficos sob a forma de obras de arte, considerando que, tanto quanto a definição dos conceitos, contam a riqueza das metáforas, o vigor do estilo, a beleza da arquitetura dos raciocínios. O conceito não seria mais nem meio instrumental nem transparência – existiria numa densidade rica, infinita, de possíveis. Um grande romance e uma grande teoria explicam o mundo – sem que haja verdadeira diferença de natureza entre eles.
Uma vez os preconceitos desfeitos, teríamos então uma densidade reflexiva e sensível. Os românticos, é bem claro, não inventaram o irracional, nem foram verdadeiramente seus adeptos. Apontaram distintamente para o irracionalismo da racionalidade que, tantas vezes, tomada de uma embriaguez triunfante, enlouquece. Muitos e muitos foram, na sua história, os momentos em que a ciência mostrou-se enlouquecida, em pecado de orgulho, em excessos trazidos pelo rigor de um raciocínio que se basta a si próprio e que incide, universal e autoritário, em consequências desastrosas, sobre o mundo. A hybris da razão faz aflorar o germe irracional ali escondido.
Os românticos sabiam que só a razão criou a irracionalidade, traçando uma fronteira. Eles sabiam que o irracional não se identifica simplesmente com o que não é racional. Mostraram o quanto havia de obscurantista nas certezas e nas verdades. Aprenderam, e ensinaram, a lidar com o incerto, com o duvidoso, de que o mundo é feito. Revelaram a solidão e o abandono de que os homens são feitos. Praticaram uma sensibilidade inconformada, em desacordo com as regras, rebelde diante das harmonias que se dispunham como eternas e reais, e que eles sabiam falsas. Centraram essas revoltas no indivíduo, pois toda forma de conforto – solidário e coletivo instaura a força das convícções incontestes. Extremaram, certo, as convícções pessoais – mas só quando elas determinavam conflitos e contradições. Foram cavaleiros solitários, pois não acreditavam na universalidade das escolhas.
A razão oferece etapas a serem cumpridas para seu aprendizado. Com método, não há por que desesperarmos de atingir o universal. Entretanto, como descobrirmos os caminhos do mistério? Não há método para tanto. No que precedeu, constatamos sensibilidades, intuições, emoções, atitudes, comportamentos, estesias e quase uma ética. Tudo isso não constitui momentos de um aprendizado progressivo e organizado.
Os surrealistas tentaram organizar atitudes e procedimentos que nos fizessem passar do absurdo mundo lógico ao universo das revelações suprar-raciocinantes. Fizeram isso a partir de buscas sistemáticas, de princípios éticos estritos, onde existia, muitas vezes, entretanto, um certo espírito contraditório que levava a instruções minuciosas para que a travessia se fizesse, quando ela exige, pelo contrário, a recusa da receita. Nessas tentativas, se o espírito de sistema se encontra deslocado, resta o desejo do projeto, motor mais forte. E a travessia se faz.
Assim, diante do fracasso das etapas ordenadas, vence uma noção tão imprecisa quanto imponderável: o desejo. São noções dessa natureza com as quais, nesse âmbito, temos que lidar. Não há regras, ou lições teóricas para tanto. São laços criados por impulsos, por afetos, por adesões. Para que possamos aderir a eles, é preciso de algum modo atraí-los. Os românticos, ainda eles, sabiam os climas propiciatórios, as noites enluaradas, os lagos silenciosos, os ermos melancólicos. Pela saciedade, puderam estes transformarem-se em atributos caricaturais. É inegável, entretanto, que eles tiveram realmente poderes. Baudelaire, Poe e Dostoiévski perceberam que as provações do corpo – o jejum, a febre, as fraquezas – ou os seus estímulos – as bebidas, as drogas, as excitações histéricas – eram capazes de nos levar a estados privilegiados em que uma percepção superior surgisse.
Disso tudo, entretanto, o que permaneceu foram as obras de arte. Românticas ou não, elas enfeixam universos a serem explorados com essas vibrações emotivas, intuitivas. E se são as obras pensantes, como dissemos, elas nos indicarão as sendas, elas extrairão dos movimentos da alma os modos que nos levam às contemplações almejadas.
Volta aqui uma ideia, de antiquíssima origem – a frequentação, o contato constante, respeitoso e desvelado. Não esperemos chaves para portas fechadas, soluções para problemas armados. Surgirá, porém, uma progressiva modificação do espírito, que aprende por meio da própria metamorfose. O ensino trazido pelas artes se faz por ascese, por iniciação, pelo olhar demorado, pela escuta atenta. Isso acarreta uma séria moralização à soberba dos conceitos e da teoria. Pois as obras gostam da nossa atenção. Mais e mais a elas nos consagramos, mais e mais elas nos devolvem sentidos ocultos, inimaginados. E com isso fogem constantemente ao rigor classificatório, escapam das camisas de força que lhes são impostas. Denunciam assim a estreiteza e a tirania dos sistemas. Indicam-lhes os limites.
Não é possível prescindir, nesses domínios, do trabalho da razão, da busca metódica, da exatidão comparativa ou analítica. Eles esclarecem, situam, permitem que o pensamento não enverede pela indignidade do arbitrário. Revelam-se também como modos da frequentação. Está bem claro, porém, que eles não substituem o legítimo contato. Os imperceptíveis vasos comunicantes entre cada um e a sinfonia, ou o quadro, ou a estátua, ou o poema, estabelecem-se por meio da relação privilegiada, capaz de criar ainda laços invisíveis entre os espectadores, ouvintes, leitores, de uma mesma obra. Não exatamente os mesmos sentimentos, não os comportamentos unânimes, mas ligações complexas, possivelmente até emaranhadas e contraditórias. Com essa natureza específica, chegamos aqui ao centro de uma religio artis, no seu sentido mais precisamente etimológico. Os instrumentos racionais, então, se prestam como uma das maneiras, e dentre as mais elevadas, da aproximação. Desde que eles se encontrem submetidos ao principal, humílimos servos. Assim como o contemplador, que se submete e se entrega às trevas insondáveis.