O conceito de tradição
por Gerd Bornheim
Resumo
No mundo das ideias, a atração entre os opostos também é lei. A tese precisa da antítese, nem que seja por negação.
No caso do par formado por tradição e ruptura, uma garante a consolidação do sistema, enquanto a outra sua vida.
Não que tal relação seja propriamente uma lei; afinal, tudo é história. Tudo é datado, irrepetível, original, único, motivo pelo qual César não foi nem será assassinado duas vezes, o que explica a redução de tal dualidade à sua dimensão formal.
Na Modernidade, o novo é que a ruptura suplanta em muito a tradição. Daí os reformadores radicais cientificistas, que, posteriores a Hegel, negam-se aos universais, a exemplo do Espírito Absoluto. Pensadores como Marx, com sua energia transformadora, e Comte.
Mas não que tal reforma tenha sido calculada. Fundamentalmente ambígua, ela se definiu, entretanto, pela destruição da metafísica, de muitos modos e em diversos níveis. Nisso, Nietzsche foi exemplar. No tratamento dispensado à relação entre tradição e ruptura também. “Nada mais antimoderno do que dispor de séculos de futuro” – escreveu ele, em tom niilista.
Atendo-se ao tema, cabe notar que “tradição” encontra sua raiz em “tradire”, que significa “entregar”, “passar” algo a outra pessoa ou geração, sobretudo através da palavra, falada ou escrita; instrumental. Acontece que a palavra também se serve de quem se serve dela. A língua, enfim, também é rainha, e, como tal, determina parâmetros. Do contrário, quem fala não se desligaria do que extrapola o significado; não o esqueceria. É exatamente por isso que o homem, como animal que fala, é histórico de ponta a ponta, e assim mantém a tradição, isto é, o conjunto de valores dentro dos quais ele se estabelece.
A isso chamavam atenção os gregos, que contrapunham “doxa” e “episteme”, opinião e ciência, relativo e absoluto. Exemplar, nesse sentido, é o mito da caverna.
É a partir do próprio absoluto que se entende a consolidação da tradição, portanto. Ela que se quer permanente, o que concorre para sua impossibilidade, exatamente. Há a história, é preciso lembrar mais uma vez, mas, dessa vez, notando que mesmo a permanência da tradição é histórica, motivo pelo qual algo se destaca. É a lentidão das transformações, o que se observa no estilo gótico, que, no interior do diálogo consigo mesmo, atravessou séculos. Ou no folclore, cujo ápice de criatividade dava-se no interior da repetição.
E hoje?
Hoje, ainda vigora a “lei” de Nietzsche. O folclore, mais uma vez, já não existe puro, ou seja, não lhe é mais possível a exclusividade regionalista, já que muitos são os contatos com manifestações exteriores. E isso vale para a cultura como um todo. O quê? A passagem da antiga tendência regionalista para a globalização, assim como vislumbrada por Goethe, nos séculos XVIII e XIX. Os valores se desenraizando.
Na verdade, é o próprio conceito de tradição que muda, a começar por quando ele se associa à noção de crise, que conserva a conflituosa unidade da tradição ocidental, seja ela hebraico-cristã ou greco-romana. O problema surge, então, quando os românticos alemães estudam o sânscrito como origem das línguas ocidentais ou Gauguin viaja para as ilhas dos Mares do Sul, ou Picasso inspira-se na arte negra africana. É que, pela primeira vez, o próprio sentido da totalidade da tradição é impugnado em suas bases. Algo parecido acontece quando se dá a queda absoluta de qualquer tipo de estética normativa, já que, no passado, era ela que garantia a continuidade da evolução do estilo, sobretudo em seu aspecto prático, de feitura da obra de arte. Já hoje qualquer tentativa de continuísmo tropeça num tipo de criatividade que destrói normas. Daí a criação deixar-se guiar por critérios absolutos e imanentes a seu próprio surto.
Por fim, cabe notar que a ruptura lança raízes na tradição. E aquela é niilista, mas não só, já que a tradição traz em si, desde seu começo platônico-cristão, um processo que fatalmente levaria a seu fim. É por isso que platonismo, metafísica, cristianismo e niilismo são, no fundo, sinônimos. O homem e seu mundo são, para todas essas doutrinas, inferiores, devassados pelo nada. E, com eles, o indivíduo concreto, o sensível, o corpo, o movimento…
Já os gregos perceberam que conceitos opostos costumam atrair-se, que eles formam de algum modo uma unidade, ainda que conflituada; mas os opostos se pertencem; e como que nascem de uma mesma raiz. Eles se reclamam, talvez para se destruírem. Ou avançam em sua oposição, e chegam a construir uma nova e harmoniosa unidade. Assim, toda a realidade seria entendida a partir da oposição de contrários que, mesmo que nunca definitivamente superáveis, seriam instauradores da dinamicidade do real. É fácil perceber que existe uma atração recíproca entre conceitos como continuidade e descontinuidade, estaticidade e dinamicidade, tradição e ruptura. Realmente, tudo acontece como se um dos termos não pudesse ser sem o outro. Atração, portanto; mas também repulsa mútua, já que cada termo só se afirma na medida de seu ser-oposto. A tradição só parece ser imperturbavelmente ela mesma na medida em que afasta qualquer possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de que a ausência de movimento termina condenando-a à estagnação da morte. A necessidade da ruptura se torna, em consequência, imperiosa, para restituir a dinamicidade ao que parecia “sem vida”.
São sobretudo os historiadores que se comprazem em analisar os períodos de estabilidade social e o jogo das crises que empurram a história em direção a novos horizontes. Tudo parece indicar, portanto, que a necessidade interna da tradição só se poderia manter viva pelo recurso à ruptura. E a história seria entendida como a sucessão do estável e do descontínuo. Teríamos, por ar, uma espécie de esquema, ou de lei básica
– a contradição mais fundamenntal, de que fala Foucault – da sucessão dos acontecimentos. Acontece que não se pode aqui falar propriamente em lei, pois o esquema nunca se repete da mesma maneira. Se há uma lei histórica, ela está justamente em reconhecer que tudo é histórico, ou seja, tudo é datado, irrepetível, original, único: o assassinato de César não pode acontecer duas vezes, e a necessidade da lei termina se refugiando no campo formal. Cabe mesmo acrescentar que certos períodos são como que arrastados por uma espécie de equivocidade fundamental, acarretando movimentações já bem mais intensas nas suas coordenadas gerais.
A novidade hoje está justamente neste ponto: a experiência da ruptura suplanta em muito a vigência da tradição. No passado, o surto da ruptura não conseguia prejudicar de modo substancial a estabilidade da tradição, quando é precisamente essa força de erradicação que vem caracterizando os novos tempos. Nem causa estranheza, por isso mesmo, a existência de toda uma galeria de pensadores que se ocuparam dessa nova situação.
De fato, silenciado o capítulo profundamente apaziguador que definiu tudo o que representava o sistema hegeliano, irrompe, no século passado, o ineditismo do pensamento da ruptura, ou da reforma radical. É essa reforma que delimita os primeiros passos do cientificismo, que inspira também a energia revolucionária e transformadora do marxismo; é ainda ela que se constitui como mola propulsara da vontade de poder de Nietzsche. No século passado, tudo parecia prometer que as utopias sonhadas pelos instauradores da burguesia deveriam, de algum modo, tornar-se realidade concreta. E ainda que, nos pensadores do século XX, se faça escasso aquele ardor reformista, é indubitável que a faina transformadora do mundo continua perseguindo os seus endereços, na política, nas ciências e nas artes, e isso de modo a escapulir em larga medida à visão antecipatória do cálculo humano; tudo se faz agora mais entranhado em ambiguidades. E seja como for, há um tema grandemente frequente no pensamento filosófico a partir da morte de Hegel, que pode ser resumido, negativamente, na expressão já clássica de destruição da metafísica; de muitos modos, e em diversos níveis, o pensamento trabalha nessa destruição.
Nietzsche foi sem dúvida o pensador que soube, como ninguém, visualizar os conflitos entre tradição e ruptura – tal é mesmo o motivo condutor de toda a sua obra. Permito-me, por isso, citar um texto um tanto longo do filósofo, a que acrescento em seguida alguns comentários. Trata-se do fragmento de número 65 da obra A vontade de poder. Observe-se previamente que, no correr de seus muitos livros, a crítica de Nietzsche não se prende apenas à situação da cultura ocidental – refere-se, sim, ao destino da própria humanidade. Já no fragmento imediatamente anterior, o de número 64, fala do “segundo budismo”, e começa incisivo: “A catástrofe niilista, que liquida a cultura hindu”. E depois de apontar diversos indícios de tal liquidação, Nietzsche generaliza afirmando “a impossibilidade da religião, de continuar trabalhando com dogmas e fábulas”. Realmente, trata-se para nosso filósofo de uma elucidação da história do homem, em sua globalidade. Mais eis o fragmento 65:
“O que hoje mais se ataca é o instinto e a vontade da tradição: todas as instituições que devem a sua origem a esse instinto opõem-se ao gosto do espírito moderno… No fundo não se pensa e não se faz nada que não persiga o objetivo de arrancar pelas raízes esse sentido da tradição. Toma-se a tradição como fatalidade; ela é estudada, é reconhecida (como ‘herança’), mas não se a quer. A tensão de uma vontade projetada sobre longos espaços de tempo, a escolha das condições e das valorações que permitem que possamos dispor de séculos do futuro – justamente isso é antimoderno na mais alta medida. Segue-se daí que são os princípios desorganizadores que emprestam o seu caráter à nossa época.”
Tudo, neste parágrafo, gira em torno do conceito de vontade. Este conceito, já presente no título do livro, demarca o pressuposto fundamental de todo o pensamento de Nietzsche, e não caberia desenvolver aqui uma análise do tema. Lembro apenas o que mostrou, com pertinência neste ponto, a análise de Heidegger: a vontade não é entendida enquanto fenômeno restrito ao plano humano, e muito menos ao psicológico. A vontade (a escolha da palavra não parece muito feliz) tem, para Nietzsche, uma dimensão antes de mais nada ontológica, já que é o atributo básico do ser, ou seja, a realidade toda é vontade. A realidade não se desenvolve perseguindo precipuamente a negação de si mesma, porque toda negatividade termina submissa à vontade de poder – o poder de ser. A interpretação de Heidegger torna-se discutível quando pretende vincular a tese nietzschiana ao próprio cerne da metafísica tradicional, e isso por diversas razões cuja discussão nos desviaria do tema proposto. Impossível, entretanto, deixar despercebida uma decorrência “política” da leitura de Heidegger – é que, à força de atrelar a tese de Nietzsche à tradição, ela termina enfraquecida justamente naquilo que lhe empresta todo o seu vigor, toda a sua razão de ser, que está na crítica dessa mesma tradição. Para Heidegger já não há reforma possível. O curioso, entretanto, está no seguinte: mesmo admitindo-se como correta a interpretação metafísica proposta por Heidegger, é Nietzsche que sairia ganhando, posto que precisamente a vinculação ao passado evidenciaria a verdade da denúncia da crise desse mesmo passado. Vale dizer: ou bem as teses de Nietzsche discutem o sentido de um passado ao qual ele mesmo e nós todos pertencemos, ou então a filosofia não passa de um devaneio que esconde o avassalamento passivo.
O parágrafo citado gira em torno de um verbo e de sua negação: não querer, não se quer a tradição. A vontade da tradição está em querer-se tradição, e ela se quer tão totalmente tradição que se pretende eterna, determinando não apenas o passado e o presente, mas o próprio futuro, porquanto tudo pode ser previsto, exige-se a antecipação: tudo vai ser sempre fundamentalmente idêntico, sem percalços maiores com o possível surto da alteridade. A tradição se pretende, assim, uma grande segurança – nós estamos na própria segurança, vivemos numa resposta e estamos assegurados nela, nós somos organizados pela tradição, ela é nosso princípio. E não foi isso o que nos ensinaram os gregos, em especial o platonismo? O fundamento está na mesmidade do mesmo, na Ideia divina. E toda teoria e toda prática se constituem pautadas pelo princípio de identidade, base da lógica aristotélica. A tradição sorve a sua energia da identidade que ela tem consigo mesma.
Mas Nietzsche contrapõe a esse princípio um outro, que no parágrafo citado ele chama de princípio de desorganização. Aliás, no plural. Já sabemos qual é o nome desse princípio que são princípios e que configuram a conjuntura geral em que nos achamos confinados: o niilismo. O que se faz possível pensar através do niilismo é precisamente a ruptura da tradição e, mais do que isso, ele evidencia o caráter incontornável e irrecorrível da ruptura hodierna. O niilismo, portanto, é o grande tema que deve ser pensado. Mas voltemos ao conceito de tradição.
A palavra tradição vem do latim: traditio. O verbo é tradire, e significa precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração. Em segundo lugar, os dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue de geração a geração. De certa maneira, estamos, pois, instalados numa tradição, como que inseridos nela, a ponto de revelar-se muito difícil desembaraçar-se de suas peias. Assim, através do elemento dito ou escrito algo é entregue, passa de geração em geração, e isso constitui a tradição – e nos constitui.
A propósito, é sempre bom lembrar o verso de Drummond em seu poema A Luiz Maurício, infante: “Pois as palavras serão servas de estranha majestade.” No fundo, servo da palavra é aquele que a profere. Normalmente, entretanto, pretende-se o contrário: se uso uma palavra é porque a domino, domino-a como se domina um instrumento posto à minha disposição. Vista desse modo, a palavra é reduzida a um meio de comunicação, e isso corresponde, sem dúvida, a uma dimensão essencial da palavra: quando falo, escolho as palavras e as conduzo de tal maneira que entrego ao meu interlocutor aquilo que lhe quero transmitir. O problema se complica porque acaba se revelando insuficiente querer reduzir a linguagem às dimensões de um instrumento, por rico que seja. Pode-se reduzir à condição de instrumento uma linguagem artificial criada pelo homem, como o alfabeto Morse ou um determinado tipo de cálculo; aqui cabe dizer que o cálculo e o alfabeto Morse foram criados por tal homem no ano tal. Trata-se de objetos que estão à disposição do uso humano.
Logo se percebe o absurdo em que se incidiria se se pretendesse, como há quem o faça, atrelar as línguas a esse esquema instrumentário. O asserto do poeta mostra toda a ambiguidade do problema, ao contrapor duas ordens de razão. A palavra é obviamente serva, o que não impede que apresente, de outro lado, uma estranha majestade, que faz de mim o seu servo. Por importante que seja a poesia, historicamente, para a formação das línguas, não faz nenhum sentido pretender encontrar o ato inaugural da língua portuguesa numa vontade deliberada. Ao contrário disso, o homem já está desde sempre situado numa língua, ele é regido por ela, e só chega a articular o pensamento dentro dos parâmetros que ela põe a seu dispor. O homem e a condição humana são conduzidos pelo sentido da palavra como a língua é uma realidade viva, dinâmica, dotada de um sentido que evolui, que se modifica, tudo o que digo permanece caudatário de um momento dessa evolução, sabendo eu disso ou não. É isso que torna todo dicionário uma realidade morta; o seu pressuposto fundamental, o racionalismo analítico, constrange a palavra à condição de mero instrumento, despegando-a das vertentes que dão acesso à sua historicidade fundamental. O dicionário irrealiza a palavra.
Vem a propósito lembrar aqui um bem conhecido exemplo, sobre o qual já existe uma bibliografia considerável, e que permite melhor elucidar o que estamos dizendo: a palavra gosto. Sabe-se que, ainda no século XVII, a palavra gosto apresentava uma conotação de caráter basicamente ético; o homem de bom gosto por excelência era o príncipe, e seu comportamento servia de modelo para quantos lhe estivessem subordinados. Por isso, além dessa dimensão ética, o gosto designava um mundo de valores que ostentava indisfarçável estatuto objetivo, independentemente de inclinações pessoais. E convém não esquecer o verso famoso de M. J. Chénier, que tudo subordina à razão: “C’est le bon sens, la raison qui fait tout: / vertu, génie, esprit, talent et goût.” Acontece que essa constelação de características se modifica e a palavra gosto, paulatinamente, passa a inserir-se em coordenadas que acusam uma profunda modificação em seu sentido. Basta lembrar que para Kant o gosto é analisado enquanto experiência estética e subjetiva, e é mais ou menos dentro desta perspectiva que estamos instalados ainda hoje: o ético e objetivo converte-se em sensação estética e preferência subjetiva. Percebe-se, por aí, que nunca se usa uma palavra impunemente, pois, sem nos darmos conta, estamos como que alojados no extremo da evolução de um sentido. Assim, quando falo, aparentemente desligo do que digo tudo aquilo que extrapola o dito, que é como que esquecido. E é justamente através da astúcia desse esquecimento que permaneço histórico de ponta a ponta. Essa permanência é o que mantém a tradição.
A tradição pode, assim, ser compreendida como o conjunto dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos; não se trata apenas das formas do conhecimento ou das opiniões que temos, mas também da totalidade do comportamento humano, que só se deixa elucidar a partir do conjunto de valores constitutivos de uma determinada sociedade.
Já os gregos chamavam a atenção para certas dimensões do problema, quando desprezavam, por exemplo, a opinião, doxa, que eles ensinaram a contrapor à episteme, à ciência, ao espírito crítico. No livro sétimo da República, ao relatar o mito da caverna, Platão, de modo contundente, descreve a situação dos homens presos à doxa. Pelo relato, a opinião não deve ser descartada unicamente porque constitui uma forma falha de conhecimento; antes disso, o que a ressalta é a força de que vem investida, uma força tão grande que ela faz dos homens escravos. Os homens estão acorrentados ao fundo da caverna e não podem ver a realidade, vislumbram apenas a sua sombra, e a tomam como se fosse a verdade. Ou seja, normalmente, ensina Platão, não alcançamos o conceito das coisas, mas tão-somente o pré-conceito. Vivemos em função de um tipo de visão que nos faz vassalos, que não escolhemos, e tudo permanece mergulhado na mais crédula inciência. A força dessa escravidão é tão forte que ela tende a fazer-se invencível, ela se quer perpétua. Cabe ao filósofo tentar romper as cadeias, voltar-se e encarar o sol, reeducando completamente até mesmo o princípio de sua visão. As consequências disso não se fazem esperar: são dores profundas e o risco da perda da visão.
Se perguntarmos a Platão pela causa que gera essa situação calamitosa, a sua resposta deixa muito a desejar, já que tudo deriva simplesmente da doxa. Mas naquele tempo nem se poderia pensar de outra maneira. Ainda estamos a milênios das possibilidades que começaram a ser entrevistas por Marx, quando se abriram as perspectivas para uma, análise mais ampla e abrangente – e aqui, ainda hoje, quase tudo resta a ser feito. Para os homens do passado, essa “causa” se colocava de outro modo, visto que o real se apresentava e era vivenciado a partir de alguma espécie de garantia divina.
A base para entender a citação de Nietzsche feita anteriormente encontra-se em outro livro seu, A inversão de todos os valores; no primeiro volume desta obra, intitulado O anticristo, no parágrafo 57, lê-se: “A tradição é a afirmação de que a lei tem vigência desde tempos imemoriais, e pô-la em dúvida constitui impiedade contra os antepassados. A autoridade da lei fundamenta-se com as teses: ela foi dada por Deus, os antepassados são testemunhas.” Assim, a tradição tem um fundamento absoluto e uma garantia indubitável. Interprete-se a gênese desse absoluto como se quiser, em qualquer caso ele teve uma vigência que o torna merecedor de seu apelido: absoluto.
Hegel chega a dizer, em seu ensaio A razão na história, que o Espírito tem 6.500 anos. O filósofo tem razão. Foi com o neolítico que se delineou a primeira grande revolução na história do homem. Não há exagero em afirmar que a tradição instituiu-se no decurso do neolítico. A asserção vale inclusive para a tradição tal como a vivemos ainda hoje, não obstante a sua crise e a despeito das fantásticas transformações históricas por que passou. É que o seu nervo fundamental manteve-se vivo e indevassável durante milênios. Esse nervo está na chamada doutrina dos dois mundos. Nos primórdios, quando o homem se torna sedentário e passa a viver em pequenas comunidades arquitetadas, inicia-se a organização racional da agricultura e da criação de animais. Joga-se, então, a primeira grande cartada do destino humano: o homem começa a dominar a realidade, domínio que vai construir o seu primeiro grande ápice na instauração da teoria grega. Tudo, entretanto, ainda se faz na ambiguidade. Realmente, a vontade de domínio – ou de poder, como dirá Nietzsche – choca-se logo com os seus próprios limites naturais: o relâmpago assusta, pode destruir o homem e sua obra. Um passo mais, e o relâmpago se torna um deus ou um instrumento dos deuses.
Surge, desse modo, a contraposição entre dois mundos, o dos deuses, que tem o poder maior, e o dos mortais, que habitam o mundo das sombras, como dirá Platão. Os gregos, de resto, ensinaram a interpretar aquele mundo superior como investido dos atributos da própria verdade: o deus identifica-se com o fundamento, com o ser mesmo. E o mundo simplesmente humano, das coisas que são geradas e se corrompem, passa a sofrer da culpa que gera uma espécie de complexo de inferioridade, ou de menos valia – menos valia que, segundo Nietzsche, fez medrar o ressentimento. Compreende-se, então, que o todo da cultura humana, inclusive em suas discrepâncias, assente no Absoluto. O deus se torna a razão de ser, a base a partir da qual se constituem o poder e as ciências; o rei governa com abonação divina, e Newton, com suas leis, descobre a linguagem impressa na natureza pelo próprio Deus. A tradição e o absoluto se pertencem de maneira em tal grau radical que caberia até colocar o problema de saber se, com o desaparecimento dos deuses, o próprio conceito de tradição não perderia vigência. Pois, sem o deus, o que se estabeleceria seria uma experiência social tão totalmente diferente que toda possível continuidade cultural passaria a ser desenvolvida, necessariamente, a partir de parâmetros inovadores. Assim, por exemplo, dever-se-ia começar a entender o homem não mais como essência estável, culpadamente imitadora de excelência divina, mas enquanto geradora de um ato criador puramente mundano.
Portanto, é a partir do próprio absoluto que se entende a estabilidade, o caráter de permanência que impõe a tradição; ela se quer princípio de determinação, como afirma muito bem Nietzsche, até mesmo do futuro. A tradição, por conseguinte, seria habitada pela vontade de se querer permanente. De outro lado, percebe-se logo que essa permanência jamais poderia alcançar a consecução plena de seu desejo de absoluto: ela persiste emperrada na vontade, justamente pela impossibilidade de atingir a efetuação definitiva de seu projeto. É o óbvio: a história existe. E é ao menos curioso observar que, precisamente quando a tradição entra em crise, surge, quase que a antever a virulência de seus sintomas, a tentativa consciente de eternizá-la. Estou pensando, aqui, em Hegel.
Os capítulos finais da Fenomenologia do Espírito e da Ciência da lógica são, como se sabe, os mais obscuros da obra do idealista alemão, e os intérpretes não esmorecem na tentativa de elucidá-los. Tudo são problemas: no panteísmo hegeliano, a realização da Ideia absoluta, cuja expressão exata está no sistema, seria a supressão da história? Se a verdade é total e se o sistema consegue enfim traduzir adequadamente essa totalidade, o que poderia restar para a história? Ainda que em outro nível, a mesma questão pode ser colocada para Marx; não deixa de ser inquietante o seu total silêncio acerca da sociedade sem classes: o que seria ela, a suspensão da história ou a inauguração de uma nova história, enfim “verdadeira”? Ridicularizado o intento hegeliano, a resposta talvez exclua tais extremos, demasiado próximos da atmosfera metafísica.
De qualquer forma, aquele traço aventado de querer-se permanente da tradição não exclui a sua própria evolução histórica – mesmo a permanência tem uma história. Já dei o exemplo da palavra gosto. De onde vêm as transformações por que passa? De Corneille? De Kant? De um poeta, ou de um filósofo? Hegel diria que tudo é obra do próprio espírito do tempo – o Zeitgeist – que leva o sentido a se modificar. Estamos imbricados num complexo de fatores em que, respeitados os desníveis, tudo é causa de tudo; e como participamos dessa totalidade móvel, jamais conseguiríamos apreendê-la de for a, restando-nos tão-somente o modesto acúmulo das análises do ponto de vista, dos detalhes mais ou menos reveladores.
Nisso tudo, um traço salta aos olhos: é que, em todo o passado, aquela transformação interna da permanência arrastava-se mais na permanência e cedia menos à transformação. Realmente, as modificações se processavam de modo extremamente lento. O estilo gótico, por exemplo, inicia-se por volta de 1125 e apresenta, durante séculos, uma unida de criativa admirável, até dissolver-se, ao longo do século XV, no flamboyant. Ainda que se instaure em contraposição ao românico, o gótico evolui como que num diálogo interno consigo mesmo, emprestando impressionante unidade à sua evolução. A tradição, mais uma vez, é trazida, entrega algo. E dentro desse complexo, o homem é desde um passado, e sua possível criatividade move-se nos limites de certa resposta já dada; na Idade Média, o homem é gótico. Esse estar instalado assegura-o m sua estabilidade.
Abordemos o problema através de outro exemplo: o folclore. Se considerado na perspectiva de sua origem, o pressuposto básico do folclore reside em um mundo mais ou menos isolado. E no passado, esse isolamento interiorano propiciava o desenvolvimento e a consolidação de certo folclore, ou seja, a constituição de certo ritmo, de certa melodiosidade, um estilo de dança, e por aí afora. Sua criatividade atingia níveis consideráveis e sua característica mais notável estava na sua repetibilidade, mantendo-se sempre igual a si mesmo, com uma margem mínima de variação. Vale aqui o asserto de Nietzsche, de que já não se quer a tradição? O fato é que agora não se pode mais pensar o folclore independentemente das radicais transformações por que passou o mundo a partir da revolução industrial. O tipo humano tradicional, criador do folclore, acotovela-se hoje com toda uma variedade de experiências alienígenas. Assim, a experiência da música folclórica já não se dá de modo exclusivo, e passa a concorrer com outros ritmos nacionais e estrangeiros – o folclore se torna, desse modo, uma opção entre outras, torna-se um objeto entre outros; é erguido à condição de objeto de observação científica, tenta-se preservá-lo em sua pureza originária através de instituições perpetuadoras, transforma-se até em um modismo. Ele passa a ser tudo, menos a espontaneidade de suas origens. Por isso, a sobrevivência do folclore se faz por caminhos alheios aos da tradição. Evidentemente, não caberia negar que o folclore se possa desenvolver obedecendo a outras coordenadas, mas se se pensa em suas forças originárias, deve-se falar em crise do folclore – crise, de resto, que talvez já tenha começado no elogio que lhe fez Herder, ao “descobri-lo” no século XVIII.
Observe-se ainda que as afirmações feitas não valem apenas para o folclore, valem para toda realidade cultural. Por maiores que fossem o intercâmbio e as influências sofridas, no passado as formas de cultura tendiam invariavelmente a regionalizar-se. O globo terrestre não era apreendido como unidade espacial e temporal. Realmente, o próprio conceito de cultura universal é criação burguesa; o conceito de Weltliteratur, literatura universal, por exemplo, foi forjado por Goethe. Mas é justamente aquele relativo isolamento em que viviam as culturas tradicionais que garantia a unidade e a preservação de um estilo. Nos tempos modernos, verifica-se o contrário: pluralidade e internacionalização de estilos, num processo de renovação constante, que se pretende sempre surpreendente.
Convém repetir: não é apenas a nossa tradição ocidental que está em crise. Nietzsche tem razão: são todas as formas passadas de tradição que ostentam os sinais do desgaste; o mundo se faz uma “aldeia global”, num processo que tudo indica irreversível. Somos levados a crer, por isso, que é o próprio conceito de tradição – e não apenas as suas formas concretas – que passa a manifestar transformações em seu sentido último. E o mais grave indício disso está precisamente na profunda modificação que se está verificando hoje no caráter regional da cultura. Ainda que não se trate da abolição do regional, a sua contrapartida se faz sempre mais e mais presente e atuante: o mundo tende a ser um sistema. No passado, o regional acolhia em seu seio o absoluto. Hoje, o sistema expulsa esse mesmo absoluto.
A verdade do sistema hegeliano está justamente neste ponto. Quando Hegel afirma, em sua Filosofia do direito, que todo real é racional e todo racional é real, ele apenas leva às suas ultimidades um projeto que vinha se afirmando através do desenvolvimento da metafísica moderna e cujas raízes mais remotas coincidem com o próprio surto da filosofia grega. Evidentemente, o “gosto” do sistema, por muitas e bem fundamentadas razões, foi excluído do âmbito da filosofia contemporânea; mas isso não impede por outras e bem fundamentadas razões, o mesmo êxito dos processos de sistematização, não apenas nas modalidades puramente formais do saber, como as lógicas e as matemáticas, mas em todas as maneiras como se organiza a sociedade humana, desde o tráfego e a construção urbana até as formas de organização da produção e da distribuição das riquezas. O sistema hegeliano é a primeira manifestação adulta desse processo; não obstante os seus entraves idealistas, ele pensa a realidade de modo global, e o seu pressuposto mais importante talvez esteja na visão totalizante do espaço e do tempo: é todo o espaço e todo o tempo que se pretendem racionais. O impacto de tal visão nos hábitos da tradição só poderia ser de uma radicalidade inédita e desnorteante. O que vem se verificando – e isso possivelmente em todos os níveis – é um processo cada vez mais intenso de universalização, e o corolário fatal de tal processo está no inevitável e contundente desarraigamento dos valores que constituíam o passado, ou seja, a tradição.
A bibliografia sobre esta questão já é imensa, mesmo quando a palavra tradição sequer se faça presente. É que o tema pode ser abordado de muitas maneiras e em grande quantidade de perspectivas. Convém acenar aqui, para concluir este trabalho, ao menos para alguns desses ângulos de consideração.
O primeiro se concentra na própria noção de crise. A cultura ocidental pode ser interpretada como um longo diálogo, escassamente harmonioso, entre os dois troncos principais de que decorre: o hebraico cristão, fundamentalmente responsável pela moral e pela religião, e o grego-romano, do qual herdamos a filosofia, a arte, as diretivas jurídicas e a parafernália militar. Mas como conciliar essas duas vertentes? Toda Idade Média, por exemplo, é atravessada pelo conflito entre razão e fé, pela oposição entre os teólogos e os místicos. Já isso permite entender que a cultura ocidental se caracterize por uma sucessão de crises, e que elas costumem se apresentar com uma mesma invariável: trata-se sempre de renascenças que buscam encontrar os seus parâmetros em algum ponto do que se considera a nossa origem – a origem pode situar-se nos evangelhos, nos romanos, nos gregos, e até mesmo nos etruscos. Tais crises terminam por preservar, de algum modo, a conflituada unidade da tradição ocidental, visto que a origem nunca ultrapassa as fronteiras primordiais dessa tradição. As coisas começam a ficar inquietantes quando os românticos alemães passam a asseverar que nossos inícios estão plantados às margens do Ganges, e inventam a necessidade de estudar o sânscrito. Pela primeira vez, pretende-se que nossa cultura encontre as suas raízes fora do Ocidente. A afirmação romântica nada tem de inocente, já que é apenas o ponto inaugural de uma verdadeira avalanche de posturas que acabam perseguindo, como endereço último e por diversas veredas, justamente a erradicação da tradição ocidental. O que era exótico passa a exibir a dignidade de norma; Gauguin viaja para as ilhas dos Mares do Sul, e Picasso inspira-se na arte negra africana. Apenas mais um exemplo especialmente significativo: talvez nem seja exagero afirmar que a antropologia científica deve sua origem ao que acaba sendo um esforço desmistificador da hegemonia do mundo europeu sobre as demais culturas, a começar pelas mais primitivas – os protestos de um Husserl ou de um Lévi-Strauss apenas compõem o eco de uma melodia que se desintegra na dissonância. A experiência que vivemos hoje não poderia ser mais intransigente: pela primeira vez é o próprio sentido da totalidade da tradição que é impugnado em suas bases.
Uma segunda indicação é facilmente perceptível nesse barômetro de todas as pressões que define o mundo das artes. Basta chamar a atenção para um detalhe em tudo revelador: a queda absoluta de qualquer tipo de estética normativa. No passado, a submissão à norma garantia a continuidade da evolução do estilo. Isso acontecia, precipuamente, no plano da prática, da feitura da obra de arte, independentemente de considerações de ordem teórica, como mostra o já aventado exemplo do estilo gótico. Mas a hegemonia da normatividade se verificava também no plano teorético; o exemplo mais significativo disso possivelmente esteja nas discussões, a partir da Renascença, que transformaram a Poética de Aristóteles num forçoso repositório de leis. Tal transformação, ainda que não corresponda às intenções do filósofo grego, obedece sem dúvida à índole profunda da arte e da estética tradicionais. Pois, como foi dito, no respeito à norma reside a garantia de toda possível continuidade da tradição. Mas esse quadro muda totalmente de figura em nosso tempo. Hoje, qualquer tentativa de continuísmo tropeça num tipo de criatividade que se fez destituidor das normas; é neste ponto que se instala todo o “estranhamento” da arte atual: contraditando qualquer aceitação prévia de normas, a própria intimidade do ato criador inventa inclusive a “norma” que preside a confecção de tal obra particular. As regras perdem seu caráter transcendente. De certo modo, a criação se deixa guiar por critérios absolutos e imanentes ao seu próprio surto, e o rompimento da continuidade não poderia ser mais total.
Uma terceira indicação pode ser vista na questão do contato social, que corre paralela ao processo de emancipação do homem burguês. Precisamente: emancipação do quê? Não é descabido afirmar (mas a tese deveria ser amplamente desenvolvida) que o principal pressuposto do contrato social está naquilo que mais tarde Nietzsche vai chamar de morte de Deus. Quando o princípio religador que une os indivíduos estabelecendo-os na verdade do fundamento perde vigência é que pode surgir qualquer coisa como o artifício do contrato social. O tema deve ser considerado também na perspectiva da crise dos universais, na medida em que eles deixam de ser o real por excelência e são destronados pela concreticidade do indivíduo singular. O pacto social busca estabelecer a coesão coletiva através do universal abstrato. Mais uma vez, é o problema do esvaziamento da religião que torna quebradiça a continuidade da tradição.
Uma quarta indicação já foi apontada mais acima: a crítica à metafísica e a nova tarefa reformatória que se impõe o pensamento depois da morte de Hegel. Aliás, o fato de que Hegel e o romantismo de modo geral façam coincidir história e tradição acaba sendo um prenúncio de morte próxima. Com o positivismo, o marxismo, e sem esquecer a proliferação dos movimentos anarquistas e assemelhados, tudo se deixa levar pelos ideais de uma nova forma de sociedade, numa diversidade de projetos que define a característica fundamental de todo um período da história do pensamento. Assim, aquilo que Nietzsche afirmava em relação tão-somente à sua própria visão do mundo, amplia o seu alcance e torna mais severa a sua advertência: “Estamos fazendo uma experiência com a verdade. Com ela, a humanidade talvez venha a perecer.”
Finalmente, ao menos um aceno deve ser feito a um último ponto, pois é nele que se mostra que a ruptura assenta já nas próprias raízes da tradição – o niilismo. O nervo da tese de Nietzsche está exatamente aqui: a tradição vem informada, desde os seus começos platônico-cristãos, por um processo que terminaria por levar, fatalmente, à sua destituição. Platonismo, metafísica, cristianismo e niilismo são, no fundo, sinônimos – o homem e o seu mundo sempre vêm caracterizados como inferiores, como menos ser, enquanto devassados pelo nada. O niilismo é a vontade de poder às avessas já que instala o nada no cerne dessa vontade, num esforço aparentemente vitorioso de atrofiá-la. Assim, o homem e o seu mundo passam a apresentar os sintomas de uma síndrome de menos valia, que se estende, precipuamente, àquelas esferas do real que o platonismo considera inferiores, como o indivíduo concreto, o sensível, o corpo, o movimento. A depreciação de tais esferas instaura aquele complex de condutas que Nietzsche, com muita justeza, subsume sob o título geral de ressentimento. Mas, tanto quanto se alcança ver, a repressão metafísica cumpriu o seu ciclo: com a crítica ao idealismo ela entra em crise. E apenas com essa crise inicia-se o processo de evidenciação através do qual o niilismo se revela como constitutivo da essência mesma da tradição. Realmente, o grande tema que deve ser pensado é o niilismo.
Tentemos, neste último parágrafo, chamar a atenção para os tópicos mais relevantes abordados ao longo deste ensaio e que permitem um traçado prévio dos limites em que se debate hoje o tema da tradição. Em primeiro lugar, se se pensa na situação atual do problema, parece claro que se tornou impossível a abordagem do conceito de tradição independentemente desse seu corolário atual que é a ruptura; tradição e ruptura se espelham reciprocamente, e a dialética dos dois termos esclarece a quantas andamos nessa grande esquina que é a história de nosso tempo. Em segundo lugar, se há uma crise radical da tradição ocidental, e mesmo, como pretende Nietzsche, de todas as tradições do mundo, tudo indica que é o conceito mesmo de tradição que se modifica; não se trata hoje simplesmente de mais uma crise da tradição, e sim da própria suspensão da tradição. A experiência da ruptura tornou-se o espaço “natural” em que se move o homem contemporâneo. E o terceiro ponto está no niilismo enquanto essência da tradição. Com isso equaciona-se, paralelamente, toda a problemática da inquietação maior de nossos dias, ou seja, a pergunta pelos caminhos de superação do niilismo. São muitas as perguntas, e todas apresentam um clamor inédito. Como, por exemplo: para onde nos levam as ciências? qual é a função da arte? qual é o estatuto próprio da realidade humana em sua condição simplesmente mundana enfim descoberta? Talvez tudo possa ser resumido numa única questão essencial e para a qual não há resposta teórica antecipatória: é a própria práxis humana que deve inventar as balizas de sua criatividade. E, justamente, quais seriam as coordenadas de uma criatividade mundanamente humana?