1992

O círculo e a linha

por Newton Bignotto

Resumo

Nos textos políticos do Quattrocento italiano vemos, com certa frequência, referências ao tempo e à história usando a imagem do círculo tal como o modelo da antiguidade greco-romana. O retorno ao círculo como imagem do tempo foi uma resposta direta ao dualismo medieval e à divisão da história operada por santo Agostinho.

Na concepção cristã, a imagem que melhor sintetiza o tempo é a linha. É essa imagem que corresponde à forma bíblica de pensar o desenrolar da presença do homem no mundo. No pensamento cristão o tempo não pode ser separado da história.

Santo Agostinho foi levado a separar a história das instituições humanas, dos Estados e mesmo das formas de organização religiosa, da verdadeira história sagrada. O dualismo agostiniano causou uma forte depreciação das atividades puramente humanas. Temos aí a política como exemplo. Se o tempo dos homens era um intervalo na eternidade, tudo o que fazemos durante nossa permanência na terra tem pouco significado do ponto de vista de Deus. Tal concepção sofreu fortes ataques a partir do final do século XII. O primeiro ataque veio dos juristas: se tudo está destinado a morrer, qual o sentido em fixar as regras de convívio e de autoridade? Porém, o ataque mais forte veio dos averroístas que recuperaram a doutrina aristotélica da eternidade do mundo e do tempo, afirmaram que os céus não foram criados, que não haveria ressurreição, pois não tinha havido criação no sentido bíblico.

As repúblicas da época enfrentavam os desafios de afirmar seu direito a criar seu próprio corpo de leis e mostrar que suas leis eram tão válidas quanto as do Império, ou da Igreja. Defender a República contra o Império, ou contra os governos monárquicos, era assim participar do retorno às fontes do pensamento antigo.

A segunda face da volta à Antiguidade estava diretamente relacionada com a questão do tempo. Não era possível preconizar um retorno às fontes gregas e romanas e conservar a concepção cristã da história e do tempo. Os humanistas renascentistas, que abraçaram a concepção circular do tempo de Políbio, o historiador grego que acompanhou de perto alguns momentos decisivos da história romana e que concebia as mudanças das constituições segundo um modelo cíclico, imaginaram que a República mista, seria capaz de deter a marcha da corrupção. Isso mostra como a concepção circular do tempo foi influente no Renascimento e como alterou o comportamento político dos habitantes das diversas repúblicas que viram florescer o humanismo cívico.

O humanismo cívico foi um fenômeno restrito a algumas cidades e conviveu com uma Igreja que havia recuperado seu poder temporal e com a expansão das monarquias em toda a Europa. Mas, em geral, os humanistas continuaram a professar a fé cristã e a conviver com uma série de valores contraditórios.

Mais do que voltar, portanto, ao tempo circular, o Renascimento produziu uma notável abertura que exigia um novo conceito de tempo e uma nova forma de pensar a história.


Nenhum autor sintetiza melhor do que Pico della Mirandola a imagem que os pensadores italianos tinham do homem. Em sua célebre Oratio de hominis dignitate, ele nos fala de maneira eloquente desse ser cheio de potencialidades que, ao contrário dos outros animais, recebeu de Deus o direito de forjar o próprio rosto. Diz ele:

Ó Adão, nós não te demos nenhum lugar determinado, nem uma fisionomia própria, nem dons particulares, para que teu lugar, tua fisionomia, os dons que vieres a desejar, tu os tenhas e os possuas de acordo com teus votos e segundo tua vontade. Para os outros, sua natureza definida é regida por leis que lhes foram prescritas, tu, tu não és limitado por nenhuma barreira, é de tua própria vontade, do poder que te dei, que tu determinas tua natureza. Eu te instalei no meio do mundo, para que examines mais comodamente tudo o que nele existe. Nós não te fizemos nem celeste, nem terrestre, nem mortal, nem imortal, a fim de que, senhor de ti mesmo e tendo a honra e a tarefa de modelar teu ser, tu te componhas da forma que preferires. Tu poderás degenerar em formas inferiores, que são animais, tu poderás, por decisão de teu espírito, ser regenerado em formas superiores, que são divinas.[1]

Um homem assim constituído certamente não pode compreender sua passagem pelo mundo da mesma forma que os homens a compreendiam em plena Idade Média. Pico sugere não só que não somos prisioneiros de nenhuma lei externa, mas que podemos escolher nossa própria natureza, moldando-a segundo nossos desejos e criando nossas próprias leis. O que essa imagem de um homem totalmente livre tem de encantadora não é a descoberta do caráter não necessário das escolhas que operamos no mundo, os medievais já sabiam disso, e sim o fato de que o pensador italiano sugere que podemos inventar uma natureza e também sua forma de estar no mundo. Em outras palavras, somos os inventores de nossa natureza e também de nossa história. Os pensadores medievais, santo Agostinho em primeiro lugar, sabiam que a liberdade não pode ser limitada por nada que lhe seja exterior, pois, nesse caso, haveria uma lei maior que teria o poder de constranger-nos a agir apesar de nossa vontade, mas não acreditavam que o sentido de nossa história pudesse vir de nossos atos particulares. Se podemos sempre escolher entre múltiplas possibilidades, inclusive o pecado e a falta, essas escolhas nos confrontam com uma história cujo significado não depende de nós. O que Pico diz, portanto, é ainda mais radical do que a simples afirmação da liberdade da vontade. O que ele afirma é que criamos com nossas ações o sentido do tempo em que vivemos e, de maneira geral, o sentido da história.

As afirmações de Pico nos levam a pensar que o Renascimento italiano foi capaz de elaborar não só uma nova antropologia, mas também uma nova teoria da história. Essa sugestão se torna mais forte quando lembramos que nenhuma época foi tão feliz em criar uma imagem do passado à sua própria imagem quanto o Renascimento. Já com Leonardo Bruni, no começo do século XV, encontramos a caracterização da Idade Média como a idade das trevas, em oposição aos tempos luminosos que despontavam para a Itália com a retomada dos antigos ideais greco-romanos.[2] Por outro lado, o número de filósofos italianos que ao longo do Quattrocento e do Cinquecento escreveram obras em contradição com os princípios da filosofia escolástica, dominante nas universidades no final do século XIV, mostra que a Itália foi palco de uma revolução cultural que não poderia ter deixado de renovar a concepção de temporalidade e de história. O que devemos perguntar é se o Renascimento italiano forjou efetivamente uma nova concepção da história e do tempo, e em caso positivo qual foi ela. Dito com outras palavras, que tempo corresponde ao homem criador de sua natureza e de seu mundo, que história resulta de nossa liberdade?

A primeira dificuldade para responder a essa questão vem do fato de que Pico della Mirandola nada disse em seus escritos que pudesse nos ajudar. Se sua obra, cujo cunho retórico é evidente, é plena de sugestões, não podemos esperar dela a sistematização dos problemas que levanta.[3] A essa primeira dificuldade se soma o fato de que os historiadores italianos, que renovaram a escrita da história, abandonando inteiramente a crônica medieval, não se preocuparam em elaborar uma teoria da história e muito menos em discutir a natureza do tempo em geral. A maior parte se contentou em seguir os cânones elaborados pelos autores gregos, deixando de lado até mesmo as questões metodológicas próprias ao trabalho ao qual se dedicavam. Com raras exceções — Pontano, Calco, Valla —, os escritores italianos não pareciam sensíveis aos problemas teóricos criados pela apropriação de um modelo ligado a uma outra tradição. Eles escreviam uma nova história, com a confiança ingênua de que estavam deixando de lado os séculos obscuros que adormeceram a herança dos antigos.[4]

A segunda dificuldade vem do uso do termo Renascimento italiano. Embora popularizado pelos historiadores das ideias, que não hesitam em fazer afirmações do gênero: “A filosofia renascentista da natureza não conhecia propriamente qualquer conceito de tempo”,[5] nada nos permite dizer que possamos recorrer a tais generalizações para entender o que ocorreu com o conceito de tempo e de história numa época que viu as fronteiras do mundo serem alargadas de forma inusitada, e que se viu a si mesma, pelo menos por parte de alguns de seus pensadores, como um mundo novo, voltado para o futuro.

Vamos deixar de lado, por enquanto, as dificuldades que apontamos e buscar um ponto de partida, para abordar nosso problema. Um passeio pelos textos políticos do Quattrocento italiano revela-nos que, com uma certa frequência, os autores se referiam ao tempo e à história usando a imagem do círculo.[6] Talvez texto mais conhecido, mas que apenas reflete uma tendência da época, encontra-se em Maquiavel, que no segundo capítulo dos Discorsi, depois de analisar os vários regimes e suas mutações, afirma: “Este é o círculo que percorrem todos os Estados”. A afirmação não tem nada de original, pois não só fazia parte da linguagem comum dos escritores politicos, mas foi retirada do sexto livro das Histórias, de Políbio, obra muito citada naquela época, embora nem sempre saibamos como os pensadores a conheciam, uma vez que sua tradução para o latim data da segunda década do século XVI.[7] Mas o que nos interessa é que muitos recorreram a Políbio sem se preocupar com as consequências de se esposar uma concepção circular do tempo. Repete-se uma teoria como se ela não tivesse importância para todo o pensamento político, e como se pudéssemos combinar uma história circular com as mudanças visíveis do mundo, sem cairmos em contradição. O homem todo-poderoso do Renascimento parece, no entanto, capaz de tudo, pois muitos conseguiram ver na expansão das fronteiras do universo uma figuração do eterno retorno. Para estudarmos, porém, o significado dessa apropriação, talvez não baste recorrermos aos textos da época que a ela fazem referência. Com exceção do próprio Maquiavel, que, já no capítulo citado, nos alerta para o fato de que as constituições particulares raramente conseguem cumprir toda a volta do círculo, nos convidando assim a não darmos uma importância exagerada ao que acabara de dizer, os autores renascentistas foram em geral pouco prolixos quando se tratava de falar do tempo ou da história circular.

Para entender, assim, o sentido da reviravolta provocada pela volta ao modelo clássico do eterno retorno, talvez não seja prudente aceitarmos a ideia simplificadora de que a concepção dominante da história no Renascimento, com todas as dificuldades que vemos no uso desse termo, era apenas um gesto retórico cuja extensão os pensadores não mediam. De um lado, devemos nos guardar da tentação de fornecermos uma descrição sistemática de uma época que não se presta a isso, e que não procurou se expressar por meio de sistemas, de outro, talvez seja mais fecundo tentar identificar os problemas que estavam na base do recurso a Políbio, antes de tirarmos conclusões a respeito da questão que nos interessa. Vamos, assim, voltar à concepção cristã do tempo e da história, para então tentarmos entender as rupturas operadas pela volta ao círculo como modelo da temporalidade.

Uma precisão se impõe, no entanto, antes de continuarmos. Até aqui falamos de tempo e de história de uma maneira indistinta, como se possuíssem sempre o mesmo significado. Daqui para a frente será preciso estarmos atentos para o fato de que se trata na verdade de dois problemas distintos, que não mereceram sempre a mesma solução. O tempo é tanto um problema metafísico e cosmológico quanto antropológico, e pode ser pesquisado independentemente da forma como os homens vivem suas vidas em comum. Já a história diz respeito necessariamente à vida em sociedade e guarda laços indissolúveis com a política.

De uma forma mais específica, só podemos falar de uma filosofia da história na modernidade, mas seria tolice imaginar que nem os antigos sistemas metafísicos, nem a filosofia política sugeriram maneiras de se compreender a presença do homem no mundo para além do tempo presente. Há assim, ainda que colocada de forma diferente, uma questão da história em toda filosofia antiga, seja greco-romana, seja cristã.

O TEMPO NO CRISTIANISMO: A LINHA

A imagem que melhor sintetiza o tempo, tal como o pensamento cristão o concebe em sua sucessão contínua de momentos, é a linha. Essa imagem corresponde, em primeiro lugar, à forma bíblica de pensar o desenrolar da presença do homem no mundo. Ao momento da Criação, que dá origem ao tempo dos homens, se segue uma série de momentos que nos conduzem ao encontro da verdade revelada, o tempo messiânico em que o passado se funde na eternidade de Deus. No pensamento judaico, como no Antigo Testamento, o tempo é pensado como essa tensão entre a Criação, a gênese, e o futuro, que coincide com o fim dos tempos. O centro de gravidade de toda a linha do tempo está voltado para a frente, de sorte que o sentido do que acontece só nos é revelado pelo que vier a acontecer.[8]

O cristianismo introduz um dado novo nesse esquema, que o altera de forma radical: a vinda do Cristo. Com efeito, a presentificação da palavra de Deus quebra ao meio a linha que unia a Criação ao Juízo Final. Com isso podemos nos perguntar se a concepção neotestamentária não produz na verdade uma teoria absolutamente original sobre o tempo. A linha permanece sendo sua imagem, mas não podemos mais nos servir do futuro para explicar o passado. Se o Cristo marca, como diz Lucas, a passagem da escravidão à liberdade, devemos supor que sua vinda tem importância para a história dos homens em geral, e não se situa num plano meta-histórico. A conclusão principal a que chegamos é que a história tem um significado em si, e que o tempo também o tem, pois é convertido no tempo dessa história, cujo caráter essencial define.[9]

Devemos notar, de início, que no pensamento cristão o tempo não pode ser separado da história. Com o passar dos anos, os acontecimentos não perdem a significação, mas, ao contrário, dão ao tempo seu sentido e sua orientação. A chave para a compreensão da questão que nos interessa é, assim, a figura do Cristo. Sua vinda transformou completamente o significado dos momentos em que esteve no mundo. De um lado, Ele os tornou essenciais não somente para o entendimento do passado, cujos sinais passaram a ser interpretados levando-se em conta o que possuíam de relevante para indicar a vinda de Deus entre os homens, mas também para a compreensão do futuro, que completará a história dos homens, fundindo-a na eternidade. Como nos diz Pàttaro: “O Cristo é o término e o objetivo da história, e o tempo é a condição que torna possível essa dupla afirmação”.[10] Assim, contrariamente às filosofias helênicas, que concebiam o tempo fechado num círculo sem saída e sem fim, o cristianismo atribui ao tempo o máximo de potencialidades e de significação.

Para desvendar o segredo dos diversos momentos da história é preciso não esquecer que o tempo decisivo — kairós — é o tempo do Cristo, que tem uma dimensão escatológica e que domina todos os outros. Se quisermos saber qual o significado de um dado evento é necessário relacioná-lo à vinda do Cristo e ao fato de que Ele era uma prefiguração da plenitude do tempo. Com isso, fica claro que não podemos mais pensar em uma história humana, que se desenrola em direção ao futuro, mas devemos compreendê-la como uma série de eventos que participam da história bíblica e a ela estão submetidos, numa tensão entre um futuro que a realiza e um passado que a ilumina. Devemos, pois, falar não mais em uma história, mas em histórias. De um lado, temos a história sagrada, sucessão de eventos reveladores da presença de Deus; de outro, a história secular, produto da vida em comum dos homens, e da falta original.

Antes, porém, de tentar elucidar a relação existente entre as duas dimensões da história, devemos estar atentos para o fato de que o que chamamos tempo é na verdade uma fração do tempo infinito de Deus. Assim, devemos compreender que, contrariamente ao que acreditava Platão,[11] o tempo não é uma criação do demiurgo. Ele existe antes da criação na forma de um tempo que prepara em Deus a história de nossa salvação — aiôn ek tou aiônos —, e se desdobra no tempo que conhecemos — aiôn outos —, o qual é o intervalo entre a gênese e a parousia. Por fim temos o tempo que consome e conduz a seu termo a última criação, a fusão entre o tempo dos homens e o de Deus — aiôn mellôn. O que esse último tempo tem de especial é que conhecemos uma prefiguração do que ele será ainda no interior do tempo dos homens — aiôn outos —, por meio da presença do Cristo.

Podemos começar definindo a história sagrada como a que se ocupa do trabalho de salvação; todos os outros eventos são constitutivos da história secular. Essa definição seria perfeita se pudéssemos saber quais eventos fazem parte do processo de salvação e quais são apenas restos sem importância de nossa presença no mundo. Mas não é assim. O que chamamos de história em geral é fruto do pecado original e do mergulho dos homens no tempo. O que resulta desse mergulho não é uma sequência coerente de ações, e sim um mundo no qual nada é sólido ou estável a priori. O homem da Queda é também o ser do livre-arbítrio, que recebeu das mãos do Criador a faculdade de escolher seu próprio caminho, mesmo que isso o conduza a reafirmar sua natureza decaída. Para separar assim os acontecimentos relevantes — a história sagrada — do mero desenrolar dos acontecimentos — o saeculum —, é preciso acreditar que a descrição dos eventos sagrados é diferente da dos acontecimentos banais. O cristianismo respondeu a essa questão recorrendo à ideia de que as Escrituras foram divinamente inspiradas e por isso continham a palavra autorizada de Deus sobre o que era importante e o que não era.[12]

Santo Agostinho adotou essa posição clássica do cristianismo, mas procurou precisar-lhe o sentido. De um lado, mostrando que a descrição da história sagrada só podia ser obra de profetas diretamente inspirados por Deus, que se expressaram nos livros sagrados; de outro, ele foi levado a separar a história das instituições humanas, dos Estados e mesmo das formas de organização religiosa, da verdadeira história sagrada. Escatologia e história secular passaram a ser vistas como realidades totalmente diversas. Ele condenava, assim, os que buscavam no mundo dos homens, em suas instituições, os sinais da obra de Deus. De uma certa maneira a escatologia estava fora da história.[13] O dualismo agostiniano não significava, no entanto, que pudéssemos simplemente desprezar tudo o que acontece nas sociedades humanas. Se a ação circunstancial não é necessariamente fundamental para a salvação, é preciso ver que há uma interpenetração entre a história sagrada e o saeculum, pois os atos destinados a conduzir os homens à salvação não podem ser perpetrados em outro tempo que não tempo dos homens. De maneira menos radical, podemos dizer que Deus também está presente na história dos homens, embora não conheçamos o sentido de sua presença, e, assim, não possamos saber de que maneira Ele a influencia. A história sagrada, ao contrário, nos é desvelada pelo próprio Deus e aponta para a redenção. Apesar de ter instaurado um dualismo que marcou decisivamente o pensamento cristão, Agostinho deixou aberta a porta para a compreensão da ambiguidade fundamental do tempo dos homens. A constatação da existência de duas ordens históricas diferentes não significou o abandono de todas as preocupações com os negócios humanos, mas sua reorientação em função do processo escatológico.

A CRISE DO DUALISMO

Poderíamos imaginar que o retorno que muitos pensadores italianos do Renascimento operaram ao círculo como imagem do tempo foi uma resposta direta ao dualismo medieval e à divisão da história operada por santo Agostinho. Se lembrarmos que o ponto de partida para esse processo foi a volta aos textos da Antiguidade, que associamos com certa facilidade à circularidade do tempo, chegaremos à conclusão de que a ruptura com o pensamento cristão, no que concerne à questão que nos interessa, fez parte de um movimento muito mais amplo e complexo de volta ao passado, que não poderia deixar de alterar também a maneira de ver o problema da temporalidade.

O dualismo agostiniano, que se exprimia tanto na separação da história quanto na separação do tempo, resultou numa forte depreciação das atividades puramente humanas tais como a política. Se o aiôn outos, o tempus dos homens, era um mero intervalo na eternidade (aeternitas), tudo o que fazemos durante nossa permanência na terra tem pouco significado do ponto de vista de Deus. Essa desqualificação do tempo humano passou a sofrer fortes ataques a partir do final do século XII.

A primeira pressão veio dos juristas que buscavam formular uma teoria sobre a continuidade das instituições políticas e sociais. Se tudo está destinado a morrer, qual o sentido em fixar as regras de convívio e de autoridade, além da utilidade reconhecida por Agostinho de garantir a paz e a tranquilidade para os membros da cidade de Deus? Como elaborar teoricamente coisas tão banais quanto a cobrança de tributos, se as estruturas políticas estão condenadas à morte num espaço de tempo que pode inclusive ser breve?[14]

O ataque mais violento, no entanto, contra o edifício agostiniano foi feito pelos averroístas, que reviveram a doutrina aristotélica da eternidade do mundo. Os averroístas afirmavam que não somente o mundo é eterno, mas que o tempo é eterno, que os céus não foram criados, que não haveria ressurreição, pois não tinha havido criação no sentido bíblico. O tempo deixou de ser o símbolo da provisoriedade e da morte, para se transformar num elemento de vivificação e de duração da vida. É claro que o que era imortal não eram os homens particulares, mas a espécie, o gênero.[15]

Não podemos estabelecer nenhum laço causal entre os ataques e querelas averroístas e os esforços jurídicos de formulação da continuidade das formas políticas, mas é certo que, a partir do século XIII, uma reformulação das teorias medievais sobre a temporalidade se impôs. São Tomás foi sensível a esse apelo e procurou encontrar uma resposta recuperando a noção de aevum, o tempo dos anjos, uma forma de eternidade que, sem compartilhar a eternidade divina, introduzia no mundo dos homens uma sequência temporal não sujeita à destruição. Isso permitiu ao cristianismo encontrar uma resposta para questões políticas que o agostinismo deixava inteiramente de lado. O que é fundamental, para nós, não é, entretanto, o debate erudito que dominou as universidades do final da Idade Média, e sim o fato de que se criou o clima necessário para uma reavaliação das teorias medievais sobre o tempo e a história.

A redescoberta dos trabalhos de Aristóteles teve, como é de se esperar, um papel decisivo nas mudanças que ocorreram a partir da metade do século XII. Enganar-nos-íamos, no entanto, em atribuir-lhe a responsabilidade pela volta à tona da concepção circular do tempo. Aristóteles, na verdade, dá pouca importância à imagem do círculo quando se refere à questão na Física e na Metafísica. O que lhe importa é a afirmação da ligação íntima que existe entre tempo e movimento. Para ele o tempo é fundamentalmente o número do movimento segundo o anterior e o posterior. Não vamos aprofundar aqui nosso estudo sobre a ideia do tempo como duração do movimento, o que pressuporia uma análise detalhada das ideias de “anterior” e “posterior”. O que nos interessa é o fato de que Aristóteles afirmava que o tempo não pode ser gerado, assim como o movimento também não pode sê-lo.[16] Contrariando, portanto, Platão, que falava no Timeu da criação do tempo, associando-o ao movimento do universo, Aristóteles insistia na ideia de que ele é um contínuo que não pode ser associado a nenhum movimento particular, nem mesmo ao da esfera celeste.[17]

A revolução provocada pelo aristotelismo no final da Idade Média é peculiar por colocar em xeque certas concepções cristãs exatamente ao não levar em consideração seus pontos de partida. Na Grécia antiga, o problema do tempo apareceu ligado sobretudo a uma consciência cada vez mais viva do passado e a um senso crescente do valor da história.[18] Platão, de certa maneira, sintetizou esse movimento, porque foi capaz de não dissociar a questão de natureza cosmológica daquela de natureza propriamente histórica. Com Aristóteles a coisa muda de figura, pois ele insistiu sobre o caráter não criado do tempo, mostrando que era possível tratar o problema do tempo independentemente do problema da história, ou se preferirmos, do tempo humano. São Tomás tentou conciliar as duas soluções mostrando que havia uma diferença entre o tempo real — criado e finito — e o tempo imaginário — sem começo ou fim e pertencente a Deus. Como ele não podia, no entanto, desenvolver uma teoria coerente sobre o tempo imaginário, sua sugestão adormeceu até que a ciência moderna pudesse fornecer um conceito do tempo do ponto de vista abstrato da matemática.[19]

Se a revolução aristotélica do final da Idade Média pouca importância deu à dimensão histórica do problema do tempo, se os juristas apenas o apontavam sem realmente resolvê-lo e se não podemos falar em platonismo nessa época, senão de forma dispersa, como compreender que a concepção circular do tempo foi tão importante nos séculos seguintes?

Para buscar uma resposta à nossa questão é preciso deixar de lado as considerações teóricas e procurar no terreno político as dificuldades causadas pela concepção linear do tempo.

O HUMANISMO E O TEMPO: O CÍRCULO

O problema da continuidade das formas políticas surgiu do impasse em que se encontrava o Império diante de certas formulações do pensamento cristão. Sendo, no entanto, uma estrutura universal, o Império podia aceitar uma visão modificada do tempo linear, para produzir uma teoria justificativa de suas funções no mundo. Esse passo dependeu em parte do trabalho dos juristas e foi completado por pensadores como Dante, que insistiram na dignidade da política, contra os preconceitos medievais. Para o grande número de repúblicas que dominavam a cena italiana no final da Idade Média, essa solução era inaceitável. As repúblicas italianas eram formas particulares de governo, que viviam entre duas forças quase sempre em disputa. Eram vistas como tentáculos administrativos que deveriam se submeter a um poder central. Ora, a riqueza crescente das mesmas, o desejo de independência e o próprio enfraquecimento da Igreja e do Império, levaram-nas a desejar cada vez mais afirmar sua própria liberdade.

É claro que o movimento de luta contra a Igreja e o Império não dependeu diretamente de uma nova teoria da temporalidade, mas também não podemos desprezar o papel que tem em toda luta política o aparecimento de novas ideias. Com autores como Bartolus de Saxoferrato e Marsilio de Pádua, as repúblicas passaram a poder contar com um instrumento poderoso na hora de elaborar suas constituições. Se a fonte de toda a lei é o povo, com as dificuldades que esse conceito carrega consigo, é possível dizer que um dado conjunto de leis responde à exigência de universalidade, própria de toda formulação constitucional, sem que tenha de expressar uma vontade transcendente qualquer.[20] Mas foi com o humanismo cívico, no século XV, em cidades como Florença e Veneza, que o republicanismo ganhou força e consistência.[21]

Para compreender a importância do movimento humanista italiano, é preciso recordar os desafios com os quais estavam confrontadas as repúblicas da época. Não se tratava somente de afirmar seu direito a criar seu próprio corpo de leis; era preciso mostrar que suas leis eram tão válidas quanto as do Império, ou da Igreja. Além disso, havia o fato de que uma forma particular estava inteiramente sujeita aos efeitos do tempo. Ainda que pudéssemos provar que as constituições republicanas eram legítimas, restava mostrar como elas podiam escapar do que, para os renascentistas, como para os medievais, eram as características da particularidade: a finitude, a mortalidade e a instabilidade.

A resposta elaborada por homens como Salutati, ou Leonardo Bruni, tinha duas faces. Em primeiro lugar, eles procuravam mostrar que as cidades republicanas, Florença em particular, haviam nascido sob os auspícios da República romana e não do Império. Com isso queria-se provar que a liberdade era a forma natural de suas constituições. Como essa afirmação era acompanhada do retorno a certos textos da Antiguidade, que passaram a ser reverenciados como palavras divinas, revitalizou-se uma teoria das origens, que viria a ser essencial para todo o republicanismo do Quattrocento. Segundo a ideia que os humanistas tinham da origem de uma cidade, as características de seu começo eram determinantes para todas as suas ações futuras. Elas podiam até mesmo permanecer submersas, devido à opressão ou à corrupção dos homens, mas tinham o poder de influenciar os rumos da cidade, quando essa recuperava as condições que haviam feito dela uma cidade livre. Esse era o caso de Florença, que se tornara, nas últimas décadas do século, um polo de desenvolvimento e de resistência aos ataques desferidos pela Igreja e pelas tiranias italianas.[22] Defender a República contra o Império, ou contra os governos monárquicos, era assim participar do retorno às fontes fecundas do pensamento antigo.

A segunda face da volta à Antiguidade estava diretamente relacionada com a questão do tempo. Não era possível preconizar um retorno às fontes gregas e romanas e conservar a concepção cristã da história e do tempo. Como Aristóteles não fornecia um modelo adequado, os humanistas recorreram a Políbio, o historiador grego que acompanhou de perto alguns momentos decisivos da história romana e que concebia as mudanças das constituições segundo um modelo cíclico. Todas as formas — monarquia, oligarquia, tirania, aristocracia, democracia, anarquia — estavam destinadas a perecer numa ordem que podia ser conhecida a priori. O tempo da política tinha, para o historiador grego, grande proximidade com os ciclos da physis. O que condenava os regimes a girar eternamente no círculo da história eram suas próprias virtudes que, capazes de dar-lhes uma identidade, não resistiam aos vícios engendrados pelos homens que se acostumavam a um certo tipo de comportamento. Numa palavra, era a particularidade das formas que as tornava prisioneiras do tempo. Num certo sentido, Políbio não precisava se preocupar com a delimitação das causas da corrupção das constituições, uma vez que essas se encontravam nas próprias cidades, mas era preciso dar rosto à eterna instabilidade das coisas humanas. O rosto escolhido foi o da deusa romana: a Fortuna. A Fortuna era a responsável pelo cumprimento do ciclo da história. Fazendo emergir a contingência, ela cumpria uma lei da qual não se pode escapar. Não se tratava de encontrar um motor, no sentido aristotélico, para a história, essa girava numa ordem preestabelecida, e sim de compreender que agente organiza a luta dos homens contra o tempo, pois a Fortuna pode apenas fazer girar a roda que está em seu poder, mas não criar algo de novo, uma vez que o mundo está condenado à eterna repetição. Ela é, portanto, uma deusa de segunda categoria, porque não lhe cabe dar nova face à presença dos homens no mundo, mas dela depende pelo menos em parte o sucesso dos regimes políticos. Surpreendidos por sua fúria num momento privilegiado, eles vêem ruir do dia para a noite todo o edifício que fora construído anos a fio.

A principal consequência da revitalização do conceito de Fortuna foi o fato de que a dicotomia entre ação e contemplação, que caracterizara o pensamento medieval, deixou de servir como parâmetro para os homens que se dispunham a pensar a vida nas repúblicas como sendo algo mais do que uma condenação advinda de nossa falta primitiva. O tempo presente, a vida na cidade adquiriu, a partir de Petrarca, uma significação que estivera ausente durante toda a Idade Média. A cidade deixou de ser o lugar da condenação, para ser vista como o espaço onde a natureza humana se desenvolve e produz seus mais belos frutos. Os valores cívicos voltaram a ser cultivados como na Antiguidade e uma bela ação em favor da liberdade e da sobrevivência da República passou a ser gratificada com o reconhecimento que só os atos de louvor a Deus mereciam. Esse homem, voltado para os valores da cidade, que buscava o reconhecimento dos outros cidadãos, tinha consciência, no entanto, de que sua vida estava submetida a um círculo inexorável, do qual não era possível fugir. A Fortuna não era, como a Providência divina, uma intervenção direta de Deus nos negócios humanos, guiada por uma escatologia. Seus atos refletiam apenas a circularidade do tempo, mas deixavam aberta a porta para que os homens tentassem vencê-la a fim de preservar os frutos de suas ações. Poucos humanistas acreditavam que era possível contrariar a Fortuna, mas uma mudança substancial se produziu no pensamento político com a valorização das ações públicas e com o amor à vida ativa.

Os humanistas renascentistas, que abraçaram a concepção circular do tempo, aceitaram também a solução de Políbio para vencer a precariedade das formas políticas particulares. Como ele, imaginaram que a mistura dos regimes, no que chamavam de República mista, seria capaz de deter a marcha da corrupção. Ainda que não fosse fácil dizer no que consistia essa mistura, muitos dos debates constitucionais, que dominaram a vida política florentina no final do Quattro-cento, foram guiados por essa ideia. Independentemente da origem de classe dos atores, todos os que defendiam os valores republicanos consideravam fundamental criar um corpo de leis e uma organização social que pudesse refletir a mistura da monarquia, da democracia e da aristocracia. Raramente as facções estavam de acordo quanto à forma dessa composição, mas poucos discordavam de que esse era o caminho a ser seguido. Isso mostra como a concepção circular do tempo foi influente no Renascimento e como alterou o comportamento político dos habitantes das diversas repúblicas que viram florescer o humanismo cívico.

Nós nos enganaríamos, no entanto, imaginando que a volta aos modelos clássicos da Antiguidade representou uma ruptura total com o pensamento medieval. Em primeiro lugar, porque o humanismo cívico foi um fenômeno restrito a algumas cidades, tendo convivido com uma Igreja que havia recuperado seu poder temporal e com a expansão das monarquias em toda a Europa, bem como com cidades italianas que abraçavam explicitamente a causa monárquica, quando não diretamente tirânica. Mas o mais importante é que, em geral, os humanistas continuaram a professar a fé cristã e, assim, a conviver com uma série de valores contraditórios. O próprio sentimento da provisoriedade da vida humana e da novidade da vinda do Cristo, que não foram negados por homens como Leonardo Bruni ou Palmieri, estavam em flagrante contradição com a ideia da repetitividade da história. Aceitar a revelação da verdade de Deus, e ao mesmo tempo pensar que a Fortuna era o obstáculo maior para nossas ações na cidade, foi típico de uma época que não se preocupou em produzir um sistema fechado de ideias.

O CÍRCULO E A LINHA

Podemos agora voltar a Pico della Mirandola e às dificuldades que havíamos apontado no começo de nossa exposição. Como conciliar a imagem de um homem conquistador e disposto a tudo com o império da Fortuna e da contingência, que reduz nossos esforços a nada, quando é chegada a hora de girar a roda do tempo? Talvez a melhor forma de responder a essa dificuldade seja abandonar a esperança de encontrar uma resposta coerente, para forjar uma imagem do Renascimento diferente da que os próprios pensadores italianos criaram. Com efeito, o retorno às fontes antigas foi acompanhado por uma ruptura radical não só com as teorias medievais, mas muitas vezes com aspectos essenciais do pensamento grego. Se tivéssemos de caracterizar a Renascença, talvez fosse melhor recorrer à imagem de um turbilhão que, ao voltar ao passado, explodiu os quadros do pensamento presente. Para melhor ilustrar o que acabamos de dizer vale a pena nos referirmos a algumas contribuições de Nicolau de Cusa.

O pensamento de Nicolau de Cusa é tão rico que torna vã qualquer tentativa se sintetizá-lo.[23] O que nos interessa aqui, no entanto, são as consequências de algumas de suas doutrinas que influenciaram diretamente homens como Pico della Mirandola e Marsilio Ficino, os quais conviviam de perto com os humanistas florentinos que revolucionaram o pensamento político florentino.

Nicolau de Cusa afirmava, em concordância com os pensadores medievais, que os poderes de Deus eram infinitos. Deduzia daí, no entanto, que o universo por Ele criado não podia ser finito no sentido de Aristóteles ou dos tomistas. Aristóteles associa o conceito de infinito ao tempo, ao pensamento e aos movimentos de acréscimo e de divisão.[24] Para compreender essa associação é preciso levar em conta que o infinito só existe nesses casos em potência, não podendo ser pensado nem como essência, nem como atributo de um corpo, sendo apenas a expressão de uma grandeza.[25] Aristóteles deduzia daí que o infinito não pode ser objeto de nenhum saber, sendo inacessível à palavra. A perfeição, ao contrário, se encontrava num mundo fechado e submetido à circularidade da natureza. Para o Cusano, o infinito também não podia ser alcançado pela palavra, porém ele retirava disso outras consequências. Se o universo comporta tudo o que é Deus, não pode ser um infinito negativo, uma mera possibilidade abstrata mas irrealizável. O universo não pode possuir um termo, pois limitaria os poderes de Deus, mas também não é o próprio Deus, sendo assim ao mesmo tempo um finito e um infinito. Seu pensamento está baseado em duas premissas: a de que a ideia de infinito só se aplica rigorosamente a Deus e a de que o universo é ilimitado (interminatum).[26] A cosmologia que derivava de suas obras estava destinada a revolucionar as mentalidades. Ao mundo limitado e harmônico dos medievais, o Cusano veio opor um universo complexo e não hierarquizado, no qual as noções de alto e de baixo, de lugar natural, de centralidade da terra não faziam mais nenhum sentido.[27]

Não resta a menor dúvida de que a influência de Nicolau de Cusa foi grande e duradoura. Não podemos deduzir, no entanto, que a aceitação da ideia de um universo infinito tenha sido fácil. Homens como Galileu ainda manifestavam dúvidas quanto à possibilidade de se aceitar um espaço cujas fronteiras nos são desconhecidas.[28] Mas o que nos importa não é tanto o processo de aceitação da ruptura provocada pela ideia de um espaço infinito, e sim o fato de que ela trouxe consequências importantes para o estudo que estamos realizando. Com efeito, como conciliar um espaço indeterminado com um tempo circular? Como falar em repetição, num mundo que via seus limites se expandirem ao máximo, sem encontrar um ponto de ancoragem?

A melhor resposta que podemos dar implica talvez aceitar que o que chamamos Renascimento foi uma época de rupturas e criações dificilmente conciliáveis. Se os humanistas cívicos recorreram à herança grega do tempo circular para pensar a política, essa conquista não impedia que os homens de ciência abandonassem progressivamente a cosmologia a ela associada. Maquiavel compara sua obra ao empreendimento perigoso dos navegadores que se lançaram ao mar em busca de novas terras. A tradição foi para ele a embarcação com a qual se lançou ao mar, mas não seu destino e sua conquista. Se, no começo dos Discorsi, ele não hesita em reproduzir o modelo de Políbio, ao longo de sua obra não deixou de notar que o passado pode nos fornecer um ponto de partida, porém não um guia absoluto para nossas ações. O orgulhoso homem de Pico della Mirandola, que se lançou à conquista de novos mundos e à destruição de outras culturas, era um ser dividido pela dúvida e marcado pela esperança. De um lado, acreditava que seu mundo repetia o passado e reencontrava a antiga virtude, de outro, via o universo escorregar entre seus dedos, expandindo-se ao infinito e transformando-o numa criatura insignificante diante da grandeza do tempo e do espaço.

Mais do que voltar, portanto, ao tempo circular, o Renascimento produziu uma notável abertura que exigia um novo conceito de tempo e uma nova forma de pensar a história. A explosão dos quadros do pensamento nos leva a concluir com Nicolau de Cusa, que, diante da infinitude do tempo e do espaço, afirmava: “Se houvesse uma linha infinita, ela seria uma reta, um triângulo, um círculo e uma esfera. Da mesma maneira, se houvesse uma esfera infinita, ela seria um triângulo, um círculo e uma linha”.[29]

Notas

[1] Citado por E. Cassirer, Individu et cosmos dans la philosophie de la renaissance, Minuit, 1983.

[2] H. Baron, From Petrarch to Bruni, Studies in humanist and political literature, University of Chicago Press, 1968.

[3] E. Garin, La cultura filosofica del Rinascimento italiano, Sansoni, 1979.

[4] E. Cochrane, Historians and historiography in the Italian Renaissance, Academic Press, 1980.

[5] A. Heller, O homem do Renascimento, Presença, s. d.

[6] F. E. Manuel, Shapes of philosophical history, Stanford University Press, 1965.

[7] J. H. Hester, “Seyssel, Machiavelli and Polybus VI. The mystery of the missing translation”,
Studies in the Renaissance, III, 1956, pp. 75-96.

[8] G. Pàttaro, “La conception chrétienne du temps”, in Les cultures et le temps, Payot, 1975.

[9] Idem, ibidem, p. 195.

[10] Ibidem, ibidem, p. 196.

[11] Platão, Timeu, 37d.

[12] R. A. Markus, Saeculum. History and society in the theology of St. Augustine, Cambridge University Press, 1970.

[13] J. G. A. Pococok, The Machiavellian moment, Princeton University Press, 1975, p. 35.

[14] E. Kantorowicz, The king’s two bodies, Princeton University Press, 1957, cap.

[15] Idem, ibidem, p. 276.

[16] Aristóteles, Física, IV, 251b.

[17] Bas C. van Fraassen, Introduccion a la filosofia del tiempo y del espacio, Labor, 1978, pp. 21-74.

[18] G. E. R. Lloyd, “Le temps dans la pensée grecque”, in Les cultures et le temps, pp. 136-70.

[19] Bas C. van Fraassen, Introduccion a la filosofia del tiempo y del espacio, op. cit., p. 34.

[20] W. Ullmann, Principios de gobierno y política en la Edad Media, Alianza Editorial, 1985, 2.

[21] E. Garin, Scienza e vita civile nel Rinascimento italiano, Laterza, 1985.

[22] H. Baron, The crisis of the early Italian Renaissance, Princeton University Press, 1960.

[23] K. Jaspers, Anselm and Nicholas of Cusa, Harvest Book, 1966.

[24] Aristóteles, Física, III, 8, 208a.

[25] Idem, ibidem, III, 6, 207a.

[26] N. de Cusa, De la docte ignorance, Ed. de la Maisnie, 1930.

[27] P. Duhem, Le système du monde, Hermann, 1959, t. X, p. 278.

[28] A. Koyré, Do mundo fechado ao universo infinito, Forense-Edusp, 1979.

[29] N. de Cusa, De la docte ignorance, op. cit., I, 13.

    Tags

  • ação
  • antigo Testamento
  • Antiguidade
  • Bíblia
  • catolicismo
  • cidade
  • ciência
  • Cinquecento
  • circularidade
  • círculo
  • concepção linear do tempo
  • constituição
  • contemplação
  • contingência
  • criação
  • Cristioanismo
  • Cristo
  • Dante
  • demiurgo
  • Deus
  • Discorsi
  • dualismo
  • escatologia
  • escatológico
  • Escrituras
  • eternidade
  • eterno retorno
  • filosofia escolástica
  • finito
  • finitude
  • física
  • Florença
  • Fortuna
  • futuro
  • gênese
  • governo
  • Greco-romanos
  • história
  • homem
  • humanismo
  • idade média
  • Igreja
  • imortal
  • imortalidade
  • Império
  • infinito
  • infinitude
  • instabilidade
  • Itália
  • Juízo Final
  • lei
  • Leonardo Bruni
  • liberdade
  • linha
  • livre-arbítrio
  • Maquiavel
  • matemática
  • medieval
  • metafísica
  • mortalidade
  • movimento
  • natureza
  • Nicolau de Cusa
  • passado
  • pecado
  • Petrarca
  • Pico della Miramdolla
  • Platão
  • Políbio
  • política
  • políticos
  • povo
  • providência divina
  • Quattrocento
  • Renascença
  • Renascimento
  • repetição
  • república
  • republicano
  • revolução
  • roda da Fortuna
  • roda do tempo
  • Santo Agostinho
  • tempo
  • tempo imaginário
  • tempo real
  • Timeu
  • universalidade
  • valores cívicos