Navegar é preciso, viver
Resumo
A Carta de Pero Vaz de Caminha, que anuncia ao rei dom Manuel a descoberta do Brasil, contém um enigma que perdura ainda hoje. Ao mesmo tempo em que exprime o primeiro olhar de desejo dos marinheiros, ela oferece o achamento da terra ao rei e ao destino providencial já consignado em 1456 pelo papa à “Ordem de Cristo” portuguesa. Dessa tomada de posse os marinheiros são excluídos: eles doam a nova terra sem exigência de reciprocidade. Nenhum deles será donatário de capitania hereditária. Apenas chegaram a uma prazerosa “Ilha dos Amores” (como dirá Camões nos Lusíadas) e Caminha transmite seu deslumbramento ao descrever os corpos das mulheres (“tão formosos que não pode ser mais”). Desprovidos de casa e de economia, os marinheiros só se diferenciam dos índios porque estes têm mulher e eles não. Assim, cobiçar a mulher indígena é tudo o que o marinheiro quer em troca, como se ela fosse a razão da aventura depois do ascetismo da viagem. E isso faz pensar que, se o sem-casa tivesse se transformado em corsário sem-lei, não teria havido sistema econômico europeu. Mas Caminha diz que a terra dadivosa está à espera das “sementes” do batismo cristão que dará um nome aos selvagens. Se os leigos podem nomear acidentes geográficos, somente o batismo faz o selvagem entrar numa língua cristã. No começo, porém, o que havia eram gestos soltos e deslumbrantes, como quando Caminha descreve o momento em que Diogo Dias, ex-almoxarife de Sacavém, “meteu-se a dançar com eles [os índios] e eles folgavam e riam.”
DESTINOS DE UMA CARTA
Uma carta. Poderia ter sido uma carta de amor, escrita à semelhança de uma cantiga medieval no melhor estilo da tradição galaico-portuguesa inaugurada por Pai Soares de Taveiró. Poderia ter sido uma cantiga de amor que algum navegante-poeta assinava e enviava à amada em Lisboa. Esta, tristonha e entoando o próprio lamento numa cantiga de amigo, estaria esperando no Restelo notícias do marido distante ou engolido para sempre pelo mar português. Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Essa cantiga de amor, em forma epistolar, teria ficado silenciosa pelos séculos historicizantes afora, aguardando que o seu interesse e valor viessem à tona pela pesquisa de historiadores nossos contemporâneos que se ocupam de documentos da vida privada.
Não se trata de uma carta de amor assinada por um marinheiro da frota de Pedro Álvares Cabral que chora saudades da esposa e do lar. Trata-se antes de uma carta redigida por um escrivão e datada do dia 1° de maio de 1500. Ao ser transcrita pela primeira vez em 1817, essa carta ganha letra de imprensa e, ao mesmo tempo, cortes de censura: eis como está reproduzida na Corografia brasílica, do padre Aires Cabral. Sacerdote zeloso dos bons costumes, Aires Cabral na primeira transcrição do documento saltou aqui e ali — como outros o fizeram com as cenas mais picantes de Os Lusíadas — referências por demais realistas ao corpo das mulheres indígenas, levando Souza Viterbo a constatar que “os escrúpulos de sacerdote levaram de vencida os escrúpulos do consciencioso historiador”. Desde então, a carta se deixou reproduzir em edições cada vez mais fiéis, se deixou ler por especialistas e curiosos, com ou sem ajuda de glossários ou do eficiente vocabulário de Sílvio Batista Pereira. Deixou-se ler várias e sucessivas vezes, em diferentes circunstâncias e por várias pessoas de nacionalidades distintas. Todos a leram sem constrangimento ou pudor, mesmo sabendo que a carta transcrita em livro não era a eles destinada. Os seus leitores não se sentiam ontem, como nós não nos sentimos hoje, bisbilhoteiros da vida alheia. Trata-se de uma carta cujo enigma perdura e perdurará. Por isso, ela continua sempre atual, continua a nos falar hoje sem que nenhum de nós também se julgue seu destinatário privilegiado ou seu decodificador absoluto. Sua mensagem continuará a transitar séculos afora ao sabor do acaso e das comemorações históricas como se só fosse seu legítimo e passageiro (o paradoxo é inevitável) destinatário aquele que a nomeia ao dar-lhe sentido pela leitura. Ela circula por entre as mãos humanas, de além e aquém-Atlântico, como se vivenciasse o tempo circular e infinito do navio-fantasma que navega sem rumo pelos mares, como está na conhecida ópera de Wagner. E, séculos afora, a carta — morta, transfigurada e salva — continuará a repetir palavra por palavra a mesma mensagem para que seus leitores de ontem, de hoje e de amanhã desenhem o seu destino, desenhem parte recente da história da humanidade ao repeti-la de maneira etnocêntrica, traiçoeira ou diferenciada, com o fim de desvelar e revelar significados até então insuspeitos. Estamos nos referindo à famosa Carta de Pero Vaz de Caminha dirigida em 1500 a el-rei dom Manuel, anunciando a descoberta de uma nova terra. E se essa carta não tivesse chegado ao seu destino, ao seu destinatário, se ela tivesse se extraviado, como se diz hoje no linguajar dos correios? Em virtude de naufrágio, seria uma hipótese. Por errância sem fim da caravela no caminho de volta à pátria, ou seja, por morte dos estafetas, seria outra hipótese. No entanto, a carta chegou ao seu destino na caravela de Gaspar de Lemos, curiosamente o barco da esquadra que na viagem de ida levara mantimentos. E ao chegar às mãos do rei, no momento mesmo em que o rei de Portugal dela toma posse, também toma posse da terra e dos seres humanos por ela descritos pela primeira vez. A carta cria o acontecimento da descoberta do Brasil por um país europeu. Ela sela de vez o devir ocidental e cristão de uma terra e de seus habitantes, o devir de um futuro Estado-Nação chamado Brasil. Os cinco séculos de uma sociedade, sua organização social, política e econômica estão lá. “In nuce”, como diria Benedetto Croce. A Carta de Caminha serve antes de mais nada para que todos aqueles aos quais ela não se destina reflitam tanto sobre palavras e gestos que recobrem o encontro de dois bandos que se desconhecem, quanto sobre o sentido do acontecimento histórico na época das descobertas e, mais ainda, sobre o papel desempenhado pelos vários atores sociais na empreitada heróica.
O PADROADO: DÁDIVA E POSSE
Comecemos a leitura pela primeira palavra: senhor. A carta é dirigida ao senhor — “Vossa Alteza”, constataremos logo a seguir —, é dirigida a Sua Alteza portuguesa pelo súdito para lhe relatar o que ele e os demais companheiros de navegação acabaram de “achar”, não para eles, mas para o senhor que a tudo comandava sentado no seu trono em Lisboa. Endireitando a frase renascentista de Caminha, lemos: “Não deixarei também de dar minha conta a Vossa Alteza do achamento desta Vossa terra nova” (grifo nosso). O acontecimento histórico na época das descobertas portuguesas se dá em ausência daquele que a tudo de longe, soberana e divinamente, comanda. Antes de ser signatário de um documento que representa o sucesso de uma ação coletiva da qual foi líder e herói, o rei português é o destinatário majestático do documento. E ainda o autêntico responsável pela ação já que marinheiros e escrivão são meros servidores: “Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida”. Retomemos a leitura da primeira palavra, complementando-a com a do primeiro gesto que a acompanha: a gloriosa empreitada dos navegantes portugueses, o feito de outros, a recompensa pelo trabalho de navegação são de imediato, mas em ritmo de caravela, transmitidos e doados ao destinatário para que deles se vanglorie e se faça proprietário — é sempre da “Vossa Ilha de Vera Cruz” que fala Caminha. O rei de Portugal é senhor da terra descoberta por ação, palavra e gesto alheios. Ao contrário de Ulisses que, ao reencontrar Penélope depois de longo périplo, transborda experiência de vida, aqui as coisas se dão inicialmente em três fases em que só um dos três atores desempenha papel ativo e assumidamente gratuito, e por isso mesmo suplementar. Ao feito heróico dos súditos (primeira fase), segue-se um ganho do rei (segunda fase). Sua Alteza tudo ganha sem nada fazer, toma posse da ilha de Vera Cruz, fá-la reino seu, sem nem mesmo ter singrado mares ou pisado no solo dela. Até a chegada da Carta, dom Manuel I era apenas rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. A partir de então, será mais. Por sua vez, o destino de qualquer nova terra descoberta ou a ser descoberta (terceira fase) está providencialmente escrito com grande antecedência na bula Inter Coetera, assinada em 13 de março de 1456 pelo papa Calisto III. Uma vez mais reverte-se em favor do rei português o sistema da doação: qualquer terra descoberta, independente da vontade dos marinheiros, seria uma doação (a palavra é textual em algumas bulas) da Santa Sé ao rei de Portugal para que a integre na “Ordem de Cristo”. Receptor de uma e outra doação, centro de convergência da submissão humana e da vontade divina, o rei de Portugal tem de providenciar um outro ator histórico para que autentique a doação expressa na carta e na bula. Algum honrado varão, dito notário, é que vai assinar o documento que dará fé da descoberta e da propriedade dessa terra “aquém do Ganges”. Eis, aliás, o que está lavrado, três anos depois da descoberta, no ato notarial assinado pelo tabelião Valentim Fernandes, ato relido diante do clérigo de Colônia, na capela do Sangue de Cristo, fundada em Burges, na cidade de Flandres. A circularidade das predeterminações da tomada de posse no mundo lusitano se confunde, neste momento da exegese, com a circularidade da posse nos séculos das descobertas e com as infinitas leituras da Carta séculos afora. O desejo do rei de possuir terras e novos súditos, o desejo do papa de cristianizar povos gentios, o desejo dos historiadores de possuir o significado do passado humano. Cada um deseja à sua própria maneira assenhorear-se da descoberta da nova terra e do futuro de seus habitantes. Fica de fora do centro e do sistema circular da tomada de posse quinhentista, como suplemento de doação, o desejo do marinheiro de viajar pelo desconhecido. Para que este fosse “senhor” ou “Vossa Alteza”, e não apenas servidor, para que fosse proprietário, era preciso que assassinasse — desde então e não só no plano simbólico, mas também no real — tanto o papa quanto o rei. Não tivesse escrito a carta ao rei, tivesse se transformado num corsário ou pirata. Assassinados papa e rei, vida de corsário ou pirata assumida, o marinheiro, como suplemento maldito dos exercícios de posse quinhentistas, deveria ser perseguido e exterminado por papa e rei para o bem da humanidade, como exarado no Regimento do primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza, assinado pelo rei dom João III em 1548. E mais: teria tido uma leitura inclemente e desapiedada por parte dos futuros historiadores. Papa, rei e historiador teriam, quando muito, admitido que se transformasse num marinheiro-mercador ou num marinheiro-peregrino, só o teriam admirado e até mesmo se extasiado diante dele, se fosse um marinheiro-mercenário como o genovês Cristóvão Colombo na Corte da Espanha. O fim, pois, da arriscada empreitada dos navegadores portugueses, seu telos, volta assim à sua dupla origem divina na terra para que dela deem conta os historiadores. Qualquer terra descoberta pelos navegantes é por um lado legítima dádiva de servidores fiéis ao rei, como está na carta de Caminha, e é por outro lado uma falsa doação do papa à Cristandade por intermédio do Império ultramarino português. Eis os labirintos do sistema do Padroado, ou seja, da combinação sutil entre Fé e Império. O signatário da carta, Caminha, representando o capitão e demais navegantes, por uma estranha ironia do sistema de poder então vigente e aceito, nada mais é do que súdito, marinheiro, ou em uma só e definitiva expressão, suplemento de doação. O signatário da carta e todos nela e por ela representados ficam aquém e, ao mesmo tempo, além do “achamento” da nova terra e dos legítimos proprietários dela, tal como configurados pelo próprio texto da carta e pela doação do papa. Bula, carta, ato notarial — eis a circularidade previsível da posse de terra e de seres humanos na época das descobertas. Existe por acaso documento histórico semelhante a essa carta em que o signatário e os seus representados doam tão extravagantemente, isto é, sem exigência de reciprocidade? Como contraponto e exemplo oposto, leia-se o texto de uma carta-foral em que o rei de Portugal, ao fazer mercê a um donatário de uma capitania na costa do Brasil, passa a exigir-lhe isso e aquilo em troca. Existe documento histórico que exprima forma tão absoluta de generosidade? A Carta de Pero Vaz de Caminha, na medida em que configura o resultado de uma ação coletiva e em que expressa a vontade moral de todos nela envolvidos, e na medida em que se inscreve no espaço geográfico da Ordem de Cristo, previsto pela bula Inter Coetera, é uma dádiva que os súditos oferecem ao rei para que dela faça o que bem entender. Ou para que da dádiva faça o que já lhe tinha ordenado o papa ao doar-lhe as novas terras não sem tão plena generosidade. Numa outra bula Inter Coetem, esta agora assinada pelo papa Alexandre vi em 1493, lê-se que cabe ao papa exigir do rei “que seja exaltada principalmente na nossa e em toda parte se espalhe e se dilate a Fé Católica e a Religião Cristã, se cuide da salvação das almas, se abatam as nações bárbaras e sejam reduzidas à mesma fé”.
SEM POSSE, SEM CASA, SEM ECONOMIA — A MULHER
O marinheiro, ao doar ao rei o que achou, é menos do que um súdito. Ele vive a nostalgia de ter podido ter e não ter tido. Ele não tem o documento de posse do que achou. O marinheiro nunca chega a ser donatário de uma capitania hereditária. Outros o foram no seu lugar, parasitas da Corte. Escreve Camões: “Esses que frequentam os reais Paços,/ por verdadeira e sã doutrina/ vendem adulação”. O único documento que o marinheiro tem é assinado por um deles: o que vale um documento de vassalo num sistema feudal? O único documento que tem é tão transiente quanto a própria caravela: uma carta. A carta pertence mais ao sistema dos correios, pertence mais ao destinatário do que ao signatário dela, já vimos.
A caravela não é uma posse, como a carta também não representa uma tomada de posse em favor do marinheiro. Tudo é movimento no universo do navegante. A caravela não é casa, é a “terceira margem” do mar, como teria dito com mais propriedade Guimarães Rosa ao falar de um homem que, depois de construir uma canoa, abandona família, casa, segurança, para viver estoicamente nessa ilha semovente e flutuante que é um barco. Na terceira margem, no momento em que deixa de remar contra a corrente, o canoeiro descobre que é chegado o momento da morte. A caravela pode ainda se metamorfosear repentinamente na prazerosa Ilha dos Amores, fantasia de Camões, ilha construída no próprio oceano e feita da matéria do mar e habitada pelas suas ninfas. Ilha aparelhada, dizem os versos, nas entranhas do profundo Oceano, ilha que se encaminha como divina recompensa para os marinheiros pelas mãos de Vênus “como o vento leva branca vela”.
Na Carta está o deslumbramento de Caminha ao descrever metaforicamente os indígenas, não como aves mansas, domésticas, afeitas à vida do lar, mas como aves montesinhas, pois a estas (como aos indígenas) “o ar faz melhores penas e melhor cabelo do que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais!”. Diante dessas aves montesinhas, metáfora privilegiada para descrever os corpos limpos, gordos e formosos dos indígenas, diante delas na escrita e deles no real, o marinheiro descreve para si e para Sua Alteza a própria condição de marinheiro, valendo-se de uma folha de papel-carbono. Continua Caminha descrevendo o impossível lar de aves montesinhas, corpos selvagens e marinheiros: “E isto me faz presumir que não têm casas nem moradias em que se recolham [..1” Mais tarde, em evidente e previsível contradição, a carta diz que alguns marinheiros se adentram pela terra para descobrir “nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau Capitânia”. A comparação da habitação indígena a uma nau é do texto.
Sem casa nem moradia onde se recolha, na semovente caravela, o marinheiro vive social e economicamente fora do seu feito; sem casa nem moradia, ou melhor, em casa que se parece com a nau capitânia, o indígena vive fora do feudalismo e do mercantilismo europeus. Os dicionários etimológicos nos informam que a palavra economia é composta de dois substantivos: oikos (a casa, a propriedade, o lar) e nomos (a lei, a lei de divisão e de distribuição). A economia é a lei da divisão e da distribuição na casa. No centro absoluto da economia da empresa navegadora portuguesa, na Casa do rei, a lei divino-humana de divisão e distribuição impera sem nela incluir a caravela ou o marinheiro; domina de forma abrangente com o intuito de nela abrigar futuramente outros, os indígenas, que são dados como desprovidos de casa, ou com casa que se parece a uma caravela, são dados como desprovidos de economia. Sem posse, sem casa, sem economia — no triângulo dos despossuídos, marinheiros se deixam ver pelo rei através dos indígenas que descrevem. Mas o selvagem se distancia do marinheiro porque tem mulher. A mulher é o elemento diferenciador entre os dois grupos humanos e por isso é sempre dada como prêmio fatal aos que ousam desbravar o oceano — eis a mágica e definitiva lição que se depreende, como vimos, do canto nono de Os Lusíadas, em que as mais belas ninfas atiçam e satisfazem a volúpia amorosa dos cansados e infatigáveis marinheiros. A mulher indígena é cobiçada pelo escrivão Caminha com olhos desprovidos de pudor e por palavras que seriam censuradas três séculos mais tarde (pasmem-se!) pelo pudico padre Aires Cabral. Olhos e palavras de escrivão mais parecem olhos e palavras de poeta barroco, pois a decoram em estilo gracioso e com volutas de trocadilho:
E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha!) tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela.
A palavra vergonha serve, ao mesmo tempo, para descrever o objeto do desejo, para retirar dele o véu do pudor e elevá-lo idealmente à categoria de superior ao da europeia.
E a Carta repete obsessivamente a polissêmica e cobiçada “vergonha”:
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.
Depois da descoberta, a tomada de posse da mulher alheia é tudo o que o marinheiro pode querer em troca, para que seja perfeita cópia do selvagem e se iguale a ele. Despudoradamente (recordemos os escrúpulos do padre Aires Cabral), a mulher existe como único elemento textual carregado de significado para o marinheiro. Ela é a própria razão do navegar e da aventura da descoberta. Motivo de alumbramento, ela é a possibilidade da prática hedonista depois do ascetismo estóico da viagem pela terceira margem do mar. Para quem tem olhos de prazer, como vimos, na terceira margem do mar está a Ilha dos Amores camoniana. Eis como Caminha, que tinha se transformado de mestre da balança e da moeda do Porto em escrivão da esquadra, descreve pelo viés da festa uma metamorfose semelhante à sua, a de um arrecadador das rendas reais (almoxarife) em marinheiro:
Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. […] E meteu-se a dançar com eles […] e eles folgavam e riam […].
São esses marinheiros histriônicos, esses divertidos sem-casa que entram fogosamente na dança coletiva, que dão o pontapé inicial para que comece a funcionar para o seu semelhante, com tirania, dor e trabalho, a impiedosa e brutal máquina do sistema econômico colonial. Esta engrenagem é que vai abrigar e, ao mesmo tempo, triturar, na condição de colonos e fiéis cristãos, outros sem-casa, outrora felizes e divertidos. A hipótese é quase ridícula, mas vale a pena mencioná-la para se conhecer o seu avesso: se o sem-casa, marinheiro ou indígena, houvesse se transformado num sem-lei, corsário ou guerreiro vencedor, não teria havido o sistema econômico europeu. A doação dos navegantes, para ser plena, tinha de ir além da mera descoberta; tinha de ser, primeiro, de uma terra pródiga em produtos naturais e, segundo, de homens não só inocentes, mas também pacíficos. A esses dois temas maiores, fertilidade e paz, se entrecruza no desenrolar da Carta um outro: o do treino a que são submetidos os selvagens para que aprendam o que é um sistema mercantil de trocas. Vamos por partes.
- Caminha não economiza elogios à sua nova terra. Os índios fortes e formosos, para se alimentarem, não precisam lavrar nem criar animais. E acrescenta: “E não comem senão deste inhame, de que há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si lançam”. Sílvio Batista Pereira nos informa que o verbo lançar significa “fazer germinar”. Em terra tão pródiga e fértil, em que as próprias árvores, independente do trabalho de lavradores, se incumbem da sementeira, a “principal semente”, segundo Caminha, que Sua Alteza portuguesa nela deve lançar é a palavra de Deus, para dali, pela catequese, extrair “o melhor fruto”, ou seja, o bárbaro cristianizado.
- Com cuidado extremado Caminha vai anotando dia após dia a maneira como gradativamente os selvagens vão abandonando, vão se desvencilhando, dos apetrechos bélicos, no caso arco e flecha, e como a esse movimento de paz vai surgindo um outro de envolvimento fraterno entre os dois grupos humanos, de modo que se está passando ao rei uma imagem do indígena que mais e mais se assemelha à de um súdito exemplar. No dia 30 de abril constata Caminha: “E [os selvagens] estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles”. Ou em outra passagem: “Como se [os selvagens] fossem mais amigos nossos do que nós seus”.
- Na visão mercantil do relacionamento humano pacífico, a oferenda não pode existir em estado pleno de doação. Dois bandos um diante do outro, um deles tem de ser o motor que dá partida ao sistema mercantil da oferta e da espera de reciprocidade. Já no primeiro encontro dos dois bandos, no dia 23 de abril, Nicolau Coelho arremessa aos índios um barrete vermelho, uma carapuça de linho e um sombreiro preto, e um índio — aparentemente em troca, assim pelo menos é como Caminha lê para Sua Alteza o gesto do selvagem — lhe arremessa um sombreiro de penas de ave, e outro lhe joga um ramal grande de continhas. O importante a assinalar, além da leitura do gesto, é que os objetos recebidos, “as peças”, “o Capitão mandou a Vossa Alteza”. Os objetos pessoais ofertados por Nicolau ao selvagem não são em benefício próprio, pois objetos recebidos em troca vão direto para as mãos do rei: “Para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza”, “creio que o Capitão há de mandar uma amostra para Vossa Alteza”.
A cena volta a se repetir com constância. Tomemos um outro exemplo. Caminha insinua que não é nada tolo ao descrever o jogo mercantil em que estão sendo treinados os selvagens. Depois de escrever que o mesmo Nicolau Coelho, dois dias depois, dera de presente a uns indígenas um cascavel (espécie de guizo) e a outros uma manilha (espécie de bracelete), acrescenta que se tratava de uma “encarna”. Carolina Michaelis de Vasconcelos já nos tinha informado que “encarna” é engodo ou chamariz. Pela bula e pelo ato notarial, e pela doação pura dos marinheiros é que a Europa, no caso Portugal, dá significado e forma à terra descoberta e aos seus habitantes, englobando-os legalmente como parte constituinte de um presente divino. D. Manuel i traz simbolicamente para a Europa a terra, produtos e objetos, e os seus habitantes, faz deles parte indivisível do Reino português, para que ambos sejam (primeiro paradoxo) divididos entre ele e o papa e distribuídos pela Ordem de Cristo. O marinheiro, doador que nunca chega a ser donatário, ou seja, aquele que se exclui, ou é excluído de todo e qualquer sistema de trocas, é que (segundo paradoxo) institui o sistema mercantil da colonização das terras descobertas. Para que haja economia é preciso que haja um doador suplementar que acaba por instituir um sistema de trocas que envolve outros e não ele — eis a lição que se lê no belo livro de Jacques Derrida, Donner le temps, em que o filósofo francês faz uma leitura radical do texto clássico de Marcel Mauss, Ensaio sobre o dom. Escreve Derrida: “Pour qu’il y ait don, il faut que le donataire ne rende pas, n’amortisse pas, ne rembourse pas, ne s’acquitte pas, n’entre pas dans le contrat, n’ait jamais contracté de dette”. O doador, ao instituir a empresa econômica, escapa do seu centro, do seu círculo, deixando que outros atores trabalhem em sistema de trocas, vale dizer, em sistema econômico. A presente dado, presente recebido em troca.
CORPOS SIGNIFICANTES
Ao implorar a Sua Alteza que tome por boa vontade o que pode lhe parecer ignorância de escrivão, Caminha, no pórtico da Carta, só pode doar ao rei e ao papa corpos humanos significantes. Inaugurando um espaço geográfico desprovido de maldade humana, um espaço inocente, a Carta de Pero Vaz de Caminha torna o homem indígena seu semelhante, isto é, igualmente inocente, para fazê-lo entrar de maneira tranquila em um sistema de trocas, ou seja, em uma lei econômica, de que até hoje não se desvencilhou. Ignorante mas não ingênuo, o marinheiro evita — ou é impedido de — dar nome próprio ao homem indígena. À terra e aos seus acidentes, ele pode dar nomes: “Ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz”. No mesmo momenta em que beija a mão de Sua Alteza, Caminha data a carta “deste Porto Seguro da Vossa Ilha de Vera Cruz”
A linguagem leiga tem o poder de batizar acidentes geográficos. No entanto, como num romance de Samuel Beckett, o homem selvagem permanece inominado na ilha de Vera Cruz e na Carta de Caminha, existindo para o marinheiro como um corpo significante, aquém e além da linguagem fonética. Sempre é visto e apontado com o dedo. Compete ao rei e ao papa dar-lhe significado, fazê-lo entrar numa língua cristã, numa teia de significados que determinam inapelavelmente o seu nome e destino histórico. O corpo significante do indígena, para ter nome, requer as benesses de uma língua cristã, requer a presença do representante de Deus na Terra escolhido pelo rei, requer a cerimônia do batismo cristão. Assevera Caminha: “E, por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar (…)”. O processo de individualização do selvagem é tarefa única e exclusiva do papa que, por reciprocidade (e não por doação, como equivocadamente está em algumas bulas), a delega ao rei e à sua língua que, segundo afirmam os gramáticos renascentistas como o espanhol Nebrija em 1492, é a legítima “companheira do Império”. Por isso, pode concluir Caminha: “Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos […]”. A inteligibilidade do selvagem pelo europeu vai se confundir com a possibilidade de individualização pelo batismo cristão em língua europeia. Esta cerimônia é que cria a identidade do selvagem.
É chocante o contraste no texto da Carta entre pessoas individualizadas pelo nome próprio, de que não se excluem os degredados (criminosos na Metrópole) que devem ficar na terra, e o bando inominado de selvagens que povoa de maneira errática o horizonte dos marinheiros. Ninguém é o mesmo. Alguém é sempre outro, vário e imprevisível. Nem mesmo um chefe, cacique, conseguem detectar naquela massa amorfa. Para que alguém seja sempre o mesmo, é preciso que um nome lhe seja dado pelo rei pelas mãos de um representante de Deus por ele nomeado.
Stephen Greenblatt, ao analisar os textos de Cristóvão Colombo, chama a atenção para a forma como alguns selvagens são batizados. Observa que Colombo levou alguns nativos para a Europa a fim de servirem como informantes ou intérpretes. Seis deles sobreviveram. E estes,
em memorável cerimônia, com Fernando, Isabel e o Infante atuando como padrinhos, foram batizados. O mais perspicaz dos nativos, o mais serviçal para os espanhóis, recebeu o sobrenome do próprio Colombo e o prenome de seu primogênito: foi batizado como Don Diego Colón.
O nosso José de Alencar, séculos mais tarde, ao dramatizar alegoricamente a descoberta do Brasil na sua lenda Iracema, não foge ao modelo quinhentista quando descreve o batismo de Poti e a sua subsequente individualização. E o modo como se constrói o novo nome do selvagem é indiciador, por um lado, da diferença entre Espanha e Portugal, e por outro lado da situação do indígena nos mecanismos do sistema colonial português que vimos descrevendo. Passemos a palavra a Alencar: Poti “recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos”. Poti passou a ter santo, rei e nome traduzido. Poti é Camarão. Desprovidos de um código linguístico comum, na condição portanto de bandos que se encontram, marinheiros e selvagens se adentram nas circunstâncias de uma linguagem gestual que, mesmo sendo aprimorada lentamente e com muita paciência, pouco ou nada diz de substantivo. A opacidade do código gestual não se deixa apreender pelas regras da transparência platonicamente delegadas ao diálogo a dois construído com palavras. O verbo falar, aqui e ali encontrado no texto de Caminha, é visivelmente metafórico, como nesta passagem em que se declara a sua metaforicidade e, ao mesmo tempo, a sua ineficiência: “Falou [o velho], enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro […]” . No diálogo tecido por olhares deslumbrados e atônitos os gestos selvagens vivem a condição de significantes esvoaçantes e sedutores. Em vão, tenta-se apreender o significado do gesto. Escreve Caminha: “Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos!”. Assim é que todas as particularidades da terra (riquezas como ouro, prata e pedras preciosas) e dos homens (religiosidade, por exemplo) que não puderam ser apreendidas pelo olhar curioso e voluptuoso do marinheiro não puderam também ser apreendidas pela sua inteligência, ou seja, pela escrita de Caminha.