2005

O cinema de perspectiva popular

por Ronaldo F. Monteiro

Resumo

De início, note-se que, entre as tendências significativas que apareceram, no cinema brasileiro, dentro do período que é objeto do presente estudo, insere-se a do filme de perspectiva popular. Predominantemente na área do curta-metragem, mas também em vários exemplares longos, manifestou-se essa tendência, independentemente dos níveis diversos de alcance da proposta, realização das intenções, grau de intensidade e extensão e dimensão do projeto.

Por cinema de perspectiva popular entenda-se uma determinada opção que impulsione o artista sensível à importância da cultura desenvolvida pela massa popular a estruturar seu discurso partindo de dados fornecidos pela maioria. Em outras palavras, o cinema de perspectiva popular consiste numa operação de baixo para cima — dentro da estrutura social em que se vive — que exige a violentação de fórmulas criadas de cima para baixo, permitindo inserir no sistema de signos que é o cinema valores e padrões populares que, afinal, são os que melhor poderão definir a cultura brasileira.

Nunca é demais lembrar que o cinematógrafo, embora sem ser descoberta elitista, surgiu na Europa, foi apropriado pelos intelectuais quando começaram a ser detectadas suas virtualidades como linguagem, e desenvolvido nos Estados Unidos tendo em vista suas características industriais. Em consequência, toda a história da evolução tecnológica, narrativa e humanística do cinema fez-se a partir dos núcleos mundiais de dominação. Assim sendo, as condições de produção cultural tornam-se muito mais difíceis para os cineastas do chamado Terceiro Mundo, sobretudo se pretendem refletir sobre sua realidade. É provavelmente por essa razão que somente no período abordado por este trabalho se depare com um cinema brasileiro dotado de tais características, sem os vícios do popularismo observados a partir de uma elaboração erudita.

No Brasil, a preocupação em criar uma arte cinematográfica a partir da sociedade como um todo — e não apenas de frações talvez mais atuantes e decisórias, porém minoritárias em termos democráticos — tem sido detectada em vários filmes dos anos 1970. Entretanto, qualquer diretriz buscando um panorama abrangente resultaria lacunar e omissa, consideradas as limitações do analista. Daí a opção por dois filmes que denotam, creio que suficientemente, a tendência. Trata-se de “O amuleto de Ogum”, de 1974, e “Tenda dos Milagres”, de 1977, ambos realizados por Nelson Pereira dos Santos.

O propósito primordial deste trabalho não é o estudo da obra do realizador, embora o referencial do autor se faça obrigatoriamente presente. O que interessa é prospectar nos dois filmes aquilo que resulta da proposta de Nelson em fazer um cinema de abertura popular e também — por que não? — aquilo que denote essa mesma tendência, ainda que fora das relações de intencionalidade.


INTRODUÇÃO

Entre as tendências significativas que apareceram, no cinema brasileiro, dentro do período que é objeto do presente estudo, insere-se a do filme de perspectiva popular. Predominantemente na área do curta-metragem, mas também em vários exemplares longos, manifestou-se essa tendência, independentemente dos níveis diversos de alcance da proposta, realização das intenções, grau de intensidade e extensão e dimensão do projeto.

Por cinema de perspectiva popular entenda-se uma determinada opção que impulsione o artista sensível à importância da cultura desenvolvida pela massa popular a estruturar seu discurso partindo de dados fornecidos pela maioria. Em outras palavras, o cinema de perspectiva popular consiste numa operação de baixo para cima — dentro da estrutura social em que vivemos — que exige a violentação de fórmulas criadas de cima para baixo, permitindo inserir no sistema de signos que é o cinema valores e padrões populares que, afinal, são os que melhor poderão definir a cultura brasileira.

Nunca é demais lembrar que o cinematógrafo, embora sem ser descoberta elitista, surgiu na Europa, foi apropriado pelos intelectuais quando começaram a ser detectadas suas virtualidades como linguagem, e desenvolvido nos Estados Unidos tendo em vista suas características industriais. Em consequência, toda a história da evolução tecnológica, narrativa e humanística do cinema se fez a partir dos núcleos mundiais de dominação. Assim sendo, as condições de produção cultural tornam-se muito mais difíceis para os cineastas do chamado Terceiro Mundo, sobretudo se pretendem refletir sobre a sua realidade. É provavelmente por essa razão que somente no período abordado por este trabalho se depare com um cinema brasileiro dotado de tais características, sem os vícios do popularismo observados a partir de uma elaboração erudita.

Vai de si que um cinema de abertura popular também supõe o interesse de outras faixas de público que as computadas para a avaliação da mesma.

DOIS FILMES DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS

Já ficou indicado, no início da Introdução, que a preocupação em criar uma arte cinematográfica brasileira a partir da realidade nacional em seu todo — e não apenas de frações talvez mais atuantes e decisórias, porém minoritárias em termos democráticos — tem sido detectada em vários filmes dos anos 70. Entretanto, qualquer diretriz buscando um panorama abrangente resultaria lacunar e omissa, consideradas as limitações do analista. Daí a opção por dois filmes que denotam, creio que suficientemente, a tendência: O amuleto de Ogum, de 1974, e Tenda dos Milagres, de 1977, ambos realizados por Nelson Pereira dos Santos.

O propósito primordial deste trabalho não é o estudo da obra do realizador, embora o referencial do autor se faça obrigatoriamente presente. O que interessa é prospectar nos dois filmes aquilo que resulta da proposta de NPS em fazer um cinema de abertura popular e também — por que não? — aquilo que denote essa mesma tendência, ainda que fora das relações de intencionalidade. Como não me foi possível entrar em contato com o realizador durante a pesquisa, restando apenas depoimentos fornecidos a outros e divulgados em jornais e revistas, ficam registradas as reflexões feitas sem a garantia, em alguns casos, da intencionalidade ou não de certas digressões.

Quanto ao alcance dos dois filmes relativamente à proposta de abertura a outras faixas de público, qualquer colocação corre sério risco de erro. O amuleto de Ogum, cuja carreira encerra-se no final de 1979, é considerado por sua distribuidora — a Embrafilme — bem mais comercial do que Tenda dos Milagres nos circuitos de segunda linha (salas do interior). Imprestáveis as cópias existentes, foi entregue à distribuidora uma nova no início de agosto de 1979 e sua circulação tem sido ininterrupta até outubro, enquanto Tenda dos Milagres tem recebido raros pedidos. Entretanto, este último, que funcionou melhor na Bahia (capital e interior), vendeu 63.812 bilhetes a mais do que O amuleto de Ogum, segundo o quadro de renda da distribuidora, até junho de 1979. E sua circulação irá até maio de 1982. É possível que o beneficiamento trazido pelas alterações na legislação de exibição tenha operado em favor do filme mais recente. Contudo, qualquer consideração que se faça não vai além da área do provável.

Seguem-se referências aos assuntos dos dois filmes em exame.

O amuleto de Ogum. Um violeiro cego é atacado por três assaltantes. Conta-lhes então a história de Gabriel, garoto nordestino que teve o pai e o irmão mortos e seu corpo fechado numa cerimônia promovida por sua mãe. Ele chega a Caxias protegido pelo amuleto e emprega-se como pistoleiro no bando do bicheiro Severiano. Confirma-se seu corpo fechado, Gabriel adquire prestígio e liga-se a Eneida, amante de Severiano. Rompidas as relações com o patrão, Gabriel é levado por Eneida para outro grupo, que trabalha com pivetes. Abre-se a guerra entre os dois bandos e Severiano encomenda um despacho para que Gabriel sucumba ao alcoolismo. Eneida abandona-o e ele é preso pelo bando de Severiano, que o alveja, atirando seu corpo na água. Gabriel é recolhido por umbandistas e iniciado por pai Erley. Eneida retorna, mas é forçada por Severiano a trair o rapaz. Sabendo que é a vida da mãe que garante a invulnerabilidade de Gabriel, Severiano manda executá-la. Os matadores se equivocam mas a notícia de sua morte chega a Gabriel, que corre à casa de Severiano e os dois se matam. A mãe do rapaz, cuja intuição fez com que viajasse para o Sul, chega à rodoviária do Rio enquanto Gabriel ressuscita. Terminada a estória, o violeiro é surrado e alvejado pelos assaltantes: desfaz-se de todos e segue seu caminho.

Tenda dos Milagres. O poeta e cineasta Fausto Pena monta um filme sobre a vida de Pedro Archanjo Ojuobá, mestiço nascido em 1875 e morto nos anos 40, desconhecido da maioria dos intelectuais e louvado como sábio por um cientista norte-americano, premiado com um Nobel, quando de sua passagem por Salvador (o leitor poderá encontrar mais detalhes no original de Jorge Amado, já que a adaptação respeitou bastante o livro).

NA RAÇÃO CIRCULAR E FRAGMENTAÇÃO

Em ambos os filmes observa-se a recusa ao habitual processo linear de fazer evoluir um relato cinematográfico. O amuleto de Ogum, poder-se-ia dizer, opera em dois tempos: o do contador da estória (no prólogo e no epílogo) e o da trajetória de Gabriel, que constitui a própria armação do filme. Dois tempos, esclareça-se, enquanto campos semânticos diversos. O mundo é o mesmo, a realidade é contemporânea, pois o contador eventualmente aparece no quotidiano de Gabriel.

Em Tenda dos Milagres, a elaboração é bem mais complexa quanto à linearidade; há vários tempos que se alternam no decurso do filme com características diversas das existentes em O amuleto de Ogum. Neste, constata-se o que se costuma chamar de narração circular. Bastante frequente em certa fase do romance do século XIX, essa forma de relato sofreu um processo de sofisticação que tendeu a retirar do narrador a onisciência que o caracterizava. Isto, no que se refere à literatura erudita.

Em certas modalidades de manifestação popular, no entanto, muito mais interessadas na fantasia do que na reprodução racional do real, a figura do narrador assume importância capital. Tanto nas estórias dos violeiros do interior – alimentadores de boa parte da literatura de cordel – como no mamulengo (para citar apenas dois exemplos modelares), o narrador ou animador “abre” e “fecha” a brincadeira, além de interferir eventualmente durante o curso das ações contadas ou mostradas, acentuando os dois tempos diversos. Contador de estórias – geralmente identificado com violeiro cego – e animador de mamulengo são pessoas respeitadas, por seu status de artista. E o artista é aqui entendido como aquele que sabe das coisas e sabe divertir o público.

Essas últimas considerações sobre o contador de estórias serão retomadas adiante. No momento, interessa sobretudo ressaltar, em O amuleto de Ogum, esse recurso às fontes populares, que, aliás, também manipulam, sempre, o fantástico e o sobrenatural (que participam tanto dos relatos quanto dos números com bonecos), certas manifestações populares é o menosprezo à noção de clímax tal como cultuada pela arte ocidental, no sentido das curvas dramáticas ascendentes. Enquanto o aspecto explicativo da trama que se inicia (logicidade) norteia o lançamento da segunda, nos cortejos dos mais variados tipos, por exemplo, a abertura tem de ser um clímax. Veja-se, assim, a comissão de frente nos desfiles das escolas de samba, em que a hierarquia é que define um clímax de abertura (numa substituição do divino das procissões pelo humano).

O amuleto de Ogum inicia-se com um clímax dramático em vários níveis: forte na ação, na expectativa, na moral individual e social pela violentação, na definição geográfica, na individuação do herói-vítima pela esperteza etc.

Em Tenda dos Milagres a narrativa desenvolve-se através de quatro tempos distintos que se alternam: o trabalho de montagem do poeta-cineasta Fausto Pena na moviola carioca (o presente narrativo), o reboliço provocado na sociedade baiana pela descoberta de um sábio ignorado e as consequentes pesquisas de Fausto e Ana Mercedes sobre Pedro Archanjo (passado recente)[1], as atividades de Archanjo moço (reconstituição de passado mais distante) e as atividades de Archanjo maduro (reconstituição de passado menos distante). Esta última divisão se patenteia no “achado” da realização em escolher dois atores bastante diferentes para viver o mesmo papel.

Trata-se, assim, de um caso típico de narração fragmentada. E a decomposição não fica aí; o fracionamento também se efetua no interior dos dois tempos predominantes (cronologicamente, o segundo e o terceiro).

A fragmentação do relato provoca a descontinuidade narrativa e o surgimento de relações significativas na sucessão-relação de espaços ou tempos que não sejam contíguos ou contínuos. Em cinema, a fragmentação como oposição ao relato linear — costuma ser apropriada pela elite vanguardista. Entretanto, a continuidade na evolução da narrativa e a linearidade dramatúrgica, que dominam a nossa arte quotidiana — sobretudo nos espetáculos que supõem grande ma.ssificação vêm sendo há bastante tempo discutidas como circunstanciais. E nem é preciso estudar pesquisas estrangeiras sobre sociedades primitivas para encontrar hábitos ritualísticos e espetaculares radicalmente avessos à ordem linear que rege o raciocínio das sociedades ocidentais e, consequentemente, a progressão dramática dos nossos espetáculos.

Particularmente no Brasil, é proveitoso um confronto desse tipo de arte, basicamente escorado na evolução lógica e cronológica das ocorrências, com as diversas modalidades de espetáculos populares, que se realizam dentro de um tempo — é óbvio — mas desdenhando a cronologia e a noção de clímax.

O bumba-meu-boi, que muda de jeito e de nome do Amazonas ao Rio Grande do Sul, é geralmente considerado pelos folcloristas como o mais característico dos espetáculos populares. Na sua formação apropriou-se: de elementos da literatura de cordel e do romanceiro popular em geral; de diversas toadas, inclusive a do pastoril; de louvações e loas – já que auto religioso em sua origem – de tipos populares (humanos, animais, fantásticos), a tudo acrescentando a improvisação chi diálogos e a dança, num acontecimento de efetiva confraternização – co-participação – com a audiência. Embora escorado numa linha simples de enredo que tem por base o capitão e seus dois empregados negros, o boi, sua morte e ressurreição, a grande quantidade de personagens que interferem no auto, a co-participação e a longa duração conferem-lhe obrigatoriamente uma estrutura episódica.

Até mesmo nos desfiles atuais das grandes escolas de samba do 1° grupo, no carnaval carioca – devidamente adequadas às exigências oficiais, posto que erigidas em acontecimento número um do evento (até horário tem de ser cumprido, o que violenta qualquer manifestação espontânea) -, pode ser percebida essa ruptura da evolução linear. A ordenação sequencial é ditada exclusivamente pela letra do samba-enredo, o que já representa um desdém em potencial. Entretanto, certos clímaces, como a bateria, o mestre-sala e a porta-bandeira, a ala das baianas, são dispostos livremente ao longo do defile, conforme decisão dos organizadores em acordo com os participantes. E, note-se, os três destaques citados não têm significado meramente espetacular, como por exemplo as várias exibições de passistas; estão fundamentalmente ligados ao espírito do desfile. O único clímax de posicionamento obrigatório é a comissão de frente, questão já abordada.

Não estranha, portanto, que NPS tenha reforçado a fragmentação narrativa do original sem trair sua proposta de fazer um filme popular. Mesmo porque esta fragmentação nada tem a ver com a operada por alguns inovadores do cinema contemporâneo para expressar o caos da sociedade urbana de hoje.

ESTRUTURA NARRATIVA DE ‘TENDA DOS MILAGRES’

O romance de Jorge Amado já apresentava essa estrutura fragmentada. Entretanto, o próprio escritor – cuja atomização das informações e sugestões de ocorrências a serem desenvolvidas adiante tornaram-se uma figura de estilo – não hesitou em submeter à continuidade cerca de cem das aproximadamente trezentas páginas do livro, nas quais narra de como Pedro Archanjo se instruiu e instruiu o filho, casou-o e desafiou os racistas, foi demitido de seu emprego na faculdade e preso. Embora atomizando menos a narrativa, o filme mantém-se com mais frequência nos vários tempos que encerra e vai além. A transformação do poeta Fausto Pena ensaísta no poeta Fausto Pena cineasta e a abertura do filme com o exame do copião de seu trabalho na moviola criam um tempo inexistente no original.

Estudando as relações entre os quatro tempos do filme, observa-se uma preocupação de simplificação nos vários graus de significação, sem desprezo pela constituição dessa nova componente de tensões rítmicas e empáticas.

As sequências de Fausto Pena na moviola — cinco, ao todo — são breves, o bastante, porém, para garantir sua condição de presente narrativo que conta uma estória já ocorrida e fornece informações sobre a evolução do relato como um todo. O passado distante aparece em quatro sequências-chave à ação desmistificadora do racismo e à vida amorosa de Archanjo moço. Os dois tempos restantes é que constituem a coluna dorsal do filme.

O tratamento interno desses dois tempos dominantes também obedece a uma estruturação fragmentada. A longa sucessão de episódios sobre os efeitos da revelação do americano no meio social e cultural da Bahia é entrecortada de flashbacks desse mesmo tempo (a noite de Levenson com Ana Mercedes recordada na carta que ele escreve ao jornal baiano e os comentários dela a Fausto, no bar, sobre a mesma ocorrência). A narração de todo o episódio de Archanjo maduro, da formatura de seu filho à prisão, é fracionada pela abordagem paralela de dois elementos antitéticos — o branco tradicional, o mulato progressista — consubstanciados na reação dos candomblés à ação violenta das autoridades, na manobra estratégica dos mais novos em realizar um casamento mestiço contra o radicalismo dos mais velhos de ambas as camadas (a recusa do coronel Gomes, a intenção de “botar pra quebrar” dos frequentadores da Tenda).

As tensões obtidas no tipo de fragmentação operado no longo episódio de Archanjo são mais facilmente recolhidas. Entretanto, o enriquecimento na informação também se constata na relação de contiguidade entre frações distantes de tempo e personagens de origens diversas. É o que acontece, por exemplo, com a primeira sequência de Archanjo moço na faculdade, em que ele, na base da zombaria, ridiculariza o aluno que defende sua pureza sanguínea. Isto se dá logo após o desentendimento de Fausto com um professor racista no bar. O saldo no tempo é feito sem qualquer indicação, como se a primeira imagem da segunda sequência — é dia — fosse a manhã seguinte da anterior, quando Fausto sai do bar — é noite. A tranquilidade com que o mestiço reduz o racista e anula a ofensa reporta o espectador à fúria que acometeu Fausto ao ouvir os chavões elitistas do professor. A contradição nos comportamentos de Fausto e Archanjo, a incidência do preconceito, as diversidades cenográficas dos ambientes, a separação de 75 anos, sem contar as informações complementares ao núcleo de cada uma das sequências, levam cada espectador a ter “sua” reação (não há propriamente tempo para reflexão). O enriquecimento está exatamente na oportunidade de seleção entre as várias opções levantadas pelo confronto de elementos contraditórios.

Relativamente à projeção do tempo 3 sobre o tempo 4 (em termos cronológicos), indicada em nota no capítulo anterior, cabe uma observação que me parece relevante. Logo no início do filme, Fausto examina seu trabalho na moviola com o auxiliar Dada; são mostrados aos espectadores dois flashes de Archanjo moço e velho (rosto dos atores Jards Macalé e Juarez Paraíso caracterizados para o papel). A suposição é de que aquelas são as representações escolhidas por Fausto para viverem os personagens cuja vida ele pesquisou. Há, ainda, indicações de que alguns dos momentos da pesquisa de Fausto e Ana Mercedes, na Bahia, estejam no seu filme. Entretanto, na conclusão, depois que Fausto sai de cena, quando é descerrado o retrato de Archanjo na comemoração do seu centenário, surge a mesma fisionomia do ator Jards Macalé. As fantasias autorais e a realidade dramatúrgica do filme confundem-se e desafiam qualquer esforço de distinção. A única saída que me parece plausível é a de admitir que Fausto possa ter “documentado” tudo, inclusive o passado de Archanjo, desencavado por ele e Ana Mercedes. Saída que talvez pareça absurda, em termos de lógica, podendo no entanto ser aceita como natural posto que a incorporação da visão mágica à realidade, que já fora operada em O amuleto de Ogum, repete-se aqui. Afinal, as tensões provocadas pelas relações de sequências contemporâneas com antigas também violentam o racionalismo. E o sentido do documental está expresso em declarações do autor que serão transcritas no próximo capítulo.

O ESTILO: HUMOR E DESCONTRAÇÃO

A revisão de O amuleto de Ogum após a de Tenda dos Milagres traz à baila certas questões de modo mais claro. O segundo filme é pontilhado de tiradas jocosas — no texto, na imagem, no texto e na imagem. Alguns desses momentos são criados a partir do livro. Outros, não, como a abertura e o fechamento do filme em íris semelhante ao clique do ligar ou desligar o aparelho de TV, a ridícula apatia da comentarista de TV no estúdio, as referências à Embrafilme (nas várias tentativas frustradas de Fausto Pena em contatos telefônicos, sua alusão à necessidade de mais amor, e até como palpite para o jogo do bicho), a tirada final do poeta (“eu nem preciso terminar um filme que todo mundo já viu”). E há outras ausentes do livro, mas que pareciam, inicialmente, decorrer do próprio estilo brincalhão do original, já que o brincalhão está intrinsecamente ligado ao espírito do mestiço Archanjo, personagem arquetípico em relação a toda a elaboração da narrativa (no livro e no filme).

Entretanto, essa mesma postura zombeteira também é encontrada parcialmente no filme anterior. Basicamente, no prólogo e no epílogo, e de modo bem mais agressivo do que em Tenda dos Milagres. No primeiro, o cego atacado pelos assaltantes declara que a estória “aconteceu de verdade e eu inventei agorinha”. E toda a trajetória de Gabriel é narrada com preponderância no dramático. Na conclusão, o mesmo cego, que vai se revelar tão imune às balas como o personagem de sua “invenção”, agride seus algozes e o público recalcitrante com um sonoro palavrão e, depois de se livrar dos três marginais, sobe a passarela suburbana e segue cantando que, se lhe der na veneta, vai, mata, morre, e volta para curtir.

O desmonte da mentalidade materialístico-pragmática da sociedade capitalista se efetua a partir de uma aparente brincadeira. E ouso aqui levantar, apenas como questionamento, se o corpo fechado de Gabriel, afirmado em duas demonstrações indiscutíveis (os tiros recebidos no peito após o almoço com os companheiros de quadrilha — ao fundo a imagem de São Jorge, o Ogum da Umbanda — e em ter o corpo ensacado jogado ao mar pelos capangas de Severiano e recuperado por pai Erley), não funcionará também como uma brincadeira agressiva sobre o espectador médio que se julga acima das crendices populares e que, no entanto, é obrigado a se submeter ao que considera tolo ou primitivo para acompanhar a trajetória do filme.

A brincadeira está na raiz de todos os espetáculos populares: os próprios participantes definem o seu atuar como brincar. E do riso que é a conquista do êxito depende inclusive a estrutura da encenação. O público do espetáculo popular não paga ingresso (as autoridades é que costumam taxar as representações) — e essa é, seguramente, uma das razões por que os espetáculos populares estão desaparecendo dos centros urbanos, exilados que são, pelo consumismo, para as zonas rurais. A manutenção da assistência torna-se, assim, um imperativo, tanto para a consecução do espetáculo — e há, ou houve, alguns que se fazem ao longo de muitas horas — quanto para a cobrança que, em consonância a seu sentido etimológico, é aqui um pagamento pela diversão que foi ou está sendo oferecida. O dinheiro vai sendo sacado no decurso da brincadeira e, como quem paga tem direito a participar (às vezes é até obrigado, como no bumba-meu-boi, quando, geralmente, uma das crianças da plateia é recrutada para funcionar como o clister a ser aplicado pelo médico no animal visando à sua ressurreição), o espetáculo muda de rumo e mergulha na improvisação, às vezes em decorrência das reações dos assistentes.

Nos espetáculos populares, seus artistas satirizam as autoridades institucionais, oficiais e oficiosas: o chefe político, o magistrado, o médico, o fiscal de rendas, o engenheiro agrimensor, o padre, o policial e todos os representantes da dominação. Mas também zombam das fraquezas do povo, o que lhes fornece um sentido de função inconsciente do controle social. Trata-se de um dado de moralismo conservador e ingênuo, em fase de desaparecimento pela tomada de consciência que o povo vem tendo de seu lugar dentro da sociedade. Tenda dos Milagres não refuta esse aspecto, mas redimensiona-o, por exemplo, na sequência do mamulengo de sombras (modalidade de mamulengo que também se encontra — ou já se encontrou — no Ceará, denominada calunga de sombras). Num sonho, Archanjo identifica suas relações com a amada Rosa de Oxalá e sua amizade fraterna com Lídio Corró, na ação obscena dos três bonecos que ele e Lídio encenam (o derrotado no amor humilha o suposto vencedor, sodomizando-o); abdica, então, do amor da mulata em favor da ligação com o amigo. Isto poderá ser entendido como uma postura moralista de Archanjo na sua relação de amizade com o companheiro. Entretanto, todo o comportamento do personagem ao longo do filme leva a crer que se trata muito mais de uma estratégia de luta contra a opressão, através da solidariedade; e, afinal, Rosa irá demonstrar que não é solidária ao partir para educar a filha com o pai branco e rico (informação pouco clara no filme, compreendida talvez somente com o conhecimento do original de Jorge Amado).

Nessa linha de pensamento, convém comparar todas as conotações cinematográficas de Archanjo — a sabedoria do povo (as generalizações são sempre perigosas, mas aqui é a representação do óbvio) — com a postura do mesmo realizador, quatorze anos antes. No filme Vidas secas, durante a primeira visita da família protagonista ao vilarejo, enquanto Fabiano sofria na cadeia por ter ousado enfrentar um soldado, o povo rendia homenagens ao chefe local, encenando um bumba-meu-boi.

A sequência supracitada do filme inspirado no livro de Graciliano Ramos é criada dramaticamente de modo magistral, através do recurso conhecido como montagem alternada — o que atesta a cancha do cineasta já naquela época. Hoje, entretanto, serve também para demonstrar a imaturidade da proposta quanto à noção de valor relativa ao popular. Conteudisticamente, a sequência da prisão de Fabiano é típica de uma visão populista do povo segundo a ótica de um intelectual.

Numa entrevista ao Jornal da Tarde[2] a respeito de Tenda dos Milagres, NPS declarou: “Escolhi atores baianos para haver uma verdade maior no trabalho deles. Aliás, acho que não existe interpretação no filme. As pessoas estão vivendo e eu estou documentando. Proponho ao ator a aventura de viver um determinado personagem e o ator, a pessoa que faz o personagem, é quem determina a forma que vai viver cada figura. Os que estão no filme gostam de trabalhar dessa forma. E tenho a impressão de que estou encontrando um método de trabalho”. E mais adiante, na mesma entrevista, declara: “Eu procuro é dar vida aos personagens, e não aprisioná-los aos textos. E muitas invenções vêm dos atores”… “Minha função se resume a filmar bem o que os atores me oferecem. O que pode parecer crítica a algum personagem é uma ambiguidade que eu mesmo coloco e que dá também um resultado de humor. Sem essa ambiguidade não tem graça nenhuma fazer cinema”.

O depoimento vale por si: a curtição de se fazer no processo, semelhante à dos atores dos espetáculos populares. E essa mesma preocupação já está presente em O amuleto de Ogum, inclusive no recrutamento de vários atores ligados desta ou daquela maneira aos personagens.

O processo adotado é um exemplo extremo de dissociação personagem-intérprete, tal como entendido tradicionalmente, dentro da linha realista da interpretação. Aqui, ao contrário, são os atores que permeiam os intérpretes.

Quem me viu assim dançando
Não julgue que fiquei louco.
Não sou padre, não sou nada,
virei secular há pouco.

Esta quadrinha, dita por um intérprete do padre num boi do Ceará, foi recolhida por Hermilo Borba Filho[3] para reafirmar o sentido anti-realista comum a todas as formas de espetáculos populares, “onde não se pretende impingir uma mera representação do real”.

Nos dois filmes, essa diretriz na relação autor-ator conduz, forçosamente, a uma mudança no andamento rítmico que se define dentro do estilo adotado e transmitido.

Julgo oportuna, no,momento, uma comparação de Tenda dos Milagres com outro filme baseado em original do mesmo autor: Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto (1976).

O estilo deste último filme revela um propósito de profissionalização no que diz respeito à eficácia dramático-narrativa, buscando o espetáculo pleno em termos industriais. Aquilo que parece melhor definir as aspirações da realização é contar da melhor maneira possível a estória da professora de culinária e sua gradativa liberação sexual dentro de um quadro social conservador. Para isso é elaborado rigoroso aparato formal que possibilite as consecuções do objetivo; nada do que aparece em cena deve ser ou mesmo parecer gratuito. Bruno Barreto é um entusiasta — textual — do modelo norte-americano de narrativa que visa a alcançar altos índices de massificação.

Vale a pena recordar outro aspecto da adaptação de Dona Flor e seus dois maridos. O livro não tem a narração fragmentada de Tenda dos Milagres, porém, depois da morte inaugural do primeiro marido de Flor, Vadinho, e do luto imediato, seguem-se as recordações da vida do casal e de Flor antes do casamento — cerca de 30% do total do livro, dos quais metade é narrada de forma rigorosamente fragmentária. Entretanto, na adaptação, para a qual o realizador contratou a colaboração de Leopoldo Serran e Eduardo Coutinho — dois dos poucos especialistas em roteiro no cinema brasileiro —, apesar de respeitada a orientação do original em suas grandes unidades (morte de Vadinho, passado do casal, seguimento da vida de Flor), toda a parte fracionada do livro é posta em ordem rigorosamente cronológica, num longo flashback que sucede à morte do primeiro marido.

O filme Dona Flor e seus dois maridos alcançou seus objetivos, é o maior êxito de bilheteria de sua distribuidora e tem sobre Tenda dos Milagres — pelo menos até junho deste ano — uma vantagem superior a 9.290 ingressos. É a vitória insofismável do produto endereçado à grande massa do público pagante.

O amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres têm outros propósitos, sob certos aspectos antagônicos aos do filme de Bruno Barreto: a descontração do fluxo narrativo, o descompasso no padrão dos desempenhos, os eventuais defeitos de sincronização entre som e imagem (mais perceptíveis no primeiro), a ambiguidade dos elementos presentes no quadro, a natureza e as motivações do lado jocoso e do humor em geral, a informalidade do documento, a interferência do mágico na infra-estrutura de um espetáculo que se realiza através do tecnológico. Em suma, uma linguagem nova.

TEMÁTICA

Um cinema de perspectiva popular só poderia ter seus cenários com o povo no meio. O amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres ambientam-se exatamente em dois centros urbanos nos quais a interferência da cultura popular vale-se das brechas para participar do dinamismo social: Caxias, o núcleo fluminense da migração nordestina, e a velha Salvador (nas épocas modernas de Tenda dos Milagres o povo só participa em uma sequência documental externa mostrando os confrontos das várias camadas da população local, na troca de comentários entre um contínuo e uma baiana sobre o alvoroço que está provocando a descoberta de Mestre Archanjo pela burguesia, no ritual assistido pelo americano, e só domina o quadro nas últimas imagens, já sob os letreiros, num cortejo de comemoração ao 2 de julho — resposta de espontaneidade às mentiras e ardis lançados na comemoração elitista do centenário do mestiço, constantes da sequência anterior).

Na ambiciosa proposta do filme mais recente, a manifestação popular é praticamente alijada das épocas modernas, ao contrário do livro, talvez para facilitar a criação das tensões entre o mundo de Archanjo e o de Fausto Pena. Dos quatorze agenciamentos de imagem entre o antigo e o atual, oito pelo menos refletem os constrangimentos maiores que a sociedade contemporânea sofre na afirmação dos valores que definem o espírito popular. As contradições da Bahia de Archanjo são mais primárias e polarizadas concretamente no racismo da elite colonizada — a Faculdade de Medicina e seus instrumentos de poder via autoridade — e na resistência do povo à opressão pela manutenção de seus valores culturais — as ações de Archanjo e a atividade da Tenda. As contradições contemporâneas exibem um grau de complexidade bem maior, posto que se multiplicam em cada intelectual ou pseudo-intelectual, pessoas que estão pensando e sentindo a cultura com desejos e fins diversos, frequentemente antagônicos.

No filme, as soluções não são tão simples como no livro; destacam-se as tensões. Parece-me curiosa e elucidativa, sob esse aspecto, a dúvida de Dada, o auxiliar de montagem — artífice da tecnologia —, sobre a sabedoria de Archanjo em razão de sua aparência, contrapondo-a com a do americano. No livro, o preconceito racial limita-se às áreas elitistas e conservadoras da sociedade. Essa invenção do filme pode ser entendida como uma interferência da cultura colonizada, recolocando em processo o problema da miscigenação. Aliás, a esse respeito, convém lembrar que o chefe criminoso Severiano, de O amuleto de Ogum, ao receber a carta de apresentação de Gabriel, pergunta ao auxiliar se o rapaz é branco.

A proposta de O amuleto de Ogum resolve-se sobre uma trama bem mais simples. O mundo dos bicheiros e contraventores de Caxias funciona como uma redução do poder estatal, no mundo do marginal, com suas hierarquias e suas leis. A simplicidade, em oposição à abrangência de Tenda dos Milagres, permite um detalhamento mais direto nas diversas faixas de subalternidade dos marginais enfocados. Operários, pivetes, mendigos, pistoleiros, contraventores, torturadores e criminosos em geral, umbandistas honestos e desonestos circulam à volta ou à margem dos donos da cidade, demonstrando suas contradições (notadamente o empregado umbandista de Severiano, o capanga nordestino Quati e o chefe de grupo Chico de Assis).

Essas contradições vão ser encontradas também na esfera de cima: tanto Severiano quanto Baraúna irão demonstrar sua miscigenação cultural em várias passagens expressivas. E essa ambiguidade decorre exatamente da posição assumida pela realização em relação a seus personagens, que foi classificada por alguns de generosidade, mas que me parece muito mais respeito, consciência de limitação na apreensão do real, e recusa aos tipos estereotipados do drama tradicional (mais bem resolvidos no filme mais antigo provavelmente pela quantidade de personagens denotativos que povoa o segundo).

No âmago das contradições, despontam personagens femininos mais ou menos presos aos condicionamentos da mulher na sociedade de homens, cuja problemática é esclarecedora de algumas das questões centrais nos dois filmes.

A MULHER

O tratamento diferencial da mulher em relação ao conceito que ela desfruta na sociedade burguesa não é coisa nova na obra de NPS. já a sua Siá Vitória, de Vidas secas (1963), era bem mais cerebral e decisória em relação à família do que no original de Graciliano Ramos. E o cinema brasileiro, fora da obra de NPS, dedicou espaços proeminentes à mulher antes de o feminismo se erigir também em moda.

De qualquer forma, independentemente de inexistência do novo, a descoberta feita pela mulher de sua condição marginal na sociedade machista encontra exemplos bastante expressivos nos dois filmes abordados; e nas diferenças específicas de encararem o problema de sua inferiorização pode ser encontrado um dado para a intenção global deste trabalho. Ela é representada preponderantemente por Eneida (Anecy Rocha, a intérprete) em O amuleto de Ogum, Ana Mercedes (com a atriz Sônia Dias) e Edelweiss Calazans (novamente Anecy Rocha) em Tenda dos Milagres.

Eneida é um personagem de trágica lucidez. Ela demonstra saber das coisas, mas não é capaz de se realizar. Além de ser a iniciadora amorosa de Gabriel, é ela que o inicia — ou reinicia — na comunidade familiar, na viagem à casa de sua família, em São Paulo. Este último dado parece-me bastante significativo. Não é à toa que o filme contrapõe duas refeições (apenas): uma no covil dos assalariados de Severino, onde a camaradagem decorre apenas da contiguidade — o almoço termina no tiroteio que confirma para a quadrilha a invulnerabilidade de Gabriel —, e a outra acima citada, onde o espírito de solidariedade domina todos os participantes. Seria, no que diz respeito à participação de Eneida, um grau a mais da iniciação de Gabriel na vida. E a iniciação não fica aí: também foi ela quem acompanhou Gabriel em uma de suas obrigações religiosas de iniciado, na visita aos lbejis (Cosme e Damião).

Entretanto, é essa clarividência que determina também sua submissão aos homens pelo dinheiro que deles possa tirar, já que inserida na sociedade de consumo, às vezes a contragosto. Ela sabe que depende deles. Embora amando Gabriel, ela revela a Severiano sua provável vulnerabilidade (a morte da mãe). Cabe aqui uma ressalva. Será verdadeiro o amor de Eneida por Gabriel? Em determinado momento ela desabafa estar cansada dos dois machões (ele e Severiano), afirmação que pode também ser entendida como uma reação de autodefesa ao crime moral que estaria cometendo, i. e: a traição. O autor deixa a questão permeável a juízos diversos em relação à atitude de Eneida, sem que se modifiquem os dados do personagem. Em qualquer das hipóteses, sua complexidade é mantida até a conclusão. De posse do dinheiro, ela permanece trancada no quarto, embriagando-se em sua resposta à submissão, enquanto os homens não concluem suas ações. Eneida não tem condição de interferir e, procurando buscar um distanciamento ao duelo primitivo de Gabriel e Severiano, indaga no final do tiroteio se a carnificina já acabou. Entretanto, ela está com medo. Pouco antes gritara que precisava do dinheiro para voltar para a casa da mãe, retorno claramente embrionário (por que não à casa da família, a que ela própria se referira ao convidar Gabriel para acompanhá-la a São Paulo?).

Eneida embriaga-se para toldar seu sentimento de culpa, mas afronta de olhos bem abertos as sugestões que a vida lhe permite assumir, tirando proveito das situações, seja levando Gabriel para sua memória de felicidade (a casa dos pais), para um novo emprego (os inimigos de Severiano), ou traindo-o por dinheiro, duas vezes, pelo menos.

A complexidade do personagem — ou sua ambiguidade — pode ser lida até mesmo pela

conotação antagônica que pode provocar no espectador: houve quem a identificasse com a vagabunda cuja definição ela mesma cobra de Gabriel, numa discussão na cama.

Em certo momento, Eneida dança com Madame Moustache — o gerente talvez homossexual do cabaré — ao som de Esse cara, de Caetano Veloso. A intérprete da canção está dizendo “ele é o homem, eu sou apenas uma mulher”. O momento é bastante definidor do personagem e da personalidade de Eneida. Ela está sorrindo e se entregando sem repressões. No mesmo quarto, uma moça sorridente observa-a, como que aprovando seu comportamento. É Sônia Dias — numa ponta —, a atriz que NPS contrataria para interpretar Ana Mercedes.

A Edelweiss de Tenda dos Milagres é personagem secundário na numerosa galeria de tipos que compõem o filme. Contudo, as modificações que sofre na adaptação cinematográfica são bem indicativas da proposta da realização. No livro ela é Edelweiss Vieira, uma autodidata e artesã bem-intencionada e fora do mundo. Distraída, desinformada das manobras interesseiras dos organizadores do seminário que não se fará, ela está sempre em órbita. No filme ela é a professora Edelweiss Calazans, fusão dos três únicos participantes que, no livro, levam a sério o seminário afinal abortado. O personagem ganha com isso uma função especial: é a conhecedora da obra de Archanjo (é sobre ela que se abre a sequência de conferência do americano, após a morte de Archanjo contada a Fausto por um contínuo), a coordenadora da palestra, e estudiosa decidida que contra-ataca com veemência a deturpação do centenário de Archanjo maquinada pelos homens da publicidade. Como Eneida, ela vê seus propósitos submetidos a decisões masculinas. E consegue, no máximo, esboçar sua derrota com um palavrão.

A Ana Mercedes do filme é a grande peça de encaixe na posição da mulher na sociedade. No livro ela representa a sedução mulata, livre de preconceitos no jogo do amor e suficientemente ladina para explorar seus atrativos em razão de seus interesses. Uma espécie de versão moderna da submissa Rosa de Oxalá, que sacrificou seu amor — por Archanjo — e sua amizade — por Lídio Corró — para ter a filha legitimada pelo pai rico e branco. Poderia se dizer da Ana Mercedes de Jorge Amado que é uma esperta meretriz com veleidades artísticas.

No filme é bem diferente. A relação amorosa entre Ana Mercedes e Fausto Pena perde o caráter xistoso e debochativo do livro e adquire outro tom — até mais problemático para seus protagonistas — pela simpatia que conotam seus personagens. Além disso, a permanência da mulher junto a Fausto confere-lhe outra dimensão de participação no levantamento da vida de Archanjo. Ela passa realmente a desempenhar a visão moderna das submissas negras e mulatas que existiam na vida amorosa do mestiço — como é textualmente dito no ensaio da peça inacabada de Fausto Pena. É ela quem levanta a possibilidade de Rosa de Oxalá ter sido o verdadeiro amor de Archanjo, logo após o sonho sobre sua luta com Lídio — citada na abordagem do estilo. Entre as duas sequências, Fausto, na moviola, exige de Dada que a descoberta de Ana Mercedes suceda, no filme, ao sonho.

A ambiguidade gira também em favor de Ana Mercedes. De seu encontro com o americano mantêm-se na tela as duas versões (a do americano e a dela). A independência que assume em relação ao sexo deixa de ser, como no livro, um meio de tirar proveito das situações. E isso mais ou menos era o que ocorria — e criava conflitos — em Eneida. Ana Mercedes continua com Fausto porque quer. Ela participa ativamente dos debates sobre a peça. No candomblé, ela incorpora o santo (a relevância dessa invenção do filme em relação ao livro será mais bem entendida no próximo capítulo). A atitude de Ana Mercedes define-se bem, no ensaio da peça. Representando todas as mulheres de Archanjo (mal definidas no filme, em suas individualidades), ela ensaia sério. Depois dos desentendimentos e das brigas ridículas entre os homens é que ela decide aceitar a corte de Ildásio, ou seja, já que os homens não conseguem trabalhar a sério, o melhor mesmo é um amorzinho. Essa sequência antecede a última discussão — inútil — de Edelweiss com o diretor do jornal, relacionando a sabedoria mestiça de Ana Mercedes à dificuldade de Edelweiss na busca da vitória de seus argumentos. E estabelece uma ponte entre Ana Mercedes e Pedro Archanjo.

RELIGIÃO

Em Tenda dos Milagres, na continuada sucessão de sequências dedicadas a Archanjo maduro, uma das últimas trata de um encontro do mestiço com o professor Braga Neto, num botequim. O professor, marxista convicto, estranha a relação de Archanjo com o candomblé; este retruca afirmando que, na verdade, a leitura lhe tirou a visão ingênua que tinha das coisas. Mas conclui: “Os orixás são um bem do povo. É preciso saber conciliar teoria e vida, amar o povo, e não o dogma. Um dia haverá uma cultura brasileira mestiça, e com a ajuda dos orixás”.

Em declaração a propósito de O amuleto de Ogum, NPS declarou que o mito representa a verdade da sociedade. As ilações a tirar são cristalinas. A religião é o espírito do povo; ou melhor: encontra-se o espírito do povo nos arquétipos de sua religião.

Assim como o povo está praticamente fora da fase contemporânea de Tenda dos Milagres, da mesma maneira, a religião. Ela aparece, no máximo, relegada a uma função cenográfica, quase sempre em cantos de enquadramento, nunca se impondo no meio da tela. Exceção marcante é o transe inusitado de Ana Mercedes, no ritual a que comparece acompanhando o americano Levenson e acompanhada de Fausto. Inexistente no livro, o transe tem todas as características da possessão de um “cavalo” novato ou recém-iniciado, o que explica: a) o desconhecimento — ou pouco conhecimento — do personagem em relação à religião, por sua inserção na burguesia; b) sua condição de médium, i. e: de transmissora dos conhecimentos ancestrais.

Nas épocas antigas, a religião está junto com o povo, sobretudo na defesa do candomblé como, fonte de resistência do oprimido à repressão que lhe é imposta pelos donos da cultura dominante (que encontra uma correspondência nas agressões da TV aos cidadãos de hoje na época contemporânea do filme). Entretanto, ainda assim, está muito mais presente na superfície das ocorrências — o enredo, em termos de espetáculo — do que em suas fundamentações estruturais. E, quando deveria aprofundar, o filme nem sempre assim procede. A chegada da Taba (emissária do demo), que pretende destruir o mulherengo Archanjo e é por ele subjugada a ponto de se transformar na humana Doroteia e lhe dar o filho Tadeu, é um exemplo. A brevidade de informações — complexas sobretudo porque reveladoras de um sincretismo entre as crenças africanas e o catolicismo — empana a clareza das ideias lançadas. E mais confusa ainda fica a informação pelo fato de a Taba assumir, eventualmente, as formas de Rosa de Oxalá, personagem tratado com indesejável nebulosidade no resto do filme.

Ressalvas sejam feitas ao enfoque da mãe-de-santo (a rainha do terreiro, admitindo o termo dentro dos conceitos de poder terreno emanado do divino) em suas quatro intervenções, nas quais está presente ou não. No mais, a religião aparece quase que exclusivamente como suporte de comportamento dos mestiços e negros que constituem as camadas oprimidas da cidade de Salvador, e, basicamente, o de Archanjo, símbolo de toda a mestiçagem baiana.

É claro que esta última afirmação já é bastante para se falar de religião a propósito de Tenda dos Milagres. Entretanto, na sua configuração de espírito do povo, ela está bem mais presente em O amuleto de Ogum.

É bem provável que essa diferença de grau decorra da diversidade das origens. Por mais popular que pretenda ser, e por mais respeito que tenha pela religião do povo, Jorge Amado, acadêmico de renome internacional, é um materialista sofisticado, um representante da elite intelectual. O amuleto de Ogum surgiu de argumento escrito por autor popular – Francisco Santos – transparente aos problemas do povo. O fato é que, sob o aspecto que se enfoca neste capítulo, o filme é todo banhado pelas forças místicas da umbanda, a cada momento repetindo-as com verdade infra-estrutural através de indicações secundárias ou impulsionadoras da ação e da problemática.

A simplicidade do assunto, em oposição à ambiciosa proposta diacrônica do outro filme, facilita, evidentemente, a constatação; a frequência maior de exteriores naturais idem. O fato, entretanto, é que as forças cósmicas da umbanda – a água, a terra, a pedra, a lama, o ar, o fogo – estão presentes a todo instante. E as representações icônicas referenciam também alguns interiores.

A água, sobretudo, tem uma presença constante, não apenas ambiental, mas de ação renovadora e purificadora. É na piscina da casa de Severiano que Gabriel e Eneida iniciam e dão publicidade a seu romance. É na água do mar que pai Erley recolhe o corpo de Gabriel. E à beira de uma cachoeira que o rapaz recebe os primeiros ensinamentos e, nela, o banho iniciático. Após sua feitura de cabeça, ele faz a oferenda recolhida por Iemanjá. E, finalmente, após sua morte – na piscina de Severiano -, segue-se a ressurreição no mar.

Torna-se praticamente impossível para o leigo a compreensão mais adequada da simbologia dos rituais umbandistas e do candomblé, visto que o conhecimento só se aprofunda pela iniciação. Contudo, há certas indicações no filme que dispensam entendimentos iniciáticos para serem entendidas.

O comportamento dramático de Gabriel esclarece bastante a respeito.

Seu corpo fechado em criança tornou-o um predestinado. Por enquanto, não mais que isto. Sua iniciação na vida social – como pistoleiro – nada tem de glorificante em termos de heroicização; ele é simpático, pela tolice e ingenuidade, manipulável facilmente por aqueles que têm mais conhecimento do chão onde pisam (Eneida, Severiano, Dr. Baraúna). E o respeito que passa a infundir nos mais humildes depois da primeira comprovação de sua invulnerabilidade não impede que continue sendo manipulado. Somente quando se liga a pai Erley — após a segunda comprovação do seu corpo fechado — é que Gabriel começa realmente a crescer — ressalva feita à experiência amorosa que lhe tinha sido fornecida por Eneida. É na vinculação de Gabriel com seus semelhantes que sua significação vai adquirindo contornos precisos. A iniciação religiosa concede-lhe a capacidade de entender o povo. “A feitura-de-cabeça” — conforme declara Dilson Bento[4] — “sendo um ritual de iniciação, quando vivenciada psíquica e emocionalmente, pode ter a força de, em casos especiais, individuar a personalidade”. Depois de travar conhecimento com os mistérios de sua religião, de receber a guia e o santo — Ogum Beiramar — e ter aceita sua oferenda por Iemanjá, companheira de trabalhos deste, Gabriel já cresceu também hierarquicamente em relação a seu povo e já tem condição de representá-lo. A terceira comprovação de sua resistência às balas, afetada pela suposta morte da mãe, provoca o derramamento do seu sangue — força vital —, outro elemento de forte simbologia, relacionando, nos sacrifícios, o sangue dos animais com o do orixá, o do iniciado com seu guia (por outro lado, surge também aqui a simbologia do número 3, presente nos mais variados mitos, mas especificamente defendido por Juana Elbein dos Santos[5] como princípio dinâmico no candomblé).

Neste terceiro momento, Gabriel já representa o espírito do povo. Mergulha na água doce para reaparecer no mar e ser enviado ao ar: de revólver na mão, um novo Ogum guerreiro.

E o violeiro cego, que soube contar toda essa história, também vai desempenhar o ataque de seus assaltantes, ratificando a frase de Pedro Archanjo de que o povo não acaba nunca. “Se me der na veneta eu vou, se me der na veneta eu mato, se me der na veneta eu morro… e volto pra curtir”.

Notas

  1. O desenrolar do passado recente ultrapassa, no final, o presente narrativo, projetando-se além deste na última sequência e na apresentação conclusiva dos letreiros.
  2. Edição de 23 de setembro de 1977.
  3. In Espetáculos populares no Nordeste, São Paulo, 1966.
  4. In Malungo, decodificação da umbanda, Rio de Janeiro, 1979.
  5. In Os nagô e a morte, Petrópolis, 1979.

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