1999

O mau encontro

por Marilena Chaui

Resumo

No Discurso da servidão voluntária, quando formula a ideia do mau encontro que teria desnaturado o homem fazendo-o perder a lembrança de sua liberdade natural originária, La Boétie levanta uma hipótese: a de que nascesse “uma gente toda nova, nem acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade” e à qual se perguntasse se quereria viver como serva ou viver livre: “Com que leis concordaria?”. Nitidamente, La Boétie se refere à imagem dos habitantes do Novo Mundo, tradicionalmente apresentada pelos viajantes como a dos homens sem lei, sem fé e sem rei. Ora, essa imagem tornara-se central nas disputas europeias sobre o direito dos conquistadores.
As discussões quinhentistas e seiscentistas são de tipo jurídico e oscilam entre a afirmação e a negação aos índios do direito natural, do direito das gentes e do direito civil, entre a afirmação e a negação da escravidão natural dos indígenas. Pergunta-se se os indígenas são ou não bárbaros, se são ou não domináveis de direito, se precisam ou não consentir num pacto de dominação, se a guerra contra eles é ou não justa. Isso significa que a preocupação se volta para saber se há ou não um Estado positivo indígena e qual a relação entre indígenas e Estados europeus cristãos.
La Boétie fala em “gente toda nova” não acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade pois desconhece o nome da liberdade justamente porque vive livremente. Essa “gente toda nova” sem lei, sem fé e sem rei escolheu não os ter porque escolheu a liberdade. La Boétie indaga como os homens, naturalmente racionais e livres, instituíram a coerção, a sujeição a senhores e a servidão, a qual, por ser instituída pela liberdade, terá que ser nomeada servidão voluntária.
A “gente toda nova” surge no Discurso para demonstrar que não há necessidade natural nem necessidade de destino no surgimento do Estado como poder separado da sociedade, isto é, como dominação de um senhor ou de vários senhores sobre o restante. Se não é por necessidade da natureza nem por necessidade do Destino que tal poder foi instituído, qual é a origem e a causa de sua instituição? Como os homens, seres naturalmente livres, usaram a liberdade para destruí-la? Como é possível uma servidão que seja voluntária?
La Boétie propõe o infortúnio ou o mau encontro como resposta. Se por natureza os homens são livres e servem somente a si mesmos, servindo à razão, a servidão só pode ser explicada pela coação (os homens são forçados a servir ao mais forte) ou pela ilusão (os homens são iludidos por palavras e gestos de um outro que lhes promete bens e liberdade) . Porém, a coação e a ilusão podem explicar por que o tirano sobe ao poder mas não podem explicar por que ele assim se conserva. La Boètie explica: consentimos em servir porque esperamos ser servidos, cada um serve ao poder separado porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica. Haver tirano significa que há sociedade tirânica.
Os teólogos e juristas cristãos quinhentistas e seiscentistas tomam a via oposta do Discurso de La Boétie, isto é, inventam como conceito juridicamente válido e racional a ideia de servidão voluntária, com que pretendem explicar a condição dos índios e justificar a Conquista. Como, por natureza, só há ordem e justiça no universo se o inferior obedecer ao superior, faz parte da ordem e da justiça universais que africanos e índios se submetam voluntariamente aos homens brancos cristãos adultos. De monstruosidade lógica (impensável), ontológica (um ser racional insensato), ética (um agente moral sem liberdade) e política (um sujeito político sem igualdade), a servidão voluntária se torna expressão da necessidade natural, da justiça cósmica, da vontade de Deus e da condição legítima dos conquistados.
Eis aí infortúnio e o mau encontro.


1

Teeteto cavou a terra para nela plantar. Encontrou um tesouro. Sócrates foi ao mercado comprar legumes. Encontrou Cálias, que lhe pagou uma dívida. O navio se dirigia a Egina. Encontrou uma tempestade e derivou rumo a Atenas.

Esses exemplos são clássicos na história da filosofia: são os que Aristóteles oferece quando examina as ideias de contingência e acaso. Contingência e acaso, explica o filósofo, não são acontecimentos sem causa. São acontecimentos produzidos pelo encontro de duas séries causais independentes. Assim, o primeiro nome da contingência e do acaso é encontro e encontro inesperado. Ou, como explica Aristóteles, a causa do acontecimento é acidental, pois produz um efeito que não estava previsto na causalidade de cada uma das séries, de tal maneira que um certo fim é realizado sem que estivesse previsto pelos agentes ou sem que estivesse presente nos meios, pois estes não visavam a tal fim e sim a um outro: Teeteto foi plantar e não buscar um tesouro; Sócrates foi comprar legumes e não receber uma dívida; o navio se dirigia para Egina e não para Atenas. Por que encontro? Porque o acontecimento não é incausado e sim o cruzamento de duas séries causais independentes. Por que inesperado? Porque a marca da contingência e do acaso é a indeterminação, pois tanto as causas que o produziram poderiam não ter acontecido (se Teeteto estivesse com febre, talvez não fosse plantar; se Sócrates tivesse encontrado um amigo, talvez não tivesse ido ao mercado; se a carga não estivesse embarcada, talvez o navio não saísse do porto), como também nada assegura que o fim vai ser realizado, uma vez que a finalidade da ação decidida pelo agente nada tem a ver com o fim realizado (em vez de favas, Teeteto colheu um tesouro; em vez de legumes, Sócrates obteve o pagamento da dívida, em vez de chegar a Egina, o navio deu em Atenas). Por se tratar de um encontro inesperado, a contingência é o que faz acontecer algo novo no mundo, isto é, algo que a causalidade natural não faria acontecer regular e previsivelmente.

Ao contrário do acaso e da contingência, o necessário é o que acontece sempre e não pode deixar de acontecer como acontece; assim como o impossível é o que não acontece nunca e não pode jamais acontecer – é necessário que a água umedeça, o fogo aqueça, o óleo alimente a chama, a pedra caia; é impossível que esses efeitos não se produzam e que a água queime, o fogo umedeça, que o verão não ocorra entre a primavera e o outono. Quando um acontecimento natural é contrário à lei da causalidade necessária, diz-se que foi produzido por uma ação ou uma causa contrária à natureza da coisa, e essa causa contrária ou contranatureza chama-se violência. É por uma ação violenta que uma pedra irá para o alto, pois é de sua natureza vir para baixo. Necessário e impossível se referem, portanto, à ação regular e normal das causas naturais, enquanto a violência se refere à intervenção de uma causa não natural numa causalidade natural. Essa causa violenta é a técnica, isto é, a ação humana que interfere no curso natural das coisas.

À distância do acaso e da contingência e situado entre o necessário e o impossível, está o possível, isto é, aquilo que, como o contingente e o acaso, pode ou não acontecer, mas que, diferentemente da contingência e do acaso, resultantes do mero encontro, é aquilo que acontece se houver um agente com o poder para fazê-lo acontecer. Assim, o possível é o que está em poder de um agente fazer ou não acontecer. Esse agente pode ser a técnica, que usa as causas naturais de maneira a alterar seus resultados. Mas esse agente pode ser também a vontade livre, com o poder para escolher entre alternativas contrárias e para deliberar sobre o sentido, o curso e a finalidade de uma ação. Embora o possível seja, como o contingente, aquilo que pode ou não acontecer, no contingente o acontecimento se dá independentemente da deliberação do agente e da finalidade que o agente dera à sua ação, enquanto no possível o acontecimento resulta da escolha deliberada feita pelo agente, que avalia meios e fins de sua ação. Eis por quê, desde Aristóteles, aprendemos a distinguir entre o contingente e o possível dizendo que o primeiro não está em nosso poder e que o segundo é exatamente o que está em nosso poder. Enfim, embora a técnica e a ação livre da vontade façam ambas parte do possível, a diferença entre elas está em que o efeito da ação técnica é um objeto diferente do próprio agente, algo que existe separadamente dele como produto, enquanto na ação livre o efeito é a própria ação, é o próprio agente agindo de sorte que não se podem separar o agente, a ação e o efeito da ação. Somente neste segundo caso se pode falar em ética e política, isto é, em ações que não se distinguem e não se separam do próprio agente. Assim, se herdamos de Aristóteles a ideia do acaso como encontro, dele também herdamos a ideia da liberdade da vontade como a ação que está em nosso poder. Por isso Aristóteles afirma que não deliberamos sobre aquilo que não temos o poder de fazer acontecer, isto é, não deliberamos sobre o necessário, o impossível e o contingente, mas somente sobre o possível. A tradição filosófica nos deixa como herança, portanto, a distinção entre o que não está em nosso poder (o acaso, o necessário e o impossível) e o que está em nosso poder (o possível). Ora, só há possível quando há deliberação e escolha, e por isso só se pode falar propriamente no possível para as ações humanas. Ora, no caso de nossas ações, o necessário e o impossível não se referem apenas ao que escapa de nosso poder porque são o que sempre tem que acontecer ou o que nunca pode acontecer – isto é, o necessário é a sequência imutável de séries causais e de séries de efeitos, e o impossível é a ausência de tais séries de causas e efeitos -, mas se referem ainda ao tempo. O passado enquanto passado é necessário e por isso não está em nosso poder, e o futuro enquanto futuro é contingente, isto é, pode ou não acontecer desta ou daquela maneira. Lemos no livro VI da Ética a Nicômaco: “O passado jamais pode ser objeto de escolha: ninguém escolhe ter havido o saque de Tróia; com efeito, a deliberação não se refere ao passado, mas ao futuro e ao contingente, pois o passado não pode não ter sido. Agatão está certo ao escrever: ‘Pois há uma única coisa de que o próprio Deus está privado: fazer com que o que foi não tenha sido”‘. Em outras palavras, a necessidade do passado se contrapõe à possibilidade do presente, em decorrência da indeterminação do futuro. O possível está articulado ao tempo presente como escolha que determinará o sentido do futuro, que, em si mesmo, é contingente, isto é, poderá ser desta ou daquela maneira, dependendo de nossa deliberação, escolha e ação. Isso significa, no entanto, que, feita a escolha entre duas alternativas contrárias e realizada a ação, aquilo que era um futuro contingente se transforma num passado necessário, de tal maneira que nossa ação determina o curso do tempo. É essa passagem do contingente ao necessário por meio do possível que dá à ação humana um peso incalculável. Assim, se voltarmos aos nossos exemplos. Um curso novo de acontecimentos terá lugar se Teeteto se apossar do tesouro, se Sócrates receber a dívida e se o piloto desviar o navio para Atenas, pois a escolha possível no presente produz uma ação que, tornando-se passada, também se torna necessária. Já não é mais possível a Teeteto não viver os efeitos da posse do tesouro, já não é mais possível a Sócrates não ter recebido a dívida e não há mais nenhuma possibilidade de que o navio não tenha aportado em Atenas.

Assim, a tradição filosófica não nos deixou apenas a clara distinção entre o necessário, o contingente e o possível, e, no possível, a distinção entre a técnica como ação violenta e a práxis como ação livre, mas também nos legou uma consequência difícil. De fato, quando iniciamos uma ação por vontade livre, embora de nossa perspectiva essa ação seja um possível escolhido livremente por nós, tal ação é também um acontecimento novo no mundo e, como tal, não só esse novo se tornará um fato passado necessário que desencadeará suas próprias consequências necessárias, como também nossa ação livre poderá ser um acaso para um outro que não a esperava. Isso significa que quando agimos por liberdade, embora nossa ação seja um possível em nós e para nós, ela é, para um outro, um acontecimento inesperado, um acaso. Dessa maneira, pouco a pouco, não só a filosofia manteve a ideia aristotélica de que o acaso e a contingência não são sem causa, mas também foi levada a considerar que o acaso e a contingência não são apenas o efeito de um poder externo que age sobre nós, mas são efeitos de ações livres. Em outras palavras, a liberdade tem como causa nosso poder sobre o possível, mas tem como efeito fazer acontecer algo contingente para um outro, pois o outro não tem poder sobre a nossa liberdade e não tem poder sobre os efeitos de nossa liberdade. Assim, para o outro, nossa liberdade pode ter o mesmo papel, o mesmo sentido e o mesmo peso que o acaso. Nossa liberdade causa efeitos contingentes para um outro e também produz um encontro, bom ou mau. É assim que, no caso de ir ao mercado comprar legumes e encontrar alguém que nos paga uma dívida, podemos falar no encontro de duas séries causais independentes que tem como origem a liberdade de duas pessoas que escolheram ir ao mercado e por isso se encontraram. Em outras palavras, o encontro se deu entre duas liberdades. Todavia, no caso do navio desviado de Egina para Atenas por força de uma tempestade, o encontro não seu deu entre duas liberdades, mas entre a liberdade do piloto e dos passageiros que escolheram ir a Egina e a causalidade necessária da natureza, que produziu a tempestade. Nesse caso, não há encontro de duas liberdades, mas o encontro entre uma liberdade e uma necessidade. Enfim, no caso de nosso primeiro exemplo – cavar a terra para plantar e encontrar um tesouro -, também podemos falar no encontro de duas séries causais independentes, mas já não é tão evidente que devemos também pensar que fomos livres para ir cavar a terra e que foi por vontade livre que alguém escondeu um tesouro. Nesse terceiro caso, tanto ir cavar a terra para plantar como esconder o tesouro podem não ter sido ações livres: se eu não cavar a terra e não plantar, não terei alimento, ou perderei o emprego, ou, se sou escrava, serei açoitada; se eu não esconder o tesouro, ou alguém poderá tomá-lo de mim, ou terei que devolver ao verdadeiro dono, ou sofrerei as penas da lei, se ele não for meu. Em outras palavras, embora eu seja livre para cavar a terra ou não cavá-la e para esconder ou não esconder o tesouro, já não podemos falar simplesmente numa livre decisão da vontade, pois algo impeliu e forçou minha vontade a realizar a ação: a fome, o proprietário da terra; a avareza, o medo da justiça. Assim, para dizer que uma ação é livre, é preciso que esteja inteiramente no poder do agente realizá-la ou não, e que a decisão de realizá-la ou de não realizá-la dependa exclusivamente da deliberação e da escolha feita pelo poder do agente. Nos demais casos, diremos que a vontade foi coagida numa direção em vez de outra e que a ação não é livre.

Dessa maneira, a tradição filosófica nos legou um quadro de referências com que podemos distinguir ações livres e não livres. Não são livres as ações feitas: 1) por necessidade da natureza (contrair a pupila, sentir fome, sentir sede, ter o pulso acelerado ou retardado, nascer, viver, envelhecer, morrer); 2) por contingência ou por acaso (encontrar um tesouro, receber o pagamento de uma dívida, ir dar em Atenas quando se pretendia ir a Egina); 3) por violência técnica, quando se força uma coisa ou um agente a realizar uma operação contrária à sua natureza; 4) por violência moral e política, isto é, coação ou constrangimento da vontade sob o poder de um outro (não cavar e terra e perder o emprego ou ser açoitado; não esconder o tesouro e ser roubado ou aprisionado pela polícia). São livres as ações cuja causa se encontra apenas em nós quando está inteiramente em nosso poder escolher entre possíveis contrários ou entre alternativas igualmente possíveis. Os efeitos de uma ação são necessários quando são determinados por uma causa necessária, como é o caso da natureza; os efeitos de uma ação são contingentes quando sua causa é contingente, como, por exemplo, quando se referem ao futuro. Mas os efeitos de uma ação livre são de dois tipos: para o agente livre, os efeitos da ação fazem crescer sua liberdade e são efeitos livres; porém, para um outro, os efeitos da ação de um agente livre podem ser efeitos contingentes, os quais tanto podem aumentar como diminuir a liberdade desse outro. Para um outro, minha ação livre pode ser um bom ou um mau encontro. Não só isso. Se a ação livre é aquela que torna possível um future contingente e ao realizá-lo o transforma em passado necessário, então também é efeito da liberdade a produção da necessidade nos acontecimentos humanos. Um possível livremente realizado se torna um necessário instituído. Como dissera Aristóteles, o necessário é o que não pode ser objeto de deliberação nem de escolha. No entanto, também “não está em nosso poder” o oposto à necessidade (natural ou histórica), isto é, a contingência ou o acaso. O agente ético e político encontra-se, portanto, encravado entre dois poderes exteriores que o determinam de maneira exatamente oposta: a necessidade o obriga a seguir leis (naturais) e regras (históricas) sobre as quais nada pode; a contingência o força em direções contrárias imprevisíveis, dando peso ao verso de Ovídio nas Metamorfoses: “Video meliora proboque, deteriora sequor” – “Vejo o melhor e o aprovo; sigo o pior”. Mais do que isso, no casa da ética e da política e, portanto, da história, a necessidade foi produzida pela própria ação livre do agente que transformou um contingente num possível e ao realizar esse possível o transformou em necessário. Eis por quê, ao descrever o agente ético e político virtuoso, isto é, livre e responsável, Aristóteles afirmará que a virtude perfeita é a prudência e o homem perfeitamente virtuoso é o prudente, isto é, aquele que olha para a frente e para trás, examina o passado e o futuro, pesa as consequências da ação porque tais consequências se tornarão necessárias e terão efeitos sobre ele e sobre os outros. O prudente é aquele que enfrenta o problema maior posto pela ação livre, isto é, a indeterminação do tempo presente, a necessidade do tempo passado e a contingência do tempo futuro.

É essa relação essencial com o tempo que leva Aristóteles, finalmente, a distinguir o acaso na natureza e o acaso nas ações humanas. Na natureza, o acaso é apenas o encontro acidental de séries causais independentes que produzem um fim não previsto e um acontecimento imprevisto. Nas ações humanas, porém, o acaso recebe o nome de Fortuna ou Sorte. No livro K da Metafísica, Aristóteles explica:

Quanto ao outro ser, digo, o ser por acidente, não é necessário, mas indeterminado, suas causas são inordenadas e em número infinito. Há finalidade no que devém por natureza ou provém do pensamento. Há fortuna quando um desses acontecimentos se produz por acidente […] A fortuna é uma causa por acidente daquele que escolhe normalmente segundo uma escolha refletida em vista de um fim. Assim, fortuna e pensamento relacionam-se com as mesmas coisas, pois a escolha não existe separada do pensamento. Mas as causas que produzem o que pode vir da fortuna são indeterminadas, donde se segue que afortuna é impenetrável ao cálculo do homem. [grifos meus]

Em outras palavras, enquanto no possível o número de causas é finito ou determinado – são duas alternativas contrárias que estão submetidas à deliberação do agente -, no caso da fortuna o número de causas, isto é, de alternativas, é ilimitado ou totalmente indefinido e por isso não podemos deliberar, não temos como deliberar.

O possível é o campo onde se exerce nossa vontade e nossa liberdade. A fortuna é o espaço-tempo do imprevisível no qual as coisas nos acontecem sem que possamos ter outra atitude senão a da recepção do acontecimento que cai sobre nós. Na fortuna, somos passivos: algo nos acontece em decorrência de causas externas que não controlamos; por isso falamos em graça e em desgraça, para indicar a ação benfazeja ou malfazeja de uma potência externa que nos atinge; falamos em boa fortuna ou boa sorte e em infortúnio ou má sorte, em boa dita e desdita, em bom ou mau encontro. No possível somos ativos: algo acontece por ação de nossa liberdade como causa interna desse acontecer. Por isso falamos em virtude e vício como o que está em nosso poder, como o que dá sentido às ações de nossa vontade e de nossa liberdade. A ética e a política pertencem, assim, ao campo do possível, a natureza, ao do necessário, e a história, porque campo de inumeráveis causalidades simultâneas, tende sempre a ser vista como o campo da fortuna, pois esta traz a marca de tudo quanto há de incontrolável e de imponderável no tempo. Essa ideia da fortuna como senhora do tempo humano e como senhora da história encontra-se na primeira página da História de Heródoto, que narra a guerra entre os gregos e os persas e afirma que a justiça será sempre feita, porque a Fortuna é a roda do tempo: os que hoje, vitoriosos, estão em cima, amanhã estarão embaixo, vencidos. O verdadeiro historiador deve, pois, narrar os feitos dos vencedores e dos vencidos, honrar a ambos e fazê-los igualmente memoráveis, porque o vencido de hoje será o vencedor de amanhã. Heródoto oferece, assim, a primeira concepção de uma “lei” dos feitos históricos tecida com os fios da contingência. Essa lei do tempo humano nos ensina que a Fortuna é uma deusa caprichosa que premia e pune sem motivo e sem razão, mas que, justa, punirá amanhã os que premiou hoje e premiará amanhã os que puniu hoje. A nós só cabe deixar que ela gire a roda para que a justiça seja feita.

É preciso ainda não nos esquecermos de que a Fortuna não é o destino. A noção de destino é desenvolvida pelos estoicos e depois absorvida pelo pensamento cristão com o nome de providência divina. Como a fortuna, também o destino se refere às ações humanas e ao tempo, porém os estoicos afirmam que o tempo das ações humanas é tão necessário quanto o tempo da natureza, porque todos os acontecimentos são naturais e possuem causas naturais. Tudo o que existe são forças naturais que produzem acontecimentos necessários. e a sequência dos acontecimentos é racional e necessária: essa racionalidade causal necessária é o destino, ou a própria natureza como sequência necessária de acontecimentos. Por isso a virtude não é escolher entre possíveis contrários, nem é agir contra a força das causas naturais, e sim agir de acordo com elas, querer os acontecimentos e agir em conformidade com a natureza. É virtuoso aquele que conhece as causas necessárias de sua ação porque conhece as articulações necessárias entre seu agir e a ação do todo da natureza, e por isso diz sim ao Destino. Mas, se assim é, o que há de ser a Fortuna? A Fortuna é o acontecimento produzido pelo encontro acidental de causas secundárias ou causas parasitárias, isto é, de causas fracas e derivadas que se aproveitam da força das causas primárias ou primeiras e produzem acontecimentos contingentes. Enquanto querer o destino é a ação própria do homem virtuoso que conhece as causas necessárias de sua ação e das ações da natureza, a Fortuna é o lugar da pura paixão, isto é, o momento em que somos agidos por forças externas que nos dominam porque ignoramos suas causas e origens. Parasita, a Fortuna não produz nada de seu, não tem força para fazer surgir alguma coisa nova no mundo, mas apenas se aproveita da força do destino e da providência para distribuir bens ou tirá-los daqueles a quem os deu sem motivo. Jogo, máscara, sedução, crueldade, capricho, arbitrariedade, tirania, mescla paradoxal de desordem e justiça, a Fortuna tende a aparecer como dotada de duas faces: como monstro (ou contranatureza, pois seduz o agente a submeter-se a paixões que destroem sua verdadeira natureza) e como justiça cósmica (ou a ordem providencial) que detém pesos e contrapesos sobre os poderosos deste mundo. Senhora do mundo, senhora de todas as graças e senhora de todas as desgraças.

Graças à distinção estoica entre destino e fortuna e à distinção judaico-cristã entre providência e fortuna, consagrou-se pouco a pouco uma imagem da fortuna que se cristalizou numa iconografia muito precisa: a Fortuna é representada por uma jovem belíssima, de olhos vendados, que traz numa das mãos o globo e na outra uma cornucópia; tem na cintura uma cinto com os signos do zodíaco; vem com um manto agitado pelo vento; tem asas nos pés e pisa sobre a roda que faz girar com os pés. Essa imagem nos oferece a volúvel e inconstante fortuna, senhora do mundo (o globo), senhora de nossa sina (o zodíaco), dispensadora de bens (a cornucópia), agitada como a tempestade (o manto enfunado), inconstante (as asas nos pés), cega ou indiferente aos pedidos dos homens (a venda nos olhos) e justa (a roda). Todavia, há nessa imagem um aspecto de grande relevância, porque é nele que virá se inscrever a possibilidade de uma ação ética e política capaz de vencer a própria fortuna. Trata-se das asas nos pés. Embora essas asas sirvam para assinalar que a fortuna é passageira, inconstante, caprichosa, volúvel e efêmera, essas mesmas asas indicam que a fortuna age porque tem em seu favor o tempo que corre celeremente. Ora, esse tempo que corre velozmente não é o tempo da natureza, pois o tempo da natureza é repetitivo e regular; nem é o tempo do destino ou da providência, pois o tempo do destino e da providência é o tempo lento e longo de realização de um plano, que é o plano do deus ou o plano de Deus.

O tempo célere e efêmero, de que se vale a fortuna, é o kairós: o instante oportuno ou a ocasião oportuna, isto é, aquele instante fugidio que devemos saber agarrar, se quisermos agir e se quisermos vencer a fortuna em seu próprio terreno. O kairós é o que os gregos chamam de o tempo da ação adequada, o tempo em que o médico age para agarrar a doença, em que o político age para agarrar a ocasião oportuna de agir, o tempo em que o agente ético age, dobrando a força das paixões. O kairós é o instante da iniciativa ativa, quando o agente toma sua vida em suas mãos contra o assédio, a sedução e as ilusões da fortuna. Graças à liberdade da vontade, graças à racionalidade de sua natureza, o agente virtuoso é aquele que delibera no momento oportuno considerando os efeitos de sua ação, de maneira a não agir sob o impulso sedutor da fortuna que o fará, logo adiante, pagar o preço da imprudência.

Sob essa perspectiva, a Renascença definirá a virtude por sua oposição à fortuna, pensando num enfrentamento entre duas forças temporais: toma a fortuna como a força da indeterminação das situações e do acontecimentos, no ponto de partida e de chegada, e a ela contrapõe a virtude como o poder para determinar o indeterminado, para deliberar e escolher os possíveis. A fortuna deixa de ser a exterioridade bruta que se abate sobre os homens para tornar-se a indeterminação e a adversidade que exigem a ação forte do virtuoso. Deixando de ser um poder cego, exterior aos homens, a relação entre fortuna e virtude abre a dialética entre a consciência e os acontecimentos. É dessa maneira que se dá a retomada da relação virtude-fortuna por Maquiavel, Montaigne e Bacon, em conformidade com o adágio de Plauto e Apius Caecus, Homo faber fortuna, o Homem arquiteto de sua própria fortuna, e a ideia de que “o prudente dominará as estrelas” (o cinto zodiacal da Fortuna), porque “nada é impossível para a virtude”.

Resta ainda um último traço para completar nosso quadro. Vimos até aqui que a prudência foi prezada como a virtude capaz de não sucumbir à fortuna, porque o prudente é aquele que tem os olhos voltados para o passado e para o futuro para escolher o possível no presente. No entanto, ao lado da valorização da prudência, uma outra ideia também se desenvolveu em contraponto ao poderio da fortuna: a da amizade. Diante da fortuna como encontro que pode ser ora bom ora mau, que pode ser boa fortuna ou infortúnio, a filosofia tematizou a amizade como o bom encontro, isto é, aquela relação entre seres livres e iguais cujas ações sejam fonte de liberdade para outros.

Por que a fortuna é poderosa? Porque pode tornar-se senhora dos acontecimentos, apoderando-se do tempo como kairós. A fortuna não tem poder sobre o tempo da natureza nem sobre o tempo do destino ou da providência, mas tem poder sobre o tempo de nossa ação. Mas, que significa um tempo que é apenas um instante fugaz, efêmero, no qual tudo pode ser tramado contra nós ou em nosso favor? Essa relação com o tempo como indeterminação é a marca de nossa finitude. Não somos finitos apenas porque somos mortais, somos finitos porque sabemos que somos mortais; não somos finitos apenas porque nosso poder é muito menor do que as forças exteriores que nos rodeiam, e sim porque sabemos que somos menores do que elas. À nossa finitude, a filosofia sempre contrapôs a imagem do deus eterno e perfeitamente feliz, auto-suficiente, autárquico, autônomo, autodeterminado, plenamente livre. Como os homens poderiam ter uma vida que se assemelhasse à eternidade, à liberdade, à autarcia e à felicidade divinas? Duas são as maneiras humanas de viver, julga Aristóteles, nas quais o homem se assemelha ao divino: a vida política, na qual a comunidade age em conjunto para a vida boa e feliz do todo, e por isso a politeia perfeita é aquela que assegura o máximo de sobrevivência, segurança, justiça e liberdade a cada um de seus membros. A comunidade política é, assim, o bom encontro de homens livres e uma das maneiras de imitar a autarcia e a autonomia do divino. Todavia, por melhor que seja a comunidade política, ela se encontra sempre sujeita à ação de comunidades estrangeiras inimigas e sobretudo sujeita à ação de inimigos internos – a guerra externa e a guerra civil indicam que a fortuna também mantém seu reinado no interior da pólis. Há, no entanto, uma forma superior de bom encontro, de vitória contra a fortuna e de imitação da autarquia e da autonomia da divindade, a amizade. A amizade é aquela relação entre os livres e iguais tecida no bem-querer e no bem-fazer em que os amigos suprem reciprocamente as limitações uns dos outros e formam uma companhia livre que imita a auto-suficiência do divino e diminui os efeitos dramáticos da finitude. Diferentemente da comunidade política, a amizade não sucumbe ao poderio da fortuna, mas, ao contrário, somente ela tem a força para impedir que a diferença de posses, fama, glória e honras divida os amigos, pois o que é de cada um é de todos e são todos que agem para que cada um seja o que é e tenha o que tem. Se, pela política, nós nos humanizamos, pela amizade nós nos divinizamos. Eis por quê, no Discurso da servidão voluntária, La Boétie afirma que a amizade é coisa sagrada e sacrossanta.

2

O Discurso da servidão voluntária poderia ser lido na chave da tradição cujo quadro esboçamos acima. Ali comparecem a ideia estoica da natureza como ministra de Deus, a fortuna como infortúnio ou mau encontro, a defesa da liberdade, o elogio da prudência e da amizade, a crítica avassaladora da tirania. No entanto, há algo no texto de La Boétie que nos impede de permanecer na chave da tradição. E esse algo se torna legível se fizermos um desvio por uma outra tradição.

Num dado instante do Discurso, exatamente quando formula a ideia de mau encontro que teria desnaturado o homem, fazendo-o perder a lembrança de sua liberdade natural originária, La Boétie ergue uma hipótese: a de que nascesse uma “gente toda nova, nem acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade” e à qual se perguntasse se quereria viver como serva ou viver livre: “Com que leis concordaria?”, indaga La Boétie. A hipótese é evidente: La Boétie se refere à imagem dos habitantes do Novo Mundo, tradicionalmente apresentada pelos viajantes como a dos homens sem lei, sem fé e sem rei.

Ora, essa imagem tornara-se central nas disputas europeias sobre o direito dos conquistadores. No módulo anterior deste ciclo, foi esse o núcleo das conferências e dos ensaios publicados. Entre os ensaios, o de Courtine e o de Hansen são particularmente instigantes para o leitor de La Boétie. De fato, Courtine e João Adolfo oferecem, com riqueza de detalhes e argúcia de análise, o quadro em que a Conquista é tematizada. As questões mais debatidas pelos teóricos do período se referem ao direito natural, ao direito das gentes, ao direito civil, se os índios são ou não escravos naturais, se a existência de reinos, como os do México, indica a necessidade de incluir os índios no direito das gentes e no direito civil. Em outras palavras, as discussões quinhentistas e seiscentistas são de tipo jurídico e oscilam entre a afirmação e a negação aos índios do direito natural, do direito das gentes e do direito civil, entre a afirmação e a negação da escravidão natural dos indígenas. Pergunta-se se os indígenas são ou não bárbaros, se são ou não domináveis de direito, se precisam ou não consentir num pacto de dominação, se a guerra contra eles é ou não justa. Isso significa que a preocupação se volta para saber se há ou não um Estado positivo indígena e qual a relação entre indígenas e Estados europeus cristãos. Independentemente das diferenças nas posições assumidas por teóricos e pelos poderes europeus, uma coisa sempre foi certa: jamais os indígenas foram percebidos como alteridade. Ou melhor, quando houve essa percepção, a resposta foi o extermínio.

A peculiaridade do texto de La Boétie está, antes de tudo, em não propor a questão do “selvagem”, isto é, de um Outro que seria o Mesmo numa fase primitiva de evolução, nem de um Outro imaginado como “bom selvagem”, nem o selvagem como figura já constituída da política e do direito civil. Em outras palavras, La Boétie não introduz uma questão jurídica, nem introduz uma imagem da alteridade como etapa na constituição da identidade. La Boétie fala em “gente toda nova” não acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade. Isto é, de gente que não constituiu um Estado, de gente que nem mesmo conhece o nome da liberdade, mas que, se posta diante de uma escolha e de uma deliberação entre dois contrários possíveis, quais sejam, servir a si mesma ou servir a um senhor, escolheria “servir à razão” em vez “servir a um homem”. Essa “gente toda nova” desconhece o nome da liberdade justamente porque vive livremente; é uma gente racional, e é essa racionalidade que a faz escolher, sem titubear, ser vir à razão, isto é, a si mesma, não servir a um homem, isto é, a um senhor. Em outras palavras, La Boétie não indaga se essa gente disputaria sobre formas legítimas e ilegítimas de dominação, mas afirma que essa gente recusaria qualquer forma de dominação. Dessa maneira, a imagem da gente sem lei, sem fé e sem rei assume um sentido inteiramente novo: não se trata de gente que não sabe como ter leis, ter uma fé e ter um rei, e sim de gente que escolheu não os ter porque escolheu a liberdade.

A “gente toda nova” é introduzida num momento preciso do Discurso, no momento em que indaga como se deu o mau encontro, isto é, como explicar que o homem, o único naturalmente feito para viver livremente, seja exatamente aquele que se sujeita a um jugo que nem mesmo os animais aceitariam sem primeiro lutar contra ele e sem ser forçados a ele. Essa interrogação se articula a uma outra, que é o centro do Discurso: a interrogação de La Boétie não se dirige à diferença entre poderes legítimos e ilegítimos nem à busca da causa da tirania, e sim indaga como foi possível que os homens tenham instituído um poder separado da sociedade e que, graças a essa separação, pode dominá-los como uma força estranha e transcendente. Como os homens, naturalmente racionais e livres, instituíram a coerção, a sujeição a senhores e a servidão, a qual, por ser instituída pela liberdade, terá que ser nomeada servidão voluntária. Que a interrogação do Discurso não é sobre a causa da tirania e sim sobre a origem do poder separado da sociedade, a prova está em dois momentos do texto: no primeiro, quando La Boétie indaga como foi possível que os homens livremente escolhessem ter um senhor; no segundo, quando, antes de examinar o que faria essa “gente toda nova”, La Boétie afirma que há três tipos de tiranos – por eleição, por conquista e por hereditariedade -, mas que, embora diferentes as maneiras de chegar ao poder, é “sempre a mesma a maneira de reinar”. Ou seja, o tirano não é aquele que exerce um poder excessivo e ilegítimo, mas simplesmente aquele que exerce o poder quando os homens escolheram ou aceitaram um poder que se situa fora e acima da sociedade e que alguém o exerce porque foi eleito para exercê-lo. Por que não há diferença nas maneiras de reinar? Porque o eleito se comporta como um conquistador e o conquistador, como se tivesse sido eleito, e ambos trabalham para assegurar a hereditariedade do poder, a qual dará a esse poder a feição e os traços da naturalidade, como se tivesse existido desde sempre, por natureza. A pergunta de La Boétie, portanto, é: como nasceu um poder transcendente à sociedade? E a resposta inicial é que, se se perguntasse à gente nova se quereria servir a um senhor, essa gente diria “não” e não permitiria o nascimento de tal poder. Observamos, portanto, que o lugar da nova gente foi deslocado: a nova gente não é um dado empírico bruto que colocaria aos poderes legítimos da Europa o problema de legitimar a Conquista, mas é a afirmação de que não há questão da legitimidade quando o poder está separado da sociedade, e, portanto, a nova gente suscita uma interrogação sobre a velha gente da Europa cristã. A nova gente torna legível o infortúnio da velha gente. Assim, a “gente toda nova” surge no Discurso para demonstrar que não há necessidade natural nem necessidade de destino no surgimento do Estado como poder separado da sociedade, isto é, como dominação de um senhor ou de vários senhores sobre o restante. Se não é por necessidade da natureza nem por necessidade do Destino que tal poder foi instituído, qual é a origem e a causa de sua instituição? Se esta não é uma necessidade, então há de ser por contingência ou por vontade. Visto que nas ações humanas a contingência é o que acontece por fortuna, e o que acontece por vontade acontece por liberdade, cabe indagar se o poder separado – isto é, a tirania; isto é, o Estado – surgiu por infortúnio, e não por ação humana deliberada, ou se nasceu pela liberdade da vontade humana. Nasceu por fortuna e mau encontro ou nasceu por livre decisão da vontade?

3

O Discurso, como seu título indica, debruça-se sobre um enigma: como os homens, seres naturalmente livres, usaram a liberdade para destruí-la? Como é possível uma servidão que seja voluntária? De fato, escreve La Boétie, servidão voluntária é alguma coisa que a natureza, ministra racional de Deus e boa governante de todas as coisas, se recusa a ter feito, isto é, a servidão voluntária ou o poder separado do Estado não é obra da natureza. Mas servidão voluntária é também algo que a própria linguagem se recusa a nomear, pois essa expressão é um oxímoro, visto que vontade livre e servidão são opostas e contrárias: toda vontade é livre e só há servos por coerção ou contra a vontade, coisa de que até os bichos dão prova. O enigma, portanto, é duplo: como homens livres se dispuseram livremente a servir e como a servidão pode ser voluntária?

É para responder a essa interrogação e decifrar esse duplo enigma que La Boétie começa propondo o infortúnio ou o mau encontro como resposta. Foi por fortuna que os homens se desnaturaram, isto é, perderam a liberdade natural e escolheram ter senhores, acostumando-se a servi-los. Desaparecido o amor da liberdade e enraízada a “obstinada vontade de servir”, os humanos perderam o direito natural, isto é, desaprenderam de ser livres e se esqueceram de que por natureza obedecem apenas à razão e não são servos de ninguém. Por que por fortuna? Por que por mau encontro e infortúnio? Porque, escreve La Boétie, por natureza temos todos a mesma forma e fomos feitos na mesma forma, pois a natureza nos fez todos livres, iguais e companheiros, deu-nos o dom da fala e do pensamento para nos reconhecermos uns aos outros e para que, declarando nossos pensamentos e sentimentos, instituíssemos a comunhão de ideias e afetos. Se, por natureza, somos todos livres, pois somos todos companheiros, então “não pode cair no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto algum em servidão, pondo-nos todos em companhia”. A argumentação de La Boétie é precisa: introduz o direito natural não como um termo jurídico, e sim para negar que a servidão possa ser natural e voluntária. Consequentemente, se somos servos, não o somos por obra da natureza, mas por operação da Fortuna. Donde a pergunta: que infortúnio foi esse, que mau encontro foi esse que nos desnaturou a tal ponto que já nem nos lembramos de que um dia fomos iguais e livres? A resposta é buscada na origem da tirania: o infortúnio, essa contingência incontrolável, aconteceu no momento em que os homens elegeram um senhor, que se tornaria tirano, ou no momento em que foram conquistados pelas armas de um tirano. No primeiro caso, foram imprudentes; no segundo, foram vencidos pela força. Ora, ainda que diferentes quanto a maneira de um tirano chegar ao poder, é idêntica a maneira de governar e, se assim é, não basta referir a causa da tirania à fortuna, pois, mesmo que suba ao poder num momento de infortúnio, o tirano nele se conserva por consentimento voluntário dos tiranizados. Se a fortuna pode explicar o advento da tirania, não pode explicar sua conservação, e, dessa maneira, estamos de volta ao nosso enigma inicial: como é possível a servidão voluntária?

O Discurso procura, então, nova resposta. Se por natureza os homens são livres e servem somente a si mesmos, servindo à razão, a servidão só pode ser explicada pela coação ou pela ilusão. Por coação: os homens são forçados, contra a vontade, a servir o mais forte. Por ilusão: os homens são iludidos por palavras e gestos de um outro que lhes promete bens e liberdade, submetendo-os ao iludi-los. Novamente, porém, a resposta não é satisfatória, pois, como anteriormente, a coação e a ilusão podem explicar por que o tirano sobe ao poder, isto é, por que o poder se separa da sociedade, mas não podem explicar por que ele assim se conserva. Agora, porém, La Boétie parece encontrar a boa resposta: a tirania se conserva pela força do costume. Este é uma segunda natureza, e os humanos, inicialmente forçados ou inicialmente iludidos, se acostumam a servir e criam seus filhos alimentando-os no leite da servidão; por isso os que nascem sob a tirania não a percebem como servidão e servem voluntariamente, pois ignoram a liberdade. O costume, portanto, é o que nos ensina a servir.

Ora, qual o engano dessa argumentação que parece tão coerente? Supor que o costume possa ser mais forte do que a natureza e apagá-la. A prova de que isso é falso está no grande número de exemplos históricos de povos e indivíduos que lutaram para recobrar a liberdade perdida. Destarte, o poder separado, mesmo que seja instituído por fortuna e conservado por costume, não encontra na fortuna e no costume sua origem verdadeira. É preciso, ainda uma vez, explicar de onde o tirano tira a força para se conservar e de onde vem o desejo de servir. É preciso saber por que e como os homens agem para sua própria servidão.

A força do tirano, explica La Boétie, não está onde imaginamos encontrá-la: não está nas fortalezas que o cercam nem nas armas que o protegem. Pelo contrário, se precisa de fortalezas e armas, se teme a rua e o palácio, é porque se sente ameaçado e precisa exibir signos de força que ocultem os signos verdadeiros do poder. Fisicamente, um tirano é um homem como outro qualquer – tem dois olhos, duas mãos, uma boca, dois pés, dois ouvidos; moralmente, é um covarde, prova disso estando na exibição dos signos de força. Se assim é, de onde vem seu poder, tão grande que ninguém pensa em dar fim à tirania? Seu poder vem da ampliação colossal de seu corpo físico por seu corpo político, provido de mil olhos e mil ouvidos para espionar, mil mãos para espoliar e esganar, mil pés para esmagar e pisotear. O corpo físico não é ampliado apenas pelo corpo político como corpo de um colosso, também sua alma ou sua moral são ampliados pelo corpo político que lhe dá as leis, que lhe permite distribuir favores e privilégios, que seduz os incautos para que vivam à sua volta para satisfazê-lo a todo instante e a qualquer custo. A pergunta que nos cabe fazer é: quem lhe dá esse corpo político gigantesco, ubíquo, sedutor e malévolo? A resposta é imediata: somos nós, “povos insensatos”, quem lhe damos nossas mãos, pés, ouvidos e bocas, nossos bens e nossos filhos, nossas almas, nossa honra, nosso sangue e nossas vidas para alimentá-lo, para aumentar-lhe o poder com que nos destrói. Se, por infortúnio, um tirano galgou o poder e, por costume, ali se mantém, como derrubá-lo e reconquistar a liberdade? Não lhe dando o que nos pede: se não lhe dermos nossos corpos e nossas almas, ele cairá. Basta não querer servi-lo, e ele tombará.

Mas, se é tão clara a resposta, maior então o enigma da servidão voluntária, pois é coisa fácil derrubar a tirania. Por que servimos voluntariamente o que nos destrói? A resposta é terrível: consentimos em servir porque não desejamos a liberdade. Consentimos em servir porque esperamos ser servidos. Servimos ao tirano porque somos tiranetes: cada um serve ao poder separado porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo; cada um dá os bens e a vida pelo poder separado porque deseja apossar-se dos bens e das vidas dos que lhe estão abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica. Haver tirano significa que há sociedade tirânica. É ela e somente ela que dá poder ao tirano e o conserva ali onde o colocou para malfazer.

É extraordinário o que o Discurso efetua sobre a tradição filosófica, jurídica e política: nele se entrecruzam e se embaralham todos os termos que essas tradições tão claramente haviam distinguido, e já não sabemos o que é por natureza, por Fortuna, por contingência, por coação, por vontade. Sem dúvida, tirania e servidão voluntária são o infortúnio, o mau encontro que desnatura os humanos e os faz esquecidos de si. Porém, se somos naturalmente racionais, iguais e livres, esse infortúnio não terá como conservar-se, a menos que a fortuna tenha destruído o principal: o desejo de liberdade. Quando os humanos escolhem instituir o poder separado e escolhem servi-lo para também ser servidos, ter bens e as vidas dos demais, então sim, a Fortuna venceu a natureza e venceu a virtude. Por quê? Porque com sua cornucópia de bens efêmeros, a fortuna preencheu todo o desejo e tornou impossível o único desejo natural, o desejo de liberdade. É esse o infortúnio. É essa a desnaturação.

Resta dizer uma única coisa, a qual não sei como falece natureza aos homens para desejá-la. É a liberdade, todavia, um bem tão grande e tão aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada e os próprios bens que ficam depois dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem a fazer essa bela aquisição só porque ela é demasiado fácil. Pobres e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e, cegas ao vosso bem! [Discurso da servidão voluntária, 1982, p. 15]

A esses povos miseráveis e insensatos, insensíveis ao seu próprio mal, o Discurso contrapõe a “gente toda nova”, que escolheria servir apenas a si mesma e nunca a um senhor.

4

Para comprovar que o desejo de liberdade é natural e que, para os homens, “agir por natureza” é “agir por liberdade”, La Boétie confronta os “muitos” (os povos insensatos e as nações cegas) que servem “um só” e os “alguns” que não cessaram de desejar a liberdade, porque não desejam servir. Esses “alguns” são, em primeiro lugar, os que são “capazes de enxergar mais longe” e de “olhar para trás e para a frente”: são os prudentes, aqueles que sabem que, uma vez perdida a liberdade, “todos os males se seguem de enfiada”. Porque prudentes, esses “alguns” não se deixam dominar pela fortuna, pelas condições adversas do presente, mas procuram ler o curso do tempo e agir para determinar o indeterminado, pois sabem que a ação presente se tornará um passado necessário que desencadeará efeitos necessários para o porvir.

Se os prudentes são os que não se deixam seduzir pela fortuna, por benefícios presentes que se tornarão malefícios vindouros, os amigos são aqueles que não se deixam iludir pelo risco maior, aquele risco que é o infortúnio originário porque é aquela ação voluntária e livre na qual será plantado o germe da tirania. Que risco é esse? Se a amizade é coisa santa e nome sagrado, se só existe onde há igualdade, liberdade e justiça, se somente é cultivada entre os que se unem pelo bom natural e para o bem fazer recíproco, se nela não há lugar para a cumplicidade e o malefício, se ela vence a fortuna porque cada amigo é para o outro o bem verdadeiro, então o risco maior é que, por amizade, os amigos elevem um dos seus e o coloquem acima dos demais. Se o fizerem, instituem a desigualdade originária, lançam um dos seus para fora e para além dos limites da amizade, o separam da boa companhia, o isolam e o servem, imaginando assim compensá-lo do isolamento e do desamor que lhe traz sua nova condição.

Ora, que esse risco é real, basta para comprová-lo que nos lembremos que o nome tyrannos não significa aquele que exerce um poder pelo uso da força, o mas significa aquele que é mais excelente do que os outros em tudo o que faz. É tyrannos o melhor, o mais excelente, o mais valente, o mais sábio, o mais clarividente, o mais hábil. É justamente por suas qualidades excepcionais que os amigos o elevam acima deles e o isolam, e, da admiração, passam à servidão.

Ao embaralhar as distinções propostas pela tradição e ao retomar as virtudes com que ela imaginava vencer a fortuna, a adversidade e o infortúnio, La Boétie produz um efeito de conhecimento espantoso: a origem da servidão voluntária encontra-se em três causas que deveriam torná-la impossível, isto é, a vontade livre, a prudência e a amizade. A vontade livre, se os humanos escolherem ter um senhor. A prudência, se, ao deliberar calculando entre dois males, escolherem o mal menor em vez de mal nenhum. A amizade, se os amigos elevarem os melhores dentre os seus, separando-os do círculo do iguais porque é tyrannos. Dessa maneira, são exatamente as condições da virtude, da liberdade e da felicidade que podem ser a causa da instituição do poder separado e é isso que La Boétie chama de infortúnio. Que nome dar à servidão voluntária, à perda da liberdade por obra da liberdade, senão o nome de mau encontro?

É para lançar uma luz sobre esse mau encontro que o Discurso introduz a “gente nova”. La Boétie escreve:

A propósito, se porventura nascesse hoje alguma gente toda nova, nem acostumada à sujeição nem atraída pela liberdade, que de uma e de outra nem mesmo o nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou viver livres, com que leis concordaria? Não há dúvida de que preferiria somente à razão obedecer do que a um homem servir; a menos que fosse como a [gente] de Israel, que, sem coerção e nenhuma precisão, deu a si mesma um tirano. Povo cuja história nunca leio sem enorme indignação, a ponto de quase tornar-me desumano, por rejubilar-me com tantos males que lhe sucederam. Mas certamente, para que todos os homens, enquanto têm algo de humano, se deixem sujeitar, é preciso um dos dois: que sejam forçados ou iludidos. [Discurso da servidão voluntária, 1982, pp. 19-29]

La Boétie deixa por conta da contingência e do acaso o nascimento da “gente toda nova” (“se porventura”, escreve ele) e a apresenta como racional. Por isso mesmo, ainda que nem possua um nome para a sujeição e para a liberdade, não escolherá servir a um homem, pois escolhe servir à razão e, portanto, somente a si mesma. Assim, enquanto o presente europeu só pode ser designado por uma expressão monstruosa – servidão voluntária-, a “gente toda nova” não precisa de nenhuma palavra para designar sua própria condição, pois não tem como nem por que confrontar liberdade e servidão.

Todavia, é curiosa, no texto, a aparição, à primeira vista inexplicável, da gente de Israel, cuja história provoca indignação no autor, pois “sem nenhuma coerção e nenhuma precisão deu a si mesma um tirano”, isto é, Moisés. O texto é claro: se foi sem coerção nem precisão e se os homens enquanto humanos só servem se forçados ou iludidos, é evidente que os hebreus foram iludidos pelo fundador e que sua situação é exatamente a mesma que, na abertura do Discurso, narra a dos gregos, quando, em Homero, aceitam a palavra de Ulisses, “em ter vários senhores nenhum bem sei/ que um seja o senhor, que um só seja o rei”. Tanto no caso dos hebreus como no dos gregos, esses povos e nações não cessaram de sofrer os males que seguem de enfiada.

Por que o contraponto entre o povo hebraico (e, implicitamente, o povo grego) e a gente nova? Porque La Boétie indica por onde passaria o risco de destruição dessa nova gente, comparando-a à primeira gente dos cristãos e à primeira gente dos filósofos. A nova gente e a primeira gente figuram o momento decisivo em que os iguais e livres vivem em companhia, na amizade. Ora, assim como sob a ação do discurso de Moisés e do discurso de Ulisses um povo livre instituiu o poder separado – a teocracia hebraica e a monarquia grega-, nada nos assegura que sob a ação dos conquistadores a nova gente, se não for forçada, não seja iludida e aceite a lei da tirania.

La Boétie dirige o olhar ao momento da origem, a primeira gente, e o momento do novo, a gente nova, recém-nascida. Se o prudente olha para trás e para a frente, olha para o primeiro tempo e para o tempo novo para ver se o infortúnio do tempo primeiro não se repetirá no tempo novo. Situando-se entre duas temporalidades, o Discurso não se situa entre dois tempos empíricos, e sim numa diferença ontológica: o tempo depois da liberdade e o tempo da liberdade. Mas justamente porque se situa na temporalidade, o Discurso sabe que se situa no contingente, no possível e no risco permanente do mau encontro ou do infortúnio.

Eis por que a “gente toda nova” surge no texto para figurar algo aparentemente contraditório: de um lado, figurar a humanidade enquanto tal, a universalidade originária do gênero humano, e, de outro, levar ao reconhecimento de que essa universalidade humana, ou a humanidade enquanto racional e livre, desapareceu. Os índios são os que não querem a servidão voluntária. São os que recusam a separação entre a comunidade e o poder. Por isso figuram a universalidade humana e a memória (ontológica) da origem perdida. Não são o Outro: são o humano nos homens. Não são o Mesmo: são o humano tornado Outro para si mesmo. A nova gente figura a perda do Mesmo e do Outro, pois o Mesmo é o humano desumanizado, e o Outro é o humano lembrado.

5

Talvez não seja demais lembrar aqui algo deslembrado e que o Discurso nos faz recordar.

La Boétie afirma que a servidão voluntária é monstruosidade que a natureza se recusou a fazer e que a linguagem se recusou a nomear, pois é impossível, do ponto de vista racional, reunir servidão e vontade. Servidão voluntária é o mesmo que liberdade serva. Embora racional e linguisticamente servidão voluntária seja impensável, o fato da servidão voluntária é inegável e é preciso decifrá-lo como se decifra um enigma. Decifrá-lo significa distinguir desejo de liberdade e desejo de servir, mostrar que o desejo de servir só se realiza pela posse imaginária de bens e que o desejo de liberdade não é desejo de posse nenhuma, mas uma maneira de viver sem submeter-se a nada e a ninguém. É exatamente por isso que La Boétie abandona toda e qualquer referência jurídica no tratamento da servidão voluntária.

Ora, enquanto o Discurso se dedica a esse deciframento, os teólogos e juristas cristãos quinhentistas e seiscentistas tomam a via oposta, isto é, inventam como conceito juridicamente válido e racional a ideia de servidão voluntária, com que pretendem explicar a condição dos índios e justificar a Conquista.

Resumamos, de maneira extremamente breve, o procedimento teológico-jurídico. Seu ponto de partida é a definição do direito como uma faculdade moral que garante uma posse ou uma propriedade. Uma faculdade é um poder que um agente possui se puder exercê-ló, e por isso uma faculdade é definida como uma liberdade, visto que a liberdade é aquele poder que um agente pode ou não exercer, ao mesmo tempo que a própria liberdade é definida como uma faculdade porque é uma propriedade de alguém. O direito (seja natural ou positivo) é uma faculdade que um homem possui como sua propriedade e que lhe é devida, pois a justiça é dar a cada um segundo o seu direito. Por direito natural, o homem tem a faculdade sobre as seguintes propriedades: seu corpo, sua vida, os bens necessários à conservação de seu corpo e de sua vida, e sua liberdade. Ora, a principal característica de uma faculdade, como vimos, é poder ser ou não ser exercida. Assim, por exemplo, posso não exercer meu direito natural sobre alguns de meus bens, como uma parte de minha terra, e cedê-la livre e voluntariamente para um outro que dela terá não a posse, mas o usufruto. É assim que Deus tem a propriedade sobre o universo e nos concedeu o usufruto dele. Ora, se a liberdade é uma propriedade e se é uma faculdade, podemos ou não exercê-la, mas também podemos voluntariamente transferi-la para um outro (como no pacto social que institui o soberano ao qual todos transferem suas liberdades naturais) e também podemos voluntariamente aliená-la a um outro ou vendê-la a um outro: a venda da liberdade a um outro é o ato voluntário feito pelos africanos; a alienação da liberdade a um outro é o ato voluntário de submissão à vontade superior de um outro ou o ato feito pelos índios. Os africanos são escravos voluntários por venda da liberdade. Os índios são servos voluntários por alienação da liberdade. A servidão voluntária é, portanto, racional, legal e legítima, pois é um caso do direito natural entendido como faculdade para o uso voluntário de uma propriedade, e a liberdade é uma propriedade. Como, por natureza, só há ordem e justiça no universo se o inferior obedecer ao superior, faz parte da ordem e da justiça universais que africanos e índios se submetam voluntariamente aos homens brancos cristãos adultos.

De monstruosidade lógica (impensável), ontológica (um ser racional insensato), ética (um agente moral sem liberdade) e política (um sujeito político sem igualdade), a servidão voluntária se torna expressão da necessidade natural, da justiça cósmica, da vontade de Deus e da condição legítima dos conquistados. Eis o infortúnio. Eis o mau encontro.

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