1987

O lenço e o caos

por Jorge Coli

Resumo

Os movimentos da alma dos personagens shakespearianos prestaram-se a análises de todo tipo. Como compreender um ciúme que mal existe de manhã e mata à noite? Ou o objetivo das manobras de Iago? Ou ainda: Otelo mesmo, que se diz desprovido de ciúme e, por ele, mata?

Iago, aliás. Muito se tratou de seu caráter – em vão. Ressentido? Fato é que, para qualquer maquinação cujo objetivo é desonrar e matar, não há causa, desculpa ou motivação simples e precisa. Nada o justifica.

Complexidade de uma paixão – eis talvez a expressão mais acertada. A ela que só a dinâmica de uma tragédia pode dar voz. Daí só a análise interna resistir à obra shakespeariana.

No mais, trata-se ainda de comentar as metamorfoses por que passa Otelo quando de sua conversão para ópera, por Rossini e Verdi.

De Shakespeare, não há que se esperar transparência. Seus personagens são tomados por afecções da alma, aprisionada num amálgama impuro, em que cada elemento contamina o outro. Corpo e espírito, por exemplo. Isso de que dá testemunho o próprio Otelo: “Quente, quente e úmida; esta sua mão [a de Desdêmona] pede enclausuramento, jejum e prece; muitas mortificações, exercícios piedosos, pois aqui existe um jovem demônio que transpira e tem o hábito de se revoltar”.

Mas o corpo não basta. Há o inexplicável. Ele que seria impróprio num arcabouço literário sólido, sintético, coerente, necessário, lógico… não fosse o acaso, reforçado pelo descrédito no desígnio superior. Diz Otelo: “Quando eu não mais te amar, será o retorno do caos”.

Da matriz shakespeariana, derivam o Otelo de Rossini e o de Verdi.

Entre o libreto encomendado por Rossini e Shakespeare há vários filtros. A começar pelo que impôs o sistema de produção operística, já – no século 19 – espetacularizado. Isso que se reflete na desfaçatez com que o marquês de Salza – o libretista – altera o original. Desdêmona, por exemplo. Na ópera, ela passa de coadjuvante a protagonista, em detrimento do progresso do ciúme de Otelo, objeto de tensão teatral tão eficaz.

Mas nem tudo é perda. Notável é, por exemplo, a cena em que um gondoleiro – Caronte em sua barca – passa diante da janela de Desdêmona entoando uma canção lúgubre cuja letra reproduz uma passagem do Inferno de Dante.

Já Verdi, idoso e coroado de louros, pode ignorar as exigências da indústria operística posterior a Rossini. Seu projeto é mesmo em tudo artístico. A começar por Arrigo Boito, libretista que pretendia reformar o teatro lírico. Culto ao extremo, Boito foi um poeta brilhante, que empregava voluntariamente uma linguagem rara e arcaizante. Por isso, Otelo não ser, para ele, só um ponto de partida, mas uma obra cujo dinamismo devia ser respeitado.

Há inclusive especialistas sérios que julgam o Otelo de Boito superior ao seu original.


A VOZ SUFICIENTE DO CIÚME

Machado de Assis constata, numa passagem de Dom Casmurro, a fragilidade dos motivos que incendiaram os ciúmes violentos de Otelo: “Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço — um simples lenço — e aqui dou matéria à meditação de psicólogos deste e de outros continentes, pois não pude me furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios lençóis; algumas vezes nem lençóis há, e valem só as camisas”.[1]

Os grandes movimentos da alma que habitam os personagens da tragédia de Shakespeare foram objeto de investigações incontáveis: como compreender a progressão fulminante desse ciúme inexistente pela manhã e assassino à noite? Como descobrir as razões das manobras de Iago? Otelo, numa concepção muito corrente, seria a encarnação do ciúme, como Harpagon é o arquétipo do avarento. Ora, Shakespeare nos diz na peça, várias vezes, que o caráter de Otelo não é afetado pelas paixões (“uma natureza que a paixão não pode sacudir”)[2] e que, particularmente, seu ser desconhece o ciúme. Desdêmona o afirma: “creio que o sol sob o qual ele nasceu secou nele todos os humores do ciúme”,[3] e o próprio protanogista, antes de matar, declara “não ser facilmente ciumento”.[4] O ciúme aparece então como alguma coisa que atua do exterior — ele corrói, ataca, abala a constituição moral de Otelo, fazendo dele um outro. “Cuidado, senhor”, diz Iago, “com o ciúme. É um monstro de olhos verdes que zomba do alimento de que vive.”[5] Menos do que um caráter ciumento, Otelo aparece como um exemplo do ser que é tomado, de modo fulgurante, pela paixão.

Sobre Iago, múltiplas explicações causais também foram oferecidas. Nenhuma satisfaz. Dizer que Iago agiu por ressentimento, por ter sido preterido numa promoção, ou porque ele próprio desconfia de que Otelo tenha sido amante de sua esposa, Emília, isto é, repetir as justificações dadas pelo próprio personagem no texto shakespeariano, é muito pouco. Maquinações cujo objetivo é destruir a vida e a honra de muitas pessoas não podem se contentar com qualquer desculpa simples e precisa. Em realidade, nenhuma causa, nenhum porquê são suficientes; toda razão para os atos dos personagens parece sempre irrisória, mesmo — e sobretudo — as análises de ordem psicológica.

Aqui, não se trata de psicologia, mas dos mistérios da paixão. E o sentido global não se reduz a nenhuma causalidade explícita, ou a múltiplas causalidades, ou à soma de todas as causalidades. O século XX inventou o analista mas matou o trágico, e a mais sublime tragédia deste mundo, como dizia Machado, cabe num lenço. Ou, para retomar a frase conclusiva de Iago: “Não me pergunteis mais nada: o que sabeis sabeis; de ora em diante não direi mais palavra”.[6]

Resta-nos, então, considerar a tragédia Otelo como uma voz suficiente, capaz de nos falar dessa paixão que é o ciúme. Nós podemos abandonar os porquês, e tentar perceber alguns modos dessa fala. E também — é o nosso propósito — descobrir suas metamorfoses, quando, de fala, ela se torna canto, graças a Rossini e Verdi.

O AMÁLGAMA IMPURO

É possível entrever, mesmo como se através de um vidro opaco, os fantasmas que habitam as paixões de Otelo. Shakespeare não oferecerá jamais a transparência. O ciúme, em sua tragédia, nasce num terreno incerto, mergulha suas raízes em camadas secretas e atinge pontos fortemente sensíveis, perturbadores. Seu dinamismo é falsamente unívoco; seu tropismo se compõe, em realidade, de ambiguidades poderosas que não podem ser claramente definidas. O ciúme de Otelo não possui uma forma lapidar — não se trata, como já dissemos, de um caráter, à maneira de Teofrasto ou La Bruyère: trata-se de uma afecção da alma, aprisionada num amálgama impuro, em que cada elemento contamina os outros.

Como é esse ciúme? Não um ciúme intelectual, nem, rigorosamente, um ciúme sentimental. Em Otelo, esta paixão da alma lembra o escólio da proposição 35, da 3a parte da Ética de Espinosa, que diz o seguinte: “Quem imagina que a mulher que ama se entrega a outro entristecerá, não somente porque seu próprio desejo estará reduzido, mas também porque é obrigado a reunir a imagem da coisa amada às partes pudendas e excreções do outro, e terá aversão a ela”.[7]  Partes pudendas, excreções: trata-se portanto de ciúme com uma carga profundamente corporal. Assim é em Otelo, onde imaginário, sentimentos e corpo não se separam.

No terceiro ato, a mão de Desdêmona é objeto de reflexões trazidas pela suspeita. Diz Otelo: “Quente, quente e úmida; esta sua mão pede o enclausuramento, o jejum e a prece; muitas mortificações, exercícios piedosos, pois aqui existe um jovem demônio que transpira e que tem o hábito de se revoltar”.[8] Um momento de paroxismo é atingido na primeira cena do quarto ato, quando o mouro quer saber o que teria Cássio confiado a Iago:

Otelo: O que disse ele?

Iago: Meu Deus, que ele… não sei o que ele disse.

Otelo: O que, o quê?

Iago: Deitado…

Otelo: Com ela?

Iago: Com ela, sobre ela; como quiserdes.

Otelo: Deitado com ela! Deitado sobre ela! Dizemos que alguém se deita com ela quando a está cobrindo. Ah! é asqueroso![9]

Ou, na cena três do terceiro ato, Otelo lembra-se de sua tranquilidade, quando ainda tudo ignorava: “Eu não encontrava os beijos de Cássio sobre seus lábios” e “eu seria feliz se todo o acampamento, até o último dos cavadores, tivesse gozado de seu corpo suave, se eu não tivesse sabido nada”.[10] Iago, ao descrever as supostas relações de Desdêmona e Cássio, em sua adjetivação e metáforas, retirará todo o sentimento e a espiritualidade, para reduzi-los a uma completa animalidade: “ardentes como bodes, quentes como macacos, luxuriosos como lobos no cio”.[11]

Essa corporeidade se torna extremamente ambígua, com a narração feita por Iago do sonho de Cássio. É Iago quem fala: “Há algum tempo, eu estava deitado com Cássio […] e eu o ouvia dizer em seu sono ‘Suave Desdêmona, sejamos prudentes, escondamos nossos amores’, e então, senhor, ele agarrava e torcia minha mão, gritando: ‘Doce criatura!’, e então me beijava fortemente, como se quisesse arrancar pelas raízes beijos crescendo em meus lábios, então passava sua perna sobre minha coxa, suspirava, me beijava e então gritava: ‘Maldito seja o destino que te entregou ao mouro!’”.[12]

É evidente que a presença do corpo no ciúme leva, insensivelmente nessa passagem (onde, de modo surpreendente, Iago toma o lugar de Desdêmona), a uma coloração homossexual que faz parte, sem que se possa considerá-la como explicativa, do amálgama complexo constitutivo da paixão a que fiz referência.

PRETO E BRANCO

Este ciúme corporal, fortemente sexualizado, revela um outro componente: a questão racial.

No fim do século XVII, Thomas Rymer, que deixou comentários sobre o teatro de Shakespeare, considera que a moral da peça é a seguinte: “uma advertência para que as moças de boa família não fujam com mouros sem o consentimento de seus pais”.[13] Essa pérola mostra como, desde sempre, por detrás do amor, do ciúme, da tragédia, se encontra em Otelo, latejante, o fato ineludível de que se trata da paixão recíproca de um negro por uma branca.

Fato ineludível, se considerarmos o texto shakespeariano, que é perfeitamente explícito sobre esse ponto. Mas seria possível fazer uma longa história da má-fé com a qual tentou-se negar a cor da pele do mouro.

Coleridge, nas Conferências sobre Shakespeare, diria. “Seria monstruoso pensar que essa bela e jovem veneziana se apaixonasse por um verdadeiro negro”.[14] Lord Derwent, em sua excelente biografia de Rossini, conta que o tenor Tacchinardi, intérprete de Otelo, fez imprimir, num programa de 1819, as seguintes indicações: “Poder-se-á perguntar por que Otelo não aparecerá no palco maquiado como um mouro, como pede, por razões que nos escapam, o texto inglês. Mas como parece impossível que uma jovem amável, cortejada por moços atraentes, caia apaixonada por um mouro cujo aspecto só pode ser considerado horrível e aterrador, o signor Tacchinardi decidiu tomar uma forma menos repulsiva, o que nos parece mais plausível, pois, afinal de contas, nem todos os filhos da África são marcados por um rosto negro”.[15] E Tacchinardi representou um Otelo de tez imaculadamente branca.

As razões do tenor — que evidentemente hoje nos parecem infames e ridículas — são, no entanto, alguns dos argumentos que Iago destilará nos ouvidos de Otelo, fazendo com que o mouro assuma e admita sua própria animalidade monstruosa. Diz Iago: “Assim, para vos ser franco — ter recusado tantos partidos que se ofereciam a ela, de seu próprio clima, de sua raça, de sua posição — como vemos a natureza preferir em todas as coisas — bah! pode-se perceber nisso um desejo corrompido, uma desproporção imunda, pensamentos contra a natureza”.[16]

O racismo parece ser tão mais insuportável quanto ele se exprime numa relação de ordem carnal. O corpo alvo e luminoso de Desdêmona contra a pele escura de Otelo: eis o que podia horrorizar. Victor Hugo, cujo amor por Shakespeare e o afeto pelas vítimas era imenso — e que também não conseguia resistir a uma antítese —, escreveu: “O que é Otelo? É a noite. Imensa figura fatal. A noite está apaixonada pelo dia. O negror ama a aurora. O africano adora a branca. […] Ele tem o brilho de vinte vitórias, esse Otelo; mas ele é negro”.[17] Aqui não há preconceito: ao contrário, a cor da pele é elevada à metáfora literária, e Otelo, o negro, adquire uma grandeza cósmica. Mas, ao mesmo tempo, sua união com Desdêmona perdeu todo caráter físico. Para que Victor Hugo possa aceitar esse casal, ele precisa afastar toda substância corporal, tudo o que possa nos levar à sexualidade. Ora, em Shakespeare essa sexualidade inter-racial, carregada de preconceitos, está presente desde o início da peça — e, em contraste com a espiritualização hugoana, cito as palavras de Iago, quando anuncia a Brabâncio, o pai de Desdêmona, o casamento de sua filha com o mouro: “Agora mesmo, neste momento, um velho bode negro está cobrindo vossa ovelha branca… o diabo vos fará ficar avô”.[18]

Otelo é portanto uma peça vinculada ao sexo. Ela não é, porém, circunscrita a uma certa “normalidade” nem, por outro lado, aos desvios francamente caracterizados. Nem sequer essa sexualidade é inteiramente confessa: ela roça zonas sensíveis e semiconscientes, flui por terrenos indefiníveis, rela em pontos nevrálgicos: inter-racialidade, homossexualismo, diferenças de idade e de cultura (a presença de Cássio é a lembrança constante e exasperadora de uma adequação convencional e imaginária, impossível para a mixórdia inextrincável de que são feitos os seres, mas desejada no entanto), inveja, submissão, poder.

O ciúme nasce dessa e de outras coisas, mais ou menos ocultas, mais ou menos veladas. Sua conflagração remexe no lodo fundo e não sabido. Otelo não é um instrumento para se “pensar” a sexualidade, é um contemplar o surgimento, aqui e ali, entrevistos, entressentidos, de fragmentos diversos e inesperados que fazem parte dela, através de nuanças, de combinações e dosagens, que passam pelo imperceptível.

INEXORÁVEL, ACASO, ABSURDO

O jogo impuro entre os seres pode acarretar a desordem do mundo. Shakespeare detalha a tortura moral a que Iago submete Otelo. Mas o ciúme do mouro não se manifesta apenas como sofrimento interior. Ele é, também, crime. A vítima, no entanto, não é a mesma das ocorrências policiais. Desdêmona, durante a peça, se mantém num plano secundário, embora tenha um momento de afirmação no primeiro ato, quando escolhe seguir Otelo contra a vontade de seu pai e contra os usos da República de Veneza. Mas ela escolhe para melhor se entregar aos acontecimentos funestos que virão. Ela é Desdêmona — o que quer dizer, em grego, a infortunada. E, no final, ela ressurgirá como a vítima sacrifical: etapa por etapa, um ritual se constrói — os lençóis são postos na cama, e Desdêmona os quer como mortalha. Ela veste a sua camisola nupcial, se prepara para dormir e, como numa liturgia, entoa um canto que fala da guirlanda de ramos de salgueiro: coroa imaginária para o holocausto.

Na peça, tudo progride inexoravelmente em direção do sacrifício, tudo é disposto para o final implacável. Já se observou muitas vezes que, das tragédias de Shakespeare, Otelo é a que avança de modo mais econômico e concentrado para seu fim, sem que nada venha distrair o espectador desse progresso. Para um teatro que sempre cultivou a variedade, a multiplicidade de situações, de cenas, de personagens, de épocas e de lugares, Otelo surge como singular: se excetuarmos o primeiro ato, as célebres leis das três unidades do teatro clássico — de tempo, de espaço e de ação — se encontram perfeitamente observadas.

Um progresso firme, coerente, necessário, lógico. Um arcabouço teatral de grande solidez. Mas Otelo diz uma pequena frase no terceiro ato: “Quando eu não mais te amar, será o retorno do caos”.[19] E lembremo-nos da observação de Machado: “Tudo isso por um lenço?” É que esse progresso, essa necessidade implacável, essa aparente “lógica” da tragédia, repousa sobre o absurdo e o inexplicável.

Em “O príncipe cansado”,[20] Erich Auerbach lembra uma diferença fundamental entre a tragédia antiga e o teatro shakespeariano. Na primeira, destino, fatalidade vêm inscritos em leis exteriores aos homens que se encontram como que em trilhos, dos quais, uma vez encarrilhados, é impossível sair. Nessa perspectiva, podemos dizer que, no interior do mecanismo da fatalidade antiga, o acaso aparece como um acontecimento cujas razões o personagem desconhece, mas não é verdadeiramente o imprevisto, o inesperado, aquilo que não pode ser explicado. O acaso é instrumento da fatalidade e a fatalidade dá um sentido aos acontecimentos trágicos e ao mundo. No teatro elisabetano, o trágico está ligado à particularidade do personagem “que não se confunde com nenhum outro”; ele se torna assim específico, único. “A ideia de destino é, a um tempo, concebida mais largamente e ligada mais estreitamente ao caráter individual do que na tragédia antiga.”[21]

As peças de Shakespeare mostram que o acaso é alguma coisa de incompreensível, mas com o qual é preciso contar, porque faz parte do mundo. Agente da catástrofe, sua presença é o sinal da inexistência de um sentido explícito para aquilo que Montaigne chamaria “a humana condição”. Ele indica também a perplexidade diante da ausência perceptível de qualquer desígnio superior, de qualquer sinal decifrável no mundo. O acaso revela a possibilidade humana de constatar os mecanismos do universo, mas a sua incapacidade completa de atingir as razões profundas. Se elas existem ou não, no fundo, pouco importa: o homem é condenado ao absurdo.

O LENÇO E O CAOS

Shakespeare criou incontáveis personagens que tentam substituir o princípio do acaso, a organização incoerente do mundo por um projeto — o mais das vezes fracassado — e que procuram concatenar as ações humanas num plano que possui um objetivo claro, uma lógica interna: basta lembrar o frei Lourenço, de Romeu e Julieta. Ele tenta organizar um plano para que a tragédia não aconteça, para que a união feliz possa se dar. Mas logo o absurdo volta à tona. Ainda mais porque esses demiurgos que arquitetam relações não dominam o ser das coisas e só podem dispor das aparências, falsos semblantes. Frei Lourenço, por exemplo, tentará se servir de uma pseudomorte.

Nesse caminho, são frequentíssimos os personagens hipócritas que separam o dizer do sentir. Muito constantes também são as representações dentro da representação teatral, situações expressamente dispostas por alguns personagens para enganar, e assim modificar sentimentos, ou induzir tal ou qual personagem a agir de um modo ou de outro.

Iago é desse tipo. Ele é o arquiteto do destino, coautor da tragédia. Ele é o que mente: “não sou o que sou”,[22] dirá, numa tirada célebre. Ele é quem constrói uma representação na qual Otelo, espectador secreto, ouvirá imperfeitamente frases de Cássio. Ele, enfim, dará ao lenço sua carga de morte.

Se é claro o sentido de suas ações — encaminhar a tragédia ao seu desfecho — seus fundamentos continuam insondáveis, no entanto. Ele confere apenas uma aparência de sentido aos acontecimentos, e em realidade apenas dissimula o absurdo.

É que as paixões humanas são, elas próprias, inexplicáveis. O lenço revela o caos, mas o caos existe sem o lenço. Como diz Emília: “O ciúme é um monstro que se gera em si mesmo e de si mesmo nasce”.[23] A rigor, Iago seria dispensável na tragédia. Quem no-lo confirma é o próprio poeta.

Alguns anos depois de ter escrito Otelo, Shakespeare criará uma peça fascinante e estranha na qual o ciúme voltará como tema. Trata-se de Conto do inverno. Mas aqui, o rei Leontes da Sicília não tem razão nenhuma para suspeitar de sua mulher, Hermíone — nem sequer um lenço, nem um fio de cabelo. O suposto amante seria seu amigo fraterno Políxenes, rei da Boêmia, que Leontes conhece profundamente, desde a adolescência, e de cuja lealdade é impossível duvidar. Mas, de um momento para o outro, Leontes tem a convicção de ser traído. Na peça existe mesmo um anti-Iago, um personagem chamado Camilo, que procura convencer o rei do caráter ilusório de seu ciúme, doentio fantasiar. Porém, mais a inocência da esposa se explicita, mais o sentimento de que ela é culpada se exaspera no rei. A um tal ponto que Leontes ordena uma consulta ao oráculo de Delfos, cuja resposta é a afirmação indiscutível da fidelidade de Hermíone e do caráter sem mácula de Políxenes. O comentário de Leontes é apenas uma seca negação absoluta: “Não há verdade nenhuma nesse oráculo. […] É só mentira”. Contra todas as razões, o ciúme aparece como um acesso inexplicável.

Faço essa referência ao Conto do inverno para lembrar a que extremo pode chegar em Shakespeare o irredutível mistério das paixões humanas. Em Leontes o ciúme é, por assim dizer, puro, sem mistura, é um absurdo que existe de per si, autoengendrado. A grande diferença com Otelo é que o Conto do inverno tem o tom da lenda. Otelo, ao contrário, faz o ciúme nascer de situações que não são as da fábula distante, embora também não tenha razões ou causas, possui uma existência espessa e turva.

Lembremos ainda uma questão: o amor. Ele não se confunde com a paixão. A frase de Otelo já foi citada: “quando deixar de te amar, será o retorno do caos”. Isto é, o amor aparece sobre um fundo de desordem e é ele que instaura a ordem. É possível, então, perceber em Shakespeare o amor não apenas como atração sentimental entre dois seres, mas como o Eros herdado da Antiguidade, que foi amplificado pelos comentadores da Renascença, particularmente Marcilio Ficino. Isto é, Eros, aquilo que associa, que engendra, que faz com que o ser seja, aquilo que o extrai do caos. Desse modo, o amor seguido de morte, em Shakespeare, não seria a vitória dos sentimentos espiritualizados sobre o mundo material e finito — o “inda mais te amarei depois da morte” dos românticos — mas a persistência do princípio erótico, apesar da guerra que lhe trava o mal (que pode ser visto, de um modo geral, como todos os princípios de corrupção, como o antieros; nesses princípios estão inseridas as paixões).

Otelo e Desdêmona, em nenhum momento da peça, deixam de se amar. A morte deles se dá no leito que os une afetiva e carnalmente; são vítimas e ao mesmo tempo virtualmente vitoriosos contra o poder desagregador do caos, porque são portadores de um princípio harmônico num mundo de desordem. E talvez um dos sentidos trágicos mais profundos de Otelo (e de algumas outras obras de Shakespeare) se encontre justamente no desenrolar de uma luta na qual o caos — que não cessa de ameaçar a harmonia — seja aparentemente vencedor.

ROSSINI, DESDÊMONA

Depois dessas observações a respeito da “matriz” shakespeariana, podemos passar à sua transformação em ópera.

Em primeiro lugar, por ordem cronológica, o Otelo composto por Rossini em 1816. O compositor tinha então 24 anos e já conquistara uma grande celebridade. O libreto, escrito por um napolitano, Francesco Maria Berio, marquês de Salza, toma liberdades imensas com a tragédia que o inspira. Lord Byron escreve, a respeito de uma interpretação da ópera a que assistiu: “crucificaram Shakespeare”.

A questão é que, no continente, Shakespeare era sobretudo conhecido através de algumas traduções aproximativas feitas por Voltaire para o francês e por algumas adaptações livres de Ducis, realizadas sob o reinado de Luís XVI, que foram, durante muito tempo, os principais meios de acesso em língua latina à obra do grande Will. Além disso, durante o século XVIII, muitas peças, retomando situações shakespearianas, foram escritas. O grande avatar de Otelo no século XVIII foi a Zaire de Voltaire, tragédia então muito célebre.

Desse modo, há, entre o libreto do marquês de Salza e Shakespeare, vários filtros. Tratava-se também de “fabricar” uma ópera num sistema de produção de espetáculos que não se preocupava com a fidelidade ao original,[24] um pouco como as adaptações literárias nos filmes de Hollywood da grande época. Shakespeare se tornava assim, essencialmente, um repertório de personagens e situações.

As discrepâncias são muitas entre os dois Otelo. Além de modificações consideráveis no entrecho, há mudanças de detalhes que nos parecem hoje extravagantes: a história transcorre inteiramente em Veneza; Desdêmona é apunhalada e não asfixiada. Especialmente, o lenço é substituído por uma carta de amor.[25]

Mas há uma transformação mais profunda que se passa na relação entre os personagens. Desdêmona torna-se indiscutivelmente preponderante e isso vai dar uma dimensão inesperada à tragédia. Não que essa importância atribuída à heroína tivesse, como ponto de partida, o que os intelectuais de hoje chamariam de uma “releitura” do texto de origem. Simplesmente, o papel precisava ser desenvolvido porque era destinado a uma estrela: Isabella Colbran, que possuía uma extraordinária voz de registro grave e que, acima de tudo, era esposa de Rossini.[26]

O marquês de Salza — homem de grande cultura e que não era um fabricante profissional de libretos — reduz a relação entre Otelo e Iago a um esquematismo e a uma rapidez desconcertantes, fazendo deles personagens francamente incoerentes, mas constrói uma Desdêmona sensível, “sensitiva”, que desde o início é investida pela angústia e pela premonição de seu destino. Se na ópera de Rossini a progressão do ciúme de Otelo é quase inexistente, nós podemos perceber, como num reflexo, como num espelho, a opressão que cresce no espírito de Desdêmona. Desse modo, não só o personagem feminino ocupa o primeiro plano, como a tragédia se passa dentro dele.

Evidentemente, o ponto culminante é o ritual da morte, que a Desdêmona de Rossini, ao contrário da de Shakespeare, parece desejar. Seu fim deixa uma impressão suicidária, no desespero de uma aflição que deve acabar a qualquer preço.

Mais a ópera avança para o desfecho, mais os sinais anunciadores do sacrifício se multiplicam, as premonições mais intuitivas, mais secretas obcecam Desdêmona. O marquês de Salza tem um achado notável: ele faz passar, diante da janela de Desdêmona, um gondoleiro (não nos esqueçamos que a ação, na ópera, transcorre toda em Veneza) que entoa uma canção lúgubre cujo texto é extraído do “Inferno” de Dante, com o qual Rossini, musicalmente, realiza algo de impressionante: o gondoleiro se impõe como mensageiro da morte, a sua gôndola se transforma numa espécie de barca de Caronte.

Mas é a canção do salgueiro certamente o apogeu da obra. A música de Rossini é sempre associada ao vigor, à energia, a uma vitalidade sem grandes nuanças e também a uma facilidade bem-aventurada em favorecer a virtuosidade dos cantores. Aqui, nem uma coisa nem outra.[27]

A canção do salgueiro se constrói sobre acompanhamento reduzido de harpa, depois violinos, em seguida clarineta e flauta. A melodia é lenta, feita de notas longas. A cada estrofe — quatro ao todo — ela vai sofrendo alterações com ornamentos que a perturbam, modulam estranhamente, criando pouco a pouco um clima de melancolia e opressão.

Desdêmona canta as três primeiras estrofes — e o texto da terceira é tão soturno que a angústia criada impõe uma interrupção, musicalmente acentuada por uma dissonância. O vento irrompe, traduzido pelos violinos. Esta lufada, presente em Shakespeare (e que Verdi irá também utilizar), se carrega de um valor premonitório suplementar. Desdêmona retoma a canção, mas a ânsia novamente a interrompe. Despede-se então de Emília dando-lhe — é o texto que diz — o derradeiro beijo. (Gravação proposta: Emília, Nucci Condó; Desdêmona Frederica von Stade; Philarmonia Orchestra, dirigida por Jesus Lopez-Corboz, disco Philips, 6769 023, Holanda, 1979.)

SHAKESPEARE, VERDI, BOITO

A gênese do Otelo de Verdi é muito diferente da que presidiu à obra de Rossini. A estreia se dá em 1887, e Verdi está com 74 anos. Sua força criadora continua intacta, mas foi amadurecida não só por uma prática intensa de produção para os teatros de ópera, como por uma reflexão a respeito dos destinos da música.

A ópera italiana, na segunda metade do século XIX, se abrira para influências internacionais — particularmente para o Grand Opéra francês. Além disso, havia Wagner — o que significava para Verdi uma exigência de renovação na música sem que isso o fizesse cair no rol dos inúmeros epígonos do compositor germânico. Idoso e coroado de louros, Verdi, mais do que nunca, está pronto para abandonar as exigências da “indústria” de produção de óperas no século passado e para encarar seu próximo trabalho de um modo mais conscientemente “enobrecido” do ponto de vista do projeto de uma obra de arte. Dá-se então o encontro com Arrigo Boito, o libretista.

Boito era também compositor, com imensas aspirações de reformar o teatro lírico. Mas produzia de modo lento e difícil, e escreveu apenas duas obras ambiciosas e monumentais — ambas, aliás, sobre o tema do mal: Mefistofele e Nerone. Altamente intelectual, imensamente culto, ele foi ainda um poeta brilhante, que empregava uma linguagem voluntariamente rara e arcaizante, e um esteta, um crítico implacável e agudo. Shakespeare, para ele, não era apenas um tema a mais. Era um escritor que ele conhecia profundamente e com quem tinha afinidades estreitas. E é ele quem faz a adaptação de Otelo para Verdi, e depois a de Falstaff.

Para Verdi, Shakespeare sempre foi um autor muito presente em sua cultura. Além de Macbeth, que, em 1847 — isto é, quarenta anos antes de Otelo —, colocara admiravelmente em música, Verdi sempre acalentou o projeto de um Rei Lear, jamais realizado.

Estamos assim diante de uma situação de familiaridade e respeito para com o original e da vontade de produzir uma obra que se encontre à altura de Shakespeare — situação muito diferente da do jovem Rossini e de seu parceiro, o marquês de Salza.

A adaptação de Boito é magistral. Ela concentra a ação da tragédia, o que é de regra, tratando-se de um libreto de ópera, por natureza mais conciso. E Boito utiliza a concisão sempre em benefício do que é apenas indispensavelmente necessário para que os caracteres se afirmem e a ação evolua.

Já disse que, sem o primeiro ato, a tragédia de Shakespeare obedeceria à regra das três unidades. Boito o corta, eliminando uma diversidade de situações e personagens que, diretamente, pouco estão implicados no ciúme de Otelo. Alguns monólogos, alguns personagens secundários, alguns crimes suplementares, presentes em Shakespeare, são também suprimidos. Em suma, a adaptação de Boito (adaptação notável, que mereceria análise detalhada) confere mais equilíbrio e densidade à ação. E não faltam mesmo especialistas sérios para julgar o Otelo de Boito e Verdi superior ao de Shakespeare. Discussão evidentemente vã, mas capaz de mostrar que a confrontação entre as duas obras se faz à mesma altura.

Boito é fiel ao texto de Shakespeare — o que não quer dizer, entretanto, obediência subalterna. Há um Otelo de Shakespeare e um Otelo de Verdi.

Este último fala italiano, e fala a língua admiravelmente erudita de Boito. É assim um Otelo mais nobre e também mais pudico — estamos no século XIX —, e esse pudor contrasta com a crueza do texto shakespeariano. Além disso, suprimindo o primeiro ato, no qual a cólera de vários personagens se ergue em insultos contra o mouro, Boito atenuou as situações onde o racismo aflora — embora aqui e ali se fale em “uomo nero sepolcral” e “selvaggio dalle gonfie labbra”. Boito diminui também a frequência e a intensidade das alusões corporais.

Porém, se essa corporalidade não é explicitada, ela não deixa de estar fundamentalmente presente no Otelo de Verdi. Apenas, ela existe de outro modo.

A CORPORALIDADE DA PALAVRA

No Otelo de Verdi há uma relação muito íntima entre as palavras e a música. Nem sempre foi assim na ópera: a mesma melodia podia ser empregada com textos os mais diversos, e o próprio princípio da ária, com a mesma linha melódica que se repete sobre estrofes diferentes, demonstra uma relação mais tênue entre o som musical e o som articulado. Significativamente, em Otelo não existem árias no sentido estrito do termo, e, mesmo quando a composição deveria se encaminhar para uma forma tradicional, a relação com a palavra se torna preponderante. Assim, o “Chi a l’esca” de Iago poderia ser apenas uma canção de brinde como as de tantas outras obras da época, mas ela se integra perfeitamente na ação e apresenta efeitos extraordinários de relação com as palavras: basta lembrar a vertiginosa descida cromática sobre a palavra “beva”.

Não se trata, no entanto, apenas de uma “tradução” em música do sentido do texto, mas de uma relação mais complexa, que não abandona esse aspecto, mas que incorpora a materialidade da palavra. Um bom exemplo é o canto heroico de Otelo ao desembarcar em Chipre:

Esultate! L’orgoglio musulmano

Sepolto è in mar, nostra e dei ciei è gloria!

Dopo l’armi lo vinse l’uragano.

(Exultai! O orgulho muçulmano

Está sepultado no mar, nossa e do céu é a glória!

Depois das armas, venceu-o o furacão.)

Trata-se de decassílabos solidamente estruturados, com grande presença de palavras longas (esultate, orgoglio, musulmano, sepolto, uragano) e com uma alternância de o e de a nas tônicas: vogais largamente dominantes.

Ora, que faz a música? Ela dilata ainda mais essas palavras longas, que se tornam elásticas, e acentua, numa tensão extrema, justamente as tônicas. A música investe assim as palavras de uma existência palpável, corpórea, dando a elas materialidade definitiva, e aos personagens, uma existência propriamente física através da voz.

A construção musical se carrega também de um sentido, embora não muito explícito — o que seria mecânico —, suficiente entretanto para provocar uma contaminação semântica.

Desse modo, depois da exclamação Esultate!, a frase se termina pela ideia de sepultura, de naufrágio, de derrota: como por acaso, sua linha melódica é descendente. Em compensação, céu, glória são palavras do alto — o movimento melódico se torna então ascendente.

E, na última frase, os termos mais importantes — armi, uragano —, os instrumentos de derrota dos turcos, são colocados nitidamente em relevo pela melodia.

(Gravação proposta: Beniamino Gigli, cujo fraseado perfeito permite a ilustração exemplar da análise que propus. Orquestra e dirigente indeterminados, sem data original, reeditada por Everest Records, Los Angeles, eua, s.d.)

Portanto, o som dá corpo à palavra — e é esse som corpóreo que substitui o falar sobre o corpo. Nesse sentido, o dueto entre Otelo e Desdêmona é, em realidade, um ato sonoro de amor.

O texto desse dueto, Boito o recuperara do primeiro ato shakespeariano que havia eliminado. Mas não há diálogo amoroso entre Otelo e Desdêmona na peça de Shakespeare. Na ópera, os dois, envolvidos por uma aura musical, se unem numa relação de profunda densidade amorosa.

Não cabe aqui uma análise detalhada. Gostaria apenas de fazer algumas observações. O dueto se passa após uma cena extremamente agitada. É noite, o casal está a sós, sob um céu estrelado e à beira-mar. Verdi não faz música descritiva, mas sugere, por uma alquimia um pouco difícil de ser explicitada, a atmosfera que os envolve.

Tudo começa com o violoncelo, cuja melodia introduz a calma e cujo timbre sombrio introduz a noite. Ele prepara as primeiras palavras de Otelo, que falam de acalmia e serenidade. Depois, o casal relembra os momentos em que o mouro contava sua vida de aventuras: foi dessa forma que ele se fez amar por Desdêmona. A música é investida por uma espécie de movimento respiratório que se torna cada vez mais febril. Em seguida (“Venga la morte”), Otelo passa por um momento de êxtase e temor. Enfim os beijos (“Um bacio… ancora un bacio”) tão embriagadores que — momento orgástico — Otelo se sente desmaiar. (Gravação proposta: Desdêmona, Renata Tebaldi; Otelo, Mario del Monaco; Orquestra Filarmônica de Viena, dirigida por Herbert von Karajan, disco London, LLC 5195, Brasil, s.d.)

Insisti no fato de que Boito reduz o texto de Shakespeare. Mas existe um momento em que ele acrescenta alguma coisa — e alguma coisa de essencial: é o Credo, de Iago. Trata-se, como o nome indica, de uma profissão de fé. Alguns de seus aspectos já haviam aparecido em outros textos poéticos de Boito,[28] e contém preocupações profundas do libretista — embora o que se encontre dito nele não seja estranho ao próprio universo shakespeariano — seria possível encontrar facilmente pontos de contato com Hamlet ou Lear, por exemplo. O importante é que Iago pronuncia essa fé. O texto é luciferiano; o mundo, desprezível (em Mefistofele, Boito fará o diabo dizer, dirigindo-se a Deus: “Iddio piccin della piccina terra”), é movido pelo mal. Um deus maligno o criou, e a essa criação repugnante se acrescenta o Nada. O homem é apenas brinquedo dessa sorte irônica e Iago não faz mais do que puxar os fios dos títeres. Boito não contradiz Shakespeare, não explica, de um modo causal, as ações de Iago — o que faz é introduzir um fundamento metafísico não explícito em Shakespeare, através dessa teologia da negação.[29] A música de Verdi, que começa com acordes apocalípticos desencadeados na orquestra, chega a um silêncio que é como a percepção palpável desse nada. (Gravação proposta: Iago, Aldo Protti; Orquestra Filarmônica de Viena, dirigida por Herbert von Karajan, disco London, LLC 5195, Brasil, s.d.)

No último ato, tudo se concentra em volta da cama de Desdêmona, que se torna a ara sacrifical. Na ópera de Verdi, o personagem é ainda mais marcadamente vítima, envolvido por uma composição escrita para instrumentos de sopro, criando uma sonoridade de órgão, um pouco estranha, feita de timbres diversificados. Nela se insere, essencial, a canção do salgueiro e também uma prece, frágil se comparada à “terribiltà” que Iago invoca.

Depois, o suicídio de Otelo — o sacrificador que por sua vez se torna vítima. Aqui, o poder evocador da música vai buscar os beijos do dueto de amor do primeiro ato. Otelo morre sobre o leito nupcial ao lado de Desdêmona, e então o absurdo do mundo é sublimado pela morte que se dá no seio do amor. (A gravação proposta é bastante rara e quase um milagre. Porque se trata da interpretação do criador do papel de Otelo há cem anos, Francesco Tamagno, tenor lendário. Tamagno morreu em 1905, com 55 anos de idade, ainda em plena atividade. Gravou a morte de Otelo em 1903. O envelhecimento técnico desse documento não anula as magníficas características da voz clara, jovem, poderosa, à qual se acrescenta uma interpretação inigualável. O fraseado, a ligação entre as palavras, entre as sílabas, o tratamento burilado de cada vogal são perfeitos, de uma perfeição calorosa e emocionada. Emoção que é de ordem estritamente musical, sem nenhum excesso de truculência teatral, frequentes em maus tenores. Testemunho esplêndido do grande estilo verdiano do século XIX, ao qual se acrescenta a comoção de se ouvir a voz do verdadeiro Otelo de Verdi, vinda de um passado remoto. Gravação original de 1903, com acompanhamento de piano, reeditada em disco EMI, Itália, QALP 5336, 1966.)

EXCERTOS DA DISCUSSÃO

Questão: Uma dúvida que me deu… Há, em Shakespeare, todo aquele desespero do homem em relação ao mundo, que aparece muito em Hamlet. Ao ler essa parte do libreto de Boito, eu vi que Iago é muito shakespeariano, como você mesmo disse, o próprio libretista absorveu o pensamento de Shakespeare, a fala de Shakespeare. Otelo é anterior ou posterior a Hamlet, você lembra?

Jorge Coli: Posterior.

Questão: Em Hamlet ainda há dúvida. Aqui, Iago não acredita mais em coisa alguma, não duvida: depois da morte é o nada.

Jorge Coli: Creio que, em Shakespeare, essa negação absoluta de tudo nunca é afirmada claramente. O que acontece com frequência nas peças de Shakespeare é uma espécie de perplexidade diante do mundo e diante das crenças, acompanhada de uma interrogação constante sobre a origem do mal. A série de vilões em Shakespeare é notável. Eles têm um pouco da natureza de Iago, que provoca a emergência do mal no mundo, sem razões suficientes. Um caso extremo é, por exemplo, o de Dom João, em Muito barulho por nada. É um vilão que não tem nenhuma razão de ser, afora sua bastardia (como também o Edmundo do Rei Lear): ele está lá encarnando o mal. Só que, em Muito barulho por nada, existe uma dimensão cômica, enquanto que no Otelo ela é profundamente trágica. Menos do que uma afirmação absoluta, uma profissão de fé como em Boito, há em Shakespeare essa ideia de perplexidade do limite da compreensão. O acaso é um grande sintoma: as coisas devem se completar de tal ou qual modo, mas são interrompidas, contrariadas em algum momento, porque há um descompasso em algum lugar. O acaso é um excelente agente desse descompasso.

Questão: Há em Hamlet a dúvida. Aqui, nessa parte do libreto em que Iago diz que não acredita no homem honrado…

Jorge Coli: É certamente a parte que mais lembra o monólogo de Hamlet, como suportar o desmando das leis, da injustiça…

Questão: No Iago da ópera há uma afirmação: o justo é um histrião burlador.

Jorge Coli: Em Hamlet, está claro o enunciado de que não suportaríamos os desmandos se soubéssemos quais sonhos virão depois da morte, pois tudo poderia ser resolvido com a ponta de um punhal. No Iago de Boito, afirma-se não a existência de injustiça, como em Hamlet, mas a inexistência do justo. Não há o justo. E também não há dúvida sobre o depois da morte: é o Nada. É essa perspectiva nova, da negação total, que o texto de Boito traz.

Eu lhe agradeço a questão, pois creio que é importante considerar o Otelo de Verdi e Boito digno de uma comparação com o de Shakespeare. Não é apenas uma ópera a partir do tema shakespeariano, é uma retomada do original, um retraçar dos caminhos que Shakespeare já havia constituído.

Questão: Talvez fosse interessante retraçar um paralelo entre o ciúme visto desse ponto de vista quase que metafísico, isto é, de que o homem chega, pela paixão, a um determinado momento que não tem explicação, que não tem causa ou razão. Ele se torna uma paixão, ele age assim, como força. E como a gente vê o ciúme hoje, no século XX, psicologizado…

Jorge Coli: Extremamente.

Questão: …propriedade do corpo do outro, enquanto que aqui ela tem uma dimensão muito mais elástica, talvez…

Jorge Coli: É claro.

Questão: …muito mais extensa. Não sei se a gente poderia fazer esse paralelo, eu pediria isso a você.

Jorge Coli: Creio que uma das lições que o texto de Shakespeare pode nos dar é justamente de como são vãs todas as tentativas de explicação, todos os princípios de solução, como é vã essa busca da felicidade através do causal, através daquilo que, mexendo lá, vai ter um efeito ali. Ora, se tomarmos Shakespeare a partir daquilo que ele próprio coloca, do universo que instaura, esse tipo de explicação é irrisório. Como são irrisórias as análises psicológicas, sociológicas e outras. Por exemplo, eu disse que a homossexualidade estava presente, que ela surge inesperadamente na peça como um dos elementos da paixão. Agora, se eu chegar e disser: bem, Iago age desse modo porque na realidade está apaixonado por Otelo etc, tudo fica de um simplismo, de um mecanicismo impossível! Então, para mim, o prazer de trabalhar essa história da paixão é de tomá-la como uma coisa compacta, como esse amálgama de que falei, e tentar penetrá-lo sem buscar nenhuma explicação suficiente. Nesse sentido, as obras de arte, entre elas o teatro e a ópera, são ótimos instrumentos: nos dão a coisa assim em bloco. Se eu tento explicar o porquê, fico ridículo. A complexidade da obra é muito maior do que qualquer explicação que se possa dar.

Notas

[1] Assis, Machado de, Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985, vol. I, p. 934.

[2] “This the nature/ Whom passion could not shake?”, ato IV, cena 1, l. 268-9. Cf. também ato III, cena 4, 1. 134-9.

[3] “I think the sun where he was born/ Drew all such humours from him”, ato III, cena 4, 1. 30-1.

[4] “Of one not easily jealous”, ato v, cena 2, I. 345.

[5] “O, beware, my lord, of jealousy;/ It is the green-eyed monster, wich doth mock/ The meat it feeds on”, ato III, cena 2, 1. 166-70.

[6] “Demand me nothing, what you know, you know/ From this time forth I never will speak word”, ato v, cena 2,1. 303-4.

[7] . Espinosa, Ética, trad. Lívio Xavier, Ediouro. O grifo é meu.

[8] “Hot, hot and moist: this hand of yours requires/ A sequester from liberty, fasting and prayer,/ Much castigation, exercise devout;/ For here’s a young and sweating devil here,/ That commonly rebels”, ato III, 4, 1. 39-43.

[9]O: What hath he said?

 I: Faith, that he did — I know what he did.

O: What, what?

I: Lie —

O: With her?

I: With her, on her; what you will.

O: Lie with her! lie on her — we say lie on her, when they belie her. — Lie with her! Zounds, that’s fulsome!”, ato IV, cena 1, l. 31-7

[10] “I found not Cassio’s kisses on her lips”, ato III, cena 3, 1. 341.

I had been happy, if the general camp,/ Pioners and all, had tasted her sweet body,/ So I had nothing known”, ato III, cena 3, 1. 345-7.

[11] “…as prime as goats, as hot as monkeys,/ As salt as wolves in pride”, ato III, cena 3, 1. 403-4.

[12] “I lay with Cassio lately, […]/ In sleep I heard say ‘Sweet Desdemona,/Let us be wary, let us hide our loves’/ And then, sir, would he gripe and wring my hand,/ Cry ‘O sweet creature!’ and then kiss me hard,/ As if he pluck’d up kisses by the roots,/ That grew upon my lips: the laid his leg/ Over my thig and sigh’d and kiss’d, and then/ Cried ‘Cursed that gave thee to the moor!’ ”, ato III, cena 3, 1. 413-26.

[13] Citado por Reliquet, Philippe. “Otello, drame raciste”, L’Avant-Scène Opéra, 3, maio-jun. 1976

[14] Citado por Castelain, Maurice, “Introduction à Othello”, in Othello, Paris, Aubier-Montaigne, 1959, p. 29.

[15] Citado por Lord Derwent, Rossini, Paris, Gallimard, 1937, p. 98-9

[16] “[…] as — to be bold with you —/ Not to affect many proposed matches/ Of her own clime, complexion and degree./ Whereto we see thigs nature tends—/ Foh! one may smell in such a will most rank./ Foul disproportion, thougs unnatural”, ato III, cena 3, 1. 228-33.

[17] Hugo, Victor, William Shakespeare, Paris, Flammarion, 1973, p. 201.

[18] “Even now, very now, an old black ram/ is tupping your white ewe/ […] the devil will make a grandsire of you”, ato I, cena 1, l. 87-91. Cf. também, mais adiante, “you’ll have your daughter covered with a Barbary horse”, 1. 110-1, e “your daughter and the moor are now making the beast with two backs”, 1. 116-7.

[19] “and when I love thee not,/ Chaos is coming again”, ato III, cena 3, 1. 91-2.

[20] In Erich Auerbach, Mimesis, Paris, Gallimard, 1968.

[21] Idem, p. 323.

[22] “I am not what I am”, ato I, cena 1, l. 65.

[23] “ ‘tis a monster/Begot upon itself, born on itself’, ato III, cena 4, l. 161-3.

[24] Roger Fayolle, em sua introdução a Racine et Shakespeare de Stendhal (Garnier-Flammarion, 1970), lembra a indignação precoce do autor da Chartreuse contra as adaptações e traduções infiéis, que proclamava, desde 1817, “Il nous faut du Shakespeare pur” (p. 22). Victor Hugo dirá também em William Shakespeare (op. cit., p. 180), a respeito da nova tradução de seu filho François-Victor Hugo (a primeira realmente fiel em idioma francês): “Ce Shakespeare sans muselière, c’est la présente traduction”. Sabe-se que Garrick, no século XVIII, embora tentando uma “volta” aos textos originais de Shakespeare, não hesitava, por exemplo, em fazer o Rei Lear terminar com um final feliz. Para as representações de Roma, o próprio Rossini modificou seu Otelo, fazendo-o terminar por um harmonioso dueto de amor, extraído de uma outra ópera sua. Os romanos haviam julgado a história triste demais.

[25] Provável influência da Zaíre de Voltaire, onde o instrumento da suspeita é uma carta. Sobre as convenções do teatro clássico francês, que recusavam palavras e expressões consideradas vulgares (lenço — mouchoir — sendo uma delas), cf. algumas passagens de Racine et Shakespeare de Stendhal, particularmente a seção IX de “Réponse à quelques objections”, op. cit, p. 93 e seg. Para uma comparação entre Otelo e Zaíre, cf. a extraordinária análise de Leo Spitzer: “Quelques interprétations de Voltaire”: in Etudes de Style, trad. por Eliane Kaufholz, Alain Coulon e Michel Foucault, Paris, Gallimard, 1970, p. 336 e seg.

[26] Para quem Rossini escreveu um grande número de óperas.

[27] Desdêmona, aliás, não possui, em nenhum momento, oportunidade para malabarismos vocais.

[28] Cf., por exemplo, o poema “Dualismo”, de 1864, in Boito, Arrigo. Opere, Garzanti, Milão, 1979, p. 3 e seg. A relação entre o homem e o verme, desenvolvida no texto do “Credo”, encontra um eco significativo em “Re Orso”, op. cit., p. 41 e seg.

[29] O texto do “Credo” proferido por Iago é o seguinte:

Credo in un Dio crudel che m’ha creato

Simile a sè, e che nell’ira io nomo.

Dalla viltà d’un germe o d’un atomo

 

Vile son nato.

Sono scellerato

Perchè son uomo

E sento il fango originario in me.

Si! quest’è la mia fé!

Credo con fermo cuor, siccome crede

La vedovella al tempio,

Che il mal ch’io penso e che da me

[procede

Per mio destino adempio.

Credo che il giusto è un istrion beffardo

E nel viso e nel cuor,

Che tutto in lui è bugiardo:

Lagrima, bacio, sguardo,

Sacrifício ed onor.

E credo l’uom gioco d’iniqua sorte

 

Dal germe della culla

Al verme dell’avel.

Vien dopo tanta irrision la Morte.

 

E poi? La morte è il Nulla.

È vecchia fola il ciel!

Creio num Deus cruel que me criou

Semelhante a si, e que na ira eu invoco.

 

Da vileza de um germe ou de um átomo

Vil nasci.

Sou celerado

Porque sou homem

E sinto a lama originária em mim.

Sim! esta é a minha fé!

Creio com firme coração, como crê

A viuvinha no templo,

Que o mal que penso e que de mim

[procede

Eu o realizo pelo meu destino.

Creio que o justo é um histrião burlador

No rosto e no coração,

Que tudo nele é mentira:

Lágrima, beijo, olhar,

Sacrifício e honra.

E creio que o homem é um jogo da

 [sorte iníqua

Do germe do berço

Ao verme do túmulo.

Vem, depois de tanta irrisão, a Morte.

 

E depois? A morte é o Nada.

O céu é uma velha fábula

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