1982

O nacional e popular na cultura brasileira – CINEMA II

por Jean-Claude BernardetMaria Rita Galvão

Resumo

O discurso sobre o cinema no Brasil se politiza fortemente na década de 50. Há um polo mais nacionalista ligado à revista Fundamentos (que reúne nomes como Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, por exemplo) e outro mais cosmopolita ligado à produtora paulista Vera Cruz (responsável por sucessos internacionais como O cangaceiro e O pagador de promessas). Na verdade as posições seguidamente se entrecruzam porque há muitos aspectos em jogo: conteúdo e forma, ideologia, produção industrial, mercado etc. Uns argumentam que a qualidade do cinema brasileiro virá da quantidade de filmes produzidos e de medidas protecionistas, mas há o temor do dirigismo estatal. Outros querem um cinema “independente”, mas capaz de atrair multidões. No fundo dessa discussão desponta, sem ser ainda bem compreendida, a “radical transformação” da incipiente televisão. Outro ponto em disputa é a rivalidade entre o cinema paulista (Vera Cruz) e o carioca (a Atlântida com suas chanchadas e musicais). Para alguns críticos, como Paulo Emilio Salles Gomes e Benedito Duarte, o mais importante a ser promovido é a formação de cineastas e a necessidade de se criar uma cinemateca. Duarte observa: “Cinema é cultura e um cinema sem amarras no passado é como um povo sem História”. O problema é conciliar “cinema de elite” e “cinema popular”, filmes concebidos com inteligência e que agradem o público. E já se fala então de um “cinema de autor” que encorajaria os jovens talentos a elevar o nível dos gêneros existentes e a superar a polaridade entre nacional e cosmopolita.


Defrontamo-nos, para uma discussão do “nacional” e “popular” nos textos dos cineastas dos anos 1950, com a ausência de pesquisa, de levantamento de textos que continuam esparsos em revistas, jornais, folhetos mimeografados. Trabalhos neste sentido estão sendo feitos (levantamentos de Afrânio Mendes Catani, José Inácio Melo Souza, Giselle Gubernikoff, pesquisa do IDART sobre a década de 50), mas estão em fichas, em álbuns de recortes, nada ainda sistematizado, com exceção do estudo de Maria Rita Galvão sobre a Vera Cruz. Limitamo-nos a colocar balizas a partir de um desbravamento de textos que sabemos incompleto. Usamos sobretudo material encontrado em São Paulo, o que se justifica por ser aqui que trabalhamos, e também porque a presença da Vera Cruz no início dos anos 50 fez de São Paulo importante foco de reflexão cinematográfica, onde se defrontam as principais tendências da época, e onde se realizaram dois dos três congressos cinematográficos da década.

A situação social e política do país, o desenvolvimento das esquerdas e das ideias nacional-desenvolvimentistas, a retomada da produção cinematográfica brasileira após a quase estagnação dos anos 1940,o projeto da Vera Cruz, a valorização do cinema como produção cultural “digna”, a divulgação do ideário do neo-realismo italiano, a preocupação crescente das elites culturais brasileiras com o cinema (levam a discussão sobre cinema no Brasil a adquirir uma originalidade, que não tinha na primeira metade do século e a se politizar fortemente. Neste contexto, as ideias de “nacional” e de “popular” se imbricam uma na outra, o que não acontecia anteriormente.

A leitura de jornais e revistas, a cobertura jornalística dos congressos que insiste sobre a “unidade” da “classe”, “superando” as “divergências”, nos levam a crer que estas divergências não eram assim tão facilmente superáveis. Deixando de lado as pequenas ou grandes vaidades, alfinetadas e outras maldades nos textos jornalísticos, nos fica a impressão de que existiam dois grupos, ou melhor, dois pólos antagônicos, que se atacavam violentamente. De um lado, o pensamento dominante na Vera Cruz e os cineastas e jornalistas a ela ligados. De outro, um grupo que por um momento se ligou à revista Fundamentos e, em artigos publicados principalmente em 1950 e 1951 (número especial sobre cinema em 7/51), teorizou sobre as suas posições estéticas e ideológicas; eles também colaboravam na imprensa diária, onde reproduziam ou diluíam as ideias divulgadas em Fundamentos. O primeiro lado malha a burrice nacionalista do outro, o favorecimento ao mau cinema por defender uma legislação inepta, a má fé ao manipular os congressos dos quais as resoluções finais refletem as posições de Fundamentos e adjacências. O outro lado malha o cosmopolitismo do primeiro, seu espírito decadente e deletério, sua subserviência diante do imperialismo.

1. A REVISTA FUNDAMENTOS, OS CONGRESSOS E ADJACÊNCIAS

Revista de cultura geral fundada em 1948, para ela cinema praticamente não existe até abril de 1950, quando Nilo Antunes publica a “Defesa do Cinema Brasileiro”. O manifesto a favor da paz publicado em dezembro de 1948, com assinaturas de inúmeros intelectuais e artistas, não encontra representantes de atividades cinematográficas, a não ser um “médico e cineasta”. Levemos em conta que o cinema praticamente não existe em São Paulo em 1948. Já o manifesto de agosto de 1951 contra o envio de tropas à Coreia recebeu a assinatura de figuras de destaque no meio cinematográfico.

Três ou quatro nomes assinarão os artigos principais que permitem situar o pensamento cinematográfico que circulava na revista: Carlos Ortiz, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Rodolfo Nanni, cujos trabalhos, todos, são uma defesa de um cinema brasileiro, nacional e popular.

O que se entende por isso?

O povo no cinema

Reencontramos posições já desenvolvidas em décadas anteriores: o cinema deve nutrir-se dos costumes e tradições do nosso povo. Nelson Pereira dos Santos afirma que o cinema deve tratar da vida, histórias, lutas, aspirações de nossa gente, do litoral e do interior:

“nossos costumes e nossas tradições (…) constituem rico manancial para a realização de autênticas obras de arte”. (“Caiçara – Negação do Cinema Brasileiro”, Fundamentos, 1/51)

Costumes e tradições continuam a ser rurais. A palavra manancial é interessante: como se costumes e tradições fossem coisas dadas, armazenadas, que bastasse tirar do subsolo onde se encontram guardadas, e aproveitar para fazer filmes autênticos. O trabalho da arte consiste portanto em refletir ou reproduzir essas coisas autênticas já dadas. Numa mesa-redonda comentada pela revista em dezembro de 1951, falou-se

“a favor de um cinema que reflita a realidade e o caráter de nosso povo, por um cinema que represente de fato a nossa cultura”. (grifo nosso)

Resolve-se

“incentivar as produções cinematográficas que reflitam a realidade e o caráter da vida brasileira”.

Comentando Ângela, terceiro filme da Vera Cruz, Nelson diz que seus personagens não são reflexos da vida de nosso povo. Não se atribui tanto ao cinema a tarefa de inovar ou de construir, mas sim de refletir na tela costumes e tradições já conhecidos e vistos como estáveis. Nada disto nos distancia sensivelmente do pensamento de um Antônio Campos, por exemplo, lá pelos anos 1920.

Estas não são propostas, por enquanto, sustentadas por filme nenhum. Os filmes em que essas ideias serão aplicadas virão um pouco mais tarde e serão feitos por autores destes textos: O Saci, Rio Quarenta Graus etc. Os articulistas procuram então nos filmes brasileiros lançados aproximadamente na época em que escrevem o que eles podem recuperar. Assim, no balanço de 1951, é destacado O Comprador de Fazendas por ser, de todos os filmes apresentados, o que melhor reflete o espírito de nosso povo, mas se faz a ressalva: o filme não aproveitou toda a pujança da graça cabocla de Monteiro Lobato. No mesmo esforço para salvar uma ou outra coisa, Alex Viany será tolerante com Jangada e sua nortista de sarong à Dorothy Lamour, já que é pelo menos uma tentativa de contar uma história bem brasileira, isto em julho de 1951. Mas é sem grande convicção: em fevereiro de 1952 a tolerância não se manterá e o sarong não será perdoado. Tais hesitações diante do conteúdo brasileiro dos filmes talvez não resultem apenas das dificuldades da atitude tática tomada em relação a esses filmes, mas também da delicadeza do assunto. As contradições de Noé Gertel diante de O Cangaceiro, geralmente aceito como plenamente brasileiro, talvez provenham dessa delicadeza. O que são esses costumes e tradições na tela? Com O Cangaceiro, Lima Barreto deu a maior contribuição ao cinema brasileiro por

“(…) ter levado para a tela uma história que lhe possibilitou dar força expressiva a alguns aspectos característicos de nossa gente. Em O Cangaceiro, pela primeira vez no cinema, os personagens não somente têm uma feição, digamos física, rigorosamente brasileira, como sua conduta, suas reações, suas tendências emocionais aproximam-se ao máximo de nosso povo (…). Uma película (…) verdadeira na sua essência, O Cangaceiro não pode deixar de assumir um papel de grande importância na batalha para expurgar o cinema nacional de seus defeitos crônicos e libertá-lo de influências estranhas(…).”

Apesar dessas afirmações, Gertel, no mesmo texto, julga que

“O filme entretanto (…) revela uma ausência total de introspecção psicológica, de calor emocional, de poesia, ainda que ingênua, sem falar no desprezo pelo problema social do cangaço, razão pela qual hã um abuso de folclore e do pitoresco. A figura de Galdino é o mais eloquente exemplo da ausência de uma caracterização psicológica mais profunda, pois nele o que sobressai é o pitoresco (…).” (Folha da Manhã, 21.1.1953)

Apesar dessa restrição à superficialidade do “reflexo” (pitoresco), em outro texto Noé Gertel valorizará a cor local. De Sai da Frente, ele diz:

“O filme vem empapado de deliciosa cor local, tem o sabor do que é nosso. São ingredientes que valorizam muito a película, tornando-a facilmente agradável ao público que em vão tem procurado nas realizações anteriores da Vera Cruz tais temperos.” (Folha da Manhã, 27. 6.1952)

O que não o impedirá de exteriorizar um incontido entusiasmo por Uma Pulga na Balança, filme geralmente tido pelos críticos nacionalistas como perfeita amostra de cosmopolitismo (Folha da Manhã, 16.4.53)

A história

Apesar das dificuldades para encontrar uma obra que concretize esse reflexo de nosso povo, Carlos Ortiz encontrou uma. Data de 1923, foi feita em Campinas. No seu artigo-manifesto, escreve: João da Mataé

“uma película ainda atualíssima pelo seu tema, pelo conteúdo profundamente humano e altamente social que possui. João da Mata é um autêntico drama caipira (…) O filme respira, de ponta a ponta, um cheiro forte de terra. Algumas sequências( … ) são de uma poesia e de beleza autênticas. Entre estas, a da fazenda de café, de sua vida borborinhante, de seus terreiros extensos e sempre agitados (…). Aí está uma bela lição para todos os que se lançam ao cinema entre nós (…).

João da Mata não é apenas um marco. Mas é o único marco justo desta nova jornada do cinema nacional.” (Folha da Manhã, 30.6.1950).

Além de encontrar um filme modelar, Gertel encontra também antecedentes históricos às posições que defende. A questão da história do cinema brasileiro não é frequentemente abordada por estes autores, mas existe a ideia de que no passado o cinema era mais popular, havia maior harmonia entre o cinema e o público (ou o povo). Na sua “Breve Introdução à História do Cinema Brasileiro” (Fundamentos, 7/51), Alex Viany afirma que nos últimos anos do cinema mudo

“sucediam-se filmes quase sempre bem aceitos pelo público.”

Essa imagem do passado, frequente quando o tema da história é abordado, completa-se com outra: no seu artigo sobre Ângela, Nelson Pereira dos Santos diz que ainda não se deu o nascimento do verdadeiro cinema nacional. Não se deu, mas se dará, ou poderá se dar. A atualidade tende assim a ser vista como um momento negativo encaixado entre dois momentos positivos, passado e futuro. Talvez não seja exagerado pensar que o futuro positivo é uma retomada, mais complexa, possibilitada pelos esforços atuais, do passado positivo interrompido por não se sabe exatamente o quê. De qualquer modo, a recuperação e conquista da história do cinema brasileiro está em dia. Em 1959, Alex Viany publica seu ensaio Introdução ao Cinema Brasileiro.

A burguesia cosmopolita

Mas enquanto não chega o futuro, se as propostas dos articulistas de Fundamentos não encontram sua concretização em filmes, encontram em outros filmes o seu contrário. A crítica cinematográfica vai tornar-se um violento desancar de filmes, particularmente Caiçara e Ângela, filmes da Vera Cruz. Na revista, os dois filmes são criticados por Nelson Pereira dos Santos e os textos constituem, principalmente o segundo, verdadeiros manifestos. É o cinema da reação que, mesmo que bote na tela personagens pretensamente populares, dá do povo uma imagem desmoralizante, falsa e humilhante: é só depravação, pornografia e depressão; o caboclo é tarado, preguiçoso, mexeriqueiro, supersticioso.

Essa visão do povo não é ocasional, ela faz parte de um cinema antinacional e cosmopolita, que manifesta desprezo pela realidade em que vive o povo de nossa terra, cinema marcado pelo desespero e pelo pessimismo, dissolvente e irracional. Exalta-se a bruxaria, a macumba, o sobrenatural, o sortilégio. Cinema necrófilo, acrescenta Alex Viany, cheio de suicídios, cemitérios. O ambiente aparentemente popular de Caiçara não passa de um folclorismo cosmopolita feito por falsos técnicos estrangeiros, diz-se também em Fundamentos. Assim mesmo, Caiçara, principalmente em oposição aos dois filmes seguintes, Terra é Sempre Terra e Ângela, autorizava talvez alguma expectativa, porque não deixava de usar métodos neo-realistas e veristas, como os italianos. É verdade que de modo mecânico e sem conteúdo humano, o que leva a uma visão superficial do povo. Assim o filme despreza

“as relações de classe do litoral paulista” (Nelson Pereira dos Santos, Fundamentos, 1/51)

onde ele se ambienta, e desvia a atenção do espectador das contradições em que vive um povo. O filme é um veiculo para as ideologias e as teses da classe dominante.

Ângela não mais se beneficiará da relativa tolerância concedida a Caiçara. Seus personagens, que não são reflexos do povo, talvez o sejam da alta sociedade, a qual não é brasileira. De fato

“Não podemos aceitar como brasileiros os homens das classes que vivem num alto nível material à custa da exploração da esmagadora maioria da população do país.” (Nelson Pereira dos Santos, 9/51)

O personagem central do filme – um homem que tem o vício do jogo – é um anormal dentro da sociedade; não que não existam jogadores no Brasil, mas eles não são maioria, eles formam à parte, na minoria dos anormais. E esse personagem nem é combatido pelo filme, que tem assim um efeito deletério.

Visão desmoralizante do povo, pessimismo etc. têm significação política: disseminando na cultura ideias antinacionais, pessimismo, fatalismo, dúvida, angústia, a burguesia prepara um clima psicológico propício à política imperialista de dominação e de guerra. Este é o cinema cosmopolita da burguesia nacional. Os temas de seus filmes são os temas surradíssimos do cinema internacional, principalmente americano. O que não é de estranhar, pois a Vera Cruz é uma extensão do imperialismo cinematográfico americano. A Vera Cruz será realmente atacada a partir de seu primeiro filme, mas sobretudo desde que ela é considerada como vinculada ao cinema americano. Antes disso, como no primeiro artigo sobre cinema brasileiro publicado pela Fundamentos, a Vera Cruz (não menos burguesa) é ao contrário tida como uma ameaça aos estúdios hollywoodianos, pois ela é

“uma empresa 100% brasileira”. (Fundamentos, 4/50)

Desde que 100% brasileira, ela seria aceitável. O que se acusa mesmo é ela ser um braço do cinema americano, o que permite acusar o imperialismo, poupando um pouco a burguesia brasileira. Na Fundamentos de 9/51, a Vera Cruz já não é mais nacional, ela é totalmente comprometida com o truste anglo-americano Universal, ela é um ramo da Universal

“que tem em suas mãos uma Hollywood brasileira que fabrica os argumentos de seu interesse, a baixo custo e na língua do país, o que os toma mais eficientes.” (Nelson Pereira dos Santos, Fundamentos, 7/51)

Mas Nelson dá um toque um pouco diferente em matéria de burguesia nacional:

“É da própria condição da burguesia nacional o cosmopolitismo. Sua presença no cinema é o efeito de toda a política servil das classes dominantes em relação aos interesses imperialistas norte-americanos.” (Fundamentos, 9/51)

Essa burguesia não poderia fazer filmes de conteúdo essencialmente brasileiro, pois o sentimento nacional e a independência cultural e artística impedem a realização dos planos de colonização do Brasil. Essa visão de uma burguesia nacional decadente não se aplica somente ao cinema nem somente ao Brasil. Fundamentos insiste sobre o tema. Decadente é Jean-Paul Sartre, bem como a literatura de Jean Genet, um dos produtos culturais fomentados na Europa pelo Plano Marshall (março de 1951 – em janeiro de 1953, Sartre será reabilitado pela revista); a música dodecafônica reflete o espírito decadente da burguesia, e a Bienal de São Paulo é uma impostura cosmopolita.

Nos textos de Nelson, a burguesia nacional é vista como negativa. Mas nem sempre Fundamentos usa a expressão com este sentido. A burguesia nacional pode ser positiva. No “Projeto de Programa do Partido Comunista do Brasil e a Intelectualidade Progressista”, fala-se de uma burguesia nacional positiva, aliad.a ao povo e em luta contra o imperialismo. Dessa versão positiva da burguesia nacional não há sinal nos textos referentes a cinema.

Na colocação de Nelson Pereira dos Santos, a simples oposição estrangeiro/ nacional não dá conta da situação, o inimigo burguês não está apenas lá fora, está também aqui dentro. É a situação econômica que explica a situação cultural:

“É o cosmopolitismo demonstrado pelas classes dominantes no terreno político-econômico que determina o influxo de ideias antinacionais na cultura e nas artes.” (Fundamentos, 9/51)

Para Alex Viany também, a oposição estrangeiro/nacional não resolve tudo. Via-se o cinema cosmopolita como o estrangeiro em relação ao nacional. Em realidade, um filme cosmopolita seria cosmopolita em qualquer lugar. Ele define cosmopolitismo, apoiando-se em autores franceses:

“Para o cosmopolita, o homem é uma personagem esquemática, ‘cidadão do mundo’ sem família e sem povo, sem tradições ou particularidades nacionais” (Fundamentos, 2/52)

o que corresponde à maneira como Nelson vê Dinarte, o personagem principal de Ângela, desligado

“de família, de pátria, de vida pregressa explicável, que poderia aparecer no Rio Grande do Sul [onde se ambienta o filme] como num cassino flutuante do rio Hudson.” (Fundamentos, 9/51)

Em consequência, nem todo filme estrangeiro deve ser rejeitado por ser estrangeiro: há filmes americanos que são bons e que o crítico democrata não pode condenar indiscriminadamente (Alex Viany, Fundamentos, 2/52). E os quatro melhores filmes de 1951, para Fundamentos, são todos americanos.

Há aqui o aparecimento de ideias conforme as quais a nacionalidade não é a chave de tudo. Tais ideias despontam aqui e lá, mas não são desenvolvidas e, além de Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, não atingem os outros articulistas.da revista.

O filme nacional e popular que se opõe ao filme cosmopolita de uma burguesia aliada ao imperialismo não é apenas diferente, não é apenas popular, mas, para Nelson, ele é antiburguês. Estes filmes

“são, ademais, sérios obstáculos à burguesia feudal e industrial conservar o poder sob a proteção dos imperialistas, em troca da subserviência no plano internacional” (Fundamentos, 9/51)

Quer dizer, a luta de classes existe e o cinema é um momento dela. Em oposição ao pessimismo da burguesia e à sua visão humilhante do povo, o filme popular não só mostrará os usos e costumes, mas apresentará a nossa gente, diz Nelson,

“na marcha para o progresso, contra as forças da reação.” (Fundamentos, 1/51)

E em oposição aos personagens burgueses que pertencem à minoria dos anormais, depreende-se que os personagens dos filmes populares deverão pertencer à maioria dos normais.

O popular, o comercial e o educativo

O filme popular articula-se também com outro conceito na revista Fundamentos, o de comercial. Encontramos com frequência a ideia de que o cinema brasileiro tem a preferência do público, por ser brasileiro. Assim: era no passado, diz Alex Viany:

“A recepção que o povo dava a nossos filmes constituia uma base sólida para o estabelecimento de uma indústria nacional de cinema.” (Fundamentos, 7/51)

Ortiz Monteiro:

“Em igualdade de condições e tratamento, o cinema nacional não tem nada a temer em face do estrangeiro. São evidentes as suas vantagens, por decorrência dos temas, da língua e da preferência popular.” (Fundamentos, 7/51)

A prova é que as bilheterias demonstram esta preferência. Prolongamento de ideias já encontradas na primeira metade do século.

No entanto, o simples sucesso de público que possam ter os filmes brasileiros (ou que se imagina tenham) não satisfaz todos os articulistas da revista. O argumento de que se fazem os filmes que o público deseja não é suficiente. Lembra Alex Viany que o público foi viciado por Hollywood (Fundamentos, 2/52); Fernando Pedreira comenta que

“o cinema americano é hoje em dia uma arma de desfibramento de nosso povo.” (Fundamentos, 7/51)

De forma que não se pode simplesmente fazer a defesa do sucesso comercial, não se pode defender simplesmente a industrialização e o melhoramento técnico: a defesa do cinema brasileiro não é apenas a defesa da nossa produção. Deve-se dar atenção ao público e lhe apresentar um divertimento que seja sadio, útil, humano e positivo, diz Alex Viany (Fundamentos, 2/52). O cinema terá portanto a função de educar o povo contra o mau gosto a que ele foi levado pelo cinema americano, e de ajudá-lo a lutar contra o imperialismo. Oduvaldo Viana, entrevistado por Fundamentos (7/51), deixa claro que o povo, em si, não tem mau gosto, é que lhe impingem películas de mau gosto.

Hoje ainda encontram-se ideias semelhantes: o povo não é imbecil, mas o público é imbecilizado pelo cinema que lhe é imposto – como testemunha essa frase atribuída a Roberto Santos na Folha de São Paulo de 29.1.81:

“Vimos muitos filmes brasileiros, maravilhosos, sendo massacrados. O público está condicionado, não entende, não porque seja burro mas sim porque foi massacrado também.”

O público é sempre um objeto cuja “burrice” pode enganar, se for interpretada pelos desavisados como um comportamento autêntico. Não se deixar enganar pelo gosto do público será, para Salvyano Cavalcanti de Paiva, uma das normas a ser obedecidas pelo critico de cinema, que

“não pode jamais submeter a sua crítica ao gosto da multidão inesclarecida e embotada pelo produto de segunda classe feito pelos capitães de-indústria com o objetivo de anular a consciência social (…). O crítico que ignora que o cinema (e o seu produto direto, o filme) é uma arma em lugar de ‘pura diversão’, é um tolo ou um mercenário.” (“O Problema da Revisão do Método Crítico”, Manchete, cerca 1954)

De Veneno, filme da Vera Cruz cujo enredo não tem “nada que lembre ser uma fita brasileira”, Noé Gertel comenta:

“realizar um filme como Veneno é demasiadamente perigoso. Seu sucesso de bilheterias pode levar à falsa conclusão de que o público não tem espírito crítico e se satisfaz com pouco (…). Mas a verdade é que ele exige cada vez melhor(…).”

Quando um filme “autenticamente nacional” tem sucesso, a tese dos críticos sobre o público e o cinema nacional encontra verificação. Quando não é “autenticamente nacional” o filme de sucesso, a tese não está propriamente invalidada: o público não deixa de ter espírito crítico, só que não o exerce.

Diante do cinema de mau gosto e imperialista as massas não têm defesa; será tarefa do cineasta formá-las: Muitos não cansam d repetir que cinema é fator preponderante na educação do povo e que, por isso, deve-se lutar por um “bom” cinema. Por exemplo, Nilo Antunes:

“A defesa do cinema nacional se impõe, pois é necessário despertar na massa dos espectadores um interesse pelos filmes brasileiros em virtude dos assuntos de que tratam serem mais intimamente ligados aos problemas da nossa vida cotidiana. O cinema deixará assim de ser para o nosso povo um simples devaneio (… ) para ser ao contrário um amplo campo para a expressão de nossa consciência nacional (… ).” (Fundamentos, 4/50)

Nos congressos a que fizemos referência inicialmente, a ideia da educação aparecerá com insistência. Solano Trindade:

“(…) o cinema brasileiro, buscando os seus enredos no folclore nacional, faz um cinema comercial, ao mesmo tempo em que educa e diverte o povo.” (“Folclore e Cinema”, I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, 1952)

Semelhante posição assume Mauro de Alencar na sua comunicação “Cinema Brasileiro a serviço do povo”.

Um cineasta, que não está vinculado ao grupo de que estamos falando aqui, afirma claramente a função didática extracinematográfica do cinema. Retomando palavras de Alberto Cavalcanti que refletem posições da escola britânica de documentaristas, Marcos Marguliès escreve:

“O documentário poderá apresentar ao povo brasileiro, com a maior simplicidade, ideias gerais indispensáveis, iniciar sua educação cívica (… ).” (“O Documentário no Brasil”, Elite, 2/54)

A linguagem cinematográfica tem características que a tornam um meio particularmente propício à função didática. Mauro de Alencar escreve:

“(…) o cinema quase nunca exige um poderoso esforço mental para ser assimilado. É, pois, insubstituível como veículo de difusão e cultura.” (I Congresso Nacional, 1952)

Plácido Soave confirma que os argumentos dos filmes, tanto aqueles adaptados de fatos históricos como os de ficção, proporcionam cultura, trazem ensinamentos de modo agradável, divertido, interessante

“(…) e o povo, sem se aperceber disso dos ensinamentos, devido ao modo agradável tira proveito desses ensinamentos.” (I Congresso Paulista, 1952)

Quem sabe se não haverá aí alguma técnica de propaganda? DemMaior que o Ódio, diz Carlos Ortiz:

“Do ponto de vista humano e social, a ideia da regeneração do salteador, através do trabalho na fábrica, é apresentada com a sobriedade e a discrição devida para não se transformar em propaganda.” (Folha da Manhã, 4.4.1951)

Voltando a Mauro de Alencar:

“(…) o cinema(…) tem que colocar-se ao serviço do povo, deve levar a sua mensagem estética e seu conteúdo educativo e social a todos os rincões da nação e particularmente aos mais insatisfeitos e humildes, por serem inquestionavelmente os mais necessitados.” (I Congresso Nacional, 1952)

A tarefa didática não se limita aos filmes e cineastas, é também atribuição do crítico que, segundo Alex Viany, deve trabalhar para o alevantamento do nível de apreciação artística das plateias, bem como guiar os jovens cineastas estreantes para temas populares brasileiros [Fundamentos, 2/52).

É evidente a existência de um projeto de imposição ideológica em nível nacional, que só não é visto como tal na medida em que estes ideólogos pensam estar elaborando ideias que vão no sentido dos interesses populares. Talvez mesmo, podem estar se sentindo como que coincidindo com o povo, diferenciando-se pelo fato de estarem “prevenidos”, diferentemente das massas. De forma que só percebem mecanismo de imposição ideológica no cinema burguês a que se opõem. A função didática atribuída ao cinema insere-se numa colocação mais ampla referente à arte. Nelson Pereira dos Santos cita Jdanov. A arte

“não está destinada a seguir o nível das necessidades do povo; muito mais; ela deve desenvolver seus gostos, elevar suas exigências, enriquecê-lo de ideias novas, levá-lo avante.” (Fundamentos, 1/51)

Essa educação será, perguntamo-nos, apenas uma volta ao que seria o público se não tivesse sido deturpado pelo cinema americano, pois, quando não deturpados, os gostos do público vão ao encontro das melhores soluções que se pode preconizar para a produção cinematográfica no Brasil? Diz Carlos Ortiz que o povo gosta de histórias simples e humanas; as histórias fáceis do ponto de vista da produção são também as histórias mais agradáveis do ponto de vista do gosto popular. A consciência cinematográfica popular desenvolveu-se, de forma que essas histórias terão de ser bem construídas e tratadas com um mínimo de decência técnica (Fundamentos, 7/51). Essas histórias simples não serão feitas em estúdios: estúdio é oneroso e distancia da realidade (“não é mofando nos estúdios que faremos o cinema brasileiro”). Sintetizando:

“Perdendo em realidade, verdade e brasilidade, os filmes habitualmente rodados nos grandes estúdios perdem fatalmente em popularidade. E quem diz popularidade, diz bilheteria.” (Fundamentos, 7/51)

O conteúdo

Em Fundamentos, o maior esforço para articular popularidade e bilheteria, é Carlos Ortiz quem faz. Caso contrário, o caráter popular do cinema aparece como necessidade da luta política, e não como necessidade da industrialização e comercialização do cinema. Quando estas questões são abordadas, tem-se a impressão de que a característica popular que o cinema deve ter é algo a mais, algo que depende da correta posição do cineasta, mas sem relação especifica com produção e comercialização.

É Nelson Pereira dos Santos, fora da revista, na sua comunicação ao I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro (1952), quem vai estabelecer relações de necessidade entre o caráter popular que deve ter o cinema, o sucesso comercial e a consequente conquista de mercado. Em “O Problema do Conteúdo no Cinema Brasileiro”, ele diz que o público, quando vai ao cinema, vai em busca de assuntos: o “conteúdo”é fator preponderante para aceitação do filme pelo público. As bilheterias dizem que o público brasileiro em primeiro lugar aprecia as histórias dos filmes brasileiros, pois ele fica na expectativa de ver na tela sua vida, seus costumes. Como o povo brasileiro é muito patriótico, ele quer conteúdos de características nacionais. O povo brasileiro tem ânsia de ver na tela assuntos ligados à nossa terra. Resulta dessa colocação que, se a produção cinematográfica seguir essa orientação nacionalista, ela simultaneamente satisfará os desejos do público e conquistará a totalidade do mercado. Conteúdo nacional é fator decisivo para conquista de mercado. Assim o nosso cinema estará ao mesmo tempo desenvolvendo-se materialmente e atuando profundamente na vida moral e social. As fontes para alcançar este conteúdo serão principalmente a literatura, o folclore e a história. Neste sentido, Nelson faz o elogio de O Comprador de Fazendas, baseado num conto e grande sucesso de bilheteria, Simão, o Caolho, baseado num conto e que alcançará (o filme não tinha sido lançado na época do congresso) o mesmo sucesso, e Tico-Tico no Fubá, por estar baseado na vida de Zequinha de Abreu, de imortal memória na vida de nosso povo (a atitude de Nelson diante desta produção da Vera Cruz é totalmente diferente daquela assumida em relação aos seus primeiros filmes “burgueses”; as características burguesas da Vera Cruz não criaram obstáculos para a aprovação deste filme).

Articulam-se claramente, na colocação de Nelson, as características populares e a conquista de mercado; povo e público deixam de ser entidades confusas, mas entidades diferenciadas que tendem a coincidir, pois o público pagante se vê na tela enquanto povo; por decorrência, também fica claro que a conquista de mercado não se fará com filmes de que o público/povo esteja ausente, portanto a burguesia cosmopolita vinculada ao imperialismo não terá condição de efetuar esta operação de conquista de mercado, já que ela não pode fazer cinema popular (Reinterpretadas, estas ideias serão retomadas por Nelson Pereira dos Santos em meados da década de 70, na época de O Amuleto de Ogum).

E Nelson generaliza a sua colocação: em todos os países os filmes de maior sucesso são aqueles que mais de perto observam as características nacionais. Nelson cita René Clair:

“As obras mais dignas do cinema são todas de caráter nitidamente nacional, o que não as impede de serem compreendidas fora de seus países de origem.”

Através dessa citação de Clair, o nacional articula-se com o internacional. Embora nunca seja desenvolvida, existe na revista Fundamentos a ideia de que se tem de passar pelo nacional para atingir o internacional ou o universal. Temos de fazer

“um cinema que represente de fato a nossa cultura, porque só assim teremos amplitude e alcance internacional” (Fundamentos, 12/51)

É, aliás, esse o teor de uma das resoluções tiradas ao final da mesa-redonda comentada por Fundamentos em fins de 1951. E em julho do mesmo ano, já reproduzira palavras de Aldo Tonti (técnico italiano contratado pela Vera Cruz) conforme as quais se deverá fazer no Brasil

“um grande e típico cinema, que passará a interessar não somente aos circuitos brasileiros, mas às telas de todo o mundo”.

Outro ponto da comunicação de Nelson que deve ser ressaltado é o tema indicado pelo próprio título. O caráter popular e nacional de um filme passa pelo conteúdo. Reencontramos aqui uma ideia corrente nas primeiras décadas do século, com a ressalva de que a ideia de um cinema-linguagem universal não é afirmada. Mas é em termos de assunto, de tema, de histórias, que é feita a afirmação do popular. O temário desse I Congresso Paulista é expressivo: os assuntos a serem debatidos se referem ou a questões de legislação, produção, comercialização, profissionalização, ou a questões “culturais”, quase sempre entendidas como o problema do argumento. A mesma coisa verifica-se no I Congresso Nacional, realizado no Rio em 1952. Vejamos alguns exemplos extraídos de teses apresentadas nestes congressos, a maioria das quais se situa na faixa ideológica dos artigos da revista Fundamentos. Quando Leo Godoy Otero critica o cinema brasileiro “burguês”, são os argumentos, os temas e os argumentistas que ele critica:

“A não ser os documentários, a nenhum espectador é dado imaginar um filme sem história, sem argumento.(…) O processo de desintegração da consciência do público, que causam os argumentos dos filmes nacionais, é, sem dúvida alguma, devido à péssima escolha dos temas, a seus filmes espúrios e contextura desonesta. (…) A fuga de nossos argumentos das coisas sinceras da existência é o medo, o eterno medo que tortura esses argumentistas, é o pavor de que algum dia este povo que ridicularizaram, venha a raciocinar, a perceber a razão de ser de suas vidas.” (“Dos Argumentos no Cinema”, I Congresso Paulista, 1952)

Quando Ortiz Monteiro dá sugestões concretas para filmes populares, são temas que ele sugere: enchentes nas regiões, dramas dos seringais, das secas do Nordeste, das epopeias das Bandeiras, dos Palmares: e de Canudos. Como aliás Nelson Pereira dos Santos tinha sugerido na comunicação citada: Canudos, Abolição da Escravatura, Inconfidência Mineira, Bandeirantes. É o argumento, conforme Plácido Soave, que vai ser o principal agente do processo de educação de que falávamos acima. O argumento

“é o centro de interesse: as demais qualidades (…) giram em torno dele (…) Algumas qualidades, só os críticos notam (…) Mas o enredo é assimilado por todos (…) A mensagem contida no filme reside quase que exclusivamente no argumento.” (“Argumento – Sua Importância dentro do Filme. A Ausência de Bons Argumentos no Cinema Nacional”, I Congresso Paulista, 1952)

Salvyano Cavalcanti de Paiva é categórico quanto à primazia do argumento, à primazia do verbal:

“(…) o argumento, elemento fundamental, deve traduzir a verdade, a realidade dialética da vida. Nestas condições, o crítico [ao avaliar um filme] tem de levar em conta primeiro o conteúdo. O conteúdo é sempre e em toda parte o fator determinante com relação à forma. A forma, sempre e em toda parte, decorre do conteúdo e se modifica de acordo com a modificação do conteúdo.” (“O Problema da Revisão do Método Crítico”, Manchete, cerca 1954)

Esta colocação do argumento como pedra angular do nacional e do popular é que leva Carlos Ortiz, na “Definição do Filme Nacional” que ele manda ao I Congresso Paulista, a aceitar que os filmes brasileiros sejam dirigidos por brasileiros natos, naturalizados ou estrangeiros residentes há mais de três anos no país, enquanto

“O argumento, diálogos e roteiro (deverão ser) escritos por brasileiros”.

na suposição de que a naturalidade desses técnicos asseguraria o espírito nacional de suas obras.

Nas críticas violentas que Nelson Pereira dos Santos publicara em Fundamentos contra os primeiros filmes da Vera Cruz, a questão da “forma” praticamente não era tocada. A respeito de Caiçara, dizia apenas:

“O verdadeiro neo-realismo não se acha somente na forma; está, antes de tudo, no assunto e no seu tratamento.”

A forma existe, mas dela pouco se fala; tampouco se elabora a relação que possa haver entre “forma” e “tratamento” do assunto. De Ângela, afirmava que não era “formalmente bem feito” (e aqui “forma” talvez signifique qualidade de realização técnica) e que o filme era cosmopolita no fundo e na forma, sem que se especifique o que se entendia por forma cosmopolita, enquanto o conteúdo cosmopolita merecia uma análise detalhada.

Em alguns textos do congresso, também encontramos referências à forma; são breves e pouco explícitas, como se a questão estivesse presente, sem que se conseguisse elaborá-la. Carlos Ortiz escrevia na sua “Definição” que argumentistas, roteiristas e dialoguistas devem ser integrados no sentido de assegurar o

“sentido nacional à forma, no clima e ambiente de nossos filmes.”

Pelo visto, forma é aqui entendida como tratamento do argumento. A questão da forma em Carlos Ortiz torna-se mais complexa, ou de compreensão mais difícil, se relacionamos esta afirmação com seu comentário sobre Maior que o Ódio. Encontramos uma dicotomia já conhecida:

“Como história, este filme ainda revela o sentido popular e mesmo social de seus autores., embora as situações e as intrigas sejam conduzidas habitualmente dentro do estilo padronizado americano.” (Folha da Manhã, 4.4.1951)

O conteúdo é brasileiro, a forma do conteúdo é americana. Neste filme, o fotógrafo não teria usado rebatedores, o que é criticado por Ortiz, porque resulta uma iluminação defeituosa. Ele defende o uso de rebatedores, embora saiba

“perfeitamente que na realidade, os homens não transitam nas ruas sob o reflexo dos rebatedores.”

Ocorre que

“o filme não será realista pelo simples fato de transportar para a tela todas estas deficiências da vida”

e que

“o realismo não é a arte de copiar comodamente a realidade.”

Portanto, ou porque a cópia da realidade não fica bem, ou porque não dá para copiar a realidade, esta deverá ser trabalhada pelos meios técnicos do cinema (no caso, rebatedores). Mas por quê? Em nome de quê? Para chegar a quê?

“Realista ou não, o primeiro dever do filme é o de se realizar como obra de cinema, ou seja, transportar para o plano da arte cinematográfica com todo o vigor e se possível com maior vigor do que na realidade o que ocorre no plano da vida e do cotidiano.”

E a frase final do texto:

“Como toda forma de arte, o realismo é a técnica de valorizar e enriquecer a fotogenia das coisas.”

Realismo não é aparência. Certo. Mas onde fica o “sentido nacional” que se deve dar à forma? Reencontramos aqui essa ideia de uma linguagem, de uma forma, de um ideal cinematográfico de tipo universal. A aceitação dessa universalidade era em geral tranquila nos autores da primeira metade do século. Aqui, há como que uma tensão, não resolvida nem equacionada, entre um pensamento nacionalista, encaminhado em direção ao “conteúdo” e ao “reflexo”, e o problema da “forma” que não se sabe como colocar. De modo que num teórico marcadamente nacionalista, voltado para o “cheiro da terra”, como Ortiz, pode inesperadamente – ou esperadamente – irromper um vocabulário ligado aos teóricos idealistas franceses dos anos 20, como “a fotogenia das coisas”.

Mauro de Alencar, no seu esforço de caracterizar um cinema popular, também se refere implicitamente à questão da forma:

“(…) um cinema que apresenta a realidade nacional tal qual ela é, que fale ao povo com sua própria linguagem, em razão de seu ambiente, de seus costumes, de seus problemas e de sua vida cotidiana.” (“Cinema Brasileiro a Serviço do Povo”, I Congresso Nacional, 1952)

sem maiores explicações sobre a linguagem do povo. Ê esta a forma? De qualquer modo, e sem saber exatamente o que seja esta linguagem, podemos reter dessa colocação que, para fazer um cinema popular, além de escolher assuntos nacionais e populares, os cineastas deverão usar(?) esta “linguagem” do povo nos seus filmes, comunicar-se com o povo com a linguagem deste.

Ortiz Monteiro, na comunicação já citada, tenta uma elaboração mais complexa. Ele afirma:

“Se na unidade de Forma e Conteúdo do Filme, como obra de arte, o Conteúdo sobrepuja a Forma em importância, na unidade forma e conteúdo do cinema como indústria, as máquinas e os homens treinados em manejá-las é que passam a ter essa importância decisiva.” (“Filme, Forma e Conteúdo”, I Congresso Paulista, 1952)

Dessa colocação, ele se limita a concluir que enquanto não realizarmos a Forma-Conteúdo/Indústria, não se poderá realizar a Forma-Conteúdo/ Arte, pois, sem a primeira, se poderia malbaratar grandes temas (entenda-se temas considerados populares). E prossegue dizendo que a discussão Forma-Conteúdo/Arte é prematura, até se resolver a questão Forma-Conteúdo/Indústria. Indústria torna-se assim pré-requisito de arte e, neste contexto de ideias, pré-requisito de cinema popular. Assim , mesmo, diz, enquanto o problema indústria for sendo resolvido, cineastas “mais amadurecidos” poderão ir cuidando do Conteúdo/ Arte. Pergunta nossa: a questão indústria irá sendo resolvida de que maneira? De que tratarão os filmes, o que farão os cineastas menos amadurecidos, enquanto se irá resolvendo a questão indústria?

Parece que podemos concluir – a partir dos textos que conhecemos – que, neste grupo, a solução industrial acaba sempre tomando o primeiro lugar, ficando a arte ou o popular ou num segundo momento, ou como algo superposto ao industrial, atendendo a aspirações ideológicas e políticas. Ou melhor, que há uma tensão entre a vontade de um cinema nacional e popular, e a certeza de que este cinema – ou qualquer outro – não existirá sem um embasamento industrial e comercial. E, por outro lado, este embasamento não precisa necessariamente de um cinema nacional e popular para se consolidar, donde o perigo que representam filmes que tenham sucesso de público sem ter os requisitos nacionais e populares, conforme o texto de Noé Gertel já citado sobre Veneno, e a afirmação de Alex Viany de que não se deve defender a industrialização em si. É uma tensão entre as características estéticas e ideológicas do cinema a que se aspira e o jogo do mercado e da reprodução da produção.

O comentário de Salvyano Cavalcanti de Paiva sobre Uma Pulga na Balança deixa clara esta contradição. Na Manchete de 6.6.1953, ele se desmancha em elogios diante deste filme cujo nível artesanal só pode ser considerado uma vitória do cinema brasileiro. A “urdidura dramática” do filme indica que estamos numa “fase superior do cinema brasileiro”. Com este filme singular que não permite comparações, a não ser talvez “com certas comédias britânicas”, estamos nos integrando numa “etapa adulta do cinema”. Mas:

“A despeito de algumas concessões, não é fita ‘popular’. Decadentista, pois. Sutil. Quase blasée.”

Carlos Ortiz vai tentar uma síntese. Por um lado, ele concorda com Ortiz Monteiro: o cinema brasileiro não pode atualmente, por motivos técnicos e de produção, abordar qualquer assunto; os temas históricos não devem ser tratados porque, nas condições atuais, resultarão em filmes artisticamente medíocres e comercialmente insignificantes:

“Deixemos os temas épicos para o grande cinema brasileiro do futuro. Há quem pense em levar às nossas telas a epopeia das Bandeiras, as Monções, a vida de Anchieta e até a guerra do Paraguai e a dos Holandeses. Oxalá não encontrem financiamento esses sonhos malucos.

Levemos à tela as histórias simples do nosso povo, nossos contos regionais, nosso romance tão variado, colorido e denso. Deixemos a epopeia para o futuro, quando as condições técnicas, artísticas e sociais de nosso cinema nos permitam tratá-la com o devido respeito (…).” (Folha da Manhã, 8.6.1950)

Mas ele vai além; enquanto deixamos as epopeias para o futuro positivo e filmamos histórias simples, aumentemos a quantidade. E ele faz uma reflexão sobre a ideia de quantidade. Ele louva os sucessos de bilheteria, mesmo que os filmes não se enquadrem no cinema a que aspira: do ponto de vista da história e do conteúdo, Aí Vem o Barão (chanchada com Oscarito) é nulo: mas o filme tem bom nível técnico e está tendo boa bilheteria, o que é motivo de regozijo (Folha da Manhã, 21.11.1951). A mesma atitude ele tinha assumido diante do sucesso de Carnaval no Fogo, em 1950. Conforme o ideal de cinema que ele tem, o filme de Watson Macedo não é satisfatório. Não se pede aos cariocas que abandonem o tema do carnaval, mas

“Poder-se-ia pedir aos estúdios cariocas que aprofundem o tema carnavalesco, que procurem estudá-lo e tratá-lo num grande filme de conteúdo humano e social.” (Folha da Manhã, 16.2.1950)

Mas, basicamente, ele aprova o filme porque consolida a indústria. Evidentemente, Carlos Ortiz não se satisfaz com isso: afirma que o sucesso comercial leva ao aumento de produção:

“Há os que lastimam o êxito de bilheteria de produções como essa, que nada acrescentam ao cinema nacional, do ponto de vista técnico e estético.

De nossa parte, entretanto, achamos que assim tem de ser, pelo menos durante algum tempo ainda. Temos de avolumar a nossa produção de filmes, solidificar nossa indústria cinematográfica incipiente. A qualidade virá depois. A quantidade gera qualidade e vice-versa. Isto no cinema como em tudo mais.” (Folha da Manhã, 9.3.1950)

Em “O Sofisma da Qualidade”, ele defende um decreto de exibição compulsória que acabava de ser promulgado e não levava em conta a questão da qualidade, e responde a quem ache que o cinema brasileiro deve necessariamente afirmar-se com filmes de qualidade:

“O cinema nacional só poderá ser melhor no dia em que for maior. Qualidade e quantidade são categorias inseparáveis.” (Folha da Manhã, 20.12.1951)

Mas nessa discussão da quantidade que vira qualidade, Carlos Ortiz perde de vista as características nacionais que ele tanto reivindica em outros artigos. A qualidade torna-se abstrata, indefinida.

O texto de Mauro de Alencar “Cinema. Brasileiro a serviço do Povo” (I Congresso Nacional, 1952), é provavelmente aquele em que a contradição entre cinema nacional e popular e cinema industrial se manifesta de forma exemplar. Para que o Brasil, emperrado pelo imperialismo, se desenvolva, é preciso que ele se industrialize – é um dos axiomas básicos do nacionalismo desenvolvimentista. Então luta-se pela industrialização no campo do cinema. Porém o cinema industrial é o cinema convencional, cosmopolita, mistificador do povo. Então, ao mesmo tempo tem-se de lutar por ele e contra ele. A solução do impasse estaria em se lutar por um cinema industrial que não tenha as características do cinema industrial – em outras palavras, um cinema que seja ao mesmo tempo “industrial” e “independente”. A função fundamental do cinema é colocar-se “a serviço do povo”. O cinema é ao mesmo tempo “arte, forma de comunicação e instrumento para transmitir cultura”, “insubstituível como veiculo de difusão e cultura” e instrumento de conscientização.

“Estas considerações demonstram que o Brasil reclama, na hora presente, um tipo de produção cinematográfica que, afastada de propósitos essencialmente egoístas e meramente utilitários, tenha como mira norteadora contribuir com seus formidáveis recursos específicos para a educação do povo, refletindo-lhe os sentimentos e as aspirações e contribuindo para o desenvolvimento da nacionalidade. E é evidente que tal coisa deve ser uma realização da nossa indústria cinematográfica.”

Uma “indústria” que não tenha como objetivo o lucro (“propósitos egoístas e meramente utilitários”), mas a educação do povo, a ideia é esta. A penúria em que vive o povo brasileiro e a absoluta necessidade em que se encontra de desenvolver-se, adquirindo cultura e consciência, determinam “de maneira definitiva a necessidade de criar um cinema brasileiro”. Dentre as perguntas que “devem ser respondidas no cinema realista brasileiro”, está

“o que é o povo do Brasil, como vive, o que faz, o que espera, e como tem de trabalhar em seu próprio benefício?”

Assim a função do cinema brasileiro é explicar o povo a ele próprio, E nesta tarefa, além de “educativo” e “realista”, o cinema brasileiro tem de ser “funcional”, e ainda “um cinema industrializado em sua produção e sem artifícios nem mistificações”. Um cinema “industrial” que seja politicamente empenhado, que expresse

“todas as facetas da realidade nacional (… ) a fisionomia física e espiritual do país, sem enfeites, caretas ou retoques… [e] os múltiplos aspectos da nacionalidade [que] denuncie (…) sobre que terríveis realidades se apóia a ação transformadora das forças evolutivas e criadoras.”

Em nenhum momento, Mauro de Alencar se pergunta se, para se industrializar, o cinema precisa ser “popular”, se o caráter “popular” contribui para a industrialização ou se poderia eventualmente entravar sua consolidação, nem se a industrialização leva a um cinema “popular”. De forma que cinema popular e cinema industrial permanecem como duas linhas de aspiração paralelas, relacionadas pela vontade do autor, mas que não têm entre si nenhuma articulação lógica e necessária.

Essa tensão, que se manifesta ou fica latente em praticamente todos os articulistas desse grupo, só se resolve na proposta de Nelson Pereira dos Santos, a única, nos parece, a encaminhar uma solução ideológica e “material” com coerência interna.

O Estado

Pela importância, devem ser referidos dois outros pontos abordados em artigos de Fundamentos, embora nunca tenham merecido maior análise: o cinema e o Estado, e a situação profissional.

A relação cinema-Estado ou governo é pouco tratada, mas fica implícito que o cinema precisa do amparo estatal e que é dever do governo dar esse amparo. Por exemplo, quando, em julho de 1951, Alex Viany critica o governo por conceder ao cinema uma proteção apenas demagógica, enquanto nada faz para realmente fomentar a produção e limitar a importação. Se, na mesa-redonda de novembro de 1951, repudia-se um projeto de Instituto Nacional de Cinema, não é que se rejeite o amparo estatal, mas sim o modo como o projeto de INC vem se processando: do projeto acalentado pelo governo Vargas e para a elaboração do qual fora/viria a ser convidado Alberto Cavalcanti, dizia-se que se tentava impor ao Brasil uma solução de cúpula e fascista.

Só num artigo de Rodolfo Nanni sobre o Instituto Nacional de Cinema da URSS (aqui INC = escola de cinema) é que encontramos maiores indicações sobre os deveres do Estado. Enquanto o INC mantido pelo Estado soviético é satisfatório,

“Para os jovens brasileiros, nem escola, nem nada, a não ser a submissão aos desígnios de uma burguesia reacionária e decadente (… ). Só um governo democrático e popular poderá proporcionar aos jovens brasileiros a Escola, o Instituto donde sairão os futuros mestres do cinema brasileiro.” (Fundamentos, 5/51)

O que permite entender que ao Estado cabe cumprir uma tarefa que poderia ser cumprida pela burguesia, não fosse ela decadente. O futuro de um cinema nacional e popular encontra-se portanto na dependência do Estado, pois, quando Nanni fala em “mestres do cinema brasileiro”, é naturalmente a este tipo de cinema que se refere.

A solução estatal para o cinema encaixava-se naturalmente em diretrizes mais amplas. O “Projeto de Programa do Partido Comunista do Brasil e a Intelectualidade Progressista” previa no item 17:

“Estímulo às atividades literárias, artísticas, técnicas e científicas de caráter pacífico, com pleno apoio e ajuda do Estado.”

Aparece uma ressalva já encontrada em textos de Cinearte: um cinema de caráter nacional e popular pode

“inclusive ser financiado pelo Estado, embora sem a sua orientação” (I Congresso Nacional, 1952)

é Mauro de Alencar quem diz. Pelos documentos que compilamos desse grupo, a discussão cinema-Estado limitava-se a isto, inclusive porque, nos parece, não era um problema: “era evidente que a cultura deve receber apoio do Estado popular e democrático,

É fora desse grupo que encontramos o pronunciamento mais categórico de toda a década em relação aos deveres do Estado diante da produção cinematográfica. Paulo Emilio Salles Gomes declara em Anhembi (12/54):

“É preciso não perdermos de vista o fenômeno fundamental de nosso tempo: no mundo moderno a industrialização dos países atrasados não se processa pelo movimento espontâneo do liberalismo econômico, mas sim por atos de vontade do Estado, sobretudo em países de economia não capitalista, mas também em países de economia capitalista como o nosso. A exploração de nosso petróleo vai ser possível graças aos capitais que economizaremos com a instalação de refinarias. No caso do cinema, a refinaria corresponde à distribuição(…). O objetivo a ser alcançado me parece claro: a nacionalização do comércio exterior em matéria cinematográfica (…) Enquanto não chegarmos a isso, é preciso que os poderes públicos amparem a produção brasileira (…) a solução definitiva do problema que é, repitamos para concluir, a nacionalização do comércio de distribuição cinematográfica.”

A indústria cinematográfica, como se vê, é comparada à indústria de base. Esta comparação, por espantosa, não deixa de ser compreensível: estamos na época da campanha “O Petróleo é Nosso” e essa impostação da problemática cinematográfica é uma tentativa para sensibilizar o governo. A associação cinema/petróleo reencontra-se com certa frequência. Por exemplo:

“Se o presidente da República ao receber os homens de cinema se mostra disposto a ajudar esta indústria – tão importante como a industrilização do nosso petróleo – (…).” (Última Hora, 13.1.1953)

“No Brasil, é impressionante o paralelismo entre a luta pelo cinema nacional e a luta pelo petróleo. No caso do petróleo, os imperialistas procuraram convencer o povo brasileiro, durante muitos anos, que tal coisa não existia por estas bandas. Mas, apesar da propaganda norte americana, o petróleo jorrava diante dos olhos brasileiros (…) No cinema, até muito recentemente, a propaganda norte-americana dizia que nem adiantava pensarmos em fazer indústria(…).” (Alex Viany, “Breve Introdução à História do Cinema Brasileiro”, Fundamentos, 7/51)

“(…) porque só o povo unido e consciente defenderá o nosso cinema, como terá de defender o nosso café, o nosso petróleo, nossa indústria leve e pesada (…) batalha do cinema só poderá ser eficaz se entrosada com a grande batalha em defesa de nossa indústria, dos nossos recursos de solo e subsolo.” (Nilo Antunes “A Defesa do Cinema Brasileiro”, Fundamentos, 4/50)

Os trabalhadores

O tratamento da questão dos técnicos em Fundamentos é ambíguo. É claro que os empregados têm interesses que devem ser levados em conta, as relações de trabalho devem ser disciplinadas. Por outro lado, a defesa sistemática dos interesses específicos dos trabalhadores poderia criar dificuldades aos produtores, por ser a situação econômica do cinema brasileiro particularmente precária. É o que, nos parece, leva a formulações como esta resolução 9 da mesa-redonda citada:

“Estudar e acertar os termos de um código de ética profissional que regule as relações de empregados e empregadores da indústria de filmes em benefício da produção nacional.” (grifo nosso) (Fundamentos, 12/51)

A colocação que consiste em opor o cinema brasileiro como um todo ao cinema importado interpretado globalmente como manifestação do imperialismo no campo cinematográfico leva a recomendar a união de todas as pessoas envolvidas no trabalho de produção, independentemente da posição que ocupam na produção, contra o inimigo comum. Na mesa-redonda em questão, conclui-se que os debates demonstraram

“que tanto para o produtor como para o mais simples trabalhador de cinema, o principal para a sua sobrevivência é combater o monopolismo do cinema ianque.”

ou que

“Produtores, diretores, atores, técnicos, críticos, é toda uma classe que se levanta para lutar.”

Essa união da classe é recomendada em várias oportunidades durante os congressos, em particular por Jackson de Souza, que, no I Congresso Paulista, fala em nome dos técnicos, para os quais ele defende um sindicato diferente do dos produtores, concluindo em favor da união de todos:

“Claro está que os profissionais irão formar imediatamente o seu sindicato conforme fizeram os produtores. Único órgão capaz de se movimentar em favor de seus interesses e é a única maneira de verem atendidas suas pretensões profissionais e de se encontrarem vigilantes contra os ataques externos ao nosso cinema, pois que, esses ataques também são dirigidos contra os seus interesses profissionais.”

Às ameaças americanas estão expostos

“todos os profissionais, desde o diretor até o mais humilde trabalhador de estúdio, porque são os primeiros a serem atingidos pela crise financeira.”

Um cinema feito pelo povo?

Das citações e comentários acima, pode-se deduzir que a postura ideológica encontrada nestes textos tem do povo uma concepção genérica, e que ele é matéria e destinatário dos filmes. Entre o povo matéria-prima e o povo-destinatário, o cineasta. Ele se atribui a tarefa de pôr o povo ao alcance do povo. O que não faria o menor sentido, seria tautológico e absolutamente inútil, se esta operação não consistisse em passar pela consciência que o cineasta se atribui. Essa consciência é o intermediário entre o povo e si próprio. A operação poderá ser institucional e financeiramente sustentada pelo Estado. O Estado poderá inclusive promover a formação dessa consciência.

A única nota discordante é fornecida por Mauro de Alencar, que nos fala de um cinema a serviço do povo e feito com a linguagem do povo:

“Mas este propósito somente poderá ser executado integralmente se expressar em seus próprios termos, como: um cinema para o povo, feito pelo povo.” (I Congresso Nacional, 1952)

Essa colocação não foi desenvolvida, nem explicada, não ecoa em nenhum articulista de Fundamentos nem nas comunicações aos Congressos; ela aparece antes como uma breve atitude voluntarista, sem maiores consequências. Os meios de produção não constituem problema, nem a sua propriedade, nem o fato de que eles podem marcar os produtos. O profissional de cinema não é questionado enquanto tal. O que acabará determinando o filme enquanto popular e enquanto nacional é basicamente a sua consciência. Ressalvada a posição de Nelson Pereira dos Santos descrita acima, em que popular e nacional se imbricam com mercado, não permitindo que a consciência seja o exclusivo fator determinante.

2. FERNANDO DE BARROS

É interessante comparar Fernando de Barros com o grupo de que falamos, por serem ao mesmo tempo tão próximos e tão distantes. Próximos porque os temas básicos de F. de B. são quase os mesmos, e as posições semelhantes; distantes, porque ele opera um ligeiro deslocamento que transforma o discurso político do grupo de Fundamentos em discurso de um empresário que tenta ser eficiente.

F. de B. escreveu durante alguns anos na primeira metade da década de 50 na Última Hora de São Paulo. São curtos artigos e muito mais frequentemente breves notas que repisam constantemente as mesmas afirmações, como se ele estivesse numa campanha cujo efeito dependesse de uma incansável repetição. E este material, que só lemos em parte, desenha uma posição onde a temática nacional, o povo/ público, a industrialização, o mercado interno, o Estado, a união da classe cinematográfica, são os momentos principais.

O argumento e o gosto do público

Como a revista Fundamentos e os participantes dos Congressos que citamos, F. de B. insiste essencialmente na questão do argumento. Este é o ponto mais importante de um filme, e aquele em que estamos mais fracos (7.10.1952). Há uma crise do argumento, aliás não só no Brasil. A razão da crise

“é simples: ninguém tem certeza do que o espectador brasileiro prefere. A nossa estatística sobre o gosto popular, se ela existir, é tão incompleta que, em razão da pouca quantidade de nossas produções, não podemos considerar nenhuma conclusão sobre o assunto. Então, numa organização de caráter industrial, não é uma tarefa fácil tomar a responsabilidade de produzir este ou aquele filme (…).” (5.11.1952)

Saber o que quer o público é questão de estatística e de pesquisa:

“Grandes inquéritos, concursos, debates públicos – todos os meios de consulta ampla deveriam ser usados para sabermos ( … ) o que pode e o que não pode interessar.” (5.11.1952)

“Os produtores brasileiros ainda não descobriram para os seus negócios nem a estatística, e muito menos se preocupam por indagar ligeiramente do público os seus gostos e tendências. No momento, tudo o que lhes interessa é o próprio gosto e o seu raciocínio, e isso, meus caros amigos, é mau (… ).”(5.5.1953)

Estes diretores (muitos deles talvez estrangeiros, embora F. de B. não o diga, nem exemplifique com filmes) são

“como um bando de marcianos, depois de derrotar e passar para trás os elementos da terra, [que] houvesse decidido fazer cinema desconhecendo totalmente o solo aonde haviam pousado(…).” (21.9.1953)

Os produtores que não fizerem filmes no gosto do público são fadados à falência, acarretando desemprego do pessoal cinematográfico e descrédito de uma indústria que começa (24.2.1953).

“No momento, os diretores brasileiros não devem fazer questão fechada em torno das histórias que preferem pessoalmente.”(5.11.1952)

“Deixemos da metafísica dos gabinetes”. (28.10.1952)

Apesar de não se ter estatísticas sobre os gostos do público, F. de B. luta em prol de um cinema de temática nacional, certo de que é isto que o público quer.

“Devemos refugar sem piedade todos os filmes que não representem aspectos da vida nacional, que não reproduzam nossos costumes, que não criem uma absoluta atmosfera brasileira (… ) [Senão] se poderá comprometer em muito a criação de uma indústria que deve ter na sua formação e desenvolvimento profundas raízes nacionais (…).” (2,1.1953) (Notar o uso dos conceitos “reprodução” e “raízes nacionais”, este último raramente usado na literatura cinematográfica da época, mas que teria grande sucesso posteriormente.)

A necessidade do teor nacional dos argumentos leva F. de Barros a recusar que se importem argumentistas: só brasileiros – e F. de B. sempre faz uma ressalva, pois ele é estrangeiro, português:

“ou estrangeiros longamente aqui radicados, penetrados das realidades e tradições, sejam eles literatos, jornalistas ou radiófilos, podem escrever essas histórias (… ).” (5.11.1952)

A relação estabelecida entre realidade nacional e argumentistas não é de compreensão, mas de intuição, de vivência, de osmose. Aliás, essa temática nacional não encontra defensores apenas na revista Fundamentos, nos congressos e em F. de B. É até uma recomendação do Congresso: o projeto 2 370-7, referente à criação do Instituto Nacional de Cinema e que o Diário do Congresso Nacional publica em 13.5.1954, expõe no trecho da justificativa reproduzido por F. de B.:

“A ideia do presente projeto é a de procurar meios de divulgação de nossas paisagens, de nossa história, de nosso folclore (…) o nosso povo conhece mais profundamente a guerra civil americana e os episódios da independência da grande república, do que por exemplo a expulsão dos holandeses de Pernambuco (…).” (25.5.1953)

Outras sugestões temáticas são dadas: os bandeirantes paulistas, que fariam pendants aos desbravadores do far-west americano, diz F. de B., ou Maria Quitéria, Benta Ferreira, Anita Garibaldi, em resposta à Pompadour ou a Madame du Barry.

O inimigo desse cinema nacional não é o cinema cosmopolita (nos textos lidos a palavra “cosmopolita” é usada apenas uma vez e aplicada, negativamente, ao cinema argentino, cujo cosmopolitismo o levou à falência), mas, como vimos, o cinema de temática pessoal dos diretores.

A atitude de F. de B. vê-se comprovada e fortalecida pelo sucesso primeiro de O Cangaceiro e depois de Sinhá Moça:

“O Cangaceiro mostrou que filmes baseados em temas tipicamente brasileiros alcançam o interesse do público (…).” (13.2.1953)

Com O Cangaceiro

“o cinema nacional já está saindo das discussões de café (…) e começa a entusiasmar a massa realmente interessada no desenvolvimento e no progresso da nossa cinematografia (…) sabemos agora que o público repelirá todo filme que não tiver uma história tipicamente nacional, uma técnica apurada, uma realização e interpretação cuidada (…).” (14.2.1953)

Além da vitória da temática nacional representada pelo sucesso destes filmes, eles colocam também a questão da qualidade. F. de B. não se colocava contra os filmes de carnaval, seria remar contra a maré, já que o público gosta, mas critica as chanchadas por serem ruins e defende o gênero musical. Mas eis que chega O Cangaceiro, provando que um filme bem feito pode render mais que as chanchadas, as quais, no carnaval de 1953, alcançam pouca renda (24.2.1953). O que completa a vitória. E este aprimoramento do gosto do público é simultâneo ao desenvolvimento da indústria.

O sucesso destes filmes e sua repercussão internacional modificam uma ideia de F. de B. Em 31.12.1952, ele argumentava que não se pode comparar filme estrangeiro com brasileiro, devido à diferença de orçamentos. Agora, em 14.5.1954:

“Mas uma coisa não podemos negar – que nos últimos anos em S. Paulo, e com exceções também no Rio de Janeiro, se conseguiu um padrão cinematográfico, capaz de resistir às mais apertadas comparações com cinematografias estrangeiras de recursos mais amplos (…).

No entanto, este não é um problema que o preocupe, nem a ideia de que o universal se atinge passando pelo nacional. Ele aceita isto, sem desenvolver nem repetir muito, porque a ideia dominante de F. de B. é que os filmes brasileiros devem se pagar no mercado interno. Deve haver uma relação viável entre os orçamentos e a potencialidade do mercado. Como a potencialidade do mercado para filmes brasileiros não é muito grande (a não ser para sucessos excepcionais que não se pode esperar nem exigir de todo filme), os orçamentos devem ser baratos. (Comentemos que a insistência sobre o mercado interno pode ser uma resposta à importância dada ao mercado externo, na Vera Cruz, na época de Alberto Cavalcanti, que ele substituiu como produtor da empresa. Por outro lado, F. de B., na Vera Cruz, não desenvolve propriamente uma política de orçamentos baixos, pelo contrário.)

“Temos que dar ao público enredos verdadeiramente nacionais, e temos que fazer os filmes dentro de um orçamento capaz de ser pago no próprio país.” (24.2.1953)

“Os temas devem ser profundamente nacionais, reflexo da alma do povo brasileiro, da mesma maneira que a economia da indústria deve estar baseada nas proximidades dos rendimentos dentro do Brasil, e nunca nos mercados externos, onde pelo menos por agora nossos filmes não encontrarão uma estabilidade definitiva, não tendo outra razão para serem exibidos do que a curiosidade do seu aspecto folclórico.” (6.6.1953)

Esse mercado interno que F. de B. tanto defende deve pertencer à produção brasileira, pois qualquer filme estrangeiro no mercado é uma evasão de divisas:

“Aquela fitinha francesa é mil vezes pior do que a pior das fitas brasileiras, com o agravante de que um filme nacional, por pior que seja, significa uma vantagem econômica para o país (…) Se for necessário assistir a filmes maus, é preferível que sejam brasileiros.” (30.10.1952)

A exigência de uma temática “nacional não tem um teor político, nem é luta contra o imperialismo, nem contra a burguesia, como na revista Fundamentos. Estas palavras não pertencem ao vocabulário de F. de B. A temática nacional, que deve resultar da vivência do argumentista e de uma espécie de pesquisa de mercado, é claramente o meio de conquistar um público de massa, pagante, que sustentará a produção. Esta operação de F. de B. e sua diferenciação em relação ao grupo da Fundamentos é particularmente sensível num artigo em que cita trechos de um texto do cineasta italiano Giuseppe de Sanctis, cujas posições políticas só podiam ter toda a simpatia de Fundamentos:

“Eu me esforço – diz de Sanctis – por levar até os homens que não têm espírito de luta essa força, e de lhes indicar que a solidariedade humana é a condição para mudar o que existe de mau na nossa sociedade. Nós devemos na Itália criar um estilo nacional, popular. É fácil fazer um filme para si, ou para mil ou duas mil pessoas. O que é difícil é fazer um filme para milhões de espectadores.”

E logo após a expressão “milhões de espectadores”, F. de B. acrescenta:

“Este é exatamente o problema com que também se debate o cinema brasileiro. Em primeiro lugar, ainda não encontramos um estilo próprio para a nossa cinematografia, porque ainda não a alojamos completamente dentro do espírito nacional. Em segundo lugar, nossos filmes ainda são mais para atender a gostos pessoais do que propriamente dos espectadores brasileiros. – Essa barreira deve ser vencida, porque no momento já começamos a ter em mãos mais elementos que nos permitem quase chegar a conclusões bastante claras sobre os diferentes gêneros de filmes que o espectador nacional prefere, e até mesmo, os que darão margem e possibilidades de uma exportação (…) todos os filmes produzidos devem estar amarrados ao gosto do público brasileiro (…).” (24.1.1953)

F. de B. reduz de Sanctis: do seu comentário sumiu a palavra “popular”. Não se trata mais de um cinema de “luta”, nem didático, nem voltado contra o que há de “mau” na sociedade. O “estilo nacional, popular” virou “estilo próprio” e “espírito nacional”.

E, no entanto, o povo/público de F. de B. parece ser mais concreto que o povo da revista Fundamentos. Aí o povo se reveste como que de um caráter abstrato. F. de B. procura contatos. Ele vai a Santos e fica olhando as filas às portas dos cinemas. Vai ao interior e se entusiasma com a declaração de um espectador que disse assistir apenas a filmes nacionais por serem os únicos que o satisfazem; e ele generaliza: este é um público fiel que nos prefere aos estrangeiros, por causa da temática (13.7.1953). E é com esse público simples que o cinema brasileiro pode se relacionar, não com uma elite que o despreza:

“(… ) o povo brasileiro, aquele povo não sabe que busca no cinema um divertimento simples, gosta de ir e de ver cinema feito no Brasil, com os seus artistas e ouvindo a nossa língua e música. Claro que existem depois os tais que torcem o nariz, aqueles que representam o grupo que poderia ajudar, sem dúvida, a que melhorassem a qualidade, mas que nunca se deram ao trabalho de indagar a razão pela qual o cinema nacional não dá definitivamente o pulo(…).” (16.10.55)

Isso não representa uma ruptura com a burguesia (palavra inexistente em F. de B.). Seria preferível que o público de elite – a quem não se pede que goste do cinema brasileiro, mas apenas que entenda por que não é bom – o defendesse. Mas, já que isto não acontece, não resta ao cineasta senão encontrar seu único apoio no povo.

Não é só o público de elite que falta ao cinema brasileiro, a critica também:

“A opinião pública é agora uma defensora acérrima do cinema nacional. Um clima favorável envolve todas as iniciativas, e mesmo quando os críticos se mostram ferozes em suas análises, sempre a opinião popular tem prestigiado todos os trabalhos, quando feitos com honestidade, fora daquele clima de aventura (…).” (15.10.1953)

Mas é em 1952 que F. de B. melhor expressa sua sedução pelo povo, visto como um público cinematográfico em potencial, desde que a pesquisa de mercado funcione:

“Todos os que pensam em fazer cinema no Brasil, sejam diretores ou produtores, artistas ou técnicos, nacionais ou estrangeiros, deveriam ter comparecido à Serenata a Chico Alves, que se realizou sábado no Vale do Anhangabaú. – Ali, assistindo ao grandioso espetáculo, vendo e sentindo essas trezentas mil pessoas simples mas profundamente brasileiras, que vieram de todos os bairros da cidade para emocionar-se quando se prestav.a a grandiosa homenagem à memória do grande cantor, talvez compreendessem (…) que é para esse povo que, no momento, devemos fazer nossos filmes. Não posso mais duvidar: ou o cinema brasileiro descobre a fórmula (grifo nosso) que tocará o coração do seu povo, ou então não existirá, porque o cinema só será vitorioso quando conseguir ser um espetáculo absolutamente popular, ao invés do recreamento de elites (…) vamos tentar captar imagens, canções, problemas e intrigas que realmente possam arrastar, para os filmes produzidos aqui, multidões puras e ansiosas (…). Para compreender e emocionar-se com o acontecimento do Vale do Anhangabaú não é necessário ter nascido no Brasil, mesmo porque acredito que muitos dos que ali estavam (…) vieram de terras distantes (…). Mas foram poucos os [cineastas] que estiveram no Vale do Anhangabaú recebendo uma esplêndida lição de brasilidade.” (28.10.1952)

O Estado

Como na revista Fundamentos, o Estado tem de dar apoio ao cinema. Mas aí também, nos parece, Estado e governo são algo mais concreto que em Fundamentos. Só o governo poderá criar base para o desenvolvimento da indústria cinematográfica (18.11.1955). Mas F. de B. constantemente ressalta que as medidas tomadas pelas autoridades, em vários níveis, não estão resolvendo. Em 15.4.1954, ele reclama mais ação e menos demagogia. Só que, talvez por escrever em Última Hora,

F. de B. não pode criticar Getúlio Vargas, que é apresentado como “um real protetor do cinema no Brasil” (11.11.1952), que sempre tem dado o melhor dos apoios ao cinema brasileiro (7.4.1953). O projeto de Instituto Nacional de Cinema de Vargas, qualificado de fascista por Fundamentos, é aqui apoiado:

“Toma-se necessário que o INC seja aprovado urgentemente, para que a indústria do cinema brasileiro se tome alguma coisa de útil para o País, e não como está sendo agora, apenas instrumento para meia dúzia de senhores satisfazer os seus apetites vorazes, destruindo homens e capitais brasileiros, capazes de levarem a bom termo a formação definitiva desta nova força econômica.” (13.2.1953)

Só o INC pode fazer este planejamento – esta uma das palavras preferidas de F. de B. por caracterizar, conforme ele, a atitude empresarial, coisa essa de que os cineastas brasileiros carecem.

Mas F. de B. coloca limites à ajuda estatal: a parte financeira deve ficar nas mãos da empresa privada:

“Exageradamente pedimos demais ao Estado, e queremos agora que seja o Estado que financie a indústria brasileira, quando o que devemos pedir, são leis que garantam a existência da indústria sem que ela seja obrigada continuamente a andar estendendo a mão à caridade pública, ou mendigando esmolas de quem quer que seja (…).” (14.5.1954)

Por outro lado, existe o fantasma da orientação estatal. Disto, F. de B. não fala diretamente, mas o tema aparece num artigo de Carlos Drummond de Andrade que ele reproduz na íntegra:

“O colapso da Vera Cruz recolocou a sorte do cinema nacional nas mãos do governo, que é nosso ‘papai grande’ (…) A criação de mais um órgão administrativo [referência ao projeto de INC, que CDA não acha bom] para imprimir orientação a um setor da indústria e assegurar-lhe desenvolvimento, revela mentalidade de dirigismo econômico (…) De ordinário, tais orientações: malogram ou perturbam o desenvolvimento da qualidade que se aspira a beneficiar (…) Um dos aspectos mais graves da iniciativa é, porém, o critério de ‘conveniência pública’, ligando à pretensão de instituir ‘padrões técnicos e artísticos de cinematografia’ aventados para a censura cinematográfica. Aí estarã nas mãos do governo uma arma de alcance imprevisível. Como se determinará essa conveniência? Não há critérios insuscetíveis de interpretação maliciosa. E quem a determina? Em última análise, agentes do poder público. Tal conveniência corre, pois, o risco de converter-se, na prática, em conveniência dos detentores eventuais do poder (…).” (26.3.1954)

A decepção diante da atuação das autoridades é constante e também constante a humilhação a que submetem os cineastas:

“(…) Já agora no estado a que as coisas chegaram, só mesmo os poderes públicos podem criar as bases seguras em que possa caminhar a indústria nacional (…) Infelizmente, temos que observar que o momento que o país atravessa não é dos mais propícios para que o governo se preocupe com os problemas do cinema nacional. Sendo assim, que nos resta? Devemos, nos dias que passam, nada mais atender do que a iniciativa particular, a boa vontade do público (…).” (18.11.1955)

Ao cineasta abandonado pela elite e pelo governo, resta sonhar com trezentas mil pessoas:

“Já é tempo de não se perderem horas e horas nas antecâmaras (…)

Basta de servir de cobaia a homens públicos, que em busca de notoriedade, escolhem o cinema brasileiro para poderem surgir mais um pouco no noticiário dos jornais (…) Os homens do cinema nacional devem já ter compreendido que ninguém os vai ajudar (…) não têm mais ninguém para quem apelar (…) Que nos resta então? Creio que tudo o que se poderá agora fazer, é contar apenas com o povo, com esse povo que continua indo assistir ao cinema brasileiro, esse povo que fechando os ouvidos aos derrotistas, perdoando todos os defeitos, continua prestigiando uma indústria que gostaria de saber vitoriosa( ) creio que o melhor para os homens de cinema, agora, é voltarem as costas a todos e trabalharem( ) continuarem levando ao povo do Brasil a lembrança de nossa existência e de que, mesmo amordaçados em nosso próprio mercado, não nos renderemos nunca (…).” (23.9.1955)

Os trabalhadores

Quanto à questão profissional, aqui como na Fundamentos, povo é na tela e na sala. Diante do trabalhador em cinema e da questão sindical, F. de B. é mais preciso que a revista Fundamentos ou as pessoas dos congressos. Trabalhador tem de ser valorizado mesmo. Não se deveriam conceder prêmios apenas a profissionais de maior categoria, mas também aos operários e outros trabalhadores inferiores em sua categoria:

“(…) prêmios igualmente deveriam ser concedidos aos anônimos trabalhadores do cinema brasileiro, aos operários das luzes, aos que constroem os cenários, às datilógrafas (…) a todos aqueles que sem nunca terem a oportunidade de ganharem um aplauso continuam, apesar de tudo, voltando sempre à batalha do filme, certos que algum dia ficarão na indústria do cinema para sempre (…) Aqui fica como cronista a minha homenagem aos anônimos homens do cinema nacional (…).”(12.7.1954)

A atitude da coluna de F. de B. diante do sindicalismo operário chega a ser formulada explicitamente não num artigo de sua autoria, mas de Jacques Maret, cineasta (?) francês a quem F. de B. cedeu sua coluna para a publicação de alguns artigos. Em 27.5.1953, Maret faz uma “pequena comparação” entre as condições de trabalho na França e no Brasil, favorável a este último, inclusive porque no Brasil nenhum sindicato impede o produtor de agir como bem lhe pareça.

E mesmo que a situação econômica dos produtores melhore, F. de B. explica: em 1952, as coisas foram bem para o cinema brasileiro, o que leva muita gente a pensar que os produtores estão ganhando rios de dinheiro. Não é assim. Essa situação de melhoria (que poderia – acrescentamos – levar os trabalhadores do cinema a serem mais exigentes) deve ao contrário levar os operários a se unirem aos produtores. Pois, antes, o inimigo do cinema brasileiro lutava contra uma ideia, agora que ele luta não mais contra uma ideia mas contra um fato, esse inimigo vai reforçar sua luta. Por isso:

“(… ) os homens que dirigem o cinema nacional e os que trabalham no cinema nacional se devem unir e procurar juntos meios de defesa e de colaboração mútua. Ainda é cedo para que as forças de uns e outros entrem em choque (…).” (21.11.1952)

Portanto, a união, ideia a que já estamos acostumados.

A televisão

Há um outro tema de relevo na coluna de F. de B., com absoluta exclusividade: a televisão.

F. de B. percebe que o público cinematográfico em São Paulo está diminuindo, fica sabendo que uma nova lei poderá permitir a instalação de 292 estações de TV n Brasil (26.11.1952), vai a lojas e se impressiona com o aumento de vendas de receptores (26.12.52). Trata se de uma “radical transformação”, a primeira em toda a história do cinema, provocada pelo fato de que a TV manda imagens gratuitas dentro das casas (8.6.1954). Mesmo o cinema em três dimensões não conseguirá enfrentar a TV. F. de B. é contra a que se faça a guerra à TV. É o que se fez nos Estados Unidos e não deu certo para o cinema. Os homens de cinema devem se unir à TV, e já, porque, por enquanto, os homens de TV ainda não estão fortes. Há um dirigente de TV que aceitaria fazer um convênio com um grande estúdio, para ele seria preferível, pois não teria de empatar dinheiro em máquinas. Mas os homens de cinema não querem saber de nada, parece que eles têm o rei na barriga (26.11.1952).

Os textos que estamos comentando neste trabalho são contemporâneos da instalação e início do desenvolvimento da TV no Brasil. O que parece ter passado despercebido a todo mundo, inclusive àqueles que tanto se preocupavam em fazer filmes para o povo. A única exceção é F. de B., talvez devido à sua visão empresarial.

3. BENEDITO J. DUARTE E ADJACÊNCIAS

Na outra margem do rio, BJD. Um de seus principais temas é o povo, como temática e como público. Ele está a favor de um cinema popular, não acha que se deva dar ao povo filmes de mau gosto e, para ele, o cinema terá uma função educativa, o argumento e o roteiro estão entre os grandes problemas do cinema no Brasil.

Os temas são praticamente os mesmos dos críticos anteriores. Mas a agressividade campeia. Fernando de Barros escreve “num canto de coluna” (Anhembi, 11/1952). Carlos Ortiz quer “destruir a obra alheia quando o seu autor não reza pela sua cartilha”. Com seu filme Agulha no Palheiro (que Salvyano Cavalcanti de Paiva, sem maior explicação, qualificava, na Manchete de 6.2.1954, de “nacional-popular”), onde encontramos “todos os velhos chavões do cinema americano”, Alex Viany desmente “tudo quanto de bom proclamava em favor do cinema nacional, sua autenticidade, sua brasilidade de argumento”. BJD abre sua coluna no Anhembi para Trigueirinho Neto dizer que não participa dos congressos por serem “manipulados”. É através de BJD que ficamos sabendo que tampouco Alberto Cavalcanti participa dos congressos, “por não ser de circo” (Anhembi, 5/1952). Este tipo de ataque contra os “comunistas” é generalizado. Por exemplo, ainda a respeito de Agulha no Palheiro, acusado de plágio de um filme italiano ligado ao neorealismo:

“É o caso de se saber se plágio em família, ou melhor, em partido, é mesmo plágio. Talvez os comunistas já tenham feito uma revisão de conceitos. Plágio talvez seja expressão reacionária para o que se poderá chamar de processos não de criação, mas de autoria coletiva nos diversos planos nacionalistas.” (Trecho de editorial da Tribuna da Imprensa, reproduzido e encampado por L. C. Bresser Pereira na sua coluna em O Tempo, 5.2.1955)

Na mesma linha, encontramos as denúncias de J. F. (José Sanz?) no Jornal do Comércio (Rio, 2.10.1952), em artigo contra o Congresso de Cinema. Ele critica a “couraça nacionalista” da definição de filme brasileiro aprovada pelo Congresso, a qual coincide com as “diretrizes comunistas”. Além de criticar o nacionalismo manifestado pelo congresso, José Sanz (?) também rejeita uma forma de internacionalismo que está despontando, pois há congressistas que coincidem com “certos movimentos sul-americanos que hostilizam os chamados grupos estrangeiros, imperialistas, etc., ou, mais claramente, os norte-americanos e os Estados Unidos.” (“O Cinema Brasileiro e as características”)

O sul-americanismo não era muito forte na época nos meios cinematográficos; alguns traços podem ser detectados aqui e lá, principalmente num artigo de Manchete (6.6.1953) sobre um Congresso de Cultura realizado no Chile, durante o qual se combinou um Primeiro Congresso Continental de Cinema planejado para São Paulo em 1954, em que se discutiriam os problemas comuns das cinematografias latino-americanas face à dominação estrangeira, econômica e cultural, e o que fazer para escapar a ela.

“É de fundamental importância para nós o que ficou resolvido sobre cinema no recente congresso [do Chile] (…) Um dos informes mais valiosos e que situa com precisão o caráter desigual da competição entre as fracas cinematografias centro e sul-americanas diante do colosso norte-americano foi o do delegado chileno (…) [que] denuncia com veemência o tratamento que os trustes Morgan e Rockfeller (…) impõem, através do cinema, a nós da América menor (…) Denuncia a ação nefasta que constitui para essa igualdade ideal a cerrada negativa dos Estados Unidos de entregar cotas satisfatórias de filme virgem às indústrias nacionais e entorpecer e dificultar sua importação de outros mercados, os europeus, por exemplo. Denunciando ainda a pressão dos distribuidores sobre os exibidores, [o delegado do Chile] esmiuça (…) as consequências culturais da invasão e ocupação do mercado pelos filmes norte-americanos (…) Não queremos esse tipo de ‘cultura’ para nós, latino-americanos” conclui Manchete.

A expressão de um povo

Voltando a BJD: todas as críticas são feitas em nome do povo, em nome do qual também são tomadas as posições criticadas.

BJD faz uma crítica negativa de O Barbeiro que se Vira em nome de um cinema que

“seja realmente a expressão de um povo.” (Folha da Manhã, 5.7.1957)

Enaltece Galileu Garcia e seu Cara de Fogo, então em produção, porque ele é daqueles que

“desejam aproximar-se das gentes, das coisas, dos costumes, da paisagem brasileira (…).” (Folha da Manhã, 5.7.1957)

Embora reconheça indiscutíveis qualidades de realização em O Comprador de Fazendas, BJD acha que a obra de Monteiro Lobato foi desnaturada “até o irreconhecível” e nega que o filme seja fiel à “nossa realidade rural e [aos] costumes do interior paulista” (Anhembi, 11/1951)

Apesar de defender a Vera Cruz (principalmente na época de Cavalcanti) que abre nova era na história do cinema brasileiro, apesar de sua tolerância com Caiçara, devido à sua importância para a industrialização e por ser o primeiro filme da empresa (e portanto não se podia esperar uma obra-prima), apesar mesmo de achar que a película foi marcada pelo ferrete da realidade brasileira, apesar disso tudo ele ataca o filme. E não ataca apenas o que julga ser a má realização do filme, nem os exageros pseudodramáticos dos atores ou os acordes demagógicos da música:

“E o drama do caiçara, que apenas emprestou o seu triste apelativo à película, sem lhe conseguir incutir o calor de sua tragédia de homem abandonado numa nesga de terra apertada entre o mar e a montanha, esquecidos dos outros homens, até daqueles que têm as cordas do governo, esse drama rústico da gente do litoral corroída pela verminose, ou sugada pela subnutrição, esse drama ficou à margem da história de Caiçara, a condensar-se num misto de romantismo folhetinesco e de documentarismo folclórico(…).” (Anhembi, 12/1950)

Alguns anos depois, em 1954, ele mantém sua opinião:

“recriminar aos realizadores da película a circunstância de haverem desprezado no seu argumento o drama real do caiçara(…).” (Retrospectiva do Cinema Brasileiro, 1954)

Embora BJD não chegue a lastimar que não se tenha levado em conta as relações de classe do litoral, sua argumentação não fere – ao nível do filme – as posições do grupo da revista Fundamentos. A divergência, nos parece, se revela radical quando os comentaristas de Fundamentos consideram estruturais a atitude do filme em relação ao povo, a expressão do projeto ideológico e a situação de classe da burguesia vinculada ao imperialismo. Enquanto que para BJD se trataria antes de uma “circunstância”, de uma falha, sem dúvida grave e comprometedora, mas em última instância sanável, falha que uma maior competência técnica permitira superar.

Terra é Sempre Terra sofre do mesmo defeito:

“Ambos os cineastas [de Caiçara e Terra é Sempre Terra] adstritos à má cenarização [=roteirização] de ambas as fitas, nada mais fizeram do que friamente conduzir um melodrama vulgar, impassíveis ante a grandiosidade de um tema social, candente de realismo e de atualidade (…).” (Anhembi, 5/1951)

Também Ângela:

“Os roteiros das fitas da Vera Cruz são todos medíocres. Não que as histórias não prestem. Pelo contrário. Algumas delas adaptar-se-iam maravilhosamente à linguagem cinematográfica. Acontece, porém, que o processo de transposição é sempre mal feito, defeituosa a tradução de palavras em imagens.” (Anhembi, 9/1951)

Já que o problema da representação popular não é ideológico, mas basicamente técnico, uma questão de transposição em linguagem cinematográfica, BJD pensa que a solução é a vinda para o Brasil· de “escritores cinematográficos” estrangeiros (Anhembi, 9/1951), o que se opõe totalmente às posições vistas anteriormente: o “escritor cinematográfico” tinha de ser brasileiro, ou ao menos estrangeiro radicado no Brasil há longo tempo.

Em oposição a estes filmes, é em O Canto do Mar que BJD vai encontrar a autenticidade da representação popular que ele procura:

“A paisagem é a do Nordeste, a fala é a da região, os usos, as superstições, os costumes, as crenças, as tradições, as abusões, as folganças, as amarguras, são todos de lá, vistos, ouvidos e sofridos através de uma câmara postada lá mesmo, onde a ação se desenvolvia (… ) a autenticidade, a honestidade e a sua [de Cavalcanti] coragem de expô-las à vista, nem sempre benevolente e compreensiva de um público dispar e cheio de preconceitos – o do norte, por uma questão talvez de orgulho regionalista, e o do sul, já de si tão imbuído da ufania nacionalista, que há tanto tempo vem anestesiando a nossa capacidade de ver e sentir a realidade brasileira, tal qual ela é(…).” (Anhembi, 12/1953)

Além da representação do povo sofrido do Nordeste ou do litoral, outro aspecto da realidade brasileira interessa BJD, a paulista. Em particular a fazenda de café: como veremos adiante, a representação deste tipo de fazenda é fator importante para a avaliação que faz de O Segredo do Corcunda. É num comentário sobre o documentário o café que fica mais claro o interesse de BJD por essa fazenda paulista:

“(…) existente, latente, em toda a narração da fita, o vislumbre de uma reminiscência atávica, brotando aqui e ali nas sequências de O Café. Ora é a casa grande que a câmara descobre sem nela deter-se contudo; ora é a presença do senhor da gleba, que nunca aparece por inteiro, mas se expressa subjetivamente, ou se presente (sic) por um pormenor, às vezes pela visão de um simples par de botas, com suas esporas simbólicas a brilharem ao sol; ora é um resquício do tempo do braço escravo, um negro velho a dar a bênção ao neto atlético, na alvorada, quando o sol levante impele para o campo, para as fileiras do café, o exército de seus camponeses, já agora composto,por brancos e negros, o neto do escravo africano ao lado do neto do imigrante de outras terras.

Geraldo J. de Oliveira [diretor do filme] oriundo de família tradicional, de desbravadores do sertão, de plantadores de café, de fundadores de cidades, talvez encontre no filão inesgotável e grande como uma epopeia, a estrutura temática de que necessita para expressar, no milagre do cinema, a tragédia do café (…).” (Folha da Manhã, 14.8.1958)

Em oposição, Tom Payne, o diretor de Terra é Sempre Terra, que também se ambienta numa fazenda de café, assim como Adolfo Celi em Caiçara, não sentiu

“o drama do homem do interior, daquele que, de sol a sol, sente palpitar em suas mãos ásperas uma riqueza recôndita que o dono legítimo da gleba é incapaz de perceber e fruir.” (Retrospectiva, 1954)

É interessante relacionar a representação simbólica do proprietário e do mando, o sol que impele, a legitimidade da propriedade e a autenticidade das percepções dos camponeses.

De São Paulo, BJD também valoriza a representação urbana, quando comenta Simão, o Caolho:

“De poesia e humanidade está realmente prenhe a fita de Cavalcanti. Dessa humanidade paulista, a cheirar o alho e o orégano, dessa poesia de São Paulo, que tanto provém de um arranha-céu como de um cortiço.” (Retrospectiva, 1954)

Mas a representação urbana ocupa pouco espaço na temática de BJD.

A inteligência

De modo geral, o que explica a mediocridade do cinema brasileiro é a falta de inteligência. Este argumento é usado com frequência, principalmente contra filmes cariocas.

“O problema de nosso cinema é uma questão de cultura e inteligência” (Folha da Manhã, 19.11.57)

escreve a respeito de O Circo Chegou à Cidade. Outros filmes são elogiados devido à presença da inteligência, como Uma Pulga na Balança. O mundo da inteligência é um mundo superior, universal, que supera e vale mais que os nacionalismos e as nacionalidades; um universal abstrato em que comungam os homens dotados desta qualidade.

“Que importa que Uma Pulga na Balança não traga em si os caracteres exclusivos e regionais do País em que se fez, como lhe censurou um cronista apressado, ou por demais jacobino, eis que a Inteligência é uma das raras coisas universais, por ser realmente a característica mor do Humano.” (Retrospectiva, 1954)

No decorrer da polêmica em tomo de Alberto Cavalcanti, que BJD defende, ele escreve:

“chega-se mesmo a tirar dele [Cavalcanti] a sua própria condição de brasileiro, como se a nacionalidade pudesse influir na criação de uma obra de arte, ou no destino universal de um homem. O que importa é a sua cultura, a sua dignidade humana em relação ao seu pensamento e ao seu ofício.” (Anhembi, 5/1952)

O que não impede que, ao comentar a assinatura da escritura de fundação da Vera Cruz, ele insista sobre a nacionalidade (em resposta, sem dúvida, aos ataques que a Vera Cruz sofria). Assinaram

“alguns brasileiros, alguns nascidos fora deste País, mas, aqui, perfeitamente radicados e tão brasileiros quanto os primeiros.” (Retrospectiva, 1954)

A educação

A questão da cultura e da inteligência leva BJD, por um lado, a uma visão universal do cinema e, por outro, a preconizar deter minada ação junto ao público.

Junto a este, o cinema terá tarefa educativa, pois o público nem sempre tem bom gosto. BJD, comentando O Noivo da Girafa, diz que foi feito para obter êxito comercial, e só; por trás de um filme medíocre como este está a filosofia enganosa de que

“não se deve desafiar a preferência do público, a qual se manifesta nas bilheterias.” (Folha da Manhã, 12.4.1954)

BJD pensa justamente que se deve desafiar tal preferência, caso contrário, só se farão filmes medíocres. Mas o público talvez não tenha um mau gosto intrínseco, poderia ter uma reação desagradável para os cineastas que visam o lucro imediato. Diz

“que até o público sem gosto apurado, que os [cineastas que visam o lucro imediato] sustentava, insensível aos atentados da tela, poderia um dia se cansar e revoltar-se contra as monstruosidades que lhe eram impingidas.” (Retrospectiva, 1954)

São de certa forma ideias já expressas por Fundamentos: não se deve defender o sucesso comercial e a industrialização em si, o que não é senão reforçar o comportamento atual do público; este comportamento não é essencialmente um comportamento autêntico do público, mas um comportamento adquirido que resulta dos filmes que os comerciantes cinematográficos põem à sua disposição.

Mas conclusões que os autores de Fundamentos e BJD tiram dessa colocação são diferentes. BJD vai defender a tese de que se deve elevar o nível cultural do público: essa será a tarefa pedagógica do cinema. O que fazem esses produtores nacionais com seus filmes medíocres, que servem de entorpecentes, de evasão aos sacrifícios cotidianos – enquanto se deveria fazer pensar –

“é baixar o cinema ao povo, ao invés de elevar o povo ao cinema. Não só [esse cinema] é primário, como representa um verdadeiro insulto ao povo, já de si suficientemente desmoralizado pelos demagogos mais desonestos que, em nome dele, cometem as maiores indignidades. Realizar cinema para o povo, não quer dizer que se produzam películas, em que apenas sejam atingidos os instintos mais primários da massa inculta, que precisa ser educada de qualquer modo e a qualquer preço, antes de ser considerada como pertencente a essa grande entidade física e espiritual, que representa o povo de uma nação.” (Folha da Manhã, 1.2.1958 – retomando quase ipsis literis ideias expressas já em 1952)

A preocupação com a educação do povo também está presente em escritos de Paulo Emílio Salles Gomes. Em “Funções das Cinematecas” (23.3.1957), ele descreve uma trajetória conforme a qual o filme, após ter entrado em contato com um imenso público no início de sua carreira – é a fase comercial do filme – toma-se, posteriormente, cultura de elite que será fonte de educação popular:

“(…) as grandes obras literárias ou artísticas, tendo ou não sido reconhecidas as suas qualidades no momento de sua criação conquistam com o tempo um público cada vez maior, ao passo que no cinema o fenômeno é inverso. A grande obra cinematográfica entra em comunicação no início de sua carreira, com um público imenso, tendo ou não sido reconhecidas as suas qualidades, e com o tempo, depois de ser incluído no ‘repertório da cultura cinematográfica’, só entrará novamente em comunicação com uma fração quantitativamente ínfima de seu público original. É a partir desta etapa que a obra de arte cinematográfica entra no processo válido para as outras artes, mas em condições mais difíceis por lhe faltar o prestigio da tradição. É a cultura cinematográfica das elites, incluindo os próprios cineastas, que precisa ser promovida, a fim de criarem quadros que por sua vez trabalharão para elevar o gosto e as exigências do povo em matéria de cinema.”

A preocupação com a educação popular leva BJD – e Paulo Emílio – a adotar, sobre a questão da qualidade e da legislação cinematográfica que o Estado vem baixando para ampliar o mercado dos filmes brasileiros, uma atitude em frontal oposição à de Carlos Ortiz. Pois essas medidas legislativas aplicam-se indiscriminadamente a qualquer filme brasileiro e não levam em consideração a qualidade. Esse Decreto nº 30179, que foi obtido do presidente pela “fauna costumeira dos suplicantes do Catete”, é “um tiro de misericórdia no cinema brasileiro”. Essa absurda obrigatoriedade de exibição provoca até a volta às telas de um filme horroroso como Alô Alô Carnaval, enquanto bons filmes nacionais não encontram possibilidade de exibição (Anhembi, 2/1952, 5/1952, Folha da Manhã, 23.8.1958).

BJD fala pouco – nos textos que lemos – do papel do Estado. A principal referência que encontramos a respeito é para dizer que um filme medíocre como O Circo Chegou à Cidade recebeu auxílio oficial. Não se pode aceitar que o Estado ajude produções sem qualidade, que deverão satisfazer-se com seus próprios recursos.

Paulo Emílio, que inicialmente adotara uma posição próxima à de um Carlos Ortiz sobre o assunto, concorda com BJD:

“No que concerne à produção nacional mais ou menos estabelecida, tudo indica não haver remédio para a vulgaridade crônica. Há alguns anos acreditei que um amparo indiscriminado à indústria provocaria automaticamente a elevação do nível da produção, mas hoje tenho sobre isso dúvidas profundas. (…) Tudo nos convida a abandonar o pressuposto otimista da melhoria automática e a não separarmos a ideia de amparo da noção de qualidade” (“Suplemento Literário”, O Estado de S. Paulo, 21.6.1958)

A produção pobre

O tema da inteligência leva BJD a um inesperado enfoque de produção. Num texto sobre Sinhá Moça, cujo vocabulário parece prenunciar expressões que obterão sucesso na década de 60 (“estética da fome”) ou de 70 (“estética da gula”), BJD opta pela produção pobre, encontrando, por vias totalmente diversas, posições como as de Carlos Ortiz:

“Sempre nos assustou a chamada ‘superprodução’, esse termo saído da grandiloquência pernóstica dos departamentos de propaganda das empresas e hoje assente no vocabulário corrente do Cinema. Porque tudo soa falso no bojo dessas películas miríficas. (…) A esse cinema da fartura, preferimos, evidentemente, o da miséria. A pobreza estimula a imaginação e incita a sensibilidade. E o espírito criador só tem a ganhar com isso. Do cinema da fome, nasceu o neorealismo italiano (…). É verdade que muitos poderiam objetar que no Brasil a fome não gerou coisa alguma em matéria de cinema, que continuou esfarrapado em sua existência paupérrima, até o advento da fartura da Vera Cruz (…) A objeção é válida até um certo limite. É que o nosso Cinema também era pobre de inteligência, a mais estéril de todas as misérias. Nunca se viu um pobre de espírito realizar alguma coisa, a não ser o ridículo. E disso era farto o cinema brasileiro de alguns anos passados (…).” (Retrospectiva, 1954)

O universal

O tema da inteligência, que parece realmente ter grande importância no pensamento de BJD, o leva também a uma visão universal do cinema. Se, como vimos, ele rejeitava em Agulha no Palheiro a presença dos chavões do cinema americano, a partir do momento em que marcas ou influências do cinema americano ou europeu sejam vistas como sinais da sua participação no universo da inteligência, elas se tornam positivas, legítimas, dignificantes. Ainda a respeito de Uma Pulga:

“Uma comédia de classe internacional, a que, em algumas sequências, não hesitariam em apor sua assinatura um René Clair ou um Preston Sturges. E isso para homens inteligentes é o quanto basta.” (Retrospectiva, 1954)

Um pouco antes, ele escrevia: Uma Pulga

“tem muito do estilo e da criação desses grandes analistas da Vida [que são Chaplin, Sturges, Claire Mankiewicz). Tais comparações [são] feitas exclusivamente para situar Uma Pulga na Balança no espírito do cinema universal como obra de arte sem fronteiras nem nacionalidades (…).” (Anhembi, 6/1953)

A valorização de Ganga Bruta de Humberto Mauro obedece ao mesmo procedimento, com referência à “influência revolucionária” da Avant-Garde francesa:

“Há sequências inteiras, há cenas totais que, por seu desenvolvimento, por seu planejamento e preparação psicológica e por sua realização integral, se incluiriam, sem nenhuma restrição, às mais representativas da ‘Avant-Garde’ de Germaine Dulac e Kirsanov, às fitas expressionistas até, do cinema alemão.” (Retrospectiva, 1954)

Em função do interesse de BJD pela representação da realidade brasileira e seu gosto pela inteligência, a análise que faz de O Segredo do Corcunda (1925), revisto na retrospectiva de 1954, o leva a dar ao filme o papel que Carlos Ortiz atribuía a João da Mata, o modelo que a história do cinema brasileiro nos oferece. Por um lado, seu diretor mostrou ser

“um realizador consciente, cuja obra, após tantos anos decorridos, nos deixa perplexos pela pureza de suas intenções, pela fluência de sua narrativa, pela influência até que nela exerceram velhos mestres do Cinema, como Griffith e Ince, por exemplo, cuja presença se faz sentir incessantemente na fotografia e no desenvolvimento da ação de algumas das sequências de O Segredo do Corcunda, notadamente na cena em que morre uma personagem feminina, semelhante, em muitos sentidos, à estrutura formal, à composição de certos momentos de O Lírio Partido (…)” (filme de Griffith de 1919). (Retrospectiva, 1954)

Mas, por outro lado,

“Por outro lado é admirável o amor à autenticidade demonstrado por Alberto Traversa nos cenários interiores e exteriores de sua fita. [Se comparado com Terra é Sempre Terra, feito trinta anos depois, com maiores recursos, e que também se ambienta] numa fazenda de café, com as suas personagens rurais e usos e costumes imutáveis. Pois, não há dúvida que, guardadas as devidas distâncias, a obra antiga, em muitos pontos, é muito mais legítima, muito mais representativa do que a produção da Vera Cruz.” (Retrospectiva, 1954)

É interessante o uso por BJD da expressão “por outro lado”; como se esse ideal de cinema – a autenticidade da representação e o universalismo – se compusesse de duas partes que se juntam. Resultando uma

“fita profundamente nacional, apresentando um drama caboclo num ambiente ingenuamente poético. Simples e espontânea, esta fita foi exibida comercialmente em alguns países da Europa(…)” (Anhembi, 8/1954)

a exibição no exterior funcionando como sintoma e chancela da sua universalidade. É indiscutivelmente a exibição no exterior que, para BJD, confere tanto a O Cangaceiro como a O Pagador de Promessas seu foro de universalidade.

“Com O Cangaceiro, demonstrou a Vera Cruz a existência do ‘universal’, com que há tantos anos vinham desejando os que realmente amam o cinema do Brasil. E [os festivais] de Cannes e Edimburgo, pouco depois, reconheceriam de público esse sinete de dignidade.” (Retrospectiva, 1954)

Tal chancela permite superar algumas dúvidas. De fato, há no filme um excesso de melodramatismo, um preciosismo na fotografia, um gongorismo nos diálogos etc. Apesar desses defeitos, o filme é

“integrado nos padrões de um cinema universal”. (Anhembi, 3/53)

E O Pagador:

“O que venceu em Cannes não foi uma fita apenas nacional, mas uma obra universal e se foi brasileira por sua origem geográfica, pelo seu tema e pela sua forma, seu espírito humano, a linguagem mais compreendida por entre todos os caminhos do mundo, é que contribuiu decisivamente para a conquista(…).” (Anhembi, 7/1962)

Reencontramos aqui um velho tema: a universalidade da linguagem das imagens, o cinema como “única linguagem universal” no dizer de BJD (Retrospectiva, 1954), portanto em plena harmonia com a universalidade da inteligência e da obra de arte. O que chancela o ingresso de determinado filme nessa universalidade não é a percepção que se possa ter da obra no Brasil, mas o festival internacional entendido como manifestação artística. BJD sintetiza a questão da seguinte forma: o cinema é visto

“como expressão artística vinculada ao universal e como produto industrial de consumo regional.” (Anhembi, 6/58)

BJD faz outra articulação entre os polos regional-nacional/universal. Por isso, intencionalmente e de modo polêmico, ele, bem como Alberto Cavalcanti e Trigueirinho Neto, se recusam frequentemente a usar as expressões “cinema brasileiro” ou “cinema nacional”, preferindo “cinema no Brasil”:

“(…) existe um cinema no Brasil, em fase de crescimento e portanto na crise que essa idade costuma provocar e sem por conseguinte os caráteres de um cinema nacional, a exigir, antes de mais nada, os elementos de um cinema universal.” (Anhembi, 4/1952)

A fotografia

Pode haver alguma tensão entre o universal e o regional. É o que se percebe neste comentário sobre a fotografia e a luz – elemento fundamental para a representação da realidade brasileira – de O Cangaceiro:

“Dentro de um ponto de vista puramente pessoal, preferiríamos uma fotografia mais crua, mais áspera, mais acordada ao cenário inóspito e inconformado das caatingas. Participando, porém, de uma peça em que tudo é estilizado, não se poderia desejar algo melhor trabalhado, mais apurado e que mais se integrasse no padrão técnico irrepreensível dessa realização.” (Retrospectiva, 1954)

A estilização, o padrão técnico irrepreensível são o que permite alcançar o universal. E este universal – como no caso da inteligência em Uma Pulga – não passa necessariamente pelo regional ou nacional. Aí BJD se machuca, porque ele gosta de fotografia e quer a representação da luz do Brasil:

“Seus exteriores vêm impregnados do bucolismo característico da natureza brasileira, sem aquela claridade estampada, a luz difusa da paisagem de outras terras – das europeias notadamente – mas de claros nítidos e sombras bem recortadas, quase sem meias tintas” (Anhembi, 11/1953)

escreve a respeito de O Saci, de Rodolfo Nanni. De Sinhá Moça:

“Ray Sturges, o grande iluminador de Hamlet, de Laurence Olivier, conseguiu para si uma das maiores criações do cinema brasileiro no setor da fotografia, apresentando-nos exteriores, uma natureza brasileira com uma amplidão, uma pureza, um conteúdo poético. próprios de nosso ambiente, sem dúvida, mas ainda pouco reproduzidos em outras películas deste país.” (Retrospectiva, 1954)

A avaliação da luz não é tão fácil. Eis que ainda em 1954 BJD escreve outro texto em que a luz de Sinhá Moça já não é tão brasileira:

“Ambas as películas [O Cangaceiro e Sinhá Moça] possuem excelente fotografia. Mas, de outro estilo, de outra formação. Seus autores – ingleses, franceses, italianos – embora técnicos competentes, não se tinham ainda assimilado à luz e à feição da terra que os chamara. Outras fitas que vieram depois, como O Canto do Mar e O Saci, a primeira fotografada por um inglês, Ciryl Arapoff, a segunda por um brasileiro da velha guarda, Ruy Santos, já traziam em si características nacionais bem marcadas. Tanto a paisagem, como os tipos humanos de O Canto do Mar e os exteriores de O Saci têm a autenticidade de uma peça documentária, representam realmente o homem e a natureza de determinadas regiões do Brasil (…).”

E conclui com o sonho de todos:

“Que nos trará esse futuro? (…) podemos, desde já, afirmar que há de ser algo ‘nacional’, perfeitamente integrado no grande ‘Universal’.” (Elite, 2/1954)

A história

Esse futuro: uma confiança de que o futuro há de ser algo bom. Há em BJD uma grande preocupação com história. É ele quem redige a totalidade do catálogo da retrospectiva de 1954, e sua concepção de história se parece com aquela que vimos atrás: no passado, temos a “idade muda ou a fase do esplendor”. Quando não se atingisse o nível de Fragmentos da Vida, O Segredo do Corcunda, Limite ou Ganga Bruta, encontrávamos esforços e sacrifícios, filmes que expressavam uma ânsia de qualidade artística e técnica. No passado positivo, até a luz:

“(…) existia um modo particular do cinema brasileiro, ao fotografar os seus argumentos, que lhe conferia foro de cidadania. As fitas primitivas da idade muda traziam essa marca nacional.” (Elite, 2/1954)

A seguir veio o “advento do som, fase da decadência”, em que friamente se cometeram crimes contra o nosso cinema, como Alô Alô Carnaval, fazia-se caricatura grotesca do mau cinema americano. E finalmente, o futuro auspicioso, só que para BJD este futuro já começou graças à Vera Cruz: é o “renascimento ou era do cinema paulista”.

A inauguração desta era toma aspecto redencionista ou salvacionista na literatura de BJD:

“(…) 3 de novembro de 1949. Nesse dia fundava-se em S. Paulo a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Para nós, o cinema brasileiro renasceu, na sua fase sonora, no dia 3 de novembro de 1949. Bem sabemos que muita gente vai protestar contra essa afirmação. Mesmo assim, repetimos: o renascimento dó cinema brasileiro data de 3 de novembro de 1949. Foi na tarde desse dia, numa das salas do Museu (…).” (Retrospectiva, 1954)

Uma empresa, e um filho pródigo:

“(…) fé em Cavalcanti e no futuro do cinema brasileiro, então no limiar de uma nova era, iniciada no dia em que o velho cineasta posava pé em terras brasileiras, após uma ausência de quase trinta anos distante de suas plagas.” (Retrospectiva, 1954)

A partir daí, o futuro caminha. Em 1954, não dava para ignorar que a Vera Cruz como as outras companhias paulistas estavam passando por alguma dificuldade. BJD fala de uma crise econômica sem igual que está ameaçando o cinema brasileiro. Apenas ameaçando; ele minimiza a crise, protegendo a sua visão da história:

“Apesar, porém, de não existirem razões objetivas. de crise no cinema nacional (…) eclodiram crises em algumas produtoras particulares, entre as quais a Vera Cruz (…).” (Retrospectiva, 1954)

A crise parece circunstancial ou incompreensível, e não deterá o progresso do futuro. Insiste-se: com a Vera Cruz surgiram os albores de uma nova era. Caiçara é apenas o reflexo pálido dessa aurora. Terra é Sempre Terra deixa a desejar, mas

“o importante é que o progresso, de fita para fita, seja sensível (… ) Aguardamos confiantes a próxima tentativa.” (Anhembi, 9/1951)

Ângela, terceiro filme da empresa, é melhor que os dois anteriores. Vendo Terra é Sempre Terra não se pode esperar para tão cedo

“a verdadeira peça representativa do nosso cinema no concerto do cinema universal.” (Anhembi, 5/1951)

Ainda não e possível no cinema brasileiro ”um modo próprio de ver e fotografar as coisas e as gentes”, porque o Brasil é um imenso território onde há uma grande diversidade de usos e costumes e onde o homens só se unem pela língua. Mas este cinema jovem tem futuro promissor, quando então terá

“um estilo, ou uma feição nacional, ao fixar na película o homem, o clima, a paisagem, a cultura até de sua terra. Essa índole está hoje em formação.” (Elite, 1954)

BJD justifica suas posições ideológicas apoiando-se num passado onde elas se teriam verificado e num futuro onde elas virão a se verificar novamente e cujos germes estão contidos no presente.

BJD é consciente da importância da elaboração e da conquista da história. Ao justificar a necessidade de se fazer uma cinemateca, escreve:

“Porque cinema é cultura e uma cultura sem amarras no passado é como um povo sem História.” (Retrospectiva, 1954)

Apesar da afirmação de Adhemar Gonzaga:

“no Brasil não se cultiva o passado” (“Notas para uma História do Cinema Brasileiro”, Elite, 2/1954)

a década de 50 é indiscutivelmente marcada pelo esforço de construir uma consciência histórica. Além da publicação de livros como os de Alex Viany e Silva Nobre, a temática histórica marca significativamente as atividades de Paulo Emílio Salles Gomes na sua luta pelo erguimento da Cinemateca Brasileira. O que se reflete na sua colaboração para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, que abre com um artigo intitulado “Um Pioneiro Esquecido” (6.10.1956), onde declara que o

“que até hoje se convencionou chamar de história do cinema mundial (…) na realidade não passa da história do cinema europeu e norteamericano.”

E a isto reage:

“a elaboração da história do cinema brasileiro que se está processando.”

Em 23.3.1957, afirma

“Algumas pessoas, em geral cineastas, retrucam que a melhor forma de promover a cultura cinematográfica do povo é fazer boas fitas novas e não procurar interessá-lo pelas velhas, mesmo excelentes. Porém não se faz bom cinema sem cultura cinematográfica e uma cultura viva exige simultaneamente o conhecimento do passado, a compreensão do presente e uma perspectiva para o futuro.” (“Funções das Cinematecas”)

Mais tarde (23.10.1960):

“As condições para a tomada de consciência de que o cinema brasileiro tinha uma história foram criadas pela animação industrial e cultural que reinou em São Paulo a partir de 1950. (…). Francisco Luiz de Almeida Sales (…) clama pela necessidade urgente de se promover ‘um levantamento da produção brasileira de cinema’ sem o qual ‘nunca vincularemos a nossa produção a uma tradição própria, nunca faremos dela uma experiência consequente (…).” (“Estudos Históricos”)

Ao mesmo tempo em que a atuação presente exigiria um embasamento numa intepretação do passado, este não poderia ser alvo de uma consciência crítica que, por sua vez, o presente requer: o que encanta no filme antigo é o seu valor de documento social e seu sabor estético de arte primitiva

“que desarma o espírito critico e permite a descoberta de encantos que não foram calculados, muito pelo contrário, em geral emanam da inépcia.” (“Perplexidades Brasileiras”, 11.4.1959)

4. VERA CRUZ, MARISTELA E ADJACÊNCIAS

É na Vera Cruz, nos seus textos publicitários, em entrevistas de Franco Zampari e de diretores e técnicos de alto escalão, que a questão do nacional/universal se coloca com mais insistência. Não é de estranhar: nesta produtora que foi vista como 100% brasileira ou como o braço avançado do imperialismo cinematográfico norte-americano no Brasil, que tinha em cargos técnicos-chave profissionais italianos e ingleses, a questão de um cinema nacional não devia ser simples. Logo de início a empresa, afirmando seu caráter nacional e internacional ao mesmo tempo, usa o slogan “Do Planalto Abençoado de Piratininga para as Telas do Mundo”, divulga a frase: “Produção Brasileira de padrão internacional: eis o lema da Cia. Vera Cruz”. “A colaboração de grandes técnicos estrangeiros provenientes das maiores cinematografias do mundo”, o “moderníssimo equipamento técnico” possibilitarão chegar a um “estilo brasileiro de qualidade internacional”. Essa perspectiva justifica que a Vera Cruz confie a sua distribuição a firmas estrangeiras, para alcançar o mercado internacional.

Mas tem-se frequentemente a impressão de que textos emitidos pela Vera Cruz ou declarações de seus técnicos não respondem a autênticas preocupações que existiam na empresa, mas têm a função de justificar a sua orientação, de responder a ataques, de se precaver contra críticas prováveis, tal o malabarismo lógico e conceitual que eles revelam. É o caso, por exemplo, de textos que cercam Uma Pulga na Balança (essa informação, como a maioria das referentes à Vera Cruz, é extraída da tese de Maria Rita Galvão, Companhia Cinematográfica Vera Cruz: a Fábrica de Sonhos). Diz Fabio Carpi, o roteirista do filme:

“Num sentido técnico, me parece difícil estabelecer distinções de caráter nacional. Num sentido artístico, pertence ao cinema brasileiro qualquer fita que exprima com originalidade qualquer problema ou assunto contemporâneo que se passe ou possa se passar no Brasil (…).”

E ainda

“uma película que, pela sua história e pela forma como é contada, atingiu, cinematograficamente, um nível internacional – diz de Uma Pulga. Isso porque os tipos, personagens e situações que se retrata, constituem figuras e ambientes encontráveis no seio da humanidade, em todo e qualquer lugar onde se agite uma grande população. Mas nem por isso (…) perdeu o interesse nacional e o carinho que todo filme deve dedicar ao meio em que é produzido (…) essa película contém os traços autênticos da realidade brasileira. A mesma ligação que não perderam com suas origens diversas fitas bastante conhecidas, e que podem ser caracterizadas como realizações ‘cosmopolitas’, não perdeu também Uma Pulga, de vez que retrata (…) tipos autênticos e anedóticos encontráveis em todos os grandes centros populosos.”

A notar que, diferentemente dos textos que comentamos até agora, a palavra “cosmopolita” não tem carga negativa.

E Maria Rita concluí:

“Em resumo, o filme é nacional porque retrata uma realidade internacional encontrável em qualquer lugar, e portanto também no Brasil.”

A publicidade de Esquina da Ilusão apresenta aspectos da “realidade brasileira” como parte do cosmopolitismo:

“é um filme poliglota, uma galeria dissemelhante de tipos das mais variadas nacionalidades e línguas. O Brás [onde se ambienta o filme] é um bairro por si mesmo cosmopolita e internacional, com personagens (…) brasileiros, japoneses, sírios, espanhóis, alemães, etc. (…) A vida é desbaratada e poliforme, mas .a variedade de línguas e raças não perturba e não impede que todos se entendam e confraternizem (…) Esquina da Ilusão é uma fita cosmopolita.”

A propósito da História do Brasil exige que a expressão cinematográfica brasileira seja internacional: os especialistas que a Vera Cruz importou

“vieram atualizar o cinema nacional, dando-lhe um caráter internacional (…) de par com a notável capacidade de assimilação do elemento nacional. [Sem isso] não teríamos atingido o ponto em que hoje nos encontramos; assim como o povo brasileiro é uma mescla das mais variadas raças, o seu cinema, como legítima expressão da sua cultura, é também a síntese das mais variadas escolas cinematográficas (…) Com o prosseguimento dos esforços de todos, a Vera Cruz poderá dar muito ao Brasil e, sem exagero, ao cinema internacional, no presente e no futuro.”

Mas esta postura – fazer cinema nacional ao fazer cinema cosmopolita, porque o nacional está inscrito no cosmopolita – não é dominante. Geralmente prefere o pessoal da Vera Cruz afirmar as características nacionais de seus filmes. No lançamento de Caiçara, o diretor Adolfo Celi declara que o filme é uma “obra nacional” que se inspira em

“pesquisa em torno de sensações e expressões num típico ambiente do litoral brasileiro (…) A vida e os costumes dos caiçaras foram os nossos mestres, as suas lembranças, as nossas fantasias: o seu linguajar característico compõe nossos diálogos. Empenhamo-nos, por isso, em revelar em Caiçara uma substância humana e original, sem a preocupação de interpretá-la, de um modo ou de outro. Se o público que nos assistir reconhecer em Caiçara as características de sua terra, poderemos orgulhar-nos de ter encontrado uma linguagem cinematográfica realmente brasileira.”

Esta declaração de intenção soa um pouco como um ritual para satisfazer todo mundo. Quando Nelson Pereira dos Santos ataca Caiçara em Fundamentos, ele comenta que o filme

“não é o cinema brasileiro que a sua [da Vera Cruz] propaganda procura fazer crer”,

o que deixa entrever que o cinema proposto pela Vera Cruz como brasileiro na sua publicidade seria aceitável, ou pelo menos mais aceitável que os filmes.

O único crítico de destaque, na época, que vê a obra como atendendo às suas intenções populares é Almeida Sales em O Estado de S. Paulo: Caiçara tem “uma ambiência autenticamente brasileira”.

Opondo-se aos outros comentaristas, afirma que Caiçara evitou

“o perigo do pitoresco e o interesse exagerado pelo documentário. (…) Caiçara nos traz um vento de Brasil. Como não sentir projeção de qualquer coisa de íntimo e essencial, no instante em que a preta Feliciana avança (…). Tudo o que somos, todo o passado vigilante no sangue, todo esse sofrido amor pelas aparências das humildes vilas (…) tudo isso brota da fita.”

Eis que um diálogo curioso brota. O cinema que um Carlos Ortiz, por exemplo, defende é justamente um cinema que não seja de aparências. Nelson Pereira dos Santos critica Caiçara por ficar nas aparências e consequentemente não conseguir apreender o que está por trás delas, a realidade que as aparências mascaram. É numa teoria do cinema antagônica que Almeida Sales fundamenta sua afirmação:

Caiçara, entretanto, nos confirma uma velha impressão, a de que o cinema é muito mais uma arte de tipos do que uma arte de atores. A preta Feliciana, o menino Chico, a jovem japonesa estão admiráveis, quase roubando as glórias da película aos atores principais. E os tipos ‘extra’ que surgem na rua, no bar da ilha, no estaleiro de Amaro, acertam sempre, andam bem, falam com medida, fundem-se com a atmosfera da intriga (…).”

Está aqui também negada uma afirmação frequente, e que Paulo Emílio Salles Gomes formula da seguinte forma:

“O cinema nacional, seja na procura do naturalismo ou na estilização, ainda não descobriu como o brasileiro anda, cospe, coça-se ou fala.” (“Conto, fita e Consequências”, 15.4.1957)

A alegação de brasilidade de Caiçara e outros filmes iniciais da Vera Cruz é contestada, mais tarde, no próprio material de divulgação da empresa, quando, no Boletim, Cavalheiro Lima escreve sob o título “A Vera Cruz deseja Boas Histórias”, as quais são histórias “bem brasileiras”:

“O conteúdo de nossos filmes está melhorando, e O Cangaceiro promete ser a maior obra do cinema brasileiro, abordando um problema essencialmente nosso, sem as hibridizações de Terra é Sempre Terra,Tico Tico no Fubá e outros.”

Maria Rita comenta que, embora não se explique o que sejam as “hibridizações”, aqui e nas duas outras vezes em que é usada, a palavra se refere à mistura de componentes estrangeiros com temas supostamente brasileiros, que “desnacionaliza” o cinema nacional. Cavalheiro Lima reafirma a intenção da Vera Cruz de prosseguir na linha de “temas nacionais”, “sem hibridizações”, aproveitando o “vasto manancial de hist6rias e de arte que é o Brasil”.

Uma voz dentro da Vera Cruz, mas que discorda do coro dominante na empresa e que vai além das hibridizações, é a de Lima Barreto. Ele não acha que os técnicos estrangeiros sejam assim tão benéficos; no II Congresso Nacional, ele ataca violentamente os que trabalham no e não pelo cinema brasileiro e que estão aqui de passagem. Em outra oportunidade, naturalmente fora das publicações da Vera Cruz, ele declara:

“A Vera Cruz está transformada num monopólio de alienígenas aventureiros que nada sabem a respeito do Brasil (…) Acabemos de uma vez com o assunto: cinema brasileiro só pode ser feito por brasileiro; seja ele quem for.”

Além disso, Lima Barreto tem uma visão de Brasil um tanto diferente de seus colegas de Vera Cruz. Falando de O Sertanejo, projeto que devia realizar depois de O Cangaceiro:

“Vou fazer o retrato sincero do Brasil em matéria de cinema (…) O mal do cinema brasileiro tem sido a pretensão de estrangeiros que nada conhecem da nossa terra, do nosso povo e dos nossos costumes (…) Comigo não porque eu sou brasileiro até debaixo d’água. Eu sou o primeiro a saber que o que há de bonito e original no Brasil está da Bahia para lá. O Sul já se contaminou de hábitos, da mentalidade e da feição humana alienígenas. No meu próximo filme eu vou colocar sociologicamente a família brasileira na sua verdadeira realidade (…) Vou definir, na película, todas as características físicas, sociais, morais, espirituais e sociológicas de povo genuinamente brasileiro (…).”

E outra voz divergente da dominante na Vera Cruz é Alberto Cavalcanti. Em artigo publicado tempos depois de seu afastamento, “Situação e Destino do Cinema no Brasil” (Elite, 2/1954 – notar no título a mesma expressão usada por Benedito J. Duarte), Cavalcanti concorda em geral com o que vimos expondo sobre a realidade brasileira no cinema nacional no enfoque da Vera Cruz, menos a aceitação de cosmopolitismo, e com o que exporemos a seguir sobre as relações do nacional com o internacional. Mas num trecho do texto, ele se afasta não só do que pensam as pessoas ligadas à Vera Cruz, como de tudo o que se escreveu sobre cinema brasileiro na década de 50 – pelo que conhecemos desta literatura:

“A situação presente da nova indústria cinematográfica poderia definir se ‘uma entidade à procura de si própria’. O perigo é que, criado nos grandes centros do Rio e de São Paulo – e haja vista a imensidão e a diversidade dos costumes brasileiros – o nosso filme se tome cosmopolita e deixe de exprimir uma realidade brasileira que, todos nós sabemos, é o maior triunfo, a maior fonte de interesse no mercado estrangeiro.”

O ponto em que esta colação difere do que temos visto até agora é que o caráter nacional ou popular do cinema não passa somente pela sua temática ou história ou forma: a origem de sua produção é também um fator determinante. O vago da formulação permite acreditar – talvez ultrapassando as suas intenções – que Cavalcanti não está apenas pensando que a localização da produção nas grandes cidades levaria ao cosmopolitismo porque levaria à escolha de temas ligados a estas cidades, mas que essa localização pode marcar de cosmopolitismo qualquer filme, independentemente de sua temática. Que saibamos, Cavalcanti não desenvolveu essa colocação que, também, não foi retomada por ninguém.

Outro ponto que não pertence à temática dos anos 50 é a questão da identidade latente no texto, questão que se desenvolveria posteriormente, principalmente na obra de Paulo Emílio Salles Gomes.

É em torno de O Cangaceiro que a Vera Cruz emite textos e declarações que acabam definindo sua postura diante do regional, do nacional e do universal, pois o filme e seu prêmio em Cannes e participação em diversos festivais funciona como a vitória das teses da empresa: o filme é simultaneamente nacional e internacional. Declara Zampari: O Cangaceiro

“veio comprovar a vocação do Brasil para a sétima arte (…). A Vera Cruz está em dia com o cinema mundial (…). Com O Cangaceiro, os interesses da Vera Cruz, como firma industrial, confundem-se com os do Brasil. ( É intenção da Vera Cruz realizar filmes) que por sua qualidade técnica tenham expressão internacional, e em seu conteúdo, atendendo à vocação cultural do povo brasileiro, atinjam um interesse universal.”

E Lima Barreto:

“(…) exorto quantos trabalhem no cinema, na ciência, no jornalismo, no teatro, na política e em todos os setores da atividade humana para se unirem em torno de um único ideal: propugnar pelo engrandecimento e prestígio no exterior deste grande país, desenvolvendo esforços (…) para que o cinema brasileiro se converta em arte de expressão internacional, isto é, se imponha ao mundo como deve e irá se impor.”

E não é só que o cinema passa a se integrar no cinema internacional. Ele o enriquece. Para Ruggero Jacobbi, cinema brasileiro é

“aquele que seja inspirado na realidade social do país, sem hipocrisias e sem ‘esteticismo’.”

Dessa forma, o cinema brasileiro poderá contribuir com o cinema universal trazendo-lhe a revelação de um mundo novo

“do ponto de vista da paisagem, do folclore e dos problemas sociais.”

Ou então Franco Zampari: Sinhá Moça

“incorpora (…) a figura e as lutas dos negros aos temas universais do cinema.”

E o cinema brasileiro pode até superar o cinema internacional, pois, como já informara Fernando de Barros, este vive uma crise de temas, enquanto o Brasil tem um “manancial” (para retomar uma expressão de Nelson Pereira dos Santos) inesgotável. Tais ideias estão presentes numa entrevista de Zampari comentando a premiação de O Cangaceiro e Sinhá Moça:

“Reputo que, pela diferenciação geográfica e econômica, pela expressividade cultural das várias regiões em que se divide, nosso país é positivamente um veio riquíssimo de motivos e temas capazes por si sós de oferecer ao mundo a visão de uma nova civilização, com seus aspectos folclóricos, populares e sociais. Esse acervo de assuntos, essa exuberância de motivos, enquanto noutros países a cinematografia luta contra a crise de temas, fará com que o cinema brasileiro triunfe continuamente no cinema mundial. As produtoras brasileiras em futuro próximo converterão a cinematografia nacional numa das mais poderosas expressões da arte, cultura e indústria de nosso povo.”

E mais:

“O Brasil poderia ser o centro do cinema. Todos os nossos assuntos estão virgens. Nos Estados Unidos, fizeram-se 50000 películas. Na Europa, cerca de 30000. Aqui não. Nosso folclore é riquíssimo de sugestões.

Nossa música é belíssima. Um filme que transmita nossos ritmos tem sucesso garantido na Europa (…). Podemos fazer cinema para competir nos mercados europeus. Essa, aliás, é a nossa maior ambição (…).”

A imagem de pais produtor de matérias-primas subjaz a estas colocações.

É verdade que são esta originalidade brasileira os traços regionais e nacionais que, conforme alguns, poderiam justamente comprometer o sucesso internacional dos filmes brasileiros, em particular os da Vera Cruz. Em entrevista, Edmundo Rossi, representante do governador do Estado na Vera Cruz após a intervenção, declara que um distribuidor norte-americano lhe explicou que O Cangaceiro não fora lançado nos Estados Unidos porque

“os exibidores não confiavam no êxito de bilheteria: o filme fugia aos padrões de gosto médio norte-americano. Eu lhe respondi: mas, por ser diferente mesmo, não despertará curiosidade?”

A inserção do cinema nacional no internacional, a boa representação do cinema brasileiro no exterior são em inúmeros textos vistas como questão de “dignidade nacional” (enquanto que a apresentação de Areião em Veneza foi uma “vergonha nacional”). Sabe-se que não há grandes sucessos comerciais a esperar, portanto trata-se de uma questão de dignidade ou mesmo de “glória nacional”.

Essa identificação pela Vera Cruz dos seus filmes com cinema nacional, da apresentação dos filmes da empresa no exterior como a presença do próprio Brasil no exterior, não se dá apenas ao nível cultural, financeiro também. Ai é porque ela ocupa o mercado interno, poupando divisas. Os boletins chamam atenção para este aspecto:

“No planalto paulista, entre o mar e São Paulo, os estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz constituem um marco gigantesco. Eles são a primeira organização a produzir em escala industrial, poupando assim ao Brasil anualmente centenas de milhões de divisas, mediante a economia na importação e aluguel de películas produzidas fora do país.”

E ainda:

“Se lembrarmos que a indústria cinematográfica e o comércio de filmes constituem um dos índices mais ponderáveis na balança comercial e na economia externa e interna de numerosos países, desde logo podemos fazer ideia do que representa para o Brasil o cinema nacional, portanto da significação e interesse econômico de empresas como a dirigida pelo Sr. Franco Zampari. O seu crescimento e o seu progresso estão estreitamente ligados (…) aos interesses do país, sob o aspecto econômico, e sob o aspecto cultural.”

Aliás, numa frase de Alberto Cavalcanti, o cinema aparece como estruturalmente vinculado ao projeto nacional:

“Sem o cinema, não pode existir, hoje, uma grande nação.” (frase atribuída a Cavalcanti, em Marcos Marguliês, “O Documentário no Brasil”, Elite, 2/1954)

Quem defende dessa forma os interesses do Brasil é a empresa privada. Não seria concebível que a substitua o Estado, sem o qual, no entanto, não sobreviveriam nem a empresa privada nem o cinema brasileiro. Transcrevemos o seguinte trecho da tese de Maria Rita:

 

A reação da imprensa paulista à proposta do governador é das mais curiosas. Depois de durante quatro meses terem apelado de todas as formas para o auxilio governamental, os jornais reclamam agora contra o perigo que representa uma empresa de tal modo importante em mãos do governo. O risco que se corre é o da estatização do cinema brasileiro – é esta simples ideia apavora a maior parte da imprensa. É mais do que sabido em São Paulo, por inúmeras e amargas experiências anteriores – os exemplos se sucedem sempre os mesmos, da Central do Brasil à CMTC – que tudo em que o governo substitui a iniciativa privada está de antemão fadado ao fracasso. Com todos os seus desmandos, Franco Zampari representa a iniciativa privada paulista, que demonstrou de mil formas ser muito mais digna de confiança do que qualquer governo brasileiro, federal, estadual ou municipal.

Dificilmente se encontraria exemplo mais flagrante da contradição interna do liberalismo burguês paulista do que a discussão que se desenvolve nos jornais em torno do caso da Vera Cruz. Precisamente no momento em que a iniciativa privada demonstra cabalmente e sem ambiguidades a sua falência, em que durante quatro meses se procura mostrar que não há sobrevivência possível para a empresa privada, fraca demais para lutar contra os entraves que se lhe apresentam, sem o auxílio do Estado, os jornais concentram em Franco Zampari a própria imagem do vigoroso empresário paulista: honesto, empreendedor, arrojado e destemido, pioneiro na indústria, defensor das artes e da cultura, batalhador incansável e cheio de fé no grande futuro deste imenso pais do qual fez a sua pátria de adoção. Em suma, o que se desejava era que o governo fornecesse à Vera Cruz os capitais de que ela necessitava para se reaprumar, leis protecionistas que a defendessem contra os entraves do livre mercado em funcionamento, e incentivos fiscais; porém a rédea a conduzir os destinos do cinema brasileiro deveria permanecer em mãos particulares. É dever do Estado desenvolver a indústria e a cultura, mas não é seu direito comandar sobre o seu destino. Pretende-se que o Estado sustente a iniciativa privada na sua impotência e não assuma as posições correspondentes à atuação decisiva que se exige dele.”

Além da Vera Cruz, de Fernando de Barros, outros críticos manifestaram-se favoráveis a que a indústria cinematográfica permaneça nas mãos de particulares. Neste sentido José Sanz qualifica de inexequível o projeto de Instituto Nacional de Cinema de Cavalcanti

“pela mistura da indústria do filme com o cinema estatal.”

No entanto, diante das irrecusáveis “dificuldades” das empresas privadas no setor cinematográfico, a contragosto, Sanz chega à conclusão:

“Naturalmente, o ideal seria que esses dois ramos [fábrica de filme virgem e estúdios da indústria do filme] fossem criados por particulares, afastando tanto quanto possível a participação do Estado sempre perigosa e muito mais num país de tão poucas convicções democráticas em sua superestrutura como o nosso. No entanto, dada a justificada falta de confiança dos nossos capitalistas nas leis protecionistas, quase sempre criadas para beneficiar uma minoria, o passo decisivo para o desenvolvimento da indústria do filme no Brasil tem que ser dado pelo Estado.” (“Cinema Brasileiro II”, O Jornal, 5.12.1958)

O cinema popular da Vera Cruz

A política de produção da Vera Cruz a levou a partir de certo momento a produzir filmes mais “despretenciosos”, sem grandes ambições e que atingissem um público maior e mais popular. Esta linha, em que encontramos atores como Mazzaropi e Walter Dávila, é concei- tuada diferentemente pela Vera Cruz: o “padrão de qualidade internacional” é substituído pelo “melhor padrão possível”. A respeito de Sai da Frente, lê-se num boletim da época:

“Abílio Pereira de Almeida defende a teoria de que o cinema brasileiro precisa aprender a contar bem uma história para depois aventurar-se por outros caminhos mais difíceis. Quando soubermos narrar melhor e contarmos com melhores artistas, então entraremos em películas mais delicadas (…). A Vera Cruz, ainda em organização, se está armando para produzir muito no futuro, e considera suas produções atuais apenas como adestramento e preparação (…) Enquanto se aguarda a fase de organização, vão-se fazendo filmes do melhor padrão possível.”

Quando se dirige ao mercado interno e ao público popular, a própria Vera Cruz desvaloriza sua produção.

No momento em que Sai da Frente alcança grande sucesso – essa “comédia 100% brasileira”, especialmente escrita para “o grande astro popular”, que incorpora ao cinema “valioso material humorístico apresentando cenas tipicamente nossas”, que traz “toda a tradição do nosso espetáculo popular”-, a Vera Cruz comenta:

“Seu título já foi incorporado ao linguajar popular. Todo mundo diz como piada, sempre que se criam situações embaraçosas: ‘Sai da frente!… ‘.”

Além de se valer da tradição popular para fazer um filme popular, a Vera Cruz chega a enriquecer a cultura popular, incorpora traços novos.

A mesma coisa ocorre com A Família Lero Lero, com Walter Dávila, “um verdadeiro ator popular, ligado ao povo”. Seu personagem

“vai fazer parte da galeria dos personagens tipicamente mais populares do cinema e do anedotário brasileiro, assim como o Jeca Tatu ou o popular Isidoro criado por Mazzaropi.”

A Vera Cruz coloca-se como criadora de cultura popular.

Quando se fala desses filmes, as palavras “internacional”, “universal” etc. somem. Mas, nos boletins, um filme faz a síntese. Vimos como Uma Pulga na Balança foi tido pela Vera Cruz e por críticos como exemplar de cinema universal. Mas Luciano Salce comenta:

“Confio no sucesso popular do filme. Às vezes (…) são mesmo os chamados ‘filmes para elite’ que obtêm sucesso popular, e os chamados ‘filmes para o povo’ deixam o próprio povo indiferente e frio. O meu, que aparentemente deveria ser incluído entre os ‘filmes de elite’, é capaz de agradar também, e sobretudo, ao povo, por algo de secreto e sutil, mas sempre presente, que – embora escondido – o público acaba sempre descobrindo e apreciando: uma veia de humanidade que corre por todo o filme (…).”

Esta argumentação reaparece a respeito de um ou outro filme, embora de modo menos nítido.

Essa concepção cética de um cinema popular não era generalizada nas grandes firmas paulistas da época. O pessoal da Maristela colocava, ao contrário, o cinema dirigido ao grande público como seu programa. Mario Audrá e Mário Civelli eram favoráveis aos pressupostos éticos, estéticos e de produção do neo-realismo italiano. Audrá, em depoimento recente, fala do ideal de cinema que tinha na época da Maristela:

“Um cinema do povo, que, não só os intelectuais, mas o povo entendia e apreciava, e eu sempre achei que o povo é muito melhor juiz que os intelectuais – embora os intelectuais pensem que o povo não entende nada.”

O Comprador de Fazendas, que o pessoal de Fundamentos elegera como o melhor filme brasileiro do ano, levara a uma fórmula de produção:

“a receita era clara: uma boa história, bem brasileira, de autor conhecido (…) de produção rápida e barata, com um grande ator [popular] no principal papel(…).”(M. Audrá, depoimento)

Civelli não pode ser mais explícito:

“O público perdoa uma fotografia mais ou menos. O público não liga muito para a qualidade de som, isto é, não se importa se o som é feito com aparelhos de fama internacional, se a modulação dos baixos e agudos é perfeita. O público quer discernir o que os atores dizem e o que a orquestra toca. O que o público quer é uma história (…) que diga alguma coisa para todo mundo, seja banqueiro ou camponês (…). Nós todos nos preocupamos com que a fotografia seja perfeita, com que na tal sequência o homem que tirou o chapéu com a mão esquerda continue com ele na mão esquerda na sequência seguinte. Todos nos preocupamos com ângulos bonitos ou sugestivos, com que a revelação esteja boa, que o negativo não tenha riscos, que a sincronização seja a mais perfeita possível, mas não nos preocupamos com o que os nossos personagens dizem, com as razões pelas quais eles agem, andam, amam, matam. Se a história é romântica, dramática, histórica, realista ou fantástica não tem importância (…) [desde que diga alguma coisa]. O público quer poder

chorar ou rir, e essas emoções só podem ser transmitidas através de uma boa história, e não digo bem filmada, porque o público perdoa tudo – não por paciência inata, mas porque a história o atrai e ele esquece, para melhor dizer, ignora que existem regras que proíbem cortar um travelling em movimento (…) O público se contenta com qualidades técnicas normais, uma fotografia regular, uma continuidade 50% – um mínimo de decência técnica.” (comunicação ao I Congresso Paulista, citado por Maria Rita em “O Desenvolvimento das ideias sobre cinema independente”)

Nesta mesma comunicação, Civelli comenta que as boas histórias da literatura brasileira se passam no interior, em ambientes folclóricos, ou são aquelas que têm sabor de época. Apesar disso, elas não são adequadas às necessidades da atual produção cinematográfica. As exigências da produção barata não permitem locações fora do perímetro urbano nem filmes em trajes de época. A temática urbana acaba, portanto, se impondo como decorrência das condições de produção. A Multifilmes faz a mesma opção de cinema popular: produção barata e rápida, em branco e preto, como O Homem dos Papagaios.

5. FLAVIO TAMBELLINI, SALLES GOMES, ALMEIDA SALES

Que saibamos, nestes anos 50, apenas um crítico tentou articular explicitamente “cinema de elite” e “cinema popular”. Paulo Emílio Salles Gomes estabelece um novo relacionamento entre os termos “popularesco”, “intelectualista”, “popular” e “intelectual”; o primeiro aplicava-se comumente à chanchada e acusava a vulgaridade destes filmes, e o segundo era usado, principalmente pela ala nacionalista, para qualificar em geral filmes intencionalmente “universais”, introspectivos, voltados para a análise psicológica e arquétipos, como seriam os de Walter Hugo Khouri. A respeito da comédia Osso, Amor e Papagaios, cujo fracasso de bilheteria críticos explicavam pelo que o filme tinha de “mais positivo”, isto é, não ter feito concessões à habitual vulgaridade da comédia cinematográfica brasileira, o que levaria a taxar o filme de “intelectualista”:

“A expressão é usada aparentemente para significar o oposto de ‘popular’ e já indica o quanto nossos meios cinematográficos estão necessitados de ideias claras. Quando se compreender que ‘intelectualista’ é a degradação de ‘intelectual’ como ‘popularesco’ a de ‘popular’, talvez, se aprenda uma vez por todas que o cinema pode ser intelectual e popular.” (“Suplemento Literário”, O Estado de S. Paulo, 15.4.1957)

Esse equacionamento dos quatro conceitos, embora nenhum deles seja definido, não parece ter tido maior repercussão. Era, no entanto, uma formulação que poderia ter auxiliado tanto o grupo de Fundamentos e suas preocupações com o eventual mau gosto do povo, como Benedito J. Duarte e sua preocupação de elevar o público. Mas este texto chegava tarde, a segunda metade dos anos 50 não conheceu a intensidade de debates da primeira, e Paulo Emílio talvez ainda fosse visto com certa desconfiança pelos meios profissionais nacionalistas. Em todo caso, talvez seja este o único texto, embora sumário, em que se explicite que não existe divórcio entre o “popular” e o “intelectual”, ideia sem dúvida presente em inúmeros outros textos, mas sempre de modo implícito.

Flávio Tambellini também tem um texto teórico importante em que tenta redefinir a noção de popular. Na sua “Nota sobre uma Preocupação do Cinema Brasileiro” (Elite, 2/1954), Tambellini reconhece a validade dessa preocupação dominante que é a busca de autenticidade e temática nacional. Polemizando com a ala nacionalista, ele se opõe aos cineastas que advogam

“como medida redentora um mergulho típico de natureza mais exótica.”

O nacional não pode ser reduzido “a uma fórmula, a uma camisade-força”.

“O fundamental é não cair no nacional como sinônimo de pitoresco, de ‘papagaio’ de homens que se vestem bizarramente e cujo interesse quase exclusivo passa a ser a sua indumentária, com o esquecimento quase total da sua substância humana e social (…).”

Temática nacional não é só garimpo, jangada, cangaço, Retirada da Laguna. É também o condutor de bonde, a grã-fina da Avenida Brasil, o inquilino no prédio de apartamento. Ele reivindica o urbano como também nacional, quando os textos mais nacionalistas da época e os elogios a O Cangaceiro não chegavam a afirmar mas deixavam em geral supor que não era nas cidades que se encontrava o autêntico. Em realidade, após O Saci, os dois filmes significativos realizados por articulistas da revista Fundamentos seriam justamente urbanos: Agulha no Palheiro e Rio Quarenta Graus. Além de reivindicar o urbano, Tambellini reivindicava também como aptas a participar da temática nacional todas as classes sociais.

Como os nacionalistas, Tambellini rejeitava o cosmopolitismo. Cosmopolita

“é a convenção, a mentira anti-humana, a abstração das exigências intimas de uma realidade, substituída por outra, importada e inautêntica. Daí uma mistura de elementos culturais, um ‘cocktail’ de valores que se excluem e a despersonalização do nacional e, portanto, do humano.”

A partir dessas colocações, Tambellini reequaciona o nacional e sua relação com o universo, invertendo a relação tantas vezes aceita de um conteúdo brasileiro e uma linguagem universal. Diz que o cinema brasileiro tem de ser

“nacional pela forma e universal pelo conteúdo (…) simplesmente não existe o que se convencionou chamar de ‘tema brasileiro’. Um tema é sempre universal; apenas apresenta-se nesta ou naquela área geogrâfica, cultural, social e humana com características específicas de forma. O fenômeno social, por exemplo, que no Brasil adquiriu a forma de cangaço, podemos identificá-lo em outros países sob formas diferentes. A medula, porém, será sempre a mesma. O problema do nacional diz, pois, respeito à ambientação de um tema e não ao tema em si (…). Não existe qualquer contradição entre o nacional e o universal; antes, um é o veículo do outro (…).”

Tambellini termina sua nota valorizando o cinema de autor: é fundamental a fidelidade do realizador ao seu temperamento. E afirma que este cinema de autor não é propício a boas bilheterias, pois exige uma participação crítica do espectador.

Em “Perplexidades Brasileiras” (11.4.1959), Paulo Emílio Salles Gomes comenta Ravina, dirigido por Rubem Biáfora e produzido por Tambellino. Este artigo pode ser em parte interpretado como uma resposta às colocações de Tambellini sobre o universal e o nacional ou regional. Ravina

“foi conscientemente preparada como oposição estética a duas das principais correntes do cinema brasileiro atual, a comédia carioca e o drama regional. Pergunto-me, porém, se uma fita brasileira do tipo de Ravina, mesmo bem realizada, seria mais do que o reflexo de filmes muito melhores produzidos em outros países. A reação contra a mediocridade do ‘statu quo’ cinematográfico nacional é salutar e deve ser encorajada, mas sem cairmos no erro de confundir a noção de universal com a de estrangeiro. Ainda numa conjetura exclusivamente teórica, gostaria de ir mais além e perguntar se o caminho certo não seria exame mais cuidadoso da vitalidade sociológica da comédia carioca e do drama regional e a aceitação dessa realidade básica, assim como o encorajamento dos jovens talentos para que aprofundem e elevem esses gêneros.”

É provavelmente mais perto de Tambellini que de Paulo Emílio que se coloca Francisco Luiz de Almeida Sales quando comenta Estranho Encontro. Almeida Sales talvez tenha feito, nos anos 50, o maior esforço para aceitar a maior quantidade de filmes, ou melhor, para encontrar nas mais diversas tendências elementos condizentes com um cinema que se possa considerar brasileiro. Almeida Sales valoriza o rústico auténtico de O Canto da Saudade; enncontra em O Canto do Mar a melodia da vida pobre, a transposição do Brasil, a auto-identificação do Brasil e não o decor pitoresco; vê o espírito das tradições regionais em Cara de Fogo, que pode ser tido como modelo devido à adequação feliz do filme às possibilidades do cinema brasileiro. Da mesma forma, ele valoriza Estranho Encontro, que para a ala· nacionalista seria indiscutivelmente uma obra cosmopolita:

“(…) Estranho Encontro acentua a possibilidade de realizarmos um cinema altamente sério, e de vigência popular, sem insistirmos apenas na linha de concessões ao típico, ao exótico, ao carnavalesco e. ao cômico ligeiro. Um cinema focalizando com dignidade problemas de relação humana, no quadro da nossa vida diária, pode ter audiência no Brasil.” ( O Estado de S. Paulo, 29.5.1958)

“O Estranho Encontro constrói uma película partindo menos dos fatos, do que da atmosfera em que eles se inserem. E o drama se desenvolve em torno de um episódio comum, no caso o eterno e gasto problema do amor humano (…). Um cinema não é nacional apenas quando busca o típico.

As relações humanas comuns, no seu quadro social, são tão válidas, como matriz de assunto, quanto as relações com o meio e com as circunstâncias específicas que dele decorrem. Esta é a primeira observação a fazer-se sobre esta fita brasileira, realizada em São Paulo (…).” (O Estado de S. Paulo, 31.5.1958)

Como se percebe nestes textos, Almeida Sales tenta harmonizar cinema de autor com cinema de audiência popular, o que é desejável para Paulo Emílio (popular e intelectual – estamos aproximando pensamentos afins, não necessariamente semelhantes, visto que essas palavras-chave podem ter peso diferente para os diversos autores), difícil para Tambellini, e totalmente negativo para Fernando de Barros. Já na sua primeira crítica de Caiçara (28.10.1950), Almeida Sales dizia que

“(…) só uma consciência muito clara das exigências de um cinema nacional típico poderia atingir esse equilíbrio entre o desejo de criação pessoal e as necessidades de um cinema capaz de difusão e penetração no grande público”,

o que, a seu ver, Caiçara realizava. Podemos intuir, talvez maldosamente, que subjaz a essa síntese entre cinema de autor e cinema de audiência popular uma ideia não formulada do tipo: o cinema de que “nós” gostamos (o cinema de autor) será comercialmente inviável sem a adesão de um grande público que o sustente.

Por outro lado, essa atitude aparentemente eclética tem um fundamento teórico em escritos de Almeida Sales que talvez possamos resumir, nas nossas palavras, dizendo que nada do que é brasileiro escapa à brasilidade. Falando em Anhembi (12/1954) da história do cinema brasileiro na primeira metade do século, comenta:

“Não foram inúteis as peças que criamos. Essa imensidão de películas, que agora estamos procurando salvar, e onde traduzimos espontaneamente, quase sempre à margem da influência estrangeira, a nossa maneira de ver a realidade por meio do cinema e o nosso jeito de narrar cinematograficamente uma história (…) criamos formas novas de expressão em cinema, a sêrem no futuro registradas nas antologias mundiais (…).”

Esta postura, embora pouco explicita, deixa entender que a realidade brasileira penetra ou marca o cinema brasileiro independentemente de qualquer esforço específico neste sentido, o que contraria frontalmente as posições, por exemplo, da revista Fundamentos. Essa ideia da realidade por osmose ganhará força posteriormente, a acreditarmos no texto “Realidade e Imagem Documental no Cinema de Curta Metragem”:

“O vínculo ‘realidade” e ‘nacionalidade’ constitui praticamente uma ‘identidade’ para o curta-metragista (brasileiro ou não); independentemente do aprofundamento que imprimiu ou possa vir a imprimir aos temas tratados em filmes já realizados ou futuros – em ensaios, artigos ou simples pronunciamentos, o conceito ‘realidade’ surge sempre como predominantemente ligado ao social. Ainda: entre as opiniões do grupo de trabalho mencionado [grupo de documentaristas] foi sugerido que ‘não há motivos de inquietações quanto ao problema de se captar ou não a realidade brasileira’ – e se adianta: ‘Qualquer cineasta brasileiro, filmando entre nós, produz algo fatalmente brasileiro, mesmo quando se empenha em copiar o que o estrangeiro faz’. Essa ideia, a decorrência espontânea de um caráter nacional emanado do produto de qualquer filmagem realizada no país, por brasileiros, elimina naturalmente o curtametragista criador enquanto agente individualizado e se atém exclusiva mente às condições de produção (e formação social) como suficientes para a captação da realidade.” (O Filme Curto – Pesquisa 1, IDART)

O texto acrescenta ter sido esta uma ideia cara a Paulo Emilio Salles Gomes e o aponta como o seu formulador.

FILMES CITADOS

Agulha no Palheiro – Rio de Janeiro, 1953. Prod.: Flama. Arg., rot., dir.: Alex Viany. Mus.: Claudio Santoro. Ass. de dir.: Nelson Pereira dos Santos. El.: Fada Santoro, Roberto Bataglin, Dóris Monteiro.

Alô Alô Carnaval! – Rio de Janeiro, 1936. Prod.: Waldow-Cinédia. Dir.: Adhemar Gonzaga. El.: Carmen Miranda, Francisco Alves, Jaime Costa.

Ângela – São Paulo, 1951. Prod. Vera Cruz. Distr.: Universal-Internacional. Dir.: Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida. Bas. em conto de Hoffmann. El.: Eliane Lage, Alberto Ruschel.

Areião – São Paulo, 1951. Prod. Inca. Dir.: Camillo Mastrocinque. El.: Maria della Costa, Carlos Cotrim.

Barbeiro que se Vira, O – Rio de Janeiro, 1957. Prod.: Cinedistri. Dir.: Eurides Ramos. EI.: Waldemar Seyssel (Arrelia), Eliana Macedo.

Café, O – São Paulo, 1958. Prod.: Banco Antônio Queirós SI A, Cia. Bandeirantes de Armazéns Gerais e Osvaldo Salembeck. Dir.: Geraldo Junqueira de Oliveira. Caiçara – São Paulo, 1950. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Universal-Internacional. Pr.: Alberto Cavalcanti. Dir.: Adolfo Celi. EI.: Eliane Lage, Carlos Vergueiro.

Cangaceiro, O – São Paulo,1953. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Columbia. Arg., rot., dir.: Lima Barreto. Fot.: H. E. Fowle. EI.: Alberto Ruschel, Marisa Prado, Miltom Ribeiro. ·

Canto do Mar, O – São Paulo, 1954. Prod.: Kinofilmes. Arg., dir.: Alberto Cavalcanti. Rot.: A. Cavalcanti e José Mauro de Vasconcelos. Fot.: Cyril Arapoff. El.: Aurora Duarte, Cacilda Lanuza.

Cara de Fogo – São Paulo, 1958. Prod.: Cinébrás. Rot., dir.: Galileu Garcia. Bas. em A Carantonha, de Afonso Schmidt. El.: Alberto Ruschel, Lucy Reis.

Carnaval no Fogo – Rio de Janeiro, 1949. Prod.: Atlântida. Dir.: Watson Macedo. El.: Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte.

Circo Chegou à Cidade, O – São Paulo, 1958. Prod.: Primo Carbonari. Dir.: Alberto Severi. El.: Humberto Catalano, Raquel Martins, Walter Stuart.

Comprador de Fazendas, O – São Paulo, 1951. Prod.: Maristela. Pr.: Mario Civelli. Dir.: Alberto Pieralise. Bas. no conto homônimo de Monteiro Lobato. El.: Procópio Ferreira, Henriette Morineau.

Esquina da Ilusão – São Paulo, 1953. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Columbia. Rot., dir., Ruggero Jacobbi. El.: Alberto Ruschel, Ilka Soares.

Estranho Encontro – São Paulo, 1958. Prod.: Brasil Filmes. Arg., rot., dir.: Walter Hugo Khouri. El.: Mário Sérgio, Andréa Bayard.

Fragmentos da Vida – São Paulo, 1929. Prod.: Rossi Filmes. Rot., dir.: José Medina. El.: Carlos Ferreira, Alfredo Roussy.

Ganga Bruta – Rio de Janeiro, 1933. Prod.: Cinédia. Pr.: Adhemar Gonzaga. Rot., dir.: Humberto Mauro. El.: Durval Bellini, Lu Marival.

Homem dos Papagaios, O – São Paulo, 1953. Prod.: Multifilmes. Pr.: Mario Civelli. Dir.: Armando Couto. El.: Procópio Ferreira, LudyVeloso.

Jangada – Ceará/Rio de Janeiro, 1949. Prod.: Aba. Arg., rot., dir.: Raul Roulien. El.: Fada Santoro, Arnaldo Amaral.

João da Mata – Campinas, 1923. Prod.: Fênix. Arg., dir.: Amilat Alves. El.: Ângelo Fortes, Joracy Aymoré.

Limite – Rio de Janeiro, 1930. Pr., arg., rot., dir., mont.: Mário Peixoto. El.: lolanda Bernardes, Tatiana Rey.

Maior que o Ódio – Rio de Janeiro, 1951. Prod.: Atlântida. Dir.: José Carlos Burle. El.: Anselmo Duarte, Ilka Soares. ,

Noivo da Girafa. O – Rio de Janeiro, 1957. Prod.: Cinedistri. Rot.. dir.: Vitor José Lima. El.: Mazzaropi, Glauce Rocha.

Osso, Amor e Papagaios – São Paulo, 1957. Prod.: Brasil Filmes. Distr.: Columbia. Rot., dir.: Carlos Alberto e Souza Barros e Cesar Mêmolo. Bas. no conto A Nova Califórnia, de Lima Barreto. El.: Jaime Costa, Modesto de Souza.

Pagador de Promessas, O – São Paulo, 1962. Prod.: Cinedistri. Dir.: Anselmo Duarte. Bas. na peça homônima de Dias Gomes. El.: Leonardo Vilar, Glória Menezes.

Pulga na Balança, Uma – São Paulo, 1953. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Columbia. Dir.: Luciano Salce. El.: Waldemar Wey, Gilda Nery.

Ravina – São Paulo, 1959. Prod.: Brasil Filmes. Pr.: Flávio Tambellini. Rot., dir.: Rubem Biãfora. El.: Eliane Lage, Mário Sérgio.

Rio, Quarenta Graus Rio de Janeiro, 1955. Prod.: Equipe Moacyr Fenelon. Distr.: Columbia. Rot., dir.: Nelson Pereira dos Santos. El.: Jece Valadão, Glauce Rocha.

Saci, O – São Paulo, 1953. Pr.: Artur Neves, Hugo Nanni. Rot., dir.: Rodolfo Nanni. Bas. no romance homônimo de Monteiro Lobato. Fot.: Ruy Santos. Dir. de prod.: Alex Viany. Ass. de dir.: Nelson Pereira dos Santos. El.: Paulo Matosinho, Livio Nanni.

Sai da Frente – São Paulo, 1952. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Columbia. Dir.: Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida. El.: Mazzaropi.

Segredo do Corcunda, O – São Paulo, 1925. Prod.: Rossi Filmes. Dir.: Alberto Traversa. El.: João Cipriano, Inocência Colado.

Simão, o Caolho – São Paulo, 1952. Prod.: Maristela. Rot., dir.: Alberto Cavalcanti. Bas. no romance homônimo de Galeão Coutinho. El.: Mesquitinha, Raquel Martins.

Sinhá Moça – São Paulo, 1953. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Columbia. Dir.: Tom Payne e Osvaldo Sampaio. El.: Anselmo Duarte, Eliane Lage.

Terra é Sempre Terra – São Paulo, 1951. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Universal-Internacional. Pr.: Alberto Cavalcanti. Dir.: Tom Payne. El.: Marisa Prado, Mário Sérgio.

Tico-Tico no Fubá – São Paulo, 1952. Prod.: Vera Cruz. Distr.: Columbia. Pr.: Fernando de Barros. Dir.: Adolfo Celi. El.: Anselmo Duarte, Marisa Prado.

DOCUMENTAÇÃO

Barros, Fernando de: artigos no jornal Última Hora, São Paulo, década de 50. Catani, Afrânio Mendes: fichamento de artigos de jornais da década de 50.

Duarte, Benedito Junqueira: artigos no jornal Folha da Manhã, São Paulo, década de 50.

______ : artigos na revista Anhembi, São Paulo, década de 50.

10 Anos de.Cinema Paulista. São Paulo, Centro de Cinema, GFAU, 1960.

Elite, São Paulo, fev. 1954 (revista que só teve um número, com artigos de Benedito J. Duarte, Adhemar Gonzaga, Alberto Cavalcanti, Marcos Margulies, Flávio Tambellini e outros).

Filme Curto, O. São Paulo, IDART, 1980, 2 volumes.

Fundamentos, São Paulo, nº 1, jun. 1948; a nº 40, dez. 1955.

Galvão, Maria Rita: Companhia Cinematográfica Vera Cruz: a Fábrica de Sonhos. São Paulo, 1978. Tese de doutoramento. Inédito.

______ : “O Desenvolvimento das Ideias sobre Cinema Independente” em 30 Anos de Cinema Paulista, São Paulo, 1980 (Cadernos da Cinemateca, 4).

______ : coleção de recortes da década de 50.

Gertel, Noé: artigos no jornal Folha da Manhã, São Paulo, década de 50.

Gomes, Paulo Emílio Salles: artigos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, década de 50.

Gubernikoff, Giselle: álbuns de recortes e material de arquivo referentes à década de 50. principalmente a Nelson Pereira dos Santos.

IDART: documentos referentes ao I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro. São Paulo, 1952, I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro, 1952; II Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, São Paulo, 1953.

Ortiz, Carlos: artigos no jornal Folha da Manhã, São Paulo, década de 50.

Retrospectiva do Cinema Brasileiro. São Paulo, 1954 (catálogo). Souza, José Inácio Melo: documentação sobre a década de 50.

Sales, Francisco Luís de Almeida: artigos no jornal O Estado de S. Paulo, década de 50.

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  • revista Fundamentos
  • rural e urbano
  • Sartre
  • Uma pulga na balança (Luciano Salce)
  • Vera Cruz