2005

Música instrumental – O caminho do improviso à brasileira

por Ana Maria Bahiana

Resumo

A denominação “música instrumental” ou, como preferem os músicos, “música improvisada” foi retomada como assunto de investigação e debate inúmeras vezes, principalmente a partir da metade final dos anos 70. Na verdade, o assunto central dessas discussões referia-se, basicamente, às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica.

Dois grandes assuntos foram levantados e debatidos a década de 70: um, a problemática profissional do músico enquanto classe; outro, a disputa pela atenção do público, da indústria fonográfica e dos meios de comunicação empreendida por esses músicos de formação jazzística, herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes) da linhagem da bossa nova.

Os problemas e dificuldades profissionais da classe de instrumentistas dizem respeito antes à organização da classe – único meio eficiente de fazer valer o direito de qualquer categoria profissional, artística ou não. Mas, além da mera sobrevivência, o que se discutiu foi a efetiva participação do músico no processo criador, a retomada da velha disputa cantorversusinstrumentista, música cantada e música improvisada.

O último grande momento instrumental do Brasil tinha sido a bossa nova. Após quase uma década de refinamento harmônico e depuração da síntese jazz/samba a palavra recuperou espaços com o racha da música de participação, ou protesto, de meados dos anos 60. O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais, nos derradeiros anos 60 e primeiros 70. Quando a censura empenhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teoricamente, incensurável e livre – se fizeram ouvir.

Na teoria, os primeiros anos 70 deveriam registrar, portanto, um ciclo natural e espontâneo de música instrumental. Mas tal não se deu, por muitos motivos. Primeiro, o jejum forçado imposto às plateias não criou de imediato um interesse por música instrumental, mas esfriou todo o processo criativo e consumidor de música no Brasil. Havia, de um lado, uma enorme apatia do público e desinteresse total das gravadoras; e, de outro, uma atrofia dos próprios criadores em potencial, depois de anos acompanhando cantores, fechados em círculos restritos, autofágicos, isolados e desanimados inclusive pelos próprios problemas imediatos, profissionais, da classe.

A gradual modificação do comportamento do mercado, a partir de 1976/77 acabou trazendo à luz não exatamente um boom de música instrumental mas pelo menos alguns nomes de real consistência, aumentando assim o leque de opções, acrescentando a música improvisada, já em uma forma nova, distante de seus tempos de jazz /bossa, à prática musical do país.Curiosamente, um dos fatores que ajudaram a criar uma plateia para a música improvisada foi o rock. Assim como as plateias jovens dos primeiros anos 60 tinham educado o ouvido para o improviso consumindo jazz – e esperando uma fusão tipo jazzística dos músicos – as plateias novas, que começam a se interessar por música em meados dos anos 70, tinham seu gosto formado em grande parte pela liberdade de improviso do rock mais “progressivo”, mais aproximado do jazz e dos clássicos – e, ao encontrar essa qualidade em músicos brasileiros, fizeram eco. Não seria exagero afirmar que grande parte do público que tornou possível a existência de uma atividade constante da música improvisada, no Brasil, seja constituída por roqueiros desiludidos com os substitutos nacionais de sua música favorita.


A denominação “música instrumental” — ou, como preferem os próprios músicos, “música improvisada” — parece, a princípio, elástica e abrangente. Esteve constantemente em pauta durante a década, foi retomada como assunto de investigação e debate inúmeras vezes, principalmente a partir da metade final dos anos 70. Mas, na verdade, o assunto central dessas discussões, o tema oculto sob a designação “música instrumental” — palavra que, por definição, deveria se aplicar a toda forma musical executada exclusivamente com instrumentos, sem o concurso do texto cantado, o que incluiria desde o choro até a música dita “clássica” ou “erudita” — não era tão imenso como fazia supor. Referia-se, basicamente, às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica.

Portanto, ao tentar compreender em perspectiva a produção e a discussão da “música instrumental” nos anos 70, é preciso fazer essa distinção. Dois grandes assuntos foram levantados e debatidos nestes anos. Assuntos diversos e frequentemente — mas não necessariamente — comunicantes: um, a problemática profissional do músico enquanto classe; outro, a disputa pela atenção do público, da indústria fonográfica e dos meios de comunicação empreendida por esses músicos de formação jazzística, herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes) da linhagem da bossa nova.

Os problemas e dificuldades profissionais da classe de instrumentistas — onde se incluem desde os músicos de sinfônica até os integrantes de bandas carnavalescas — não surgiram nesta década. E nela não foram solucionados, apesar de terem atraído, talvez como nunca antes, a atenção dos meios de comunicação, principalmente a imprensa. Em 1977, a morte do violinista Macumbinha (Benedito Inácio Garcia) e sua família (mulher, dois filhos) por um escapamento de gás tido mais como suicídio que acidente deu a ênfase dramática num debate que já havia sido levantado desde o início da década. “O sindicato, a Ordem dos Músicos, como outros sindicatos, nada fazem, nada reivindicam. Existe o medo da intervenção. Os músicos têm todos os dias seu mercado de trabalho aviltado. Se fecham em pequenos grupelhos de características mafiosas, pra disputarem as sobras de um mercado de trabalho ocupado pela importação de cultura de consumo, importação essa que dá altos lucros para os empresários, mas faz os espectros da fome rondarem os lares dos trabalhadores brasileiros”, escreveu Plínio Marcos, na época.[1]

Mas o problema não era tão simples, nem tão recente. As fases de fartura e penúria para o músico como profissional parecem antes obedecer a ciclos, e as queixas contra inimigos que roubam espaço do instrumentista vêm de outras décadas, mudando apenas o nome do acusado: iê-iê-iê, discoteca (não a dos anos 70, mas a dos 60), fita pré-gravada. Os problemas principais, que apenas nesta década aproximaram-se de uma solução, dizem respeito antes à organização da classe – único meio eficiente de fazer valer o direito de qualquer categoria profissional, artística ou não. Indagado sobre as causas das dificuldades de sobrevivência e afirmação do instrumentista, no Brasil, o trompetista Márcio Montarroyos não hesitou em responder: “É porque não têm organização, não querem ir à luta. O músico que fica em casa estudando e chorando porque ninguém lhe dá valor não adianta”.[2] E de fato, em parte realimentados pelo próprio interesse da imprensa em levantar seus problemas – pagamento justo pelos horários de estúdio, maior aproveitamento do músico em casas noturnas e gravações de publicidade, facilidade de compra de bons instrumentos, quase sempre importados e sujeitos a alta taxação -, os esforços dos músicos no sentido de pressionar suas organizações, em geral tidas como inoperantes, principalmente a Ordem dos Músicos, trouxeram alguns resultados práticos. Reajustes periódicos do pagamento por período de gravação e atuação em espetáculos e casas noturnas, revogação do ISS pago sobre cachês, assistência médica e auxilio funeral foram algumas das conquistas principais da classe nesta década.[3]

Mas, além da mera sobrevivência, o que se discutiu foi a efetiva participação do músico no processo criador, a retomada da velha disputa cantor versus instrumentista, música cantada e música improvisada. Mais uma vez, é um problema cíclico – a períodos de predominância da fala e do texto seguem-se fases de rebuscamento harmônico e improviso. Os anos 70 viram o estouro da ponta de um desses ciclos e o começo do parto de mais uma forma nova de música improvisada – e uma nova plateia.

O último grande momento instrumental do Brasil tinha sido a bossa nova. Após quase uma década de refinamento harmônico e depuração da síntese jazz/samba – operada, em sua maior parte, por uma geração coesa de instrumentistas, contemporânea em idade, cabeça, formação – a palavra recuperou espaços com o racha da música de participação, ou protesto, de meados dos anos 60.[4] O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais, nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura empenhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teoricamente, incensurável e livre – se fizeram ouvir.

Eram músicos – quase todos compositores – da derradeira geração formada em jazz e bossa, que iam começar a entrar em cena com força quando a palavra instaurou seu reinado. Em doses menores, havia sobreviventes da própria bossa, exilados no posto de acompanhantes de cantores ou no exterior, mesmo – a eterna Meca, o amplo mercado próspero com capacidade quase infinita de absorção de mão-de-obra.

Na teoria, os primeiros anos 70 deveriam registrar, portanto, um ciclo natural e espontâneo de música instrumental. Mas tal não se deu, por muitos motivos. Primeiro, o jejum forçado imposto às plateias não criou de imediato um interesse por música instrumental, mas esfriou todo o processo criativo e consumidor de música no Brasil – de tal forma que a indústria do disco, por exemplo, só começou a registrar dados positivos de crescimento a partir de 1974. Havia, de um lado, uma enorme apatia do público e desinteresse total das gravadoras; e, de outro, uma atrofia dos próprios criadores em potencial, depois de anos acompanhando cantores, fechados em círculos restritos, autofágicos, isolados e queixosos, desanimados inclusive pelos próprios problemas imediatos, profissionais, da classe.[5]

A gradual modificação do comportamento do mercado, a partir de 1976/77 – vitalizado em geral, e em geral interessado em música – acabou trazendo à luz não exatamente um boom de música instrumental – o que talvez fosse dramático e até esperado por alguns, mas dificilmente resultaria em efeitos duradouros – mas pelo menos alguns nomes de real consistência, aumentando assim o leque de opções, acrescentando a música improvisada, já em uma forma nova, distante de seus tempos de jazz /bossa, à prática musical do país.

O interesse do público não veio subitamente, e não surgiu do nada. Curiosamente, um dos fatores que ajudaram a criar uma plateia para a música improvisada foi um dos maiores acusados – o rock. Assim como as plateias jovens dos primeiros anos 60 tinham educado o ouvido para o improviso consumindo jazz – e esperando uma fusão tipo jazzística dos músicos – as plateias novas, que começam a se interessar por música em meados dos anos 70, tinham seu gosto formado em grande parte pela liberdade de improviso do rock mais “progressivo”, mais aproximado do jazz e dos clássicos – e, ao encontrar essa qualidade em músicos brasileiros, fizeram eco. Na verdade, não seria exagero afirmar que grande parte do público que tornou possível a existência de uma atividade constante da música improvisada, no Brasil, seja constituída por roqueiros desiludidos com os sucedâneos nacionais de sua música favorita. “Acho que a música instrumental no Brasil está começando a dar pé. (…) Agora já se encontra num show do Egberto, que é som puro, toda a garotada do rock.” disse, em 1976, o saxofonista/flautista Mauro Senise. E completou: “Está começando a surgir nesse pessoal uma outra concepção de som, porque, embora o rock também seja muito bom, ficar só nele não dá.”[6] Mariozinho Rocha, um dos diretores artísticos da gravadora Odeon (responsável por dois verdadeiros “sucessos” do setor, Egberto Gismonti e Wagner Tiso), foi mais explícito: “Os grupos instrumentais estrangeiros, como Focus, o de Rick Wakeman, vieram dar nova perspectiva ao mercado da música instrumental. O último LP de Egberto Gismonti vendeu 14 mil cópias, e o de Wagner Tiso, com apenas três semanas, já está com duas mil vendidas”.[7]

Também não se podem subestimar os esforços da imprensa e da crítica, trazendo o assunto incessantemente à tona na metade final da década, conseguindo em parte compensar o alheamento do rádio e da TV.[8] E as próprias iniciativas dos músicos, despertados enfim para a necessidade da coesão – o Projeto Trindade, particular e independente, concebido pelo cantor Luís Keller e pela fotógrafa e cineasta Tânia Quaresma, pode não ter alcançado a totalidade de suas metas grandiosas (funcionar como uma entidade, uma fundação alternativa de apoio ao músico, produzindo shows e discos) mas conseguiu atrair a atenção de gravadoras e meios de comunicação e, acima de tudo, aproximar os músicos uns dos outros, acima das rivalidades e medos, durante seu ciclo de shows, em 1978.[9]

A realização, extremamente bem-sucedida, de uma verdadeira maratona de música improvisada, em 1978 — o Festival de Jazz de São Paulo, em setembro —, serviu para atestar a existência inequívoca de um interesse pelo gênero. Apesar de não se poder descartar o apelo dos grandes nomes estrangeiros — John McLaughlin, Chick Corea, Larry Coryell, George Duke — e a tendência ao modismo. “Ouço muita gente falar do Hermeto. Mas poucos entendem”, afirmou Theo de Barros, ex-companheiro de Hermeto no Quarteto Novo, em dezembro de 1978. “Não sei se feliz ou infelizmente, ele está sendo tratado como um modismo. (…) Mas esse público jovem que o acompanha oferece uma vantagem. Dele você sempre consegue arrancar um aplauso, mesmo que seja por boa educação. Agora, o importante é ser fiel. E tenho minhas dúvidas: no momento em que a gente mais precisar desse público, será que ele não estará seguindo algum John Travolta?”[10]

Assim, com algum atraso, a geração de instrumentistas/compositores que lutava por um lugar no mercado desde a diluição da bossa nova começou a conquistar este espaço nesta década, não mais em conflito mas paralelamente à música cantada, com texto. Seria de imaginar que, pela demora e acúmulo, muitos seriam os músicos a passar por essa abertura. Nem tantos. Desacostumados a produzir para si, ou mal abastecidos de informação, por viverem em círculos fechados, os músicos, mesmo apresentando apuro técnico na execução, tinham pouco a mostrar em criatividade. (“Nosso problema principal é o de todo músico: o perigo da gente deteriorar como instrumentistas por falta de treino, de ensaio, de estudo”, disse o tecladista e compositor Marcos Rezende[11], que desenvolveu uma carreira de 10 anos na Europa antes de retomar ao Brasil, em 1976, onde criou o grupo Index, de múltiplas formações. “Com tanta luta para sobreviver, tanto trabalho de estúdio, o músico acaba não tendo tempo para se dedicar a seu instrumento”).

Um olhar sobre a produção instrumental ou improvisada — para distinguir o gênero do choro e do erudito, também instrumentais —, que finalmente aflora e encontra canais de escoamento a partir de 1976/77, vai revelar que os trabalhos mais consistentes e que melhor dialogam com as plateias são os que, justamente, rompem de certa forma com a cadeia jazz /bossa que foi seu berço. E incorporam dados novos, interessando-se sobretudo pela música dita de raiz. Nivaldo Ornellas, mineiro de Belo Horizonte, saxofonista, flautista — trabalhos com Milton Nascimento, sobretudo, mas também com Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti tem, sobre isso, um depoimento esclarecedor: “No começo eu fazia as duas coisas (atuar como instrumentista e compor) bem juntas. Era muito influenciado pelo jazz, né, como todo músico, e as duas coisas eram parecidas, jazz e bossa. Eu compunha umas imitaçõezinhas de bossa nova, sabe? Mas não mostrava a ninguém, achava bem ruinzinho. Foi aí por 72, 73 que composição e trabalho instrumental começaram a ficar bem diferentes. Eu tocava uma coisa e compunha outra inteiramente diferente, saía assim, não tinha jeito. Era toda uma volta a Minas, àquela coisa de música religiosa, essas coisas.”[12] (Nivaldo despontou como compositor no Projeto Trindade, em 1977, e gravou seu primeiro LP individual, Memória das Minas, no ano seguinte, dentro da série Música Popular Brasileira Contemporânea, da gravadora Polygram).

Como Nivaldo, outro mineiro, Wagner Tiso, evoluiu da raiz jazz/bossa para uma língua musical híbrida de clássicos, música regional e uma pitada de rock – que praticou, mais, nos anos do Som Imaginário, 1970/73. “Acho que essas coisas (jazz e música erudita) mais os sons de Minas mesmo, das igrejas, das fazendas, são os principais elementos do meu som. Ah, e tem o rock, é claro. Os Beatles, jazz e Beatles, pra mim, estão no mesmo plano.”[13]

Ao se encerrar a década, a música instrumental tinha no Brasil pelo menos dois grandes nomes – não só em termos de qualidade e persistência de suas obras, mas até em apelo junto ao público. Dois nomes que exemplificavam perfeitamente essa passagem da linha jazz /bossa para uma linguagem mais misturada e mais ampla: Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal.

Egberto, fluminense de Carmo, criado em Nova Friburgo, apareceu na fase final dos festivais (1969-70) fazendo – no piano e violão – um tipo de música que revelava sua formação de conservatório e suas preocupações com a elaboração dos arranjos. Durante quatro anos, seu trabalho em disco (e em ocasionais shows) seguiu essa linha: intrincadas peças onde a improvisação jazzística era controlada pelo preciosismo da ourivesaria orquestral, aproximando-se ora mais da canção (LP Água e vinho, 1972), ora dos processos “eruditos” (LP Egberto Gismonti, conhecido como “da árvore”, 1973).

A partir de 1974 e do LP Academia de danças, Egberto começou a passar a limpo essas informações, decantando e fundindo a liberdade do improviso e a elaboração do arranjo com – cada vez mais – dados de música brasileira básica. Cada disco dos anos seguintes – e eles foram cada vez mais abundantes e frequentes, principalmente a partir de uma bem-sucedida e premiada carreira no exterior, através do selo alemão ECM, dedicado a jazz e música de vanguarda – aprimorou mais esta fusão, e trouxe-a mais perto não de uma utópica e, no caso, impossível “simplicidade”, mas de uma organicidade, uma unidade, uma originalidade que não devia nada aos patronos inaugurais do bossa/jazz, mas instaurava uma nova categoria, uma nova língua musical expressa através da execução instrumental. “Não sei bem o que foi, ou melhor, foi um processo acelerado por tudo isso”, ele disse, em 1977, esclarecendo o processo de depuração de sua música. “De repente eu vi a mentira de tudo, a mentira, basicamente, que se escondia em diversos relacionamentos meus com as pessoas, com a música. Por exemplo, pra que ficar pondo cordas numa música que não pede cordas, apenas pra soar sinfônico, falsamente sinfônico, porque sinfônica mesmo é outra coisa, outros músicos, outra estrutura de música? Por que fazer isso só porque eu tinha decidido que essa era minha forma de música? Por que não tocar simplesmente do jeito que eu tinha composto?”[14]

O trabalho no exterior, para a ECM, em colaboração com o notável percussionista Naná Vasconcelos – “exilado” na Europa desde 1974 -, desenvolveu e apurou essa fala musical onde a liberdade essencial do improviso é entendida em si mesma, sem pagar tributo a nenhuma forma já estabelecida, como o jazz — os procedimentos musicais de Egberto são originais, próprios, obedecem aos impulsos e controles de seu criador e só podem ser chamados de “jazzísticos” se tomarmos o termo como sinônimo exato de improviso e livre associação musical, o que não seria verdadeiro.

É o mesmo procedimento encontrável em Hermeto Paschoal. Só que esse paraibano de Lagoa da Canoa chegou a esse — digamos — improviso selvagem por outros caminhos. Criado em família de músicos, ouvindo forrós e xaxados, Hermeto profissionalizou-se cedo como instrumentista de rádio, integrante dos “regionais” que acompanhavam cantores em Caruaru e Recife. No Rio desde 1958, Hermeto prosseguiu tocando em rádios e casas noturnas — o que significava acesso e prática de todo tipo de música, do samba-canção ao chorinho, passando pelo jazz — revezando-se no piano, acordeão, sax e flauta. Dez anos depois, integrava o Quarteto Novo, ao lado de Airto Moreira, Theo de Barros e Heraldo do Monte, no acompanhamento de Geraldo Vandré. E, pouco depois, ia para os Estados Unidos, a convite de Airto.

Na América, Hermeto foi “descoberto” por Miles Davis — segundo Airto, virou “o bicho de estimação do Miles” — e desenvolveu uma carreira respeitada como músico, compositor e arranjador, no meio de jazz. De volta ao Brasil em 1974 — embora continuasse viajando esporadicamente para os Estados Unidos — Hermeto começou a desenvolver uma linha de ação peculiar, única. Com apenas três discos lançados no Brasil (um em 1972 e os outros muito mais tarde, em 1978 e 79) e sem abrir mão de sua forma livre e muitas vezes caótica de trabalhar, transformou-se em figura de culto das plateias emergentes — a ponto de provocar o comentário de Theo de Barros sobre os perigos do modismo.

Mas, de fato, Hermeto foi ao encontro, perfeitamente, dos ouvidos desse novo público. Sua música é uma torrente de livre associações, onde a prática do improviso se desenvolve a partir de dados muito terra a terra, retomando os xaxados e xotes da infância e da adolescência, e citando o choro, o regional da juventude. E, como Egberto, mas por caminhos e com resultados diversos, tirando do jazz a exclusividade e a sinonímia do improviso, encontrando alternativas para a prática instrumental no Brasil. “Quando eu vou gravar, a minha preocupação é essa, só: fazer um trabalho sem qualquer influência. Eu improviso da minha maneira. Muita gente confunde improvisação com jazz. Brasileiro quer improvisar feito americano e quebra a cara.”[15]

Impossível falar da música instrumental no Brasil, nos anos 70, sem mencionar a verdadeira emigração de músicos para a Europa e, principalmente, Estados Unidos — e suas consequências. Causada de imediato pela falta de horizontes profissionais nos últimos anos 60 e primeiros 70, a leva de instrumentistas que foram tentar a sorte no sempre utópico e sonhado mercado americano — onde parece haver lugar para todo tipo de música — na verdade apenas retoma um movimento migratório que nunca cessou de existir, neste século. Os acenos do Eldorado americano — com a Europa a reboque — não são desta década, é claro; o apelo de fazer “a Europa (ou a América do Norte) curvar-se ante o Brasil” já está na história de nossa cultura há muitos anos, para não dizer séculos — talvez desde a Independência. Nos anos 70 houve apenas um recrudescimento desse chamado — cuja última grande colheita fora justamente em fins da era bossa nova, levando consigo Tom Jobim, Sérgio Mendes, João Gilberto, Edu Lobo e muitos outros. O impasse profissional para o músico, no Brasil, e o crescimento do mercado nos Estados Unidos, coincidentemente, se incumbiram de atrair um lote considerável de instrumentistas da derradeira geração jazz /bossa, em levas sucessivas que começam em 1968/69 e diminuem de intensidade apenas nos anos finais da década.

Os resultados dessa migração, contudo, foram bastante inferiores ao otimismo dos viajantes, que viam, no próspero mercado americano, a solução imediata para todos os seus problemas. Lá, como cá, a música improvisada de qualidade, continuação natural do jazz, estava restrita a uma faixa pequena do público — embora, evidentemente, muito maior que o quinhão correspondente no Brasil. Nesse círculo fechado, os espaços já estavam praticamente ocupados — e a concorrência como forasteiro era duríssima. Restavam duas opções: ou entrar via Europa, onde algumas etiquetas mantinham um interesse constante por música instrumental de vanguarda (caso da ECM, de Egberto e Naná), ou empregar-se nas diversas opções do mercado americano, do rock à música para dançar.

Em todos os casos — quem conseguiu acesso diretamente ao creme do meio americano, quem penetrou via Europa e quem se colocou em grupos não necessariamente de jazz — tiveram mais sorte os percussionistas. É natural: há muito tempo a música “civilizada”, seja americana, seja europeia, sente-se atraída pelo “exotismo” e pela “selvageria” do “traço mais típico” da produção musical ao sul do Equador (ou a oeste da linha de Greenwich): a percussão. É o dado novo mais facilmente reconhecível e assimilável, e, no momento exato em que o jazz se inclinava mais e mais para as formulações rítmicas — a fusion, o jazz /rock — e que a indústria do disco encampava a música para dançar como gênero importante, a chegada de percussionistas egressos da América Latina era extremamente oportuna. Para muitos músicos brasileiros, o interesse americano pela percussão, quase exclusivamente, foi revelador da distância que havia entre o jazz praticado em seu berço próprio e o que eles pensavam ser uma variação brasileira do gênero. Enquanto improvisadores, seguindo um padrão estabelecido pelo jazz americano, só havia lugar se se tornassem percussionistas — ou adotassem claramente a linguagem do dono do mercado.

Fora da percussão, poucos conseguiram escapar a esse processo. Egberto, porque chegou ao mercado americano via ECM — onde tinha e tem toda liberdade de criação —, foi um deles. Hermeto, porque manteve-se teimosamente íntegro em sua maneira de criar e sem ambições a estrela, também. Já o trombonista Raul de Souza, morando nos Estados Unidos desde 1973, e gravando lá desde 75, traçou uma carreira que se afasta cada vez mais do Brasil e de seu estilo original e se embrenha a fundo na fusion music americana, um gênero que, segundo ele, “possibilita maior entendimento por parte do povo, que nem sempre entendia a bossa nova e o jazz”[16]. Profissionalmente bem-sucedido, líder de seu próprio grupo de cinco músicos e duas cantoras, Raul admite, no entanto, que é um em mil, e que, para chegar a esse ponto, “foi preciso comer muito pão duro, tomar muito cafezinho sem açúcar”.[17]

Na área da percussão, as histórias de sucesso são mais frequentes. Incluem o genial e irredutível Naná (outro contratado da ECM), Alirio Lima (John McLaughlin), Dom Um Romão (Weather Report), Paulinho da Costa (Chuck Mangione, Minnie Ripperton), Chico Batera, Laudir de Oliveira (Chicago, grupo mais para rock que para jazz) e Airto Moreira, este já candidato ao estrelato. Todos têm o mesmo depoimento a dar: o relato da curiosidade “civilizada” pela percussão “exótica” do Brasil. “Eles gostam muito da gente, colocam a gente nas alturas, você é uma especialidade, um tempero exótico que eles gostam. Mas não faz parte do dia-a-dia”, diz Chico Batera, que atuou como músico de estúdio, free-lancer, em Los Angeles, de 1969 a 72.[18] “A gente se vira, né? Não vou meter a mão mesmo, como eu batia no candomblé, não vou tocar como se estivesse numa bateria”, admite Laudir de Oliveira, que tocava em terreiros e blocos carnavalescos no Rio antes de viajar para os Estados Unidos com um grupo folclórico e acabar integrando o conjunto Chicago, a partir de 1975. “E nem precisa: qualquer coisa que eu faça tá bom, eles adoram qualquer coisa de ritmo brasileiro. (…) Agora, individualmente, é difícil um músico brasileiro influenciar de verdade, lá. Você tem de fazer a coisa, mas do jeito deles, senão eles não aceitam.”[19]

O grande sucesso americano, o precursor da onda da percussão brasileira é o paranaense Airto Moreira, que viajou para tentar a sorte na América, com sua mulher, a cantora Flora Purim, em fins dos anos 60. Depois de uma passagem pelo grupo de Miles Davis e outra pelo Return to Forever de Chick Corea, Airto e Flora foram adotados definitivamente pelo cenário de jazz americano. Vencedores, vezes seguidas, das listas de “melhores do ano” da publicação especializada DownBeat, nas categorias Vocal Feminino e Miscelânea, Airto e Flora tentaram passar do estágio de nome respeitado no meio jazzístico a estrelas do grande mercado americano de música. Um salto difícil, quase impossível para um forasteiro, e que traz consigo, sempre, uma grande dose de submissão às formas estabelecidas de fazer música para vender, na América.

Os derradeiros anos 70 encontraram Airto neste impasse, no sem-pulo. Quem analisou com agudeza a trajetória de Airto e Flora no mercado americano — o que, por extensão, é uma síntese das ambições e dilemas dos músicos brasileiros no exterior — foi Egberto Gismonti (com quem, aliás, Airto fez um dos melhores álbuns de sua carreira, Identity, de 1975). “Lá, o cara tem de passar por vários estágios. Primeiro, a gravadora reconhece nele alguma coisa de interesse, que vale a pena gravar. Depois, ele passa a ser um cara que vale a pena gravar porque se sabe que ele vai dar um certo retorno. (…) Agora daí você pode passar pra outro estágio. Os caras vão te perguntar: você quer ir pro outro estágio, quer tentar o milhão de cópias, o disco de ouro e tal? Depende de você. É um jogo. Você tem de saber jogar. Se você não souber, samba. O Airto e a Flora, por exemplo, estão meio sambados porque quiseram dar esse pulo maior e não deram o retomo esperado, então não estão nem lá nem cá.”[20]

Notas

  1. Folha de S.Paulo, 1°/7/1977.
  2. Entrevista a Maria Alice Paes Barreto, Jornal do Brasil, 6/9/1978.
  3. Entrevista de Wilson Sandoli, presidente da Ordem dos Músicos, a Jary Cardoso, Folha de S.Paulo, 26/7/1977.
  4. O baterista Edson Machado, falando a Sônia Nolasco Ferreira em Nova York, março de 1978: “Foi tanta letra que fizeram, intelectualizaram as músicas de tal forma que o pessoal deixou de escutar a melodia, ficou sem ouvido para o principal: a música” (O Globo, 25/3/1978).
  5. Uma brecha reduzida mas importante nesse período de marasmo foi o trabalho do grupo Som Imaginário. Liderado pelo tecladista e compositor Wagner Tiso, e com um núcleo integrado pelo baterista Robertinho e o baixista Luis Alves, o Som Imaginário teve ainda as participações de Tavito, Frederyko, Toninho Horta e Nelson Angelo (guitarras), Naná Vasconcelos (percussão) e Zé Rodrix (teclados). Entre 1970 e 73, gravaram três álbuns para a Odeon.
  6. Entrevista a Liana Fortes, Jornal de Música, 23/9/1976.
  7. Entrevista a Paulo Cezar Guimarães Barbosa, O Globo, 11/9/1978.
  8. No final da década, a TV tentou em vão recuperar o tempo perdido incluindo um pouco mais de musicais em sua programação e, inclusive, tomando acintosamente a bandeira da “luta pela música instrumental brasileira”. A Rede Globo, que estabeleceu padrões de atuação em TV, nesta década, namorou o tema pelo menos duas vezes: em 1977, com o malsucedido Levanta poeira, e em 1979, com Alerta geral, comandado pela cantora Alcione.
  9. A criação da série de LPs Música Popular Brasileira Contemporânea, pela gravadora Polygram (incluindo, no catálogo inicial, dois participantes de Trindade, Nivaldo Ornellas e Marcos Rezende), e o álbum individual de Wagner Tiso para a Odeon são, em grande parte, fruto do esforço do Projeto Trindade.
  10. Entrevista a Luis Henrique Romagnoli, Jornal do Brasil, 25/11/1977.
  11. Entrevista a Ana Maria Bahiana, Jornal de Trindade, novembro de 1978.
  12. Idem.
  13. Idem.
  14. Entrevista a Ana Maria Bahiana, O Globo, 29/2/1977.
  15. Entrevista a Ruy Fabiano e Ana Maria Bahiana, Jornal de Música, 21/1/1977.
  16. Jornal do Brasil, 7/9/1978.
  17. Jornal do Brasil, 7/9/1978.
  18. Entrevista a Tárik de Souza, Jornal do Brasil, 21/3/1976.
  19. Entrevista a Ana Maria Bahiana, O Globo, 31/10/1977.
  20. Entrevista a Ana Maria Bahiana, O Globo, 2/2/1979.

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