1992

O diabo na livraria do inconfidentes

por Luiz Carlos Villalta

Resumo

O que diferencia os conjurados mineiros dos homens cultos da época? Um exame de suas leituras (com base nos livros de suas bibliotecas) mostra seu apreço pela literatura, pelas ciências profanas, por filósofos da Ilustração como Voltaire e até mesmo por um jesuíta espanhol, Miguel de Molinos, adepto da contemplação de Deus conjugada à não-resistência aos pecados da carne. Essa visão libertina se orienta pelo “princípio de igualdade” entre os cônjuges, defendida por Tomás Antônio Gonzaga, mas que na prática implica a exclusão do amor no casamento. Numa sociedade colonial, patriarcal e escravocrata, era difícil acharem-se iguais para o matrimônio. O desequilíbrio racial favorecia a prostituição e as uniões ilícitas. Senhores e até mesmo clérigos se amancebavam com escravas, gerando uma multidão de filhos ilegítimos. Foi o caso de Tiradentes, que tinha uma amásia em Vila Rica; de Alvarenga Peixoto, ele mesmo descendente de cônegos; de Claúdio Manuel da Costa, que viveu com uma escrava durante 30 anos; e de Tomás Antônio Gonzaga, o mais refinado e oportunista dos conjurados, para quem o sexo é comum a todos, inclusive à Marília do seu Dirceu. Ao ser exilado para Moçambique, porém, ele se casa com a herdeira do mais opulento negociante local de escravos. Forma de conciliar Deus e o Diabo através do disfarce. Nas suas Cartas chilenas ele diz que não há quem “não finja / pela religião um justo zelo”. São contradições e conflitos de um Brasil em cujo nome se inscrevem desde a origem brasa e inferno, portanto as incontinências da carne que vão culminar na Inconfidência no campo político.


INTRODUÇÃO OU A PENÚLTIMA TENTAÇÃO DE GONZAGA

A porção brasílica da América desde muito cedo foi compreendida como um domínio de Satanás. No seu próprio nome, Brasil, já se via inscrita essa marca sinistra: Brasil, brasa, Inferno.[1] Do século XVI ao XVIII, a mácula do nome pareceu contaminar toda a vida da Colônia. Nesse universo, podemos situar Tomás Antônio Gonzaga, e, a partir dele, precisar os domínios em que campeava o Pai da Mentira, isto é, o Diabo. Comecemos, então, esse trabalho, com uma das liras de Manha de Dirceu:

Eu vejo, ó minha bela, aquele Numem

A quem o nome deram de Fortuna;

Pega-me pelo braço

E com voz importuna

Me diz que mova o passo:

Que entre no Grande Templo, em que se encerra

Quando o destino manda que ela obre sobre a terra.

Que cousas portentosas nele encontro!


Eu vejo a pobre fundação de Roma;


Vejo-a queimar Cartago;

[…] Lá floresce o poder do Assírio Povo;


Aqui os Medos crescem […]

[…] Levou-me aonde estava a minha história,

Que toda me explicou com modo de arte.

Tirei-te libras de ouro,

Me diz, e quero dar-te

Todo aquele tesouro.

Não suspira por bens um peito nobre,

Severo lhe respondo

Vivo afeito a ser pobre,

Aqui me enruga a Deusa, irada, a testa,

E fica sem falar um breve espaço.

Alegra, alegra o rosto

Prossegue, ali te faço

Restituir o posto.

Respondo com ar de mofa e tom sereno:

Conheço-te, Fortuna,

Posso morrer pequeno.

Aqui te dou, me diz, a tua amada.

[…] É esse o bem, respondo, que me move,

Mas este bem é santo,

Vem só da mão de Jove.

Queria mais falar; eu, insofrido,

Dessa maneira rompo os seus acentos:

Basta, Fortuna, basta,

Lá noutras coisas gasta;

Da minha sorte nada mais contemplo.

E chamando Manha,

Suspiro e deixo o Templo.[2]

O Diabo, reza a tradição, é useiro e vezeiro de mil disfarces. No Gênesis, num dos momentos primeiros do homem, assumiu a feição de serpente. E, na Lira de Gonzaga, podemos vê-lo travestido de Fortuna. Para descobri-lo basta-nos a comparação com os Evangelhos. Jesus Cristo, contam-nos os evangelhos de são Mateus (Mt 4:1-11) e de são Lucas (Lc 4:1-13), após ter sido batizado por João Batista, foi levado pelo Espírito Santo ao deserto. Lá, passou quarenta dias jejuando e enfrentou a tentação do demônio. Segundo Mateus, este o levou para a Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do templo, desafiando-o a atirar-se do alto, para comprovar que era filho de Deus. Jesus, então, respondeu-lhe negativamente. O Diabo, não satisfeito, conduziu-o a um monte muito alto. “E mostrou-lhe todos os reinos do mundo com o seu esplendor e disse-lhe: ‘Tudo isto te darei se prostrado me adorares’. Aí Jesus lhe disse: ‘Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto’ ” (Mt 4:8-10).

Gonzaga escreveu a Lira quando se encontrava na prisão. Já perdera, então, seu posto de desembargador da Relação da Bahia — que por sinal não chegou sequer a assumir. Vira, além disso, seus bens serem sequestrados — mais tarde, a sua sentença de condenação implicaria o confisco de metade deles. Levando-se em conta esses dados, fica evidente uma primeira semelhança com a situação de Jesus no deserto: ambos passam por um momento de privação — privação daquilo que o mundo, o século podia oferecer. Privação e provação: provação, porque se trata de uma circunstância em que intervêm o Diabo e a Fortuna, tentando, o primeiro, a Jesus e, a última, a Gonzaga. Uma tentação que se dá, para os dois, primeiro, num templo e, depois, num ponto muito alto — não importa se um monte ou um lugar imaginário — em que os horizontes do mundo se ampliam. Nesses locais, Fortuna e Diabo procuram seduzir suas vítimas com os prazeres mundanos. É assim que Gonzaga vê a história portentosa de vários povos e reinos. E, a Jesus, o Diabo, depois de incitá-lo a mostrar o seu poder, oferece “todos os reinos do mundo”. Mais ainda, ao poeta a Fortuna brande a possibilidade de restituir-lhe o posto, as libras e a amada. Ambos, Jesus e Gonzaga, resistem, repelem aqueles que os tentam e reafirmam sua postura de amor e culto a outrem, respectivamente, Deus e Marília. Eis-nos, portanto, diante da presença sinistra de Satanás, escondido sob o véu arcádico da Fortuna. Relacionando a Lira aos Evangelhos, deparamo-nos ainda com o universo de que se vale o Diabo e a Fortuna em seu jogo macabro: o dinheiro, a sede de poder — talvez aqui pudéssemos ver a “soberba” — e o amor. Um amor, esclareça-se, que é objeto de tentação, mas que possui uma natureza divina.

O imaginário tecido em torno do Pai da Mentira é, todavia, mais rico e mineiro. Satanás deixava sua sombra no próprio maldizer das gentes das Minas,[3] encarnava-se em “libertinos”[4] como o Tiradentes,[5] regia seu “enredo”,[6] estava por trás da Inconfidência,[7] aparecia sob a pele de um fiel vassalo d’el rei, o governador Luís da Cunha Menezes,[8] e concorria na ocorrência dos calundus.[9] Mas inconfidentes e fiéis vassalos d’el-rei (incluindo aí o próprio governador Menezes), segundo Gonzaga, irmanavam-se na sujeição a um Cego Nume, à “miséria d’homem”:[10] o amor sensual, a Carne. Miséria que remete a uma tradição bastante antiga de interpretação da Bíblia, em que se associa a descoberta do sexo por Adão e Eva à Queda do homem. Uma tradição, é bem verdade, que, em Gonzaga, parece misturar-se com os ensinamentos do século XVIII sobre a Natureza.[11] De qualquer forma, segundo os parâmetros do imaginário cristão, em ambas as acepções, encontramo-nos diante de uma Natureza satânica: na primeira, o demônio está na sua própria origem, a miséria d’homem, a Queda, e, na segunda, em seu caráter “libertino”, o qual coloca em xeque o Antigo Regime e o jugo da Revelação.

Definidos os campos de atuação do demônio, podemos, então, retornar a Gonzaga e a Cristo: ambos resistiram à tentação do Diabo-Fortuna. Mas, os inconfidentes, de fato, no que toca à Carne, também o fizeram? As livrarias dos inconfidentes, de alguma maneira, induziram-nos a comportamentos diabólicos? Em que medida os conjurados diferenciavam-se dos homens cultos de então? Propomo-nos a ensaiar respostas a essas questões, realizando, primeiramente, uma breve radiografia da circulação dos livros, conjugando-a com uma análise das livrarias dos inconfidentes e de uma personagem da ordem: o bispo de Mariana, dom frei Domingos da Encarnação Pontével. E, depois, confrontaremos as leituras com os comportamentos, falas e escritos dos conjurados e do bispo. Assim, teremos condições de avaliar a resistência de Gonzaga ao que classificamos de sua penúltima tentação — a protagonizada pela Fortuna — e, ao mesmo tempo, de precisar as reais feições do Diabo, submergindo esta personagem sinistra no contexto das relações sociais que a engendraram e desvendando qual foi a primeira, última e derradeira tentação do poeta.

ESCRITURA SANTA, SONHOS ERÓTICOS E ILUMINISMO: UM ESCRUTÍNIO DAS LIVRARIAS DOS INCONFIDENTES

 

Antes de entrarmos propriamente no escrutínio das livrarias (na realidade, bibliotecas em termos atuais) dos inconfidentes[12] e do bispo dom frei Domingos da Encarnação Pontével[13] é preciso situar o contexto em que circulavam os livros, seus limites e possibilidades. Havia um obstáculo a essa circulação: a censura. Desde os inícios do século XVI até 1768, ela se encontrou sob os cuidados da Inquisição, do Ordinário e do Desembargo do Paço.[14] Depois, consoante a política de secularização da censura desenvolvida no continente europeu, passou para a Real Mesa Censória, criada em 1768 com o intuito de se aumentar o rigor do processo censório.[15] Com as mudanças, à Real Mesa Censória passaram a caber a censura, a elaboração de um novo Index Expurgatório — que não se confundia com o proposto pelo papa[16] — e a Fiscalização dos livros.[17] Eram proibidos os livros contrários à Religião, à Moral, à Cultura e à Ordem Política vigentes.[18] E, dentre as condições que tornavam os livros proibidos, podemos ver a face do demônio: se o imaginário mineiro colonial demonizava a sedição, a Natureza (a miséria do homem e a Natureza como se concebia no século a maledicência, o calundu e os libertinos, estas ideias, ações e personagens, caso se fizessem presentes nos livros, tornavam-nos proibidos.[19]

Dona Maria I, em 1787, reformou a censura, criando um novo organismo: a Comissão Geral para o Exame e a Censura dos Livros. A nova comissão, criada devido à inoperância da Real Mesa Censória, também não conseguiu reprimir a entrada de livros proibidos em Portugal e no Brasil.[20] Em 1793, o governo de Portugal retornou ao sistema dos três poderes: Inquisição, o Ordinário e o Desembargo do Paço.[21]

Dentre os principais autores de livros proibidos, os franceses vinham em primeiro lugar, começando pelos “filósofos” da Ilustração como D’Alembert, Brissot, Buffon, Condorcet, Condillac, Diderot, Helvétius, La Mettrie, Mably, Marmontel, Montesquieu, Raynal, Rousseau, Voltaire.[22] Nem mesmo a Henriade de Voltaire[23] e a Nouvelle Heloise, de Rousseau, foram poupadas. Muito menos, o “licencioso Sopha de Crébillon”.[24] Os Contes moraux, de Marmontel, juntamente com outros autores e obras literárias franceses, também eram proibidos ou só podiam ser lidos sob licença. Nessa categoria se enquadravam Clément de Marot, cujos livros eram considerados obscenos, madame de La Fayette, com a Princesse de Clèves, o Voyage du jeune Anacharsis en Grèce, do abade Barthelémy, as Fables e os Contes de La Fontaine.[25] Outros autores e obras proibidos foram Carnot, com suas Reflexions sur la metaphysique du calcul infinitésimal, o dr. Pinel, com a obra Traité de la manie, e Montaigne, com seus Essais — os dois últimos podiam ser lidos sob licença.[26]

Pensadores como Spinoza, Hobbes, Cesare Beccaria, Rosseo, Buchamamo, Hottomano, Bucherio, Altusio, Henou, Dane, Casman, Obrecht, Paren, Milton, Thomas Paine, Locke e Thomas Morus também eram vítimas da censura portuguesa.[27] Clássicos como Anacreonte, Catulo e Ovídio eram proibidos, mas tinham seus versos traduzidos e publicados pelos árcades.[28] A censura vitimava ainda os representantes da velha ordem combatida por Pombal: os jesuítas. Isso ocorreu, por exemplo, com o padre jesuíta Manuel da Fonseca,[29] autor da Vida do venerável padre Belchior de Pontes, e com livros que continham as profecias do sapateiro Bandarra, que teriam sido maquinadas pelo padre Antônio Vieira e pela Companhia de Jesus: Carta apologética, de Francisco Luiz Ameno, impresso em 1757, e Vida do sapateiro santo Simão Gomes, publicado em 1759.[30] De acordo com o espírito da era pombalina, que se esforçava por conciliar a “Razão”, os interesses do Estado — no que se incluía a oposição aos jesuítas — e o catolicismo, várias parecem ter sido as obras censuradas:[31] a Vida de santa Maria Magdalena, composta em italiano por dom Anton Júlio Brognole Sale, e suas versões, em português, do frei Antônio Lopes Cabral — intitulada Magdalena, peccadora, amante e penitente (1695), “uma novela das mais licenciosas” — e do padre frei Antônio de Assumpção, religioso dominicano (1747).[32] Outra obra chamava-se Máximas espirituais,[33] do frei Afonso dos Prazeres, publicada em Lisboa pela primeira vez em 1737 e, pela segunda, com acréscimo, em 1740. Sua proibição teve motivos bastante significativos: nela se introduziu, em ofensa à reputação do seu autor, por malícia ou ignorância dos revisores que concederam licença para sua publicação, a doutrina de Molinos, heresiarca proscrito pela Igreja.
Miguel de Molinos, um jesuíta espanhol do século XVII, era adepto do quietismo, “doutrina que associava a perfeição cristã ao chamado amor de Deus, ao sossego da alma e à anulação da vontade em favor da contemplação”.[34] Para esse jesuíta espanhol, no entanto, com a defesa do amor a Deus, conjugava-se o não-oferecimento de resistência aos pecados da carne, cometidos por tentação demoníaca. Essa proposição de Molinos, proscrita pelo papa Inocêncio xi em 1687, foi incorporada às Máximas espirituais, isto é, assimilou-se

O perniciosíssimo erro das violências diabólicas nos atos externos da sensualidade para com esta falta de doutrina se abrir caminho largo, e franco às paixões, e excessos da lascívia, passando-se (?) as maiores surpresas dela debaixo do pretexto de se imputarem a coações do demônio as culpas da fragilidade, e malícia dos que caíam em tão graves pecados.[35]

As “violências diabólicas” tornavam difícil, portanto, em face da fragilidade do ser humano, oferecer resistência aos apelos da carne, e desse “pretexto” resultava uma resignação a uma sensualidade sem peias, aos “excessos da lascívia”. O edital da Real Mesa Censória de 6 de abril de 1769 — que censurou as Máximas espirituais — observava ainda que outros escritos e escritores, que
manifestaram as ideias de Molinos, também foram proscritos. Informava também que o Supremo Tribunal da Inquisição dos Reinos de Espanha, diante dos escandalosos efeitos do molinismo por lá, mandou riscar no tomo V, tratado XI, número 185 do Curso de teologia moral salmanticense, as palavras que diziam: “Se o acesso se faz violentamente contra uma virgem não feiticeira, mas pudica e santa, o que rarissimamente acontece, lemos que Deus permitiria isso algumas vezes”.[36] Essas palavras foram riscadas certamente porque delas se poderia deduzir que Deus permitiria as relações, até mesmo violentas, com as mulheres, sem restrição nem mesmo às que fossem virgens e pudicas, às quais o acesso seria permitido algumas vezes. Assim, portanto, abria-se a porta para a admissão do estupro de mulheres, virgens ou não. O edital acrescentava, ainda, que desta doutrina e de seus seguidores:

se tem seguido muitas ruínas espirituais de pessoas exteriormente pias, e muito numerosas relaxações do voto da castidade, e constou pela outra parte, que […] onde não grassaram aqueles detestáveis, e aqueles ilusos, ou iludentes Diretores, nenhum penitente se escusou, queixando-se de violências diabólicas: mas sim de sua voluntária, e própria miséria.[37]

Nenhuma das sucessivas modificações desenvolvidas no aparato censório português logrou conter a entrada dessas obras proibidas em Portugal e no Brasil, e, mais do que isso, no geral, tem-se a impressão de uma fiscalização ineficiente e, em grande parte, inoperante. No caso do Brasil dos tempos coloniais, faltou uniformidade no cumprimento das injunções da censura, havendo severidade em certas capitanias em determinadas épocas e nenhuma fiscalização em outras partes do país,[38] o que se explica “pela autonomia dos capitães-generais e […] circunstâncias de momento”.[39] Em Minas Gerais, temos indícios de que havia tentativas de fiscalização, mas elas parecem ineficazes. Nos idos de 1795 vemos a presença de livros proibidos entre pessoas importantes: nada menos que o “Excelentíssimo Visconde de Barbacena, General desta Capitania”, isto é, o próprio governador das Minas à época da Inconfidência, e vários membros da Igreja, como o padre Inácio José Ferreira de Souza,[40] que vivia, anos antes da denúncia, no palácio do bispo dom frei Domingos da Encarnação Pontével, sendo por isso considerado “familiar de Sua Excelência Reverendíssima”[41]. A presença de inúmeros livros proibidos nas livrarias dos inconfidentes, figuras de proa da sociedade mineradora, a menção à circulação e à discussão desses em vários depoimentos que constam dos Autos de devassa demonstram também o fracasso da fiscalização em Minas Gerais.

À constatação da presença de livros proibidos nas Alterosas, aliam-se as notícias de um certo comércio[42] e a chegada de livros com os filhos das Minas que regressavam da Europa.[43] Havia ainda as discussões literárias e os empréstimos de obras, enunciados por alguns dos inconfidentes para justificar os encontros que realizaram e, em alguns casos, confirmados pelos próprios sequestros de bens de que foram vítimas, nos quais aparecem menções a obras pertencentes a outrem.[44]
Das bibliotecas dos inconfidentes, a maior pertencia ao cônego Luís Vieira da Silva, compreendendo 241 títulos e 556 volumes. Em seguida, vinham as de Cláudio Manuel da Costa, com 99 títulos e 344 volumes; padre Carlos Correia de Toledo, com sessenta obras e 105 volumes; padre Manuel Rodrigues da Costa, com 59 obras e 207 volumes; coronel José Resende Costa, com vinte obras e 61 volumes; Domingos Fernandes da Cruz, com sete obras e oito volumes; coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, com quatro títulos e dezoito volumes e, por fim, coronel José Aires Gomes, com quatro títulos e quatro volumes.[45] Nenhuma dessas bibliotecas, em termos de tamanho, comparava-se à do bispo de Mariana, dom frei Domingos da Encarnação Pontével, constituída por 412 títulos e 1066 volumes, quiçá uma das maiores do período colonial.[46] Em nossa análise, agrupamos os livros em dois grandes conjuntos: ciências sacras e ciências profanas. O primeiro conjunto foi subdividido em: escritura santa, compreendendo a Bíblia e os comentários que sobre ela se fizeram; Padres da Igreja, referente aos escritos dos primeiros padres; teologia, incluindo aí os livros de teologia moral; história sagrada; cânones; liturgia, subdivisão em que se somam os livros especificamente litúrgicos, os catecismos, os textos de oratória sacra, manuais de confissão, breviários e sermões; dicionários; e, finaldiente, teatro, cartas e literatura religiosa. Já o grupo das ciências profanas foi dividido em: geografia; retórica; história; dicionário; literatura e gramática; filosofia; política; direito; ciências físicas e naturais, educação e outros. Cumpre destacar que algumas obras receberam dupla classificação, pois cabiam numa e noutra seção.
Mesmo um olhar desatento, ao observar a distribuição das obras pelos assuntos e as carreiras abraçadas pelos proprietários de algumas livrarias, consegue perceber a estreita relação existente entre esses elementos: há claramente a interferência de uma escolha pautada pela formação profissional de quem constitui as bibliotecas. No conjunto das livrarias, surpreende, porém, a ausência, total em algumas, parcial em outras, de uma relação mais direta entre obra e formação profissional. A surpresa é apenas inicial, pois essa discrepância constitui, na realidade, um dado significativo, pois possivelmente, nos casos em que atividade profissional e obras se distanciam, há a expressão de uma preferência pessoal, de um gosto particular, ou até mesmo, de uma opção de vida.
Nas livrarias dos padres Carlos Correia de Toledo e Manuel Rodrigues da Costa, do bispo de Mariana e de Cláudio Manuel da Costa, vê-se uma relação evidente com as carreiras profissionais por eles abraçadas. Cláudio Manuel da Costa era bacharel em cânones pela Universidade de Coimbra. Ainda em Coimbra, granjeou boa reputação como poeta e tentou habilitar-se para o sacerdócio.[47] Tornou-se um eminente advogado — detentor de um patrimônio considerável — em Vila Rica, onde também prosseguiu em sua atividade poética. Evidencia-se na sua biblioteca a formação de advogado e canonista, pois as seções de cânones e direito possuíam o maior número de títulos. Tais seções compreendiam 28 livros, de um total de 99, o que corresponde a 27% do número de obras. A parte referente à literatura e gramática vinha mais atrás, sendo dez os títulos que pudemos classificar com certeza enquanto tal.[48] Seguiam-se as seções de dicionários (de ciências profanas), com quatro obras e, com uma obra cada, as seções de geografia, história, filosofia, política, escritura santa, teologia e história sagrada.
Uma obra de santo Inácio de Loyola, cujo título não é mencionado, encontrava-se entre seus livros. Podemos relacionar a presença dessa obra ao seu passado de aluno de colégio jesuíta e à sua vocação para o sacerdócio, e ainda supor que a obra em questão era os Exercícios espirituais, usada, aliás, com frequência no Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana.[49] Tanto a presença como o título da obra em questão são confirmados pela produção poética deste inconfidente mineiro: na poesia de Cláudio, Sérgio Buarque de Holanda identificou uma versão secularizada da composição de lugar, aludida expressamente nos Exercícios espirituais.[50] Vizinhos a tão ortodoxa obra, na seção de belas-letras, talvez se encontrassem os diabos: Costa possuía um livro intitulado Sonho, poema erótico — cuja autoria não conseguimos precisar — e uma obra de Anacreonte, autor de elegias e cantos eróticos, proibido pela censura portuguesa. Teríamos nestes livros justamente a manifestação da natureza miserável e carnal, tão vilipendiada pelos soldados de santo Inácio? Trata-se de uma hipótese a ser investigada no futuro.

O taubateano Carlos Correia de Toledo, homem muito rico, proprietário de escravaria, fazendas e lavras,[51] vigário colado da freguesia de Santo Antônio da Vila de São José d’El-Rei,[52] possuía uma biblioteca que refletia sua formação profissional: dos sessenta títulos que a compunham, 38 pertenciam ao campo das ciências sacras, o que dá cerca de dois terços do acervo. Dentre as ciências sacras, destacavam-se justamente as seções de teologia, com doze obras — o que significa um quarto do total dos livros possuídos pelo vigário e liturgia, também com doze títulos — correspondendo a outro um quarto. Assim, vemos as questões teológicas e as preocupações imediatas com o culto, a instrução dos fiéis, enfim, do dia-a-dia de um sacerdote, serem respondidas por sua biblioteca. As seções de cânones, dicionários e escritura santa contavam, respectivamente, com três, uma e duas obras.

Essa mesma relação de afinidade com a carreira eclesiástica abraçada por seu proprietário pode ser igualmente antevista na livraria de Manuel Rodrigues da Costa, outro padre envolvido na Inconfidência. Na biblioteca deste sacerdote de Lima Duarte,[53] as ciências sacras predominavam sobre as profanas, numa relação, em termos de número de obras, de 26 para dezoito, e, em termos percentuais, de 45,5% para 31,6%. A maior presença das obras de teologia e liturgia é igualmente notada, atingindo, respectivamente, 14% (oito títulos) e 15,8% (onze títulos) do total. Mais atrás, estavam as seções de escritura santa, história sagrada e dicionário, com duas obras cada uma, e, por fim, cânones, com uma apenas.

A biblioteca do bispo dom frei Domingos da Encarnação Pontével — professor de filosofia e teologia em Portugal,[54] que por seu posicionamento contra a Inconfidência Mineira foi qualificado pelo historiador e cônego Raimundo Trindade como um “exagerado absolutista”[55] — também espelhava sua formação profissional e, de resto, quanto à distribuição das obras pelas seções, assemelhava-se bastante às livrarias dos padres Manuel Rodrigues da Costa e Carlos Correia de Toledo. Assim, nela primeiramente se notava a preeminência das ciências sacras sobre as ciências profanas: logramos identificar 251 obras na primeira seção e 76 na última, respectivamente 60% e 18%, ficando o restante (85 obras, 21%) sem classificação em virtude da falta de dados completos sobre as mesmas. Dentre as ciências sacras, além disso, constatamos igualmente a maior presença de livros de teologia e liturgia, como nas bibliotecas dos padres Manuel R. da Costa e Carlos Correia de Toledo. A seção de teologia continha 53 obras, enquanto a de liturgia era formada por 49. A pequena superioridade numérica da primeira seção sobre a última — o que difere Pontével dos outros presbíteros — pode encontrar explicação no fato de o bispo ser professor de teologia, ao contrário dos demais. A parte de cânones (32 livros) era também comparativamente maior nesta biblioteca: se na livraria do padre Manuel ela era oito vezes menor do que a de teologia e, na do padre Toledo, quatro vezes, no caso de Pontével, era apenas 1,6 vez menor. Nisso devia pesar o exercício do governo episcopal e da docência em teologia, o que provavelmente exigia um maior conhecimento de cânones. Atrás dessa seção vinham história sagrada (com quinze obras), escritura santa e dicionários (ambas com sete títulos), e, finalmente, Padres da Igreja (duas obras). O Diabo encontrava-se oculto, entre os muitos livros de ciências sacras: o bispo possuía sete volumes do Curso de teologia moral salmanticense, obra contaminada pelo molinismo.
Quanto às ciências profanas, havia diferenças entre os padres Toledo e Costa e o bispo. O número de obras de ciências profanas na livraria de Toledo não era muito grande: dezoito, o que perfaz 30%, dentre as quais sobressaíam as obras de literatura e gramática (sete ao todo), vindo logo em seguida a seção de dicionários, com cinco obras e, por fim, filosofia, política, geografia e ciências, cada uma delas representada por uma obra apenas. O vigário de São José d’El-Rei possuía, entre seus livros de ciências profanas, a Lógica, de Luís Antônio Verney, iluminista português, adversário dos jesuítas, pensador oficial da era pombalina. Apesar de elevado à condição de pensador oficial, Verney certamente era considerado um “libertino” pelas autoridades eclesiásticas mais ortodoxas, e por isso podemos considerá-lo um pequeno demônio.[56] Satã, todavia, aparecia de verdade, embora de maneira muito sóbria: o padre taubateano tinha duas obras de Ovídio, autor exilado de Roma por Augusto sob o pretexto de ter dado provas de imoralidade e que foi proibido pela censura portuguesa. Tais obras eram: Compêndio de metamorfose e Triste velho. O primeiro era uma coletânea de todas as lendas da mitologia grega, e o segundo expressava o sofrimento que causava ao autor o exílio que o afastava da vida mundana.[57]
Na biblioteca do padre Costa, entre as ciências profanas, os últimos lugares eram ocupados pelas seções de retórica, história, filosofia e educação (cada uma delas com um título apenas) e pela geografia (esta contava com dois títulos). As obras de ciências estavam em primeiro lugar entre as ciências profanas, juntamente com a parte de literatura e gramática: havia cinco obras em cada uma dessas seções. Esse fato confere singularidade a essa biblioteca, pois a existência dessa igualdade numérica entre obras de ciências e literatura e gramática é caso único entre os inconfidentes. Duas das obras de ciências eram de medicina: Medicina doméstica (seu autor não foi identificado) e outra Medicina (cuja autoria não se pôde decifrar totalmente na transcrição dos Autos de devassa). Outras eram a Aritmética, de Maia, e Biologia, de Berti. Por fim, restava uma Instrução para a cultura das amoreiras. A existência dessas obras suscita algumas interrogações: a presença dos livros de medicina indicaria que o padre Manuel seria um médico de si mesmo, isto é, utilizava-se de tais obras para curar seus eventuais males de saúde? Ou então, somada às obras de biologia, traduziria uma valorização do mundo da Natureza, uma preocupação com os objetos de investigação das ciências naturais e, até mesmo, uma valorização dessas últimas? Temos a impressão de que essas perguntas apontam para possibilidades que não são excludentes: Manuel poderia estar preocupado com sua saúde e, também, partilhar da nova visão de mundo engendrada no seu tempo. Quanto a esse último ponto, a trajetória posterior do padre de Lima Duarte dá-nos a certeza de que se trata de uma interpretação correta: anos mais tarde, mais precisamente em 1801, em Lisboa, ele traduziu e publicou um Tratado da cultura dos pessegueiros.[58] Portanto, tendo em vista o número de obras de ciências, em particular das que se referiam ao universo biológico, e a presença da Instrução para a cultura das amoreiras, tais obras não podem ser interpretadas como uma excentricidade ou coisa parecida: elas espelham uma opção de vida e uma determinada maneira de olhar o mundo, na qual este é compreendido mais à luz da razão e da observação do que da revelação. Aqui talvez possamos ver uma insinuação do Pai da Mentira, afinal, a primazia total da razão sobre o “jugo da Revelação”, na compreensão de Deus e da “vida futura”, está na essência do ser libertino, do ser sequaz do Diabo, o que nos deixa uma derradeira interrogação: teria o padre se deixado seduzir a tal ponto pelo Demônio? Teria ele levado a razão — e também a observação — à condição tão ímpar de total primazia?
Na parte de ciências profanas da livraria do bispo, ao lado do maior número de obras da seção de literatura e gramática (vinte obras, 4,8%) — situação comum ao caso do padre Carlos Correia de Toledo —, havia um número considerável de dicionários (quinze, 3,6%). A filosofia, direito e geografia vinham logo em seguida, cada qual com oito obras (1,9%). Essa grande presença de direito e geografia — a última apresentava-se maior ainda, pois havia entre os dicionários uma obra intitulada Dictionari Geografique — no interior das ciências profanas confere ao bispo uma certa singularidade em relação aos eclesiásticos já mencionados. Sobre o direito, a escolha devia ter a mesma origem da postulada para os cânones: a necessidade de compreensão das normas para o exercício do governo diocesano. Para a geografia, no entanto, tal raciocínio não vale: parece traduzir uma preferência pessoal, um gosto pelo assunto.
O bispo possuía seis obras de ciências, cinco eram de matemática e uma de história natural — intitulava-se Historia natural do Brasil. Esse dado parece mostrar que havia da parte do bispo um certo interesse pela matemática. Seria isso um sinal das mudanças do século XVIII? Talvez. É certo, todavia, que o espírito do século o atingia: dentre suas obras de filosofia, vemos três títulos de Genuensis, autor dos mais presentes nas bibliotecas que analisamos — Elementa methafisicae, Lógica e metafísica e Lógica grande. Genuensis, na realidade Antônio Genovesi, sacerdote e, desde 1740, professor da Universidade de Nápoles, era um representante do Iluminismo italiano maldito pelo papa, a ponto de ter sido censurado em Roma.[59] A partir de 1772, tornou-se o filósofo oficial em Portugal, tendo suas ideias atingido as elites letradas portuguesas e brasileiras do período pombalino, e passou a ser leitura obrigatória no ensino de filosofia, inclusive em Minas Gerais.[60] Enfim, o Iluminismo chegava até a autoridade máxima da diocese marianense, um Iluminismo oficial, de Pombal e seus sucessores,[61] embora proibido por Roma — e, por isso, passível de ser alçado à categoria de “diabo”. Não se pode esquecer, contudo, que a lei permitia ao bispo, na condição de professor de teologia, possuir livros proibidos.
Outro diabo menor era a obra que aparece intitulada Storía, em quatro volumes, de Robertson — provavelmente sua História da conquista e colonização da América, em quatro volumes, obra proibida pela Corte espanhola pois expunha as violências perpetradas na conquista do México e do Peru.[62] Podemos suspeitar, entretanto, que Satã fazia-se presente de forma mais evidente e perigosa. Entre as obras da livraria do bispo marianense, localizamos Anecdotes, obra em dois volumes — no inventário não há qualquer referência ao seu autor, e o título provavelmente está incompleto. Essa obra não aparece na Lista de Livros do bispo — a qual, acreditamos, serviu para a venda de sua livraria —, e isso nos faz pensar que se tratava de uma obra proibida. Robert Darnton, em seus estudos sobre a literatura clandestina na França do século XVIII, apresenta-nos três títulos semelhantes ao que encontramos no inventário de Pontével: Anecdotes sur mme. la comtesse Du Barry, de Mathieu-François Pidansant de Mairobert, Anecdotes du XVIII siècle, de Imbert de Bourdeaux, e Anecdotes typographiques, de Nicholas Contat. Anecdotes sur mme. la comtesse Du Barry é um misto de libelo — virulento ataque aos indivíduos que ocupavam o poder — e crônica escandalosa — relato jornalístico de casos amorosos, crimes momentosos e eventos sensacionais. Girava em torno de uma amante do rei Luís XV, filha de uma cozinheira e um monge, a condessa Du Barry, para a qual o rei, procurando ocultar sua relação, arranjara um casamento com o conde Du Barry. Tal obra, porém, acaba tendo como alvos o próprio rei e a monarquia francesa[63] e, por mensagem, a dessacralização dessa, compreendida como despótica, manipulada e enlameada por uma marafona, que “joga com o cetro como com um brinquedo, profana o trono, a coroa e a sagrada pessoa do soberano”.[64] Estaria essa obra presente na biblioteca da autoridade máxima da diocese mineira? Em caso afirmativo: ela o teria influenciado de alguma maneira? Ou, em outros termos, poderia se traçar um paralelo entre a pseudobiografia de Du Barry e a realidade de Pontével? Não se pode dizer sim às duas primeiras questões, em particular porque no inventário do bispo consta que se trata de uma obra dividida em dois volumes e as edições analisadas por Darnton do livro de Pidansant indicam que sua obra tem um volume apenas. Pode-se argumentar, porém, que haveria outras edições e que, nestas, a obra estaria dividida em dois volumes — o que seria facilitado por sua divisão em duas partes — e que uma dessas edições teria chegado até a livraria episcopal de Mariana. Como isso não passa de uma conjectura, na terceira parte do trabalho traçaremos o paralelo sugerido entre o livro de Pidansant e a realidade vivenciada por Pontével.
Passemos aos casos em que inexiste uma relação evidente entre os proprietários das bibliotecas e as carreiras por eles abraçadas. O cônego Luís Vieira é um deles. As preferências do cônego transcendiam à sua área de atuação profissional e concentravam-se em campos do conhecimento que não os diretamente envolvidos no exercício das funções sacerdotais e da docência de filosofia, por ele desenvolvida no Seminário de Mariana, onde estudou. Sua biblioteca — que mereceu o acurado estudo de Eduardo Frieiro[65] — destacava-se das demais: ela estava “recheada com a literatura mais crítica do Ocidente”.[66] Nela Lúcifer tinha o seu império e ficava patente o quanto o cônego era um clérigo singular: antes de ver-se um predomínio das ciências sacras (83 títulos, 34,4%) e, dentro dessas, da liturgia (catorze obras, 5,8%) e da teologia (treze, 5,3%), nota-se a preeminência das ciências profanas (131 obras, 54,3%), ao invés da prevalência da filosofia (23, 9,5%), da qual era professor, percebe-se a paixão pela literatura (46, 19%), o culto da história (a história sagrada, a história profana e os dicionários de história somam 33 obras, 13,6%) e a valorização dos cânones e do direito (juntos perfazem 27 títulos, 11,1%), além de certa importância dada às ciências (dez, 4,1%). Vieira era um homem, enfim, imerso nas ideias do seu tempo e, por isso, sequaz do Diabo: este imperava em sua livraria. Nela é possível vislumbrar a face “libertina” e o veio “carnal” do demônio. Dos “libertinos” proibidos em Portugal, temos Diderot, D’ Alembert, Condillac, Mably, Marmontel, Montesquieu e Voltaire. A “carne”, também motivo de censura, aparecia corn os clássicos Anacreonte, Catulo e Ovídio. Mostrava-se igualmente em Petrônio, com Satyricon. Insinuava-se na Vida dos doze Césares, de Suetônio. Contra os males que seus excessos podiam causar — os físicos, não os espirituais — o cônego tinha lá suas precauções, pois possuía o Traité des maladies vénériennes, de Fabri. Males venéreos: eis os sinais mais evidentes de que o nosso cônego seria um discípulo do Pai da Mentira. Diabos menores igualmente existiam na biblioteca de Luís Vieira: o iluminista Bento jerônimo Feijó, autores condenados por Roma como o já citado Genuensis e o historiador da Igreja padre Fleury, os proibidos Milton e Robertson, um historiador censurado pela Coroa espanhola. Em suma, tratava-se de uma livraria de um tempo que sacudia o jugo da Revelação, e que alçava a razão — e a sensualidade — aos píncaros.
Nos casos das bibliotecas de Inácio José de Alvarenga Peixoto e do coronel José Resende Costa, o que se percebe, primeiramente, é uma pobreza numérica (quatro e vinte obras, respectivamente) e a inquietação com as ideias oriundas da França, no campo da literatura ou da filosofia. Alvarenga Peixoto, aluno e doutor em leis pela Universidade de Coimbra (onde regeu a cadeira de Instituta), magistrado, homem rico mas endividado, aderiu ao pombalismo e, desde seus tempos de universitário, dedicou-se à produção poética.[67] Em sua livraria não se vê qualquer reflexo da carreira de magistrado, e ouvimos apenas alguns ecos de sua vocação poética: não havia nenhum título de direito ou cânones, e três das obras pertenciam à área de literatura, sendo que uma delas classifica-se também na seção de filosofia: as Obras, de Voltaire. Se Peixoto, por um lado, possuía um acervo bibliográfico pequeno, por outro, mostrava-se tomado pelo espírito de Satã: metade das obras estava contaminada pelos “abomináveis princípios franceses” (de Voltaire) ou pela “miséria d’homem” (do “licencioso Crébillon”). As “diabruras” políticas de que Alvarenga acusou Tiradentes, portanto, estavam escancaradas em sua própria biblioteca.
O coronel José Resende Costa e seu filho, de mesmo nome, possuíam uma biblioteca bastante interessante. O pai, proprietário de terras, já idoso à época da Inconfidência — contava 61 anos — era capitão dos Auxiliares. O filho fora aluno, no Rio de Janeiro, de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, o qual, mais tarde, se envolveria na conjura do Rio. Sobre Resende Costa Filho consta ainda que pretendia estudar na Universidade de Coimbra.[68] Na biblioteca dos Resende Costa havia espaço unicamente para as ciências profanas — nela não localizamos nenhum título de ciências sacras — e, dentre essas, cabia o primeiro lugar, de longe, à literatura, a qual contava quinze obras, correspondendo a três quartos do acervo total. A filosofia vinha muito atrás, com dois títulos. Mais atrás encontravam-se a geografia, retórica e direito, cada qual com uma obra. Na seção de literatura, os franceses despontavam na frente, ocupando mais da metade dos títulos (oito): lá estavam os clássicos Boileau, Fénelon, Molière, Racine e os proibidos — “libertinos” — Voltaire e Marmontel. Se o Diabo encontrava-se na própria ausência de Deus nesta livraria, tinha em Voltaire e Marmontel seus mais legítimos representantes, também se fazia presente de maneira sutil, isto é, por meio do já mencionado Genuensis. Em relação a essa biblioteca, como se vê, não é possível estabelecer qualquer vínculo entre ela e a ocupação de seus proprietários, mas apenas constatar o mesmo apreço pela literatura verificado em todas as outras livrarias, nas quais esta seção também ocupava o primeiríssimo lugar dentre as ciências profanas.
Por fim, o coronel José Aires Gomes e Domingos Fernandes da Cruz possuíam bibliotecas que expressam preocupações com questões emergentes do cotidiano. O primeiro, um familiar do Santo Ofício, era um verdadeiro potentado local, possuía uma vasta extensão de terras. Tido por “primitivo”,[69] em sua pequena livraria, composta por apenas quatro obras, só havia lugar para as ciências profanas, sendo que três quartos eram constituídos por obras de medicina. Considerando-se seu propalado “primitivismo”, parece-nos lícito aventar a hipótese de que a presença maciça de obras de medicina não expressava um olhar marcado pelas ideias do século sobre a Natureza, manifestando apenas uma preocupação com a própria saúde. Em se aceitando que o coronel era médico de si mesmo, chegaremos obrigatoriamente a uma conclusão: a de que sofria de sífilis, pois possuía uma obra de medicina intitulada Medicina ilustrada, “que trata de curativo morbo gálico” (sífilis).[70]
Quanto a Domingos Fernandes da Cruz[71] — o qual não pode ser tomado, de fato, como inconfidente, pois seu envolvimento limitou-se a esconder o Tiradentes em sua casa —, sabe-se que se tratava de um homem idoso e simples, que exercia o ofício de torneiro e residia no Rio de Janeiro.[72] Sua livraria correspondia a essa simplicidade. Compunha-se de apenas oito obras, sete delas de ciências sacras e apenas uma de ciências profanas (uma Cartilha). Nas ciências sacras, os títulos localizados foram: Coroa seráfica, Manual da missa, Mestre da vida, Retiro espiritual, De indulgências e Máximas espirituais. Por esses títulos pode-se imaginar que se tratava de um homem de religiosidade simples e sem qualquer veleidade teológica maior. Esse raciocínio parece-nos bastante procedente, porém desde que se retire dele uma fidelidade total à ortodoxia cristã. Isso porque numa biblioteca tão pequena, e mesmo pobre em termos de títulos, encontramos as Máximas espirituais. Embora seu autor não seja identificado, supomos que se trata da obra citada anteriormente, aquela que incorpora a doutrina molinista das “violências diabólicas”. Assim, o Diabo parece não deixar imune nem mesmo a pobre livraria de um homem simples como Domingos Fernandes da Cruz.
Em suma, da análise das livrarias dos inconfidentes emerge a face de Lúcifer, visível em obras que, de alguma forma, minavam a primazia da Revelação na existência dos homens, em privilégio da razão, da observação e da sensualidade, obras que provavelmente os conjurados emprestavam uns aos outros. Mas poderia se argumentar — como fez o cônego Raymundo Trindade em relação à livraria do cônego Luís Vieira da Silva — que, se havia lugar para Satã, Deus fazia-se bastante presente nas bibliotecas: nas obras de escritura santa, por meio de “anjos” como são Tomás e são Bernardo, e muitos outros. Tal presença “neutralizaria triunfantemente as tentações do inimigo”?[73] Ou este teria saído vencedor? Responderemos a essas questões, em relação à Carne, na próxima parte do trabalho.

DA POTÊNCIA AO ATO: DA POLÍTICA À CARNE,
OU A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE GONZAGA

Começaremos a análise da insurgência do Diabo na Carne, na moral sexual, pelo princípio — de certa forma presente na Lira I, de Marília de Dirceu[74] — que regia a escolha dos cônjuges na sociedade colonial: o “princípio de igualdade”. Tal princípio, consagrado nos textos dos moralistas e nos adágios e provérbios, na moralidade que imperava nos livros e naquela urdida na vida cotidiana, significava que os cônjuges deviam possuir a mesma condição, serem iguais na idade, no status social, nas posses, na situação física e moral[75] Se a igualdade etária não parece ter sido respeitada — ao menos não o era em São Paulo do século XVIII —, no mais, a igualdade constituía, porém, tanto em São Paulo como no Brasil-Colônia em geral, uma exigência. A igualdade, por seu turno, implicava certa racionalidade que excluía a interveniência do amor no casamento. Na cultura erudita e na cultura popular, hostilizava-se a interferência do amor, da paixão amorosa e da atração física na escolha do cônjuge.[76]A moralidade hegemônica na Colônia, que tinha no “princípio de igualdade” um de seus pilares, criava obstáculos ao casamento. Numa sociedade marcada por ser colonial, escravista, preconceituosa em relação às mulheres e aos não-brancos e caracterizada por um desequilíbrio numérico entre os sexos em cada um dos grupos raciais, havia dificuldades para se acharem iguais disponíveis para o matrimônio, e, mais do que isso, tornava-se perfeitamente aceitável e/ou provável a ocorrência de ilicitudes — adultério, prostituição, concubinato e bigamia em particular se vitimassem os desiguais. Sendo uma sociedade colonial
e, portanto, multirracial e voltada primordialmente para a acumulação de riquezas — situações que definiam a existência de padrões morais diversos e, em muitos pontos, distintos do estabelecido pela Igreja e que, devido à busca incansável de riquezas, contribuíam para a instabilidade e mobilidade dos grupos populacionais —, havia dificuldades para a realização do matrimônio, a união duradoura e estável prescrita pela Igreja tridentina. Ao mesmo tempo, colocava estímulos e facilidades para as uniões esporádicas, instáveis e ilícitas. Essas, por seu turno, obtinham uma tolerância maior das autoridades coloniais, preocupadas mais em garantir a acumulação de riquezas pela Metrópole do que em coibir as heterodoxias da moral sexual. Idênticos resultados tinham a escravidão e o racismo, ao criarem uma sociedade profundamente hierarquizada, separando os mundos de escravos e livres, de livres com e sem posses, e tornando os cativos seres passíveis de relações sexuais ilícitas: dessa maneira estimulavam-se os senhores, solteiros ou casados, de grandes e pequenas posses, a amancebarem-se ou usarem sexualmente suas escravas e escravos, incitavam-se estes últimos ao concubinato, levando à proliferação dos bastardos e filhos ilegítimos e à prostituição das cativas. Conduziam a esta mesma situação, ainda, o patriarcalismo — isto é, a concessão de um lugar privilegiado ao homem, pai e/ou marido no espaço da família e da sociedade como um todo — e a misoginia que lhe era correlata, que implicavam não apenas a compreensão da mulher como fonte de todos os males, mas impunham a submissão e o recato às que tinham famílias para provê-las e classificavam as “mulheres solteiras” (sem família para protegê-las, não castas, ou ainda, índias, negras e mulatas) de aptas para a fornicação.[77] Por fim, a própria estrutura demográfica das Minas Gerais gerava dificuldades para a realização de matrimônios entre iguais, dado que havia um desequilíbrio entre os sexos em cada um dos grupos raciais.[78] Assim, se do Curso de teologia moral salmanticense, podia-se inferir que era bastante lícito estuprar mulheres impuras ou feiticeiras, isto é, mulheres solteiras — admitindo-se até mesmo, em algumas vezes, que tal violência vitimasse mulheres pudicas e santas —, a crença de que inexistia problema em relacionar-se com tais mulheres se espalhava largamente na península Ibérica e no Brasil colonial quinhentista.[79] Nas Minas Gerais do século XVIII, possuía condições para florescer e parecia bastante popular. Em suma, sob a superfície cristã da defesa do casamento entre iguais e da castidade para as mulheres de família, a moralidade da Colônia ocultava a face de Satã: era um universo de regras que articulava o erudito e o vivido cotidianamente, os atos aparentemente consagrados por Deus e as mais diversas heterodoxias, as quais, na realidade, constituíam uma potência, derivada e disfarçada, da crosta ortodoxa. Potência — é preciso dizer — concretizada em atos. Atos que, de fato, eram os mais corriqueiros e difundidos, a verdadeira face sexual da sociedade colonial, que se estampava, de maneira clara e insofismável, na existência de uma multidão de filhos ilegítimos. Uma moral — saliente-se — da qual não estavam imunes sequer aqueles que deviam combater seus aspectos heterodoxos, isto é, os clérigos. Concubinato, adultério, sodomia — chamada de “vício dos clérigos” — e rapto eram delitos muito frequentes entre os soldados do Senhor.[80]

Os inconfidentes e o bispo, um homem da ordem, partilhariam desse universo moral? Teria o Diabo, presente na licenciosidade de alguns livros e na moralidade cotidiana das gentes mineiras, derrotado as forças do Senhor? Como as bibliotecas podem ter influenciado na vitória de um ou de outro? Essas questões poderão ser respondidas apenas em relação ao bispo de Mariana e aos inconfidentes sobre cuja vida sexual encontramos alguma referência, a saber: padre José da Silva Oliveira Rolim, Tiradentes, coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, Cláudio Manuel da Costa, cônego Luís Vieira da Silva e Tomás Antônio Gonzaga.

Do contato do padre José da Silva Oliveira Rolim[81] com o mundo dos livros, além de sua passagem pelos seminários de Mariana e São Paulo, consta que, se não lera a obra do abade Raynal, ao menos chegara a discuti-la com outros inconfidentes.[82] Irmão de criação da famosa Chica da Silva, veio a envolver-se com a filha dessa — portanto, sua sobrinha putativa.[83] A acreditar-se em Joaquim Silvério dos Reis, Rolim teria deflorado sua própria sobrinha, Quitéria, teria lhe arranjado um casamento de conveniência, com o ânimo de prosseguir na relação ilícita e, em vista da reação do marido dessa, acabaria ameaçando-o de morte. Essa história, ao menos em parte, com certeza, corresponde à verdade, pois o padre Rolim viveu concubinado com Quitéria, a qual lhe deu vários filhos e filhas.[84] Certamente com o intuito de proteger a amante e os filhos das consequências de seu envolvimento na conjura, mandou-os, em 1789, para o Recolhimento das Macaúbas, em Santa Bárbara, tomando o cuidado de deixar-lhes alguns bens.[85] Quinze anos mais tarde, em 1804, depois de enfrentar o degredo, a prisão e conquistar a liberdade, Rolim demonstrou sua fidelidade à amásia e aos filhos — e também ao demônio — vindo retirá-los do Recolhimento.[86]
O Tiradentes, amigo de Rolim, parece ter sido mais comedido em suas “diabruras” carnais. Sabe-se que, dentre os livros mencionados como seus, a maioria continha ideias “libertinas” e nenhum era licencioso. E, com efeito, o alferes parece ter sido muito mais “libertino” do que “licencioso”, no que talvez tenha exercido alguma influência a composição de sua parcimoniosa biblioteca (ou vice-versa). Se, em relação à Carne, não havia nem “anjos” nem diabos em sua livraria, em seus comportamentos é possível detectarmos a mácula de Satanás. Um dos denunciantes da Inconfidência, Basílio de Brito Malheiro do Lago, tão logo foi informado sobre o levante que se estava organizando em Minas, a “sedição do Tiradentes”,[87] disse a quem lhe trouxera a notícia: “Só se for um levante de putas”.[88] De fato, o Tiradentes parecia ter andado “por casa de várias meretrizes, a prometer prêmios para o futuro, quando se formasse nesta terra uma república”.[89] O Diabo, porém, não estava apenas onde se encontravam as “putas”, pois Joaquim José, homem solteiro, tinha também uma “filha natural, por nome Joaquina, [então] menor de idade, que viv[ia] pobremente em companhia de sua mãe”, Antônia Maria do Espírito Santo, filha de um falecido alcaide de Vila Rica.[90] Sua amásia, instalada numa casa em Vila Rica, em 1786, veio a traí-lo quando ele estava em viagem ao Rio de Janeiro, causando-lhe uma mágoa profunda, em função do que se desfez do vínculo que com ela estabelecera, devolvendo-a à sua mãe.[91] Antônia parece, portanto, assumir as feições de “mulher solteira” — afinal, já não se encontrava mais sob a proteção e o domínio da monarquia patriarcal do seu pai, além do que já perdera a virgindade —, e o Tiradentes, um digno representante da moralidade que imperava na Colônia.
O tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, ao contrário dos dois primeiros, parecia possuir um maior trânsito pelo mundo dos livros, pois, ao menos, era dono de uma biblioteca com um número razoável de obras. Era filho ilegítimo, oriundo de famílias das mais distintas da Colônia: seu pai e tio haviam sido governadores da Capitania das Minas Gerais. Se a ilegitimidade estava por trás de seu próprio nascimento, vemo-la, por seu turno, no comportamento de Andrada: homem casado, pai de quatro filhos legítimos, tivera, antes de casar-se, uma filha natural, dona Constança, nascida no Rio de Janeiro em 1777 e que, à época da Inconfidência, ainda menor, encontrava-se “residindo no Morro da Passagem [de Mariana] em casa do padre Bento [Bezerra] de Melo”.[92] Assim, se havia “anjos” em sua livraria, estes não conseguiram neutralizar o demônio.
Inácio José de Alvarenga Peixoto, talvez, tenha ido mais longe que Andrada. Se em sua livraria, quem sabe, havia um “anjo” — a Miscelânea, do padre Manuel —, este não parece ter vencido o “licencioso” Crébillon e o “libertino” Voltaire. Em termos políticos, Peixoto revelou-se um autêntico “libertino”, tecendo elogios ao abade Raynal e seu livro,[93] e envolvendo-se de cabeça na Inconfidência. Quanto à Carne, talvez lhe pesasse toda uma história familiar: Inácio José de Alvarenga Peixoto possuía uma ascendência em que imperavam as ilegitimidades, mais precisamente, que resultava de “coitos sacrílegos”.[94] Seu avô materno, Paulo de Araújo Ferreira, era filho de um cônego, Gonçalo de Araújo Ferreira. A avó paterna, por sua vez, Margarida Rosa da Costa, era filha de um membro da Igreja, o padre Simão de Alvarenga Costa. Também o avô paterno era filho natural, do ermitão Domingos Ribeiro e Isabel Ferreira.[95] Com o Diabo tão presente em sua ascendência, Peixoto sucumbiu aos prazeres da carne:[96] ainda em Portugal, sabe-se que, provavelmente, manteve um idílio amoroso com dona Isabel de Lencastre Forjaz (em seus poemas aparece sob o nome de Jônia), aristocrata minhota viúva.[97] O amor de Jônia revelou-se efêmero,[98] mas, o poeta, ele mesmo, se assumia como inconstante nesta matéria e perdido entre mais de uma mulher: é o que podemos deduzir de sua produção poética.[99] E, no Brasil, mais precisamente em São João d’El-Rei, o Diabo fez mais estragos: Peixoto parece ter cultivado a amizade do dr. José da Silveira e Souza, homem que tinha muitas filhas, a mais velha, chamada Bárbara Heliodora, com dezoito anos em 1776. O poeta, então com mais de trinta anos, cativou-se dela. “O idílio começou, a menina cedeu, e desses amores, em 1779 nascia uma filha ilegítima, a que puseram o nome de Maria Efigênia”.[100] Mas, em 1777, o padre Villasboas uma inimizade conquistada ainda no Reino — o acusou de ser infiel às casas onde entrava e, ao dr. Silveira, de manter suas filhas em “escandalosa prostituição”.[101] Por causa dessa situação, Peixoto e o advogado foram vítimas de críticas, insinuações e pasquins que circulavam nas ruas. Diante da pressão, em dezembro de 1781, Peixoto e Bárbara se casaram.[102]Cláudio Manuel da Costa tinha lá uns demônios em sua biblioteca, dois deles carnais (Sonhos, poema erótico e uma obra de Anacreonte), mas eles contrastavam com santos, como santo Inácio de Loyola. Sua conduta parece refletir uma personalidade dualista, marcada pelo dilema entre o Rei e a Sedição, a Fé e a Carne, o Reino e a Pátria, Deus e o Diabo.[103] Assim, homem profundamente religioso, ao mesmo tempo vivia a moralidade sexual que imperava em sua época: ele manteve uma relação duradoura (cerca de trinta anos) com Francisca Arcângela, escrava de outrem e que, ainda na condição de cativa, deu-lhe a primeira filha, Maria Clara, em 1759. A essa se seguiram Feliciano em 1765, Francisca em 1767, Ana em 1769, e Fabiana em 1773. Após o nascimento de Feliciano, sua mãe foi alforriada. Portanto, entre a fé cristã e a moralidade que imperava na sociedade colonial — moralidade esta presente na vida cotidiana e também na cultura livresca — Cláudio optou pelas conveniências sociais: concubinou-se com a escrava, mulher negra ou mulata, uma mulher “sua desigual”, com quem o matrimônio seria impensável.
O cônego Luís Vieira da Silva, proprietário de uma biblioteca em que Satã tinha um bom espaço, era indubitavelmente demoníaco: por um lado, por ser um “libertino”, o que se demonstra em seu envolvimento na Inconfidência,[104] e, por outro, por ter se deixado seduzir pelos apelos da Carne. Vieira foi pai, legando uma filha à posteridade, embora ocupasse postos importantes e de responsabilidade na hierarquia e em relação à vida religiosa do bispado — era docente do Seminário Episcopal, comissário da Ordem de São Francisco e cônego, portanto, um membro do cabido marianense, pelo que, em teoria, deveria obediência aos princípios morais prescritos pela Igreja. Nascida em 1765, quando Vieira já tinha recebido as ordens sacras, seu nome era Joaquina Angélica da Silva.[105] Deste legado podemos inferir que o cônego não era avesso aos “coitos sacrílegos” e que, por conseguinte, o Traité des maladies vénériennes encontrado em sua biblioteca pode lhe ter sido bastante útil. Mais ainda, que os livros “carnais” de sua livraria aliaram-se à moralidade cotidiana das Gerais, fazendo do cônego um homem de seu tempo: “libertino”, “licencioso” e “diabólico”.
Tomás Antônio Gonzaga, reinol, de ascendência nobre, ex-estudante da Universidade de Coimbra, magistrado desde 1779, quando foi nomeado juiz de fora de Beja, em 1782 já era ouvidor de Vila Rica.[106] Ele — que pode ser considerado o mais notável, elegante e refinado dos inconfidentes — se caracterizava, sobretudo, por ser oportunista e sequaz de Satã. Sua participação na conjura o atesta.[107] O oportunismo conjugava-se, ainda, com mostras de dissimulação: ao ser questionado sobre o fato de ter falado na possibilidade de um levante, respondeu “que esta prática, de que nem certo se lembra, não podia ser senão em uma hipótese de potência e não de ato” (grifo nosso).[108] Com a expressão “uma hipótese de potência e não de ato”, portanto, o autor das Cartas chilenas intenta escamotear o seu envolvimento na Inconfidência, transformando em “potência” os seus verdadeiros atos e o “ato”, num exercício de dissimulação. O “ato”, assim, não passa de uma superfície que, a um mero tatear, faz emergir uma “potência”, que é a verdadeira face política de Gonzaga num momento de sua trajetória: a “libertinagem”.
Esse mesmo artifício escamoteador, de rebaixar os “atos” à condição de “potência”, encontra-se na moral sexual da Colônia e, de resto, de Tomás Gonzaga, nos seus escritos e em seus comportamentos. Em seus escritos, predomina uma visão a respeito do sexo em que, à tradição bíblico-teologal e à moral sexual colonial, incorporam-se algumas ideias do século XVIII. Assim, fazendo jus à tradição teologal e à moral colonial, Tomás associa o sexo à Queda, à “miséria d’homem”, apreende o matrimônio como indissolúvel e inextinguível, e entende que a finalidade do sexo é a procriação.[109] Defende também os valores tradicionais relacionados ao sexo e às raças, e, assim, por um lado, alude, com saudade, ao tempo em que a mulher obedecia ao homem[110] e propugna o recato feminino.[111] Por outro, admite as relações com prostitutas,[112] o concubinato e, até mesmo, que um homem case sua amásia com um subalterno para dissipar o malfeito. Assevera que prostitutas e “vis mulatas” concubinas devem resignar-se a ocupar os locais que lhes cabem, não colocando-se ao lado do governador em cerimônias públicas ou frequentando seu palácio quando a noite cai[113] — ou seja, as aparências precisavam ser mantidas, os “atos” deviam converter-se em “potência”. Considera inaceitável a atitude de Fanfarrão, o qual premiou o marido de sua amásia com uma promoção em sua carreira, passando por cima dos direitos de outros que estavam à sua frente.[114] Como homem de seu século, afirmava, porém, que o sexo é comum a todos os seres, dos brutos a Marília, constituindo uma lei da Natureza.[115] Em relação à mulher, exprimia uma tensão entre os valores tradicionais da moral colonial e elementos de uma moral burguesa.[116] Assim, a personagem poética Dirceu se curva diante de Marília, uma mulher recatada mas pouco convencional, pois, acompanhando os novos padrões de sociabilidade vigentes no Portugal urbano da segunda metade do século XVIII e, em certa medida, em Vila Rica, possuía vontade própria, sabia conversar, dançar, tinha atos de sensualidade e participava de reuniões.[117] Mas em Gonzaga a vitória do “novo” parece ser mais o resultado de um jogo em que a mulher possui uma potência maior e, nesta circunstância, cumpre à personalidade poética masculina, em desigualdade de força, oferecer-lhe um lugar que não o definido pela tradição. Uma vitória do novo, portanto, arrancada ao velho e, talvez, quase inconsciente.[118] Nos comportamentos de Gonzaga, vê-se mais a adesão à moral colonial do que às tradições teológicas, ao mesmo tempo em que se confirma a tensão, presente em suas obras, entre o moderno e o velho quanto à mulher. Consta que, em Ouro Preto, Gonzaga aproximou-se da família Silva Ferrão, da qual fazia parte Maria Doroteia Joaquina de Seixas, e que, então, já quase um quarentão, passou a namorá-la. A opção pelo casamento foi, portanto, tardia, e, mais do que isso, colidia em parte com o “princípio de igualdade”: o amor parecia induzi-lo a uma escolha que não respeitava a igualdade etária e de posses, já que Maria era mais nova e afortunada que ele. Só o amor o teria guiado nesta escolha? Ou seria seu senso de oportunidade que estaria falando alto? Não há como responder a essa questão. Mas se pode dizer que, neste caso, a desigualdade era favorável a Gonzaga e que este, ao que parece, teve que enfrentar a oposição da família, a qual, devido às já citadas diferenças, não via com bons olhos o casamento de Maria com Gonzaga.[119] Se vemos Gonzaga, por volta dos quarenta anos, aferrar-se no que havia de consagrado por Deus dentro do universo da moral colonial, não se pode deixar de mencionar que, antes de optar por filiar-se às hostes divinas e mesmo quando o fazia, manifestava um pendor pelo Inimigo: sabe-se que o ouvidor de Vila Rica relacionou-se com “uma dama [a Laura das suas liras, crê-se] que lhe deu um filho e, parece, motivou ciúmes de Maria Doroteia”.[120] Afirma-se ainda que Gonzaga era amante de Maria Joaquina Anselma de Figueiredo, amásia também do governador Luís da Cunha Menezes, mulher de Jerônimo Xavier de Souza.[121] Como seus contemporâneos, enfim, Tomás considerava plenamente aceitável ter amásias. Degredado em Moçambique, no entanto, entre o novo e o velho, a moral colonial e a moral burguesa, Deus e o Diabo, Gonzaga acabou por curvar-se ao caminho ditado pelo seu oportunismo: veio a casar-se com Juliana de Souza Mascarenhas, herdeira da casa mais opulenta da terra em negócio de escravatura, uma mulher igual a ele em termos sociais porém mais rica e analfabeta. Em suma, Gonzaga utilizou o “princípio de igualdade” da maneira que lhe era mais conveniente, casando-se sem amor e com uma mulher mais rica, subvertendo parcialmente — e em seu benefício — esse princípio. Gonzaga encontrou a fortuna e nós, a Fortuna de sua primeira tentação. Ou melhor, de sua primeira, última e derradeira tentação: o poeta, ouvidor e degredado Tomás Antônio Gonzaga era um oportunista, ambicionava dinheiro e poder, e, até mesmo quanto à Carne, sua fidelidade à moral hegemônica esteve condicionada aos benefícios que poderia trazer-lhe. Súdito da fortuna, da Fortuna e de Satã — assim era Gonzaga.
E o bispo, dom frei Domingos da Encarnação Pontével, seria diferente dos inconfidentes, seus contemporâneos? Parece-nos que não. Um mês e meio após entrar solenemente na catedral de Mariana, mais precisamente em 2 de abril de 1780, o bispo dom frei Domingos da Encarnação Pontével foi padrinho, junto corn Nossa Senhora do Rosário, de um exposto,[122] um menino deixado às portas do palácio episcopal. O menino recebeu o nome de Domingos José da Encarnação Pontéve1[123] e “foi criado em casa de João José Correa por mando do dito Senhor” (grifo nosso).[124] Moço pobre, quis ingressar na carreira sacerdotal, seguindo o exemplo de seu “padrinho”. Para tanto, requereu a habilitação para receber ordens e, em 1804, o perdão das taxas que deveria pagar para mover os papéis do processo, no que obteve êxito. Todavia, neste ponto começam a surgir pontos obscuros sobre a origem de Domingos José. Os expostos, de acordo com a lei, não eram considerados ilegítimos, uma vez que, não se sabendo a identidade de seus pais, nem se eram casados ou não, ficava impossível afirmar que possuíam uma origem ilegítima. Apenas quando se sabia quem eram os pais e que eles não eram casados, os expostos passavam a ser considerados ilegítimos. E este era o caso de Domingos. Sua ilegitimidade, além disso, não era simples: para ser dispensada fazia-se necessária a intercessão da Sé Apostólica. Com efeito, um breve do núncio apostólico de Lisboa — ao qual o príncipe regente dom João, em conformidade com o padroado, deu seu beneplácito o dispensou, em 1806, para ser promovido “a todas as Ordens Menores, Sacras e de Presbítero […] e receber e reter benefícios, contanto que não sejam dignidades, canonicatus, prebendas nas Catedrais e Dignidades principais nas Igrejas Colegiadas”.[125] O afilhado do bispo, portanto, conseguiu dispensa para ser promovido a todas as ordens, mas não para atingir dignidades e altos postos da hierarquia eclesiástica.
Qual era o defeito de nascimento que maculava o exposto Domingos? Seu defeito de nascimento “era ser oriundo de presbítero”, isto é, ser filho de sacerdote. Quem era seu pai? Antes de responder a essa pergunta, é preciso dizer que Domingos José não se contentou com a dispensa obtida e, em 1821, já capelão do coro da catedral de Mariana, solicitou ao bispo dom frei José da Santíssima Trindade que autorizasse seu provisor a habilitá-lo para todos e quaisquer benefícios, honras e dignidades eclesiásticas. O provisor, após solicitar que se investigasse se o mesmo tinha “se empregado no serviço da Igreja com cuidado, e com bom comportamento, e regularidade de costumes”, e depois de constatar que nada havia que o desabonasse, dispensou-o “na Irregularidade de defeito do nascimento proveniente de coito sacrílego, [de] não poder ser promovido a quaisquer Benefícios, Dignidades, e Honras Eclesiásticas”.[126]
Embora as dispensas de ilegitimidade não tenham sido incomuns nos processos de genere, o caso de Domingos José chama a atenção por vários de seus aspectos. Em primeiro lugar, por ser o único, dentre 157 processos de habilitação dos séculos XVIII e XIX que consultamos, em que o habilitando é filho de padre. Além disso, em outros casos de expostos habilitandos, que tinham sua ilegitimidade enunciada, verificou-se que os nomes de seus pais eram mencionados, o que não ocorre em relação a Domingos José, embora se soubesse que o mesmo era “filho de presbítero”, fruto de um “coito sacrílego”. Se somarmos este estranho silêncio ao seu batismo (no qual teve padrinhos tão ilustres quanto inusitados, como Nossa Senhora e o bispo, de quem recebeu o nome) ao fato de ter sido criado por João José Correia a mando do bispo, aos pedidos de dispensa encaminhados por Domingos José e ao atendimento deles pelas autoridades eclesiásticas (primeiro, o núncio apostólico e, depois, o provisor do bispado), só é possível uma conclusão: seu pai era Sua Excelência Reverendíssima, o bispo de Mariana, dom frei Domingos da Encarnação Pontével. Daí o intrigante silêncio, daí a loquacidade das solicitações de Domingos José — e daí também as concessões das autoridades. A dissimulação era necessária, a “potência” tinha que aparecer como “ato”, ou seja, conservar-se oculta, para que o mistério da transubstanciação de uma em outra não se desnudasse, para que entre os “anjos” não se identificasse a face tenebrosa de Lúcifer. A hipótese da necessidade do disfarce, essa vontade de não ver o Diabo, apresenta-se mais sólida quando se constata que o temor do núncio apostólico — o temor de que Domingos José viesse a “imitar a paternal incontinência”[127] — tornou-se realidade e nem sequer foi tangenciado nas inquirições feitas por ocasião de sua habilitação e de sua última dispensa: Pontével (filho), em seu testamento, reconhece uma filha, dizendo que a mesma nasceu antes de sua ordenação,[128] e isso de forma alguma apareceu nas já mencionadas investigações.
O bispo Pontével, além do mais, não se furtava a ocultar o Inimigo quando a preservação das aparências e da ordem o exigia. Quem o denuncia é Tomás Antônio Gonzaga, nas Cartas chilenas. Fanfarrão Minésio, o governador Luís da Cunha Menezes, solicitou ao bispo que dispensasse sua amásia, Maria Joaquina, e Jerônimo Xavier de Souza dos banhos (proclamas) necessários para a realização do casamento de ambos, no que foi atendido pelo “velho bispo”, o qual, segundo Gonzaga:

[…] tem grandes letras e bem sabe
que os cânones da Igreja não pensaram
da espécie singular de quando um chefe
— quer, à pressa, casar a sua amásia.[129]

Dom frei Domingos da Encarnação Pontével, enfim, mesmo na condição de autoridadade máxima da diocese, deixou-se seduzir pelo canto de Lúcifer, no que toca à Carne. Um canto no qual ecoavam os murmúrios da experiência moral cotidiana e as vozes de alguns livros existentes em sua biblioteca: os “anjos” da sua livraria não lograram vencer o “Inimigo”. E, assim, em sua prática, tal qual a moral vigente na Colônia, articulavam-se Deus e o Diabo, as regras consagradas pelo Criador e as ilicitudes, o universo erudito dos livros e a moral hegemônica no cotidiano. Dos livros, retirava tanto os retos ensinamentos cristãos a respeito da Carne e do Casamento como a ideia, presente no Curso de teologia moral salmanticense, de que era admissível relacionar-se, até mesmo de forma violenta, com mulheres solteiras e, algumas vezes, com mulheres santas e puras. Talvez, ainda, em relação às Anecdotes, logrou estabelecer uma identidade entre sua experiência e as peripécias da condessa Du Barry: afinal, se ele era pai, Barry era filha de um monge, se Luís XV casava sua amásia com o conde Du Barry, ele era cúmplice de uma artimanha semelhante, aquela patrocinada pelo governador Luís da Cunha Menezes. Aos livros, somava-se a atmosfera moral reinante na Colônia — talvez não muito diferente do que ocorria na Metrópole, exceto por seu caráter colonial e pela maior presença da escravidão. Uma atmosfera que admitia as relações ilícitas com as “mulheres solteiras”.
Se o bispo não era libertino — ao que parece era um absolutista —, aproximava-se dos inconfidentes no que toca à Carne, à moral sexual. Uma moral patriarcal, racista, misógina, urdida no interior de uma sociedade colonial e escravocrata, marcada pelo desequilíbrio numérico entre as raças e, dentro de cada uma dessas, entre os sexos. Uma moralidade que, centrada no “princípio de igualdade”, refundia as normas e concepções contidas nos livros e as regras e valores construídos no cotidiano, aquilo que era abençoado pelo Criador e o que agradava a Satã, o casamento e algumas ilicitudes (como o concubinato, o adultério e a prostituição), aparência e realidade. Moral de uma sociedade que parecia seguir a máxima — talvez maquiavélica — de Critilo, personagem das Cartas chilenas:

Não há, meu Doroteu, não há um chefe,

bem que perverso seja, que não finja

pela religião um justo zelo,

e, quando não o faça por virtude,

sempre, ao menos, o mostra por sistema.[130]

Da Carne à política, na sociedade mineradora da segunda metade do século percebem-se as presenças do Diabo e da dissimulação, num jogo em que o “ato” se “mostra por sistema”, ainda “que pervers[a] seja” a “potência” — e, neste jogo, delineiam-se os fundamentos da moralidade política e sexual. Carne e política encontravam-se imersas nas teias do Diabo, e, indo além do imaginário, vemos que ambas marcavam-se pela ocultação das contradições e conflitos que lhes eram intrínsecos, apreendidos em “hipótese de potência e não de ato”. Mas, na prática, tais tensões explodiam com toda a sua potência, transbordando em inúmeros atos. Eram contradições e conflitos, com potências e atos, engendrados no interior de uma sociedade colonial, escravocrata, patriarcal, racista e misógina, que, naquele momento, vivenciava a crise do Antigo Regime e de seu sistema de colonização, e posicionava-se perante essa crise. Tensões que, no campo político, culminavam em Inconfidência e, no campo da Carne, reproduziam-se, sem contudo abalar o sistema, em Incontinências.

[1] De acordo com Pero de Magalhães Gândavo, um dos nossos primeiros viajantes, Brasil fora o nome “que lhe deu o vulgo mal considerado”, em função da tinta do pau-brasil “ter semelhança a brasa”. No seu entender, urgia restituir o primeiro nome da terra, Província de Santa Cruz, para nesta parte magoarmos “o Demônio, que tanto trabalhou e trabalha para extinguir a memória da Santa Cruz e desterrá-la do coração dos homens” (Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil/História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1980, p. 80). Sobre isso, ver Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, São Paulo,Companhia das Letras, 1986.

[2] Tomás Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu, ed. crítica de Melânia Silva de Aguiar, Rio de Janeiro, Livraria Gamier, 1992, pp. 121-23.

[3] Os mineiros eram vistos como “gente do Diabo” por sua maledicência (Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, 21 ed., vol. I, Brasília-Belo Horizonte, Câmara dos Deputados-Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1980, p. 104 [Em seguida, Autos de devassa]).

[4] Segundo o Dicionário da língua portuguesa, composto pelo padre dom Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Antônio de Morais Silva (Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, t. ii, p. 21), “libertino” é “o que sacudiu o jugo da Revelação, e presume que a razão só pode guiar com certeza no que respeita a Deus, a vida futura” e “libertinagem”, “o vício de ser libertino, incrédulo, mal morigerado”. Tarquínio J. B. de Oliveira, em nota aos Autos de devassa (vol. ii, p. 135), esclarece que “libertino” era o amante da liberdade e “libertinagem”, a insubmissão às hierarquias sociais, não possuindo o termo o significado de baixa moralidade sexual.

[5] Do qual se dizia que, devido à participação na conspiração, “anda(va) doido e esta(va) endemoninhado” (Autos de devassa, vol. II, p. 477).

[6] O seu trabalho de divulgação da conjuração e o “diário” que utilizava para fazê-lo, referente ao levante da América inglesa, motivaram a seguinte manifestação de Simão Pires Sardinha: “Que

leve o diabo com o seu enredo, que por isso está aqui [no Rio de Janeiro] retido” (ibidem, vol. p. 308)

[7] O conjurado coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, ao ser conduzido à prisão, negou sua participação na Inconfidência e, ao mesmo tempo, qualificou-a como “diabruras” (ibidem, vol. p. 129).

[8] Assim o diziam Tomás Antônio Gonzaga e Tiradentes. Ambos o viam encarnado na pele do governador Luís da Cunha Menezes. Segundo as Cartas chilenas, o governador, cujo criptônimo é Fanfarrão Minésio, chegara a Santiago-Vila Rica no “dia fatal, em que se entende/ que andam no mundo soltos os diabos” (Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, in Poesias/Cartas chilenas — Obras completas, ed. crítica de M. Rodrigues Lapa, vol. I, Rio de Janeiro, Ministério da Educação-Instituto Nacional do Livro, 1957, p. 198). Tiradentes lamentara a substituição de Menezes por Barba-cena, afirmando que “antes ele [Barbacena] fosse um diabo, pior que Luís da Cunha [Menezes]; que se ele fosse diabo, mais depressa viriam estas Minas a ser governadas por uma República” (Autos de devassa, vol. v, p. 471).

[9] Os calundus eram superstições, feitiços e danças dos africanos, bastante frequentes na Bahia e que se generalizavam nas Minas do século xviii (Laura de Mello e Souza, 0 Diabo e a Terra de Santa Cruz, op. cit., pp. 263-65), compreendidos como feitos “por concurso supersticioso e diabólico, com intercessão de pacto implícito [com o demônio]” (AEAM. Registro de uma sentença de livramento do crime de condenação e degredo passada a favor de Hyvo Lopes e sua mulher Maria Cardoso. Juízo eclesiástico, 1748-1765, p. 37v.).

[10] Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, op. cit., p. 297.

[11] Numa de suas liras, Gonzaga afirma que Marília, os brutos ímpios e as feras comungam de uma mesma Lei da Natureza: “Todos amam, só Marília/ Desta Lei da Natureza/ Queria ter isenção?/ Se os peixes, Marília, geram/ Nos bravos mares e rios,/ Tudo efeitos de amor são./ Amam os brutos ímpios,/ A serpente venenosa/ A Onça, o Tigre, o Leão/ Todos amam: só Marília/ Desta Lei da Natureza/ Queria ter isenção?” (Tomás Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu, op. cit., p. 47). E tal Natureza, com N maiúsculo, segundo Sérgio Buarque de Holanda, não é um simples capricho erótico, correspondendo, na verdade, a uma “atmosfera dominante através de todo o século xvin, que impregna suas manifestações mais diversas e mesmo antitéticas, desde a plácida poesia e poética dos ‘pastores’ da Arcádia rediviva, até a Declaração dos Direitos do Homem […] ou ainda, ao lado oposto do Oceano, a da Independência dos Estados Unidos” (Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de literatura colonial, org., introd. e notas de Antônio Candido, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 198).

[12] Tais livrarias aparecem nos sequestros dos bens que constam dos Autos de devassa (vol. VI). Os sequestros dos bens dos inconfidentes, no entanto, reservam-nos a surpresa de não mencionarem os títulos e autores que compunham as livrarias de alguns deles, a saber, de Tomás Antônio Gonzaga e do tenente coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, sobre as quais apenas se diz o número de livros: 83, no caso do primeiro, e 84, no caso do segundo. Há, por fim, os casos de Tiradentes — para o qual os sequestros apontam a existência de quatro obras, sem especificar seus títulos e autores, e que provavelmente são aqueles indicados por várias testemunhas como sendo de sua propriedade — e do coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, conjurado que, segundo o sequestro, possuía apenas um livro (Autos de devassa, vol. vi, pp. 49, 58, 155 e 224). Limitaremos o nosso trabalho à análise das situações em que, de fato, os seque§tros oferecem elementos que caracterizam a existência e permitem uma reconstituição das livrarias, isto é, não nos deteremos nos casos do coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Tiradentes, Gonzaga e Freire de Andrada. As referências a livros pertencentes ao alferes encontram-se em ibidem, vol. I, pp. 189, 308; vol. II, pp. 218, 496. 0 livro pertencente ao coronel Francisco Lopes era um missal (ibidem, p. 155).

[13] A livraria do bispo é aquela que podemos reconstituir a partir do inventário feito após o falecimento do mesmo em 1793 (AEAM, Inventário de dom frei Domingos da Encarnação Pontével, 1793, armário 1, 41 gaveta, livro).

[14] Rubens Borba de Morals, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, Rio de Janeiro-São Paulo, Livros Técnicos e Científicos-Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1979, p. 51.

[15] Apresentava-se também como razão para a criação do novo tribunal a necessidade de se obter uma maior eficácia no combate da influência jesuítica no país, mas os historiadores não são unânimes em aceitá-la enquanto tal. Sobre isso, ver Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, Coimbra, Editora da Universidade de Coimbra, s. d., pp. 24-5, 30 e 57; e Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., p. 52.

[16] Uma lei, em 2/4/1768, suprimiu os Índices Expurgatórios e de proibições de livros oriundos do papado, e a Bula da Ceia que constituía sua base, tendo-se condicionado sua introdução no Reino de Portugal e seus Domínios à concessão do beneplácito real (lei de 2/4/1768, in Coleçam das leis, decretos, e alvarás que, compreende o feliz reinado d’el rey fidelíssimo d. José I, nosso senhor desde o anno de 1765 até 1770, s. p.).

[17] Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, op. cit.; e Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., pp. 52-3.

[18] Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, op. cit., pp. 47-50.

[19] Eduardo Frieiro, em seu estudo sobre a livraria do inconfidente cônego Luís Vieira da Silva, já salientou que o “espírito da revolta” — que presidia as sedições e os comportamentos dos libertinos — é o “espírito de Satã”, “o grande Doutor Herético” (Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do cônego. 21 ed. rev, e aum., Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1981, p. 22).

[20] Rubens Borba de Morals, Livros e bibliotecas no Brasil Colonial, op. cit., pp. 54-5.

[21] Idem, ibidem, pp. 54-5; e Leopoldo Collor Jobim, “0 Santo Ofício da Inquisição no Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”, Estudos Ibero-Americanos xiii (2): 195-213, dez. 1987, p. 197.

[22] Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., pp. 56-7; e Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, op. cit., p. 11.

[23] Leopoldo Collor Jobim, “0 Santo Ofício da Inquisição no Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”, op. cit., p. 209.

[24] Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, op. cit., p. 11.

[25] Idem, ibidem, p. 11; Leopoldo Collor Jobim, “0 Santo Ofício da Inquisição no Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”, op. cit., pp. 210-11; e Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., pp. 56-7.

[26] Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., p. 56.

[27] Idem, ibidem, p. 57; Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, op. cit., p. 48; e Leopoldo Collor Jobim, “0 Santo Ofício da Inquisição no Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”, op. cit., pp. 209-11.

[28] Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., p. 57.

[29] Leopoldo Collor Jobim “0 Santo Ofício da Inquisição no Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”,, op. cit., p. 210.

[30] “Edital da Mesa Censória sobre as profecias do Bandarra, de 10 de junho de 1768, e Vida do Sapateiro Santo”, in Coleçam das leis, decretos, e alvarás…, op. cit., s. p.

[31] Ver, por exemplo, as obras citadas no “Edital da Mesa Censória de 22 de dezembro de 1768”, na “Sentença da Real Mesa Censória de 23 de dezembro de 1768” e na “Sentença da Real Mesa Censória sobre o Sistema de Jacobea”, in Coleçam das leis, decretos, e alvarás…, op. cit., s. p.

[32] “Edital da Real Mesa Censória de 10 de novembro de 1768”, in Coleçam das leis, decretos, e alvarás…, op. cit., s. p. 0 termo licencioso, no início do século xvill, não possuía o mesmo significado de hoje. Atualmente, seja como adjetivo seja como substantivo, remete a um desregramento moral, a uma vida dissoluta (o Novo dicionário da lingua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, apresenta como um dos significados do termo licenciosa: “[…] que usa de excessiva licença; indisciplinado, desregrado”). Assim, no século xvm, inicialmente significava: “Que usa mal da liberdade. Que obra com demasiada soltura” (Rafael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino, vol. 5, Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1716, p. 121). Ao fim do século, por licencioso se entendia quase a mesma coisa: o “que excede o que é lícito, que se licencia das leis, e usa de liberdades, que elas não dão”. Licenciosamente, porém, correspondia a “com má licença, contra as regras de honestidade, e do decoro […] viver solta, desenfreadamente, sem haver quem tome por isso” (Dom Rafael Bluteau, Dicionário da língua portuguesa…, reformado e acrescentado por Antônio de Morais Silva, tomo ii, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 22). Portanto, o universo semântico de licencioso e licenciosamente recobria tanto a desobediência à lei, o abuso da liberdade quanto “um viver solto, desenfreadamente” — apenas neste último ponto, pois, coincidindo com o significado atual, mais limitado.

[33] “Edital da Real Mesa Censória de 6 de abril de 1769”, in Coleçam de leis, decretos, e alvarás…, op. cit., s. p.

[34] Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados, Rio de Janeiro, Campus, 1989, p. 202.

[35] “Edital da Real Mesa Censória de 6 de abril de 1769”, in Coleçam de leis, decretos, e alvarás…, op. cit., s. p.

[36] “Si acessus fiat violenter ad virginem non sagam, sed pudicam, E sanctam, quod rarissime evenit, nec nunquam hoc Deum permisse legimus”, apud ibidem, s. p. (Agradeço ao monsenhor Flávio Carneiro Rodrigues e aos professores Aldo E. Assir Sobral e Deisa Chamaum Chaves pela tradução dessa citação.)

[37] Ibidem, s. p.

[38] Rubens Borba de Morais, Livros e bibliotecas no Brasil colonial, op. cit., p. 59.

[39] Idem, ibidem, p. 59.

[40] “Denúncias que a Esta Inquisição enviou o Comissário Frei Feliz de Santa Thereza Nascentes…”, apud Leopoldo Collor Jobim, “0 Santo Ofício da Inquisição no Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”, op. cit., pp. 201-8.

[41] AEAM, Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, n? 696/04.

[42] Sílvio Gabriel Diniz, “Um livreiro em Vila Rica no meado do século xvm”, .kriterion, Belo Horizonte (47/48): 180-98, jan.-jun. 1959.

[43] Tarquínio José Barboza de Oliveira, “Notas”, in Autos de devassa, vol. II, pp. 229 e 282.

[44] Ibidem, vol. I, pp. 189-90, 308; vol. v, pp. 118-19, 223; e vol. viii, p. 253.

[45] Ibidem, vol. VI, pp. 31-2, 49, 85-92, 97-9, 155, 225, 324, 347-50, 386-87, 397, 428, 439-40.

[46] Nossa tentativa de identificação e classificação das obras esbarrou nas dificuldades criadas pela omissão, parcial ou total, nos sequestros e no inventário, ora de seus autores, ora de seus títulos e da língua em que foram escritas — isso sem contar os erros cometidos nas grafias dos mesmos. Procuramos identificar títulos e obras, bem como classificá-los por assuntos, tarefa essa que ainda julgamos inconclusa e para cuja execução buscamos socorro na bibliografia e, principalmente, num levantamento que fizemos do acervo da livraria episcopal de Mariana, que se encontra hoje no Palácio dos Bispos da mesma cidade, levantamento este que nos permitiu entrar em contato direto com muitas das obras que localizamos nos autos e inventário. Quanto à classificação, valemo-nos sobretudo do trabalho de Evelyne Picard (“Une bibliothèque conventuelle aux wine siècle: les théatins de Saint-Anne-La-Royale”, Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris (xxvn): 235-55, abr.-jun. 1979), sobre uma biblioteca conventual da França do século xvm, tendo recorrido ainda aos estudos de Robert Darnton (Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime, São Paulo, Companhia das Letras, 1987; Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 1992; e O grande massacre de gatos, 2 ed., Rio de Janeiro, Graal, 1986) e G. Berger (“Littérature et lecteurs à Grenoble aux xvile et xvme siècles”, Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris (xxxm): 114-32, jan.-mar. 1986).

[47] AEAM, Processo de Habilitação De Genere, Vitae e Moribus, 1751-1757, encadernado. Sobre a biografia de Cláudio, ver Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de literatura colonial, op. cit., pp. 231-38; e Kenneth Maxwell, A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira — Brasil e Portugal (1750-1808), 31 ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 117.

[48] Autos de devassa, vol. vi, pp. 97-9.

[49] AEAM, Livro de Contas do Seminário (1780-1802).

[50] A composição de lugar era um “prelúdio necessário das mediações religiosas e, ao cabo, da oração mental […] metodizada pelos tratados religiosos de fins do século xvi e começos do seguinte, particularmente os tratados dos jesuítas” (Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de literatura colonial, op. cit., p. 299).

[51] Kenneth Maxwel, A devassa da devassa, op. cit., p. 118.

[52] AEAM, Processo de colação do reverendo Carlos Correia de Toledo Mello como vigário da freguesia de Santo Antônio da Vila de São José, encadernado, armário 1, 31 prateleira.

[53] AEAM, Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, encadernado, armário 1, 3 gaveta.

[54] José Carlos Rodrigues, Ideias filosóficas e políticas em Minas Gerais no século XIX, Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1986, p. 31; e cônego Raymundo Trindade, Arquidiocese de Mariana, 21 ed., Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1953, vol. I, pp. 153-54.

[55] Cônego Raymundo Trindade, Arquidiocese de Mariana, op. cit., p. 154.

[56] José Carlos Rodrigues, Ideias filosóficas e políticas em Minas Gerais no século XIX, op. cit., pp. 47-8; Augustin Wernet, A Igreja paulista no século XIX, São Paulo, Ática, 1987, pp. 29-30; e Maria Adelaide Salvador Marques, A Real Mesa Censória e a cultura nacional, op. cit., pp. 7-8.

[57] Henri Bornecque & Daniel Mornet, Roma e os romanos: literatura, história e Antiguidade, ed. rev. e atualizada por A. Cordier. São Paulo, EPu-Edusp, 1976, p. 41.

[58] Autos de devassa, vol. II, p. 432.

[59] Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do cônego, op. cit., p. 26.

[60] José Carlos Rodrigues, Ideias filosóficas e políticas em Minas Gerais no século XIX, op. cit., pp. 51-5; e Augustin Wernet, op. cit., pp. 29-30.

[61] Augustin Wernet, A Igreja paulista no século XIX, op. cit., p. 30.

[62] Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do cônego, op. cit., pp. 44-5.

[63] Robert Darnton, Edição e sedição, op. cit., pp. 179-93, e Boemia literária e revolução, op. cit., pp. 143-48.

[64] Robert Darnton, Edição e sedição, op. cit., p. 189.

[65] Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do cônego, op. cit.

[66] Carlos Guilherme Mota, Ideias de revolução no Brasil (1789-1801): estudo das formas de pensamento, Petrópolis, Vozes, 1979, p. 80.

[67] M. Rodrigues Lapa, Vida e obra de Alvarenga Peixoto, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1960, pp. 9-32.

[68] Autos de devassa, vol. I, p. 198 e 254; vol. iv, p. 204; e vol. v, p. 437.

[69] Ibidem, vol. v, p. 467, e vol. II, p. 399.

[70] Ibidem, vol. vi, p. 397.

[71] Ibidem, vol. v, p. 553.

[72] Ibidem, vol. iv, p. 70.

[73] 0 cônego Raymundo Trindade, detendo-se no caso do cônego Luís Vieira da Silva, afirma que os “anjos” triunfaram sobre o demônio (São Francisco de Assis de Ouro Preto, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1951, P. 236).

[74] Tomás Antônio Gonzaga, Madlia de Dirceu, op. cit., p. 29.

[75] Maria Beatriz Nizza da Silva, Sistema de casamento no Brasil colonial, São Paulo, T. A. Queiroz-Edusp, 1984, p. 66.

[76] Idem, ibidem, pp. 69-70; e Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados, op. cit., p. 125.

[77] Sobre a relação entre o caráter colonial, escravocrata, patriarcal, racista e misógino da sociedade e a interferência das estruturas demográficas na configuração da moral sexual da Colônia, ver Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados, op. cit.; e Luiz Carlos Villalta, “A moral sexual dos inconfidentes: da potência ao ato, ou A última tentação de Gonzaga”, comunicação apresentada no seminário nacional Tiradentes: Mito, Cultura e História, realizado pela Secretaria da Cultura da Presidência da República e IBPC, em Ouro Preto, 1992.

[78] De acordo com a tabela de habitantes de Minas Gerais referente ao ano de 1776, havia 70 664 brancos, 82 110 pardos e 167 995 pretos, perfazendo a população negra e mestiça um total de 77,9% (Kenneth Maxwell, A devassa da devassa, op. cit., p. 302). Em 1786, a população branca atingia a cifra de 65 664 pessoas, a parda, 100 685 e a escrava, 196 498, totalizando as duas últimas 81,9% (Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, op. cit., pp. 141-42). Dentro de cada um desses grupos verificava-se um desequilíbrio na distribuição dos sexos: em 1776, os homens compunham 59% da população branca, 49,7% da população mulata e 70,2% da população escrava (Kenneth Maxwell, A devassa da devassa, op. cit., p. 302). Em 1786, 54,7% da população branca eram constituídos por homens e os restantes 45,3%, por mulheres.

[79] Charles R. Boxer, A mulher na expansão ultramarina ibérica (1415-1825), p. 136.

[80] Luiz Carlos Villalta, “Clero mineiro e estratégias familiares (1748-1800)”, comunicação apresentada no xvi Simpósio Nacional de História da ANPUH, realizado no Rio de Janeiro, em 1991.

[81] Nascido em 1747, na Vila do Príncipe, filho legítimo de um sargento-mor e familiar do Santo Ofício, Rolim era um dos mais afortunados inconfidentes, possuindo, em termos líquidos, o maior patrimônio. Vivia metido em negócios escusos, que iam da garimpagem em áreas proibidas à importação ilegal de escravos, passando pelo contrabando de diamantes. Rolim estudou nos seminários de Mariana e São Paulo, onde veio a se ordenar e ser motivo de atrito entre o capitão-general Lopo de Saldanha e o bispo, pois o primeiro o acusava de levar vida dissoluta. Sobre Rolim, ver AEAM, Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, armário 1, 3 prateleira, encadernado; Tarquí-nio J. B. O., “Notas”, in Autos de devassa, vol. ii, pp. 287-88; e Kenneth Maxwell, op. cit., pp. 89, 121.

[82] Autos de devassa, vol. v, p. 173.

[83] Ibidem, vol. iv, p. 46.

[84] José Caetano César Manitti, em seu “Estado das famílias dos réus, sequestrados em Vila Rica”, inclusos nos Autos de devassa (vol. in, p. 349), informa que, em 1791, o padre tinha “três ou quatro filhos de pouca idade”.

[85] Tais bens foram: “Alguns trastes de ouro e pedras, como eram: adereços, fivelas de ouro, cordões do mesmo metal, botões, anéis e outras mais coisas […] além de um escravo e uma escrava” (Autos de devassa, vol. vi, p. 299).

[86] Tarquínio J. B. de Oliveira, “Nota”, in Autos de devassa, vol. III, p. 349.

[87] Autos de devassa, vol. 1, p. 98.

[88] Ibidem, vol. t, p. 98.

[89] Ibidem, vol. II, p. 147.

[90] Ibidem, vol. HI, p. 346.

[91] Tarquínio J. B. de Oliveira, “Nota”, in Autos de devassa, vol. iii, pp. 346-47.

[92] José Caetano César Manitti, “Estado das famílias dos réus, sequestrados em Vila Rica”, op. cit., pp. 343-44.

[93] Autos de devassa, vol. v, p. 173.

[94] Diz-se que um coito é sacrílego quando um dos parceiros recebeu ordens religiosas.

[95] Essa genealogia de Inácio José de Alvarenga Peixoto foi elaborada a partir dos “Documentos justificativos” que integram o estudo de M. Rodrigues Lapa, Vida e obra de Alvarenga Peixoto, op. cit., pp. 79-300.

[96] Com isso não estamos querendo ressaltar, obviamente, um componente hereditário, genético, mas apenaS’ o partilhar de uma cultura familiar em que a ilegitimidade não era algo incomum.

[97] M. Rodrigues Lapa, Vida e obra de Alvarenga Peixoto, op. cit., p. 18.

[98] Idem, ibidem, pp. 24-5.

[99] Cf. Inácio José de Alvarenga Peixoto, “Eu vi a linda Jônia e, namorado”, in M. Rodrigues Lapa, Vida e obra de Alvarenga Peixoto, op. cit., p. 8.

[100] M. Rodrigues Lapa, Vida e obra de Alvarenga Peixoto, op. cit., p. 33.

[101] Idem, ibidem, p. 35.

[102] Idem, ibidem, p. 35.

[103] Idem, ibidem, vol. I, p. 134; e Sérgio Buarque de Holanda, Capítulos de literatura colonial, op. cit., p. 231.

[104] Seu depoimento nos Autos de devassa revela igualmente uma mentalidade “libertina”. Cf. Luiz Carlos Villalta, “A moral sexual dos inconfidentes”, op. cit.

[105] José Caetano César Manitti, “Estado das famílias dos réus, sequestrados em Vila Rica”, op. cit., p. 348.

[106] M. Rodrigues Lapa, “Prefácio”, in Tomás Antônio Gonzaga, Obras completas, op. cit., vol. I, pp. ix-xiv.

[107] Autores discordantes sobre a maneira como ela se deu, tais quais Almir de Oliveira, M. Rodrigues Lapa e Kenneth Maxwell, são unânimes quanto ao oportunismo de Gonzaga ou, no mínimo, quanto ao seu aguçado senso de oportunidade; M. Rodrigues Lapa, “Prefácio”, in Tomás Antônio Gonzaga, Obras completas, op. cit., vol. I, pp. xxiv-xxv; e Kenneth Maxwell, op. cit., pp. 147, 156, 168, 171-72. Sendo um dos ideólogos do movimento, engajando-se nele de uma maneira em que a discrição combinava-se com um calculismo extremo, deixou o oportunismo transparecer nas entrelinhas de duas das razões que apresentou para comprovar o seu não-envolvimento na conjura. Primeiro, o “estar despachado para desembargador da Bahia, e não ser de presumir, que quisesse perder este emprego útil e certo, por coisa incerta e menos útil, que se lhe pudesse oferecer”. Em segundo lugar, que os naturais da terra, que organizavam o movimento, não iriam querer dar-lhe cargos e ele “não se contentaria senão com os maiores”. Portanto, importavam a Gonzaga os cargos a serem ocupados, os quais só o interessariam se fossem os “certos”, “úteis” e, principalmente, os “maiores” (Autos de devassa, vol. v, pp. 208-10).

[108] Autos de devassa, vol. v, p. 222.

[109] Ronald Polito, “A persistência das ideias e das formas: um estudo sobre a obra de Tomás Antônio Gonzaga”, dissertação de mestrado, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1990, pp. 40, 135-36; e Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, op. cit., p. 297.

[110] Ronald Polito, A persistência das ideias e das formas, op. cit., p. 152.

[111] Idem, ibidem, p. 144.

[112] Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, op. cit., p. 297.

[113] Idem, ibidem, pp. 244, 294-96; e Ronald Polito, A persistência das ideias e das formas, op. cit., pp. 144-45.

[114] Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, op. cit., p. 303.

[115] Idem, Marília de Dirceu, op. cit., p. 47.

[116] De uma burguesia entendida no sentido tradicional do termo, isto é, que tem seu cerne nos funcionários da administração feudal (Ronald Polito, A persistência das ideias e das formas, op. cit., pp. 160-70).

[117] Ronald Polito, A persistência das ideias e das formas, op. cit., pp. 160-70.

[118] Discutimos a relação entre “velhos” e “novos” padrões de apreensão da mulher de maneira mais aprofundada em “A moral sexual dos inconfidentes…”, op. cit.

[119] M. Rodrigues Lapa, “Prefácio”, in Tomás Antônio Gonzaga, Obras completas, op. cit., vol. I, pp. xv-xvii.

[120] Eduardo Frieiro, Q diabo na livraria do cônego, op. cit., p. 80.

[121] Tarquínio J. B. de Oliveira, apud Melânia Silva de Aguiar, in Tomás Antônio Gonzaga, Manuha de Dirceu, op. cit., p. 30, n. 5.

[122] Este era o termo empregado para designar as crianças abandonadas, enfim, crianças enjeitadas.

[123] AEAM. Processo de habilitação de genere, vitae et moribus, n? 345.

[124] Ibidem.

[125] Ibidem.

[126] Ibidem.

[127] Ibidem.

[128] São estas as palavras de Domingos José: “Tive uma filha natural de nome Libânia Rosa das Virgens, havida de pessoa desimpedida, a qual comprei e passei carta de liberdade e como tal a instituo minha legítima e universal herdeira […] e lhe recomendo que se conserve sempre na companhia de Dona Feliciana Rosa da Conceição, na observância da Lei e Santo Temor de Deus” (Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, Inventário e testamento do padre Domingos da Encarnação Pon-tével (1829), 2° ofício, códice 50, auto 1139, p. 9). Domingos, portanto, relacionou-se com uma escrava, mulher solteira, do que resultou o nascimento de Libânia, logo comprada e alforriada.

[129] Tomás Antônio Gonzaga, Cartas chilenas, op. cit., pp. 299-300.

[130] Idem, ibidem, p. 315. Maquiavel afirma que o príncipe deve, “de um lado, parecer e ser efetivamente piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e de outro, ter o ânimo de, sendo obrigado pelas circunstâncias a não o ser, tornar-se o contrário […] O príncipe deve, no entanto, ter muito cuidado em não deixar escapar da boca expressões que não revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião. Não há qualidade de que mais se careça do que esta última” (Niccolò Machiavelli, O príncipe, Rio de Janeiro, Ediouro, s. d., p. 113).

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