1992

O entusiasmo, o teatro e a revolução

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

Durante a Revolução francesa, o teatro sai das salas privilegiadas para ganhar as ruas. Os discursos se casam com uma nova linguagem teatral. Um ator até então pouco conhecido, Talma, cria uma arte ardente e despojada que lembra a dos bufões de Shakespeare, contra a declamação e o comedimento clássicos. Nessa época também adquire importância a grande frase, como as criadas por Rousseau (“O homem nasce livre e em toda parte está a ferros”, por exemplo), e escapa-se da banalidade por uma ideia da história. A glória não é mais solene, ela supõe agora o entusiasmo. Mas é isso que Marx vai criticar, em 1852, no seu Dezoito brumário. Segundo ele, a tragédia se repete como comédia, os políticos se autoenganam ao imitar o passado e ao identificar o povo a uma torrente (imagem de Michelet), quando o povo só existe na luta. Não há transcendência para compreender a vida social e a revolução socialista exige um constante autoexame. Só a razão liberta. (O romance do século XIX também examina o desencanto do mundo, e o que mata a Emma Bovary de Flaubert é o abismo entre o que ela imita e o tédio de sua vida real.) Mas é possível uma política sem retórica e uma revolução sem entusiasmo? A democracia está sempre sujeita a manipulações e o melhor meio de combatê-las talvez seja o riso, a paródia, como o fez Brecht (“Infeliz o país que necessita de heróis”, ele escreve em Galileu Galilei). Pois o efeito do riso é desmascarador. E uma revolução será tanto mais ditatorial quanto mais séria se mostrar.

 


Tentaremos examinar como na época da Revolução Francesa se conjugaram uma ideia de um novo tipo de representação teatral e um novo tipo de atuação política, nos quais o entusiasmo desempenhou papel importante, para depois ver como esses dois estilos vieram a ser criticados por Marx, no Dezoito brumário — o que nos permitirá concluir levantando algumas questões relativas à teatralização do político.
Comecemos por um episódio bem conhecido, mas que convém rememorar. Em 12 de julho de 1789, corre como pólvora, pela cidade de Paris, a notícia de que Necker, o banqueiro suíço e protestante em cujo nome se depositam as esperanças de uma renovação da França, acaba de ser demitido pelo rei, o que representa a vitória clara e nítida das forças mais conservadoras, capitaneadas por seu irmão, o conde d’Artois. À tarde, uma multidão se aglomera no pátio do Palais-Royal, lugar de encontros sociais e de agitação política.

Foi ali que Camille Desmoulins, ator desempregado, conclamou-o a se revoltar: pulou em cima de uma mesa e gritou: “Cidadãos, sabeis que a nação pediu que Necker continuasse no ministério e ele acaba de ser despedido. Será possível provocar-vos de maneira mais insolente? Depois disso, eles não terão mais limites para sua ousadia e, para hoje mesmo à noite, quem sabe não tramam um São Bartolomeu dos patriotas!”. Desmoulins instou os que o ouviam a tomar em armas contra as tropas estrangeiras que cercavam a capital e, como sinal de união, pôs na lapela uma folha que tirou de uma árvore do jardim. Sem demora todas as árvores perderam as folhas. Um daqueles que o ouviam, um certo Maret, autor dramático a serviço do teatro do Beaujolais, bradou então: “Que tudo o que é mostra de júbilo cesse, até que se limpe o solo francês dos soldados estrangeiros que nos ameaçam. Cessemos os bailes, cessemos os espetáculos, fechemos os teatros!”. A multidão se dispersou aos gritos de “às armas!”, enquanto Maret se dirigia pessoalmente ao Beaujolais para impor o respeito do que fora decidido.[1]

Esta passagem é notável pela teatralidade que exibe. Até então, a Revolução já dera pelo menos dois momentos de enorme vigor cênico e visual. O primeiro foi o Juramento do Jogo da Péla, quando, no dia 20 de junho, estando fechada por ordem real a sala de sessões daquela que se proclamara a Assembleia Nacional, os deputados se reuniram numa sala de jogos e prestaram o juramento de não se separarem antes de darem uma Constituição à França. O segundo foi três dias depois, quando Luís XVI, vendo que os constituintes do Terceiro Estado, a quem alguns representantes da nobreza e do clero se haviam aliado, não desistiam de seus intentos de enfrentar o despotismo e o feudalismo, realizou uma sessão real, na qual declarou nulas as decisões do Terceiro e mandou os deputados voltarem a se reunir em câmaras separadas; ao terminar a sessão, como os Comuns (o nome que naqueles primeiros dias haviam assumido os representantes do Terceiro) continuassem “sentados, tranquilos, em silêncio”,[2] o mestre de cerimônias veio insistir junto a seu presidente para que eles se dispersassem. É então que Mirabeau, o conde que a nobreza repudiava, que fora eleito pelos plebeus, responde “com sua voz forte, imponente, com uma terrível majestade” ao sr. de Brézé:

Nós ouvimos as intenções que foram sugeridas ao rei; e vós, cavalheiro, que não poderíeis ser seu porta-voz [organe] junto à Assembleia Nacional, vós que não tendes aqui assento, nem voz, nem direito de falar, não estais destinado a nos lembrar seu discurso… Ide dizer àqueles que vos enviam que estamos aqui pela vontade do povo, e que daqui só nos arrancarão pelo poder das baionetas.

Brézé, aterrado, “sentiu a nova realeza, e rendendo a esta o que a etiqueta ordenava para a outra, saiu recuando, como se fazia diante do rei”.[3] São dois momentos formidáveis. No primeiro, que David em poucos anos saberá converter em imagem, são os representantes da plebe, que poucos dias antes haviam sido humilhados pelo formato de procissão que se dera à sessão de instalação dos Estados-Gerais — nobreza e clero entrando com o luxo e esplendor que faziam das duas ordens privilegiadas as pares do rei, o Terceiro vestido de preto por determinação de um cerimonial que repetia o de começos do século XVII[4] —, são os representantes da plebe que se proclamam povo e, mais que isso, nação. Fazem-se unânimes — ou quase: no quadro de David, que ficou inacabado, um único deputado está de braços cruzados, sentado, recusando a nova ordem, recusando-se a desafiar o regime que rapidamente se torna antigo, enquanto todos, à sua volta, se inebriam de patriotismo e coragem. No segundo momento, enquanto os deputados constituintes se calam, embora “tranquilos”, e seu presidente com eles, Mirabeau tem seu momento de glória, ele que até então não era muito mais que um nobre renegado por sua ordem. Notemos a referência a sua voz forte e imponente, à majestade que impõe terror, à nova realeza, a do povo, que aniquila o efeito que poderiam ter as palavras do rei — o qual, por sua vez, diz Mirabeau e reitera Michelet, nada fizera além de repetir o que lhe ordenara o partido conservador que mandava na corte. O episódio impõe-se aos olhos e faz-se, assim, teatral. Mas tudo isso se dá em Versalhes, a capital artificial, construída contra a Paris da Fronda, a cidade que se resume na corte, sem ter público a não ser o dos próprios participantes dos acontecimentos.

Outra coisa é quando Paris se torna o teatro da agitação: e não é casual que o primeiro a tomar da palavra seja um jovem ator, ainda por cima sem emprego. Com efeito, o teatro estava sujeito a regulamentos bastante severos, que reservavam à Comédie Française o melhor dos textos dramáticos e organizavam as troupes como corporações, submetendo assim o espetáculo à mesma ordem dos privilégios que se tornara odiosa a quase toda a sociedade. Camille, que conta 29 anos e teve uma formação de advogado, apesar de uma leve tendência à gagueira, torna-se conhecido como orador neste dia e começa uma carreira que, embora rápida (Robespierre o manda guilhotinar em 5 de abril de 1794, junto com Danton), é fulgurante. O fato de ser definido como “ator desempregado” e não por sua formação intelectual e profissional mostra bem como o teatro marca a oratória revolucionária,[5] e, ao mesmo tempo, como será atravessado pelos conflitos políticos, que oporão no seu interior a exigência de liberdade aos privilégios que faziam da Comédie Française e de algumas outras companhias veículos de propaganda do poder.
Suas palavras são, ao que sabemos, curtas e veementes; tão importante quanto elas é que ao proferi-las rompa com os costumes aceitos, com o bom-tom e o bom gosto imperantes, e que a seu modo, tal como Mirabeau duas semanas antes destituíra a etiqueta da corte em favor da nova etiqueta e da nova soberania, a da nação, também institua um novo modo de expressão, o que faz saltando sobre uma mesa, que converte em palco. E que, além disso, torne em imagem o que era palavra. Conclama o povo a tomar em armas contra os regimentos de mercenários que, por ordem do partido austríaco, o da rainha, o do conde d’Artois — o que é pelo discurso pedir a eficácia — mas o que dá força a sua arenga é a imagem, o “sinal de união” que consiste em arrancar uma folha da árvore mais próxima, preparando assim uma das imagens mais fortes da Revolução, a da árvore da liberdade. Isto resulta, por sua vez, no rápido desfolhamento de todas as árvores do pátio do Palais-Royal: elas, nuas, o povo, ostentando folhas na lapela, passam a visualizar de maneiras opostas, porém simétricas, um mesmo fato, o de uma revolução.
E, finalmente, esta interrompe tudo o que é réjouissance. É um autor dramático, pouco conhecido, “um certo Maret” ou Manet,[6] quem propõe a supressão de todas as festividades, bailes, espetáculos, teatros. Não se trata de um luto real, porém, como até então sucedia quando se proibia a alegria pública, mas — se assim podemos dizer — de um luto do novo soberano, o povo; ou, melhor dizendo, do povo que vai lutar. Enquanto se procuram armas, a linguagem teatral sai das salas das companhias privilegiadas para ganhar as ruas.
Um romance de capa e espada, Scaramouche, de Rafael Sabatini, vai na mesma direção. O personagem-título, advogado perseguido em sua província, para escapar à lei, melhor dizendo, ao privilégio nobiliárquico, faz-se ator numa companhia de commedia dell ‘arte, um dos gêneros menos nobres da profissão teatral, a um passo dos saltimbancos, a um passo da proibição do uso da palavra e do recurso autorizado apenas ao gesto e à pantomima. E mal começa a revolução, ele recupera a palavra como agitador, reforçando-a com a linguagem dos gestos que aprendeu no palco popular.[7] 
Assim, se no Terceiro Estado mais de metade dos deputados se constitui de advogados, homens da palavra, este discurso se torna mesmo eficaz é quando se casa com uma nova linguagem teatral, a que apela com maior força às paixões do povo. Isto se pode notar bem quando se examinam os conflitos que o teatro vai viver nos meses que se seguem.

A 19 de agosto de 1789, a Comédie Française — que tenta fazer sua corte aos novos tempos — apresenta uma peça anticlerical, ou melhor, antimonástica, Ericie,[8] quando ocorre uma manifestação exigindo que se represente a “tragédia nacional” escrita por Marie-Joseph Chénier, Carlos IX. Esta, finalmente, estreia a 4 de novembro: o rei Carlos aparece como fraco e irresoluto, sendo convencido pelo partido dos Guise a promover o massacre dos protestantes conhecido como a Noite de São Bartolomeu, em 1572. Talvez fosse inédito exibir em cena uma crítica tão severa a um rei francês; mas, ainda que não o fosse, o fato se casava muito bem com os ânimos revolucionários, de modo que não havia como o público se enganar quanto ao sentido contestador da peça. Tanto foi que um dos principais membros da Comédie, Saint-Fal, recusou o papel-título, que coube a um novo ator da companhia, até então conhecido apenas por pequenos papéis, François-Joseph Talma, destinado desde então ao maior sucesso. Seu colega Fleury, a despeito das divergências que os separam quanto à política e quanto à arte dramática, reconhece-se impressionado pela arte do rapaz (que tinha apenas 26 anos):

Devo confessar que não esperávamos que ele produzisse um tal efeito. Quando, consumido de remorsos, o rosto escondido nas dobras do manto real, ele subitamente se ergueu ao ouvir a maldição que lhe era lançada e, tremendo ante o olhar do homem que a proferia, teve um movimento sublime de recuo, como que para repelir as gotas de sangue de suas vítimas que o salpicavam, sua arte [feu] sublime cortou-nos a todos a respiração.[9]

A arte de Talma é ardente, ao contrário da de seus colegas da Comédie, que continuam a representar de maneira comedida, que soa agora fria e artificial; o estilo de Larive, por exemplo, tão celebrado apenas dois anos antes, agora já parece velho, antiquado.[10] Talma representa Carlos IX recordando-se dos bufões de Shakespeare, o que significa romper com o classicismo, que na França repudiava o tom popular e por vezes excessivo do inglês; não é casual que daqui a poucas décadas Stendhal faça um manifesto do novo teatro optando, decididamente, por Shakespeare, contra Racine.[11] Amigo de David, Talma opta também por um figurino simplificado, mais fiel à época em que tenham vivido as personagens que representa, a começar pelos romanos. Quando representa um tribuno, no Brutus de Voltaire, seu costume é desenhado por David, copiando o traje que o ator francês vira no palco londrino, portado por Macklin. Usa assim uma toga simples, a contrastar com seus colegas que, trajando ricas vestes de seda e perucas tradicionais, ficam estupefatos; uma atriz, Louise Contat, chega a exclamar: “Meu Deus, ele parece uma estátua!”. Embora essa reação fosse crítica e não elogiosa, porque mlle. Contat e os outros tentam dissuadi-lo (sem sucesso) de entrar em cena, ela expressa muito bem a medida do êxito que terá Talma, porque numa época que recupera a referência antiga, em que o neoclássico se difunde pelas artes, em que Roma inspira tanto a estética quanto o sentimento político republicano, “parecer uma estátua” se tornará algo positivo: há de conferir ao artista a grandeza da personagem histórica, que deixa de se inspirar no aristocrata contemporâneo, nas roupas e modos de salão, para voltar-se à Antiguidade e a sua nobreza despojada e austera. A despeito das reações de seus colegas (mme. Vestris, que contracena com Talma em Brutus, chama-o de “porco” porque como os romanos ele tem os braços nus e não usa culotes), a nova moda se impõe e em poucos anos é preciso aceitá-la.
Mais que isso, Talma terá sucesso político. É amigo, dissemos, de David, o pintor que, eleito para a Convenção, votou a condenação de Luís XVI à morte. Inscreve-se nos registros públicos como “burguês”, recusando assim o estatuto discriminado do ator, deixando pois de ser membro de uma corporação, para se tornar cidadão; e esse gesto pessoal combina bastante bem com a opção política que consiste em representar papéis de sentido mais político. Conhecerá alguma dificuldade sob o Terror, quando seus amigos girondinos são guilhotinados, mas conseguirá sobreviver — embora, após a queda de Robespierre, volte a sofrer dissabores, sendo desta vez acusado de colaborar com os dirigentes do Terror. Seu sucesso definitivo data do longo governo de Bonaparte, embora não se deva a este, porque se tratou de um sucesso de público. Teria ensinado dicção e impostação de voz ao futuro imperador; segundo os realistas, até mesmo o teria ensaiado a subir ao trono; isso parece ser falso, mas de todo modo havia uma semelhança impressionante entre os dois, em certos momentos: Stendhal diz que Talma representou Sila, em 1821, “assemelha(ndo)-se a Napoleão de maneira impressionante”, e que na raiva do imperador “seus atos e gestos se assemelhavam muito aos de Talma”.[12] Conta-se que ambos falavam longamente sobre Corneille, ou seja, sobre como a ideia de realeza aparecia no teatro. Sempre segundo Stendhal,

um dia de 1808, Napoleão conversava com Talma nas Tulherias, enquanto várias augustas personagens aguardavam a vez de falar ao Imperador. Tão logo percebeu esse fato, Talma quis retirar-se, mas Napoleão impediu-o, dizendo: “Não, não, que eles esperem”. No curso dessa conversa, que o próprio Talma depois relatou, o Imperador o aconselhou a fazer sua arte [son jeu] o mais simples possível.

“Neste palácio”, disse-lhe, “vedes reis que vieram pedir-me a restauração de seus Estados, e grandes capitães que vieram pedir-me tronos. A minha volta se agitam a ambição e outras paixões violentas. Vejo aqui homens dispostos a servir a quem detestam, e jovens princesas que me suplicam lhes devolva seus amantes, de quem as separei. São personagens trágicas, não é? E talvez seja eu a mais trágica de todas essas personagens. No entanto, não nos vereis erguer constantemente a voz, nem fazer gestos violentos. Mantemos a calma, salvo naqueles momentos em que nos agita a paixão, e tais momentos são sempre de curta duração. A força natural do homem não lhe permitiria conservar-se duas horas seguidas num estado assim passional; aliás, quando o homem está tomado por uma paixão violenta, tem menos força que de hábito.”[13]

Evidentemente, o juízo que Stendhal pode emitir sobre Talma — embora seu admirador — está marcado por um tempo aos olhos do qual, curiosamente, o trágico revolucionário aparece como exprimindo uma arte já superada, a da “tragédia empertigada”.[14] Seria preciso considerar toda essa complexidade, pela qual, contra a declamação e comedimento do teatro do Antigo Regime, Talma deu curso a uma representação de sentimentos animados, aprendendo todavia a limitar a exaltação mais enfática, nisso acolhendo a sugestão imperial; aqui, porém, o que nos importa é que por volta de 1789 se libere esse entusiasmo, esse pathos, ainda que daí a trinta ou quarenta anos tais modos se tenham convertido em história, em passado.
Assim, com Talma se expressa muito bem a abertura para uma representação mais voltada à emoção, que por sua vez convém à retórica da Revolução Francesa, à sua oratória exaltada como no quadro de David O Juramento do Jogo da Péla, com o papel que a eloquência e o gesto grandioso desempenharão no convívio dos políticos e das massas. Aliás, podemos acrescentar que a Revolução Francesa é o momento em que a grande frase se reveste de importância. Um discurso político se mostra tanto mais eficaz quanto mais for capaz de ter frases que galvanizem os espíritos e possam ser repetidas com facilidade. Ora, estas expressões curtas e fortes que arrebatam o ouvinte se encontram raramente, na modernidade, antes do século XVIII. Talvez tenha sido Rousseau o primeiro filósofo a fazer uso intenso desse recurso de linguagem, o primeiro pensador a cunhar algumas poucas dezenas de “palavras de ordem”, que facilmente podemos imaginar entusiasmando as multidões: “O homem nasce livre, e em toda a parte está a ferros”, “O homem é bom e a sociedade o corrompe”.[15] Em poucas décadas, esse modo de expressar-se, que se valida como verdadeiro na medida em que remete ao coração, ao pathos, constituirá uma oratória política que demonstrará eficácia na medida em que conseguir ser sintética e apelar à imaginação.
O entusiasmo nos proporciona uma ruptura com a banalidade do cotidiano. Contudo, o banal pode ser rompido de duas distintas maneiras: ao modo do Antigo Regime, ou ao da Revolução. Antes de 1789, ele se vencia mediante a exaltação do Rei, sua quase-divinização. Sai-se assim do tempo fraco do cotidiano para ingressar-se num tempo forte que é o da glória e — palavra-chave em nosso contexto — do solene. Jorge Coli bem o mostra, em sua bela análise da estátua do marechal de Saxe, indicando como cada figura designa um atributo da personagem, e pela sua conjunção este se alça a uma glória que supera o efêmero, o transitório, o contingente. O indivíduo mortal exalta-se no renome da raça, ou seja, do sangue azul, que corre nas veias da família real ou da alta nobreza.
Já na Revolução, escapa-se da banalidade do cotidiano por uma ideia de história. Não podemos esquecer a frase de Goethe que, assistindo à batalha de Valmy do lado alemão, em 1792, diz que esse dia começou uma nova era: que ele marcou uma profunda mutação histórica. Assim se vai consagrar uma ideia de história como cena ou palco das novidades. Se subsiste uma ideia de glória, esta já não é solene: a glória que se almeja nas campanhas revolucionárias e nas guerras napoleônicas será a do indivíduo e a da Nação, que firmam forte e sólida aliança, e não mais a glória de uma dinastia, real ou ducal.

Não se pode falar em glória sem se evocar, ainda que cursivamente, o que no Antigo Regime constituía o caráter teatral de sua política, por sinal muito bem-sucedida. Quando Luís XIV sobe efetivamente ao trono, em 1660, constata — ele que passou a infância tendo que enfrentar revoltas dos grandes e dos médios — que, para conter o ímpeto crítico e eventualmente rebelde de seu povo, um instrumento privilegiado, embora não o único, estará numa teatralização da realeza, o que significa constituir uma espécie de liturgia em torno do Rei. Havia duzentos anos que se praticava uma liturgia e uma etiqueta à volta dos príncipes, na Borgonha e Espanha, mas a novidade de Luís XIV esteve em torná-la atraente, se não agradável. Da contemplação do Rei assim se fez um espetáculo, até nas refeições, até em seu levantar-se e deitar-se. Essa espetacularização da realeza constituiu uma eficaz economia do desejo, que incidia sobre as paixões humanas. Seu objetivo se desdobrava em duas faces: primeira, conter o espírito crítico dos franceses, segunda, apostar na vaidade e no medo do ridículo. A economia está em usar da vaidade e do receio do ridículo, paixões consideradas especificamente francesas, contra o espírito crítico, traço que também se dizia extraordinariamente francês. O essencial é que essas regras dão prazer: fórmula bastante precisa, porque mostra como se articulam dois registros que para nós tendem a separar-se, o de uma sociedade precisamente regulada, o de uma vida de prazeres que nela se produz.

Isto bem se vê numa das grandes contribuições da França para a cultura, a arte da conversação: afirma Stendhal, e confirma Taine, que pessoas que ficavam dez horas por dia face a face em torno do Rei tinham de encontrar algum assunto para conversar, senão morreriam de tédio.[16] Isso faz desenvolver-se toda uma arte da conversa brilhante, que terá em Casanova, no século XVIII, um de seus mais notáveis expoentes. Mas a glória e seus referenciais entram em crise quase às vésperas da Revolução Francesa. Nas palavras de um nobre a Luís XVI: “Majestade, à frente de Luís XIV ninguém se atrevia a falar; diante de Luís XV, falava-se a voz baixa; mas na presença de Vossa Majestade já se fala em voz alta” (ou seja, o respeito todo se esvaneceu). Da mesma forma, a camareira de Maria Antonieta, mme. Campan, afirma em suas memórias que a causa da Revolução Francesa terá sido que a Rainha não sabia para que servia a etiqueta — isto é, para impor respeito ao público — e valorizava a vida privada, preferindo receber os amigos no Petit Trianon às grandes cerimônias de aparato; assim foi que a França perdeu o respeito devido a seus monarcas e veio essa coisa terrível: a Revolução.
Por esta rápida passagem pela teatralização do Antigo Regime pode-se entender a importância que adquire, no momento da Revolução, a energia. Stendhal, no começo da Cartuxa de Parma, narra a tomada de Milão pelas tropas de Bonaparte em 1795, e diz que um século e meio de dominação espanhola havia privado por completo esse povo de seu vigor. Não se enfrentava o governo e os costumes eram do maior conformismo, a ponto, quando uma moça se casava, de que a família do marido praticamente lhe designasse o amante. Ora, nesse mundo assim formal a entrada dos franceses representa enorme ruptura. Dizia-se que nesse exército o homem mais velho era o general Bonaparte, que tinha 27 anos: uma força militar assim jovem contrastava com a velharia austríaca ou espanhola que governava Milão. É como se a própria vida desse cabo do que se tornou cristalizado, envelhecido, morto.

Marx, em princípios de 1852, ou seja, pouco depois do golpe de Estado que a 2 de dezembro de 1851 pôs termo na França à Segunda República e lançou as bases do Segundo Império, publica numa revista de língua alemã, editada em Nova York, seu Dezoito brumário de Luís Bonaparte.[17] Marx começa falando daqueles que querem repetir a história, aludindo aos políticos, sobretudo republicanos moderados, que agiram na história absolutamente recente da França como se vivessem uma reedição da Revolução de 1789, e por isso mesmo se mostraram incapazes de fazer frente à onda conservadora, que culminou na tomada de poder pelo futuro Napoleão III. Sua primeira crítica, pois, dirige-se à imitação, à repetição, que jamais poderão servir a quem deseja instituir o novo, isto é, o socialismo. E, a este propósito, critica também o entusiasmo. As revoluções burguesas, afirma, caracterizam-se pelo entusiasmo — melhor dizendo, pela Leidenschaft, pelo pathos; os seus partícipes vivem num alto grau de excitação, como se tivessem por realidade a da grande tragédia histórica: sucede de um se imaginar Robespierre, outro, Napoleão, outro, ainda, Danton; mas, como a História não se repete, e ademais esses atores se revelam medíocres, até porque em vez de procurarem um papel novo copiam o dos tempos idos, a reconstituição do passado entusiasmado apenas ilude os homens, e a revolução burguesa se mostra mais limitada em seu alcance do que deveria ser. Contra essa configuração, defende Marx a ideia de uma revolução socialista (que ele considera iminente), a qual, para ter condições de instaurar o novo, precisa eliminar o auto-engano. Para não repetir o passado, ela deve assim proceder a uma severa crítica do entusiasmo, e por esta razão veremos Marx criticando o traço que apontamos como saliente na Revolução Francesa.

Se o que diferencia uma Revolução de outra é a capacidade de produzir o novo, para propor a revolução proletária o Dezoito brumário terá de efetuar um completo ajuste de contas com a imaginação — que Marx pensa, assim como os pensadores do século XVII e XVIII, como um dos maiores entraves à liberdade de nossa ação. Dois séculos antes, Thomas Hobbes, por exemplo, entendia que o controle do clero sobre as imaginações constituía um dos maiores obstáculos para que os homens acedessem à paz e mesmo à felicidade.[18] Marx prolongará essa linha de crítica à imaginação escravizante ao dizer que os homens são esmagados pelo peso de sua memória, peso este que é constantemente reproduzido, num sobredimensionamento da retórica. E já a retórica aparece nesse texto de Marx em duas famílias de imagens, de um lado religiosas, de outro lado teatrais, mas nos dois casos constituindo aquilo que engana os homens. Os homens só poderão ser livres, se libertarem a mente; e penso que não há texto em que Marx tenha sido tão iluminista como no Dezoito brumário, com sua ideia de que a Revolução depende do conhecer.

O modelo da paixão revolucionária está em 1789, quando os revolucionários vivem em estado permanente de êxtase, com sua ação indo célere de sucesso em sucesso, com os acontecimentos investidos de efeitos dramáticos: [19] isso define um ritmo veloz, que é o da Revolução. É esta a percepção que tem a burguesia do fenômeno revolucionário de que ela participa, e que se caracteriza pela facilidade com que a história se realiza, ou pela sensação de que os acontecimentos sejam carregados por uma força superior à consciência e às ações humanas. É possível que Marx, ao apontar esses traços, tivesse em mente Michelet, o grande historiador republicano do movimento revolucionário,[20] que encerra o livro III de sua História da Revolução Francesa com a Festa da Federação, celebrada a 14 de julho de 1790: nesta se comemora o aniversário da Bastilha como o momento que proporciona entre os homens a maior comunhão possível. Dos três lemas revolucionários, o mais “social”, a fraternidade, assim relega todos os vínculos de classe, e mesmo os nomes de esquerda e direita, à esfera do factício, do superficial, do que afasta seres que por natureza tendem a se unir. Mais tarde, essas determinações sociais e políticas, particularistas, centrífugas, voltarão a pesar, mas por um momento, quando se divisava a possibilidade de um mundo novo, perfeito, elas perderam esse corrosivo poder de divisão. E isto se deu graças ao sentimento, que abria um mundo sem o egoísmo da vida burguesa e que permitia aceder àquela transparência das relações que Rousseau propusera.
Por um instante, no povo se manifestou a força da natureza, da verdade: a Revolução assim constitui um momento terminal da história, melhor dizendo, seu esvaziamento, porque nela o efêmero, o frágil cede lugar ao verdadeiro, nela se efetua a revelação, e que revelação: uma que tem tudo de sagrado, de epifania. Os philosophes do século XVIII haviam dado à natureza um valor de verdade, mas como parâmetro — porém, aqui, ela se reveste de sentido mais preciso e, sobretudo, possui um canal necessário pelo qual se exprime, o povo. Isto permite, aliás, entender adequadamente a História da Revolução de Michelet, naquilo em que a olhos atuais ela parece mais ingênua. Contra as forças terríveis que ameaçam a França, contra seus inimigos externos e internos, será vã a ação dos líderes, quer corruptos, como Mirabeau, quer puros mas ineficientes, como os girondinos — vã, igualmente, parece ser a ação de um povo que confia em seus governantes, demorando a perceber que o rei o engana, que a nobreza faz a guerra à liberdade e à emancipação. Todavia, é essa ingenuidade que constitui o povo enquanto figura máxima, capaz de triunfar de todos os obstáculos: teremos um heroísmo sem herois, a que não faltam façanhas, devoção, martírio mesmo, mas todos estes operados por uma única e grande figura, o povo, constantemente identificado a uma torrente, a uma força da natureza que tudo vence, e cuja grandeza se mede na razão direta do anonimato de cada um de seus componentes,[21] o que rompe por completo com a ideia que no Antigo Regime se podia ter da glória.
Aqui estaria a falha maior, a olhos marxistas, da história romântica: o povo não pode ser apresentado como uma encarnação do verbo, quer divino quer natural, como Cristo feito homem. O povo só existe na luta, não como um instrumento de uma verdade que transcenda este mundo. Assim, a principal crítica que Marx poderia dirigir à mais importante história republicana da revolução diria respeito a sua religiosidade. Em Michelet — e não é à toa que os capítulos que tratam da Festa da Federação recebem por título “Da nova religião” —, há algo de profundamente religioso, na convicção de que o povo e a natureza portam a verdade. Já em Marx, o sentido do famoso ateísmo, que se expressa em frases como “a religião é o ópio do povo”, consiste em negar o pressuposto da transcendência como chave para compreender a vida social. Esta pode conceber-se como comunhão, e neste caso todo conflito haverá de ser corrosivo e dilacerador, ao mesmo tempo que a atuação correta ficará devedora de uma revelação. Ou, então, como produção, e neste caso os conflitos se mostram irredutíveis, ancorando-se neste mundo a construção das ações que tenham o próprio homem como seu fim. Se Michelet pode criticar, até com vigor, o poder do clero cristão e mesmo pontos essenciais do dogma, como os que constituem o que ele entende ser uma religião do favor, da graça, que se expandiu em detrimento da justiça, por outro lado ele continua devedor da velha fé no que tange à encarnação, à comunhão e à sabedoria dos simples.
Certamente se deve a essa perspectiva o forte caráter pedagógico que assume a história micheletiana, pelo retrato a que procede de algumas dezenas, ou mesmo centenas, de momentos fulgurantes (ou cenas) da Revolução — que nada mais são que as pedras preciosas de que fala Marx, a propósito da representação burguesa da revolução, igualmente, burguesa.[22] Com frequência os revolucionários se defrontam com a morte, oferecendo, não poucas vezes, a vida em holocausto à pátria. O povo micheletiano, aliás, será, da perspectiva marxista, conservador: da mesma forma que a monarquia, Michelet recusa-se a reconhecer nas suas personagens a fúria, a sanha assassina ou simplesmente revolucionária, como a que se exprime no “grande medo de 1789”, no ataque aos castelos, na revolta implacável da fome, e termina por infantilizá-lo, dado que se caracteriza antes de mais nada por uma emoção que o autor identifica a um profundo bom senso.

Parece, porém, estranho que Marx criticasse o entusiasmo na revolução — porque, se esta se fizer pela força das armas, será preciso que seus participantes se disponham a dar a vida por ela, ou seja, a efetuar um investimento inegavelmente passional no instante, de que jamais a razão poderá dar conta. Isto, aliás, vale como problema para a revolução socialista. Marx contrapõe o entusiasmo, presente na mais alta tragédia histórica e que distingue a revolução burguesa, à autocrítica, traço este essencial à revolução proletária, que procede por constante reexame de si, a que não falta o escárnio, a impiedade mesmo. Como na tradução brasileira a palavra entusiasmo representa o alemão Leidenschaft, e este mais precisamente significa “as paixões da alma”, podemos entender que Marx diz que na Revolução Francesa a tradição (no caso, a da República Romana) serviu a seus chefes para “manterem seu pathos no alto nível da grande tragédia histórica”.
Isto permite, assim, afirmar que para Marx o que distingue e mesmo opõe a revolução burguesa à proletária é o velho embate da paixão com a razão — o que expõe com bastante clareza uma postura racionalista de nosso filósofo.
Na revolução burguesa, o pathos nos domina: damos fé ao que nos diz a imaginação, de modo que, justamente quando se instaura neste mundo o mais radical reinado da prosa, adornamos nossa percepção com o mais nobre que possamos encontrar no passado. Costuma-se dizer entre os marxistas, quando se critica a ideologia capitalista, que esta disfarça e engana: ora, o eixo desse engano está aqui, na necessidade que o regime do prosaico e do banal sente de exaltar suas origens, de elevar-se à estatura dos profetas ou dos herois. A opção assim se coloca, a quem deseje fazer a revolução, entre tentá-la imitando os procedimentos de 1789, e portanto prendendo-se às cadeias da imaginação, que nos escravizam a nossos afetos, ou efetuá-la por um caminho mais áspero, o de uma quase interminável autocrítica, dolorosa, mas que constitui a única via de acesso à liberdade. A esta segunda via, que é a dos espinhos e não a das rosas, falta dramaticidade, falta, até mesmo, emoção: seu andar é lento, está garantida a frustração, a dilação do que parecia já estar a nosso alcance; não se descortina, aqui, um progresso seguro, a certeza de que a ação vá resultar em vitória porque tudo o que se obtém é, de pronto, posto em xeque; o caminhar é, mesmo, melancólico. Mas a melancolia, desde uma passagem de Aristóteles (Problemas, XXX), aparece como distintiva do pensador, e o que Marx aqui entende é que só o pensamento liberta, e que em face das belas cadeias da imaginação o trabalho penoso de vencer as ilusões aponta a única trilha pela qual a humanidade se poderá emancipar.
A imaginação aparecia enganando os homens, no Dezoito brumário, por meio da família das imagens teatrais. Em vez do “teatro do mundo”, como aquele lugar em que as coisas e as ações se davam a ver — sentido que lhe encontramos, por exemplo, no século XVII – passávamos a ter uma série de cenas em
que os homens se enganavam e eram enganados. Será conveniente considerar, ainda que rapidamente, a importância que as imagens teatrais adquiriram no século XIX. 
Podemos vê-lo já nas Lembranças de 1848, de Tocqueville, em que se utilizam praticamente as mesmas imagens que as de Marx para tratar dos mesmos assuntos que este analisa:[23] ora, certamente Tocqueville não terá lido Marx, que publicou o Dezoito brumário numa revista alemã de Nova York, nem terá o pensador alemão conhecido essa obra do francês, que demorou a ser publicada. Mas a convergência de temas e imagens não se esgota aqui. Tomemos, por exemplo, as Crônicas da Comuna,[24] que reúnem textos de época sobre a Comuna de Paris, em sua maior parte da lavra de seus críticos: ora, a todo momento nos deparamos com referências teatrais. Alexandre Dumas assim se exprime:

[A Comuna] para mim não pode ser mais que uma saturnal, ou seja, uma representação carnavalesca, uma farra infernal e lúgubre na qual plagiários de mesquinhas proporções acreditam ressuscitar as figuras terríveis que se chamaram Marat, Robespierre, Danton, Collot d’Herbois.[25]

Ou, ainda, Alphonse Daudet, numa passagem que tem o interessante título “As tricoteiras”, porque apresenta algumas mulheres que enquanto tricotam no fundo de uma assembleia, a exemplo daquelas espectadoras da guilhotina nos anos 1793-94, vibram pelas soluções mais sanguinárias:

Recrimina-se com frequência a Balzac, a Madame Sand, a todos os grandes romancistas da escola moderna, por terem perturbado a tal ponto uma quantidade de cabeças jovens, desviando-as por inteiro da vida e as jogando no romance; mas será isso culpa dos nossos romancistas? Não seria mais justo explicá-lo por essa necessidade de imitação inerente a toda juventude, principalmente à juventude francesa, impressionável e vaidosa em excesso, eternamente atormentada pelo desejo de desempenhar um papel, de entrar em uma pele célebre, de ser alguém, como se o melhor meio de ser alguém não fosse permanecer sendo ele mesmo?[26]

Assim, chegamos ao que é provavelmente o sentido da imagem teatral, para além da diferença dos autores considerados que, aliás, à exceção de Marx, nos momentos revolucionários pendem mais para a direita: ela é utilizada para designar uma opção pela mímesis, uma decisão de agir na política mediante a imitação do passado.
Ora, aqui se torna inevitável a referência ao romance — Daudet, aliás, na página seguinte falará em “romance cômico” para seu balanço de 1871, somando assim o tema que se pode ler em Marx, da repetição que se converte em farsa, a uma outra ideia, que pode constituir a chave para o desejo de repetição: o desejo de romancear. Em face de uma vida prosaica e de escassa satisfação emocional, como a do mundo burguês, a solução não estará simplesmente em alçar a banalidade do capital à grandeza profética ou heroica, bíblica ou clássica: mas em preencher a vida mediante cenas passionais, como as que aparecem no romance, gênero literário que teve no século XIX seu momento de esplendor e maior sucesso, e que fez farto uso dos temas amorosos. Não é raro, por sinal, um autor dirigir-se à “leitora”, como fazia Machado de Assis, supondo assim que o público por excelência dos romances fosse feminino: que fossem as mulheres as mais interessadas em introduzir na vida o condimento da paixão, quer proibida, quer alcançada. Deste ponto de vista, a chave para se entender o papel das paixões de que falava Marx não estará tanto no teatro, mas residirá em especial num romance, em Madame Bovary, e justamente naquilo em que ele retoma o primeiro grande romance da história ocidental, o Quixote.Madame Bovary e Dom Quixote são dois romances sobre romances — e, em especial, sobre os seus perigos. O aspecto metaliterário, neles, não consiste na simples discussão, numa obra, sobre a criação literária — mas no fato de que outros livros são descritos como ameaçadores ao que poderíamos chamar de saúde mental, ou pelo menos à serenidade da alma. Evidentemente, há uma grande distância entre seus personagens principais. Dom Quixote é presa, a um tempo, de um tempo que passou — o da cavalaria — e de sonhos que, em qualquer época, se revelariam ilusórios: dragões, monstros. O romance de Cervantes faz assim presentes dois registros que não são incompatíveis, mas apontam para referenciais, pelo menos, distintos: por um lado, o antiquado, por outro, o impossível.
Já a obra de Flaubert desconhece essa primeira dimensão, e modifica, e muito, a segunda. O forte desejo que sente Emma Bovary de apaixonar-se não remete propriamente a um tempo passado, real ou mítico, em que as pessoas vivessem o amor segundo a paixão; e, por outro lado, a impossibilidade de satisfazer esse anseio não tem o mesmo caráter que a inexistência dos dragões: é verdade que se devem ambos ao que se pode chamar o prosaísmo do mundo, a que falta o charme da paixão amorosa ou o encantamento das coisas mas aqui o prosaísmo se deve à feição que assumiram as relações entre os homens, e não a um dado da própria natureza, que desconhece os monstros.

Mas, com toda essa distância, em ambas as obras está presente uma ideia que terá, por sinal, forte impacto no século XIX: a do poder que os romances exercem sobre seus leitores, e especialmente sobre as mulheres, poder este que consiste em sua capacidade de nelas despertar um mundo de imaginações e fantasias. Poderíamos remontar à personagem Mathilde de la Mole, n’O vermelho e o negro, de Stendhal: todo o seu modo de conduzir o affaire com Julien Sorel, desde o momento em que o seduz até a cena final em que o enterra, está governado por alusões literárias, pelo desejo de viver um grande amor ou o de imitar a grande história de amor e heroísmo que jaz nas memórias de sua família. Emma Bovary, neste sentido, é uma mártir da literatura, ou devemos dizer, da leitura, porque o que a mata é o intransponível abismo entre os exemplos que deseja imitar e o tédio absoluto de sua vida real. Poderíamos multiplicar esses exemplos: os romancistas do século XIX tinham aguda consciência do impacto que suas obras causavam, e do problema que estava na origem de sua escrita, o deste conflito entre um mundo prosaico e alguns universos artificiais de sonho.

Mas o que ora nos importa é essa ideia segundo a qual, dizendo-o de forma simplificada, para se aproveitar a observação de Daudet, terá sido de tanto ler romance que o povo se tornou imitador, e por isso mesmo subversivo. O mesmo anseio que leva bom número de mulheres a se apaixonarem impele muitos indivíduos, de ambos os sexos, a enfrentarem a ordem estabelecida — e o fazem, uns e outros, presos à mesma estrutura de ilusões. Já aludimos, em outro lugar,[27] a um bovarismo que seria intrínseco ao mundo burguês, funcionando de certo modo como compensação a seu enfado, mas podendo vez que outra irromper como revolta, que geralmente se salda pela autodestruição. Aqui, em Daudet, autor de direita, temos como que a indicação de um bovarismo inerente à rebeldia: os revolucionários que imitam e vivem no modo teatral são todos Emma Bovary, mantendo com a literatura a mesma relação que ela — a de se tomarem por personagens de romance —, não suportando a banalidade da vida cotidiana e fugindo para um plano em que possam viver no modo da exaltação. A crítica que Marx dirigia à direita pode, assim, voltar-se à esquerda. Marx censurava a direita e também a esquerda moderada de 1848-51 por imitarem o passado, por viverem num mundo imaginário; Dumas e Daudet criticam a esquerda de 1871 valendo-se do mesmo argumento.
E com isso podemos encerrar nosso percurso sobre as revoluções e seu entusiasmo, sobre as revoluções e seus enganos, formulando duas questões, ou melhor, uma questão e uma proposição. A pergunta é: será possível uma política democrática sem retórica, e uma revolução sem entusiasmo? Porque, criticando a teatralidade, o que fazem Marx, Tocqueville, Dumas e Daudet é supor que na política temos oradores que são atores, que ao representarem enganam, e um público a quem induzem em erro. Com isso o que criticam é um teatro que constituiria um exagero, uma exacerbação da retórica, se entendermos esta última, algo cursi-vamente, como o conjunto de procedimentos que no discurso mais se empenham em persuadir ou cativar o ouvinte que em ensinar-lhe ou transmitir-lhe algo.
Ora, a questão que então se coloca é se um regime no qual se discute a política em público — para ficarmos numa definição mínima e ao mesmo tempo central de democracia — pode se furtar a uma forte presença da retórica e mesmo de suas ilusões. Tocqueville gostaria de ter um governo equilibrado e sensato, que não comporta essa efusão de paixões, Marx anseia por um regime que supere a divisão da sociedade em classes e suprima a ideologia: nele, não caberia essa retórica, tornando-se transparente o discurso da política. É certamente o que explica a forte aversão que Marx, Tocqueville e outros autores do século XIX sentem pela retórica na política. Mas a questão hoje, depois de um século ou mais de experiências democráticas, pelo menos na Europa, é se esse tipo de perspectiva ainda faz sentido. Poderíamos sugerir que a retórica faça parte da democracia e, junto com oS erros que introduz, também proporcione a possibilidade da invenção e do novo. Tocqueville denunciava a multidão e seus politicos erráticos, Marx decifrava essas errâncias, derivando-as de diferenciados engates no capital, mas em ambos os casos em favor de uma ideia de sensatez ou de ciência: em Tocqueville a sensatez do estadista, em Marx a ciência da sociedade. São dois momentos excelentes da teoria política ocidental, mas que não dão conta do que tem sido a prática dos regimes democráticos. Numa passagem do capítulo X do Leviatã, Thomas Hobbes, embora não tivesse simpatia alguma pela democracia, diz-nos algo que pode servir à prática política que ora nos interessa:

O merecimento de um homem é uma coisa diferente de seu valor, e também de seu mérito, e consiste num poder ou habilidade especial para aquilo de que se diz que ele é merecedor, habilidade particular que geralmente é chamada adequação ou aptidão.Porque quem mais merece ser comandante ou juiz, ou receber qualquer outro cargo, é quem for mais dotado com as qualidades necessárias para seu bom desempenho, e quem mais merece a riqueza é quem tem as qualidades mais necessárias para o bom uso dessa riqueza. Mesmo na falta dessas qualidades pode-se ser um homem de valor, e valioso para qualquer outra coisa. Por outro lado, um homem pode ser merecedor de riquezas, cargos ou empregos, e apesar disso não ter o direito de possuí-los de preferência a um outro, não podendo por isso dizer-se que os mereça. Porque o mérito pressupõe um direito, e a coisa merecida é devida por promessa.[28]

O que confere a alguém o direito de governar é a vontade dos outros. No caso em pauta, o contrato desempenha esse papel. Já na sociedade democrática, é o voto. Ou seja, não é a superioridade de alguém — estadista sensato ou partido informado da ciência da política — que lhe confere o direito ao poder, o qual só pode derivar da vontade daqueles que hão de ser governados. Assim se abre a via para uma concepção de democracia montada no recurso a procedimentos formais, dos quais o mais eficiente, a despeito de todos os seus erros e problemas, tem sido o voto da maioria. Isto nos levaria a responder à primeira questão perguntando se a teatralidade, se a retórica não são inevitáveis na política democrática. Neste caso, reduz-se a importância da manipulação, que tinha uma certa centralidade nas reflexões de Marx e Tocqueville sobre 1848, e poderia ensejar — no interior de dois pensamentos tão diferentes — soluções em que o poder se tornasse força, ou seja, em que, para vencer a retórica, ele diminuísse a parte da discussão e aumentasse a da ordem. O problema da manipulação se tornará relativamente secundário, ou pelo menos passará a ser uma questão derivada em vez de essencial,[29] se pensarmos sua superação como um problema de educação política, ou de educação pela política. Vivendo, como vivemos, num país em que a manipulação ocorre em demasia, só podemos enfrentá-la se considerarmos — de certa forma, como é possível fazer em Marx se nos interessarmos mais por ele iluminista do que científico que contra ela apenas a experiência política poderá criar anticorpos. As liberdades que se diziam formais, como as de pensamento e expressão, serão o melhor instrumento para que, no tempo, se constitua uma sociabilidade democrática, que por sua vez será o pré-requisito para um regime político que se chame democracia.

* * *

E chegamos a nossa proposição: uma das melhores vias para esse combate à manipulação não seria o riso? Assim voltamos a Marx, a Stendhal e a Michelet. Marx, no Dezoito brumário, aposta na comédia, falando da revolução proletária como aquela que escarnece de si mesma. Os acontecimentos que, da primeira vez que ocorreram, foram trágicos, ao serem repetidos, tornam-se farsa, bufonaria, paródia. Ora, a paródia desmistifica. Um dos grandes movimentos da desmistificação seria assim a supressão do registro do solene. A paródia tem sentido na zombaria à ode, no combate ao hino solene, grandioso, elevado. Contra ele, apostaríamos no que é sarcástico, zombeteiro ou irônico, e que, seja sutil ou grosseiro, em todo caso conta com aquele elemento corrosivo que em algum nível efetua o riso.
Além disso, se vamos destituir o registro do solene, também abriremos mão do heroísmo: nesse ponto, Brecht terá sido bom marxista ao dar a seu Galileu Galilei, na peça de mesmo nome, aquela frase magnífica: Infeliz o país que necessita de herois.[30] Se concebermos uma política libertadora, esta deverá ocorrer justamente nesse registro que já não é o do solene, mas estabelece outra relação com o banal.

Ora, falta ainda, que eu saiba, estudar melhor o papel do humor em Marx, cujos textos são lidos com demasiada seriedade. Marx, pelo menos, pretendia fazer engraçados alguns deles. No Dezoito brumário, há passagens de humor, mas conviria levantar dois problemas a este respeito. Em primeiro lugar, trata-se de um humor algo conservador, e poderíamos até sugerir que um dos pontos onde melhor transparece o conservadorismo moral de Marx seria no humor — o que não é de se estranhar se considerarmos, com Freud, que no chiste se relaxam algumas de nossas censuras, e por isso se revela melhor o que sentimos em nosso inconsciente. Esse viés conservador se lê, por exemplo, na forma pela qual Marx critica Napoleão III pelas dívidas que contraíra, dizendo que lhe restava a opção entre dar um golpe de Estado ou ir para a cadeia pelo dinheiro que devia. Ao dizer isso, Marx retoma críticas das mais mesquinhas, daquelas que a direita sempre dirigiu ao príncipe-presidente.
Um segundo aspecto desse humor é seu caráter intelectual, de humor culto. Marx praticamente termina o livro com um dito que ficou famoso: “C’est le premier vol de l’aigle”, comentando o confisco decretado por Luís Bonaparte, depois do golpe, dos bens da família real de Orléans. A frase quer dizer: “É o primeiro vôo da águia”, sendo esta o emblema da monarquia bonapartista, mas também pode significar “o primeiro roubo da águia”, porque vol tanto designa “vôo” quanto “roubo”. É uma piada, mas uma que exige, num texto redigido em alemão, uma nota de rodapé a explicá-lo. Trata-se assim do exemplo rematado do humor culto, do humor que na verdade não faz rir, que somente induz a sorrir. Mas, daqui, poderemos extrair a ideia de que o riso subverte.
Voltemos agora a Stendhal e ao começo da Cartuxa de Parma: quando os franceses tomam Milão, em 1795, descobrem que o arquiduque austríaco que governava a cidade havia enchido de trigo uns silos de sua propriedade para especular com a falta de pão, os franceses então mandam distribuir o trigo à população que já passava fome e que com isso toma o partido dos vencedores. Quando um jovem pintor francês de nome Gros, que pertence ao exército vitorioso, fica sabendo dessa história — um rapaz que depois será o barão Gros, um dos grandes pintores do Império —, ele desenha a caricatura de um gordo príncipe Élabsburgo, com um granadeiro francês que lhe espeta uma baioneta na barriga, e dessa barriga sai trigo. Imediatamente o desenho é copiado, a uma tiragem de 20 mil exemplares que são todos vendidos em 24 horas. Nasce então, no Milanês, um novo tipo de arte, a caricatura, que tem o grande mérito de acabar com o respeito pelos austríacos: como conservar obediência e submissão a um poder do qual se ri, a uma dominação que se tornou ridícula?
Na mesma linha dos poderes demolidores do riso, poderíamos ainda lembrar O nome da rosa, de Umberto Eco, que destaca o papel dessa oposição entre comédia e tragédia. O entrecho desse romance, como se sabe, é a busca da segunda parte, perdida, da Poética de Aristóteles, em que se trataria da comédia. O nome da rosa se articula numa oposição política entre os solenes (os que estão no poder, na Igreja como na biblioteca) e os simples, que subvertem a ordem na medida em que riem e carnavalizam o mundo.
Finalmente, para voltarmos à Revolução Francesa, uma última referência se pode encontrar em Michelet, no Livro XV, capítulo III da História da Revolução. Nessa passagem interessantíssima, Michelet, que detesta Robespierre e o Terror, fala da assim chamada “conspiração da comédia”. É a ocasião em que Fabrd’Eglantine é preso, e depois é guilhotinado. Fabre, que é autor de comédias, tem a seu favor toda a simpatia de Michelet, que nesse capítulo trata do riso sob o Terror.

Quem fará medo à França? Ela riu até sob o Terror […] Havia o riso e as lágrimas, a emoção em dois sentidos, jamais a tristeza imóvel […] Uma tal leviandade, que em outros países constitui um sinal de nulidade, na França muitas vezes se encontra em espíritos dentre os mais vigorosos […]

O poderoso chefe dos jacobinos [Robespierre], que havia feito o milagre mais inacreditável na França, uma realeza fundada na opinião e sem dispor de armas, sem sucesso militar! sentia muito bem que o mistério de seu poder residia inteiramente na seriedade: sabia que, se a França perdesse a seriedade um minuto só, terminava o fascínio, o prestígio desaparecia, tudo estava acabado […]

A que se devia o mistério de seu poder [o de Robespierre]? À opinião que soubera impor a todos, no tocante a sua probidade incorruptível e a seu caráter imutável. Todos os outros personagens da Revolução foram ingenuamente móveis, ao sabor dos acontecimentos. Somente ele, com um maravilhoso espírito de consequência, uma prodigiosa tática, manobrou de modo a sustentar a fama dessa imutabilidade […].

Por que milagres de destreza, numa situação tão mutável, se mantinha a fictícia imobilidade do taumaturgo? Era este, para o observador, o mais espantoso dos espetáculos. O contraste dessas reviravoltas rápidas, efetuadas em nome de princípios imutáveis, fazia da personagem mais séria da época o tema cômico por excelência, de um cômico tão terrível e imprevisto que a nenhum dos mestres — nem Aristófanes, nem Rabelais, nem Molière, nem Shakespeare — poderia ocorrer concebê-lo. […]

Robespierre só enganava os outros porque, com uma espantosa habilidade que nele era instintiva, antes de mais nada enganava a si mesmo.[31]

Nestas páginas pretende Michelet de certa forma revelar o segredo de Robespierre. Como um povo tão crítico como o francês, tão afeito por um lado aos prazeres, por outro à reticência, terá sido capaz de entregar-se de forma quase irrestrita ao poder avassalador de um homem, além do mais, profundamente sério? O segredo estará na rapidez de Robespierre, em sua agilidade política — mas não é isto o que aqui nos importa, e sim o procedimento que Michelet expõe como o mais adequado para desmontar o poderoso. Deveremos, é claro, lembrar que a esta altura o que menos interessa é se o poder de natureza teatral que se está criticando costuma ser considerado de direita ou de esquerda. Pelo que vimos, a crítica de Marx e a de Tocqueville, a de Dumas e a de Daudet, e finalmente a de Michelet tomam por alvo um procedimento que, se a cada leitura é localizado no campo adversário, justamente pela sua recorrência adquire uma generalidade bastante ampla. Além disso, nesta passagem de Michelet retornamos à articulação que indicávamos, ao tratar de Marx, entre uma família de imagens teatrais e outra, religiosa. Se Robespierre é um “taumaturgo”, se faz milagres, é porque faz de sua direção da coisa pública algo espetacular. E por isso mesmo — eis o ponto em que Michelet tira, melhor que Marx, as consequências daquela frase deste último sobre a tragédia que se repete sob a forma de comédia — a melhor forma de desmontar todo esse aparelho trágico e mágico será através do riso.

Um homem observava Robespierre, um grande artista, amante da arte, e em especial das artes da intriga. Era ele o primeiro autor dramático da época, Fabre d’Eglantine. “Sua cabeça, dizia Danton, é um vasto imbroglio.” Imbroglio para os outros, mas claro para o grande dramaturgo, que tinha prazer em olhar os fios que se emaranhavam só para poder deslindá-los […]. Ele só via a superfície, mas via-a à perfeição: descrevia com uma propriedade, com uma fina especificação que destoava dessa época de insípidos generalizadores. […] Danton dissera, sem ter noção do alcance do que dizia: “A cabeça desse homem é um repertório de ideias cômicas” [pp. 672-73].

O efeito desmascarador do riso deve muito a essa capacidade de olhar a superfície. Na célebre história do rei que estava nu, poderiam os charlatães ter êxito em seu golpe não fosse a disposição, tão generalizada na sociedade, a acreditar naquilo que não se dá a ver, a negar a evidência mesmo superficial para procurar, por trás, acima, além dela, uma explicação, um sentido, ainda que espantoso? O riso pode, certas vezes, constituir excelente educação do olhar. Por estranho que pareça, com frequência o desmascarar não está no ir atrás, mas simplesmente em apontar a máscara, o jogo. Essa capacidade, naquela época, Michelet só a encontra “nos dois eminentes cômicos, Fabre d’Eglantine e Camille Desmoulins” — o que nos permite encerrar esta fala retornando ao heroi de nosso início.[32] Será por isso que Robespierre, apavorado com os poderes do cômico, manda guilhotinar Fabre. Mas o riso continua sendo a força vital capaz de lutar contra a ditadura e derrubá-la.

Talvez, se Marx tivesse levado adiante sua sugestão sobre a comédia, e se engrenasse decididamente nos poderes que tem o riso para desmontar a dominação, pudesse pensar melhor o fato de que a revolução que ele diz social teria de constituir, antes de mais nada, uma emancipação em face da imaginação. O fato de ela ser armada ou não será apenas conjuntural, mas seu caráter mental é condição absoluta para que ela não reponha uma nova dominação, que será tanto mais ditatorial quanto mais séria se mostrar. E assim a mais eficiente emancipação somente será possível se, em vez de tomar a via séria, a das pretensões à ciência, optar pela comédia, pela paródia, pelo riso.

E zombei de todo mestre

que não zombou de si mesmo.

Nietzsche

Notas

[1] Marvin Carlson, Le théâtre de la Révolution française, Paris, Gallimard, 1970,p. 26, que cita, para essa descrição, La journée du 14 juillet 1789, de L. G. Pitra (Paris, 1892) e o Théâtre des Petits Comédiens de S. A. S. monseigneur le comte de Beaujolais (Paris, 1900).

[2] Michelet, Histoire de la Révolution française, livro 1, cap. IV, p. 125; trad. Maria Lúcia Machado, História da Revolução Francesa (os três primeiros livros), São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 129.

[3] Idem, ibidem, p. 125; trad. bras., pp. 129-30.

[4] A corte mandara pesquisar os velhos livros para neles redescobrir o detalhe odioso de um cerimonial gótico, essas oposições de classes, esses sinais de distinção e de ódio social que seria preciso antes enterrar. […] A bem dizer, não era tanto a mania das velharias que havia guiado a corte, mas sim o secreto prazer de mortificar, de humilhar aquelas pessoas modestas que, nas eleições, se fizeram reis, de lembrá-las de suas baixas origens… A fraqueza brincava com o perigoso divertimento de humilhar uma última vez os fortes” (idem, ibidem, cap. II, p. 104; trad. bras., p. 104).

[5] É raro encontrar referências a Desmoulins como ator. Afora Carlson, somente — mas é uma autoridade no caso — Michelet o menciona nessas condições.

[6] No livro de Carlson, é a única referência que se faz a ele — curiosa, ademais, porque no índice de nomes consta como “Manet” e não mais como “Maret”, bom indício de como teve seu instante de glória para prontamente desaparecer.

[7] Scaramouche é também espadachim, tendo-se aprimorado na esgrima devido, ainda, ao teatro popular. Isto o tornará, no romance, eficiente deputado à Constituinte, onde matará em duelo os nobres que antes impunham o terror aos representantes do povo.

[8] De Jean-Gaspard de Fontanelle, no repertório da companhia desde 1768. Trata-se de uma virgem romana que foi obrigada a tornar-se vestal e é condenada à fogueira, da qual escapa suicidando-se junto com seu amado: a localização romana não engana o público, que percebe na peça uma crítica à instituição monacal.

[9] Carlson, Le théâtre de la Révolution française, op. cit., pp. 42-3.

[10] Idem, ibidem, p. 58.

[11] Racine et Shakespeare (1823).

[12] Stendhal, Esquisses de la société parisienne, de la politique et de la littérature, 1826-1829, p. 214.

[13] Idem, ibidem, p. 210.

[14] Idem, ibidem, p. 207.

[15] Em Voltaire também encontramos algumas frases destas, como o famoso “Ecrasez l’infâme”, mas: 1) neste caso se trata de uma retomada do “Delenda Carthago” romano, de modo que a referência antiga é mais forte que a invenção moderna; 2) Voltaire lida mais com o leitor um tanto cético (e por isso mesmo crítico dos desmandos em que incorre o poder absoluto) do que com o ouvinte entusiasmado; ora, é a este último que convém melhor a palavra de ordem, que faz o discurso de pensamento engrenar num apelo à ação ou, pelo menos, à tomada de partido.

[16] Stendhal, “La comédie est impossible en 1836”; Taine, Les origines de la France contemporaine.

[17] Nesta parte, farei referência a tópicos que desenvolvo no ensaio “O novo e o pathos (Em torno do Dezoito brumário)”, em minha tese de livre-docência, a sair pela Companhia das Letras em 1993.

[18] Ver o Leviatã, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo, Abril, 1974, parte iv, “Do reino das trevas”. Diz Hobbes que esse reino (o da Igreja, em especial católica) resulta do “reino das fadas”, isto é, do mundo de fantasia em que o clero faz viverem os homens. Um uso esperto da imaginação leva ao engano e, este, a uma subordinação política.

[19] Dezoito brumário de Luís Bonaparte, São Paulo, 1968, cap. I, p. 19.

[20] A justificar esta aproximação, o fato de que a História da Revolução Francesa teve postos à venda seus livros I e II em fevereiro de 1847, e em novembro do mesmo ano os livros III e IV; é provável que Marx, então residindo em Bruxelas, mas recém-expulso de Paris, os conhecesse.

[21] Não quer isso dizer que não se conheçam os nomes dos autores de façanhas. Muitas vezes se sabe quem são, mas isto não é mais o que importa. Basta lembrar, no começo deste ensaio, aquele “certo Manet” ou “Maret”, que endossou as palavras incendiárias de Camille Desmoulins, para prontamente desaparecer da cena da história. Ou aqueles herois que mais tarde largaram a causa da Revolução, para formarem com seus inimigos.

O que caracteriza o heroísmo revolucionário é, assim, o apagamento do empenho individual numa organicidade superior, que, esta, pode traduzir-se nos termos da natureza. Assim como o histórico se apaga na natureza, o contingente no necessário, o indivíduo também se desfaz em força mais alta que se levanta.

[22] “As revoluções burguesas […] avançam rapidamente de sucesso em sucesso; […] os homens e as coisas se destacam como gemas fulgurantes…” (t, p. 19). Sempre citaremos o Dezoito brumário na edição de 1968 da Editora Escriba, São Paulo, indicando entre parênteses o número do capítulo e depois a página; infelizmente, essa tradução, embora elegante, foi feita do inglês e comporta alguns erros, os quais procuramos corrigir.

[23] Ver, a este respeito, nossa apresentação a Lembranças de 1848, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

[24] Crônicas da Comuna, São Paulo, Editora Ensaio, 1992.

[25] “Cartas a Junius”, datada esta de 20 de abril a 25 de maio de 1871; in Crônicas da Comuna, op. cit., p. 178. Na página 188, fala em “sangrenta saturnal”

[26] “As tricoteiras”, in Crônicas da Comuna, op. cit., p. 233. Na página seguinte, Daudet fala em “imitação”, “bastidores”, “atores” e “papéis”.

[27] No ensaio citado, “O novo e o pathos”

[28] Histoire de la Révolution, Paris, Bouquins, 1979, livro XV, cap. Ill, t. it, pp. 671-72.

[29] Será essencial, por exemplo, enquanto a questão da ideologia o for.

[30] Um discípulo do cientista, vendo-o abjurar suas teses declaradas heréticas pela Igreja, para salvar-se da fogueira, lamenta: “Infeliz o país que não tem herois!”. É a este protesto que Galileu responde.

[31] Histoire de la Révolution, Paris, Bouquins, 1979, livro XV, cap. Ill, t. II, pp. 671-72.

[32] E por sinal, na única alusão — além de Carlson — que encontrei a Desmoulins como pessoa ligada ao teatro.

    Tags

  • Brecht
  • Camille Demoulins
  • Casanova
  • combate à manipulação pelo riso
  • conversação
  • crítica ao entusiasmo
  • Danton
  • Daudet
  • David (pintor)
  • Dumas
  • Fabre d’Eglantine
  • Flaubert (Madame Bovary)
  • François Talma
  • Hobbes
  • imitação do passado
  • Marx (Dezoito Brumário de Luís Bonaparte)
  • melancolia
  • Michelet
  • Mirabeau
  • Napoleão
  • paixão e razão
  • política democrática e retórica
  • povo identificado a uma torrente
  • representação teatral
  • revolução burguesa e revolução socialista
  • Revolução Francesa
  • Robespierre
  • Rousseau
  • Sabatini
  • Stendhal
  • teatralização da realeza
  • Tocqueville