1982

O nacional e popular na cultura brasileira – LITERATURA II

por Lígia Chiappini M. Leite

Resumo

A obra de Antônio Callado pode ser lida como um grande painel-reportagem do Brasil no pós-guerra, especialmente a partir de Quarup (1967), romance de 500 páginas que ele diz ter sido o fruto do deslumbramento de seu retorno ao país, depois de morar cinco anos na Inglaterra. O personagem central, padre Nando, tenta libertar-se do mundo fechado da Igreja mergulhando no Brasil profundo, questionando nossas instituições patriarcais, penetrando nas sombras da floresta e no turbilhão da vida. Ele quer chegar à fonte telúrica no centro do país, mas descobre que o que há no centro é um gigantesco formigueiro. O desafio do tema é também o de aliar qualidade e modernidade à comunicação: há uma tensão constante entre o épico (modelo realista do século XIX) e o alegórico (que desconfia do projeto de representar a realidade pela ficção). O livro foi considerado pela crítica como um novo passo no projeto de nacionalidade que se estende do romantismo ao modernismo, de Gonçalves Dias a Oswald de Andrade, e Ferreira Gullar observou que a obra era um produto legítimo do processo antropofágico de nossa formação. Mas a essa visão é preciso acrescentar ambiguidades entre crença e descrença que se manifestam desde o início da obra de Callado e que vão se acentuar nos romances posteriores a Quarup. A visão ainda romântica da nacionalidade é atingida pela derrota das esquerdas com o golpe militar de 1964. Em Sempre viva (1981), a volta do exílio aparece em forma de pesadelo e de vingança, os projetos revolucionários são postos em dúvida. Embora tenha fé nas forças soterradas do homem e da natureza, o personagem Quinho é hesitante e atormentado como Hamlet. O tema de Expedição Montaigne (1982) é a questão do índio e das origens (que será tratada também por Darci Ribeiro no seu romance Maíra). Mas o sonho quixotesco do personagem Beirão acaba por se revelar tragicômico, como se a ironia machadiana corroesse a imagem alencariana de um Brasil de belas Iracemas. Esse desencanto se aprofunda nos últimos romances que apontam para “o atoleiro em que o país se meteu” na década de 80, diz Callado numa entrevista. Ele, que buscou sempre desvendar o que o jornal e a História oficial deixam na sombra, parece dizer que o nacional-popular é mais uma utopia do que uma conquista possível. Mas as questões que sua obra colocou – o índio, o negro, a liberação feminina, a proteção dos recursos naturais, entre muitas outras – permanecem vivas e atuais.


QUANDO A PÁTRIA VIAJA: UMA LEITURA DOS ROMANCES DE ANTONIO CALLADO

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá;

As aves que aqui gorjeia

não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossas flores têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores

Que tais não encontro eu cá;

em cismar – sozinho à noite

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o sabiá.

Não permita Deus que eu morra

Sem que eu volte para lá;

Sem que eu desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’ida aviste as palmeiras,

Onde canta o sabiá.

(Canção do exílio, Gonçalves Dias)

Um sabiá

na palmeira, longe.

Estas aves cantam

um outro canto.

O céu cintila

sobre flores úmidas.

Vozes na mata,

e o maior amor.

Só, na noite,

seria feliz:

um sabiá,

na palmeira, longe.

Onde é tudo belo

e fantástico,

só, na noite,

seria feliz.

(um sabiá,

na palmeira, ao longe.)

Ainda um grito de vida e

voltar

para onde tudo é belo

e fantástico:

a palmeira, o sabiá,

o longe.

(Nova Canção do Exílio,

Carlos Drummond de Andrade)

UM ESCRITOR EXEMPLAR?

OS CRÍTICOS DA PRIMEIRA HORA

A obra de Antonio Callado, especialmente a partir de Quarup (1967), tem sido lida como expressão de um projeto nacional e popular de cultura brasileira. Essa leitura, que foi dominante na década de 60, reaparece em 1980 em textos como este, de Glauber Rocha, para quem Quarup era ainda uma grande obra incompreendida, exatamente por ser popular e brasileira:

Veja um romance como Quarup. É um livro selvagem, bárbaro, escrito no Brasil há 12 anos que não foi repetido e que a intelectualidade pseudo-sofisticada esculhambou, inclusive; porque tudo que cheira a povo e que explode com a barbárie linguística ofende profundamente a intelectualidade colonizada de direita e os comunistas que são gramscianos, lukacsianos, são todos sovietizados e têm horror à barbárie.[1]

Certamente, para Glauber, entre a “intelectualidade pseudo-sofisticada” que “esculhambou” Quarup estão os seus críticos de primeira hora, especialmente aqueles que mais fizeram restrições ao livro: Nelson Werneck Sodré e Paulo Hecker Filho.

Comparando o livro de Callado com Pessach, a travessia, de Carlos Heitor Cony, publicado no mesmo ano, os dois críticos ressaltam a temática comum (a revolução brasileira) e consideram o livro de Cony mais bem realizado literariamente, porque mais conciso, ao contrário de Quarup, que seria excessivamente grande, sobrecarregado de fatos e ideais, inverossímil.

Nas palavras de Nelson Werneck Sodré:

A dificuldade em analisar o romance de Antonio Callado está ligada ao fato de que se trata de um livro gordo, abundante, que se multiplica em aspectos menores, que perde em unidade por isso, e não pela extensão em si. Podado, reduzido, teria resultado sem dúvida mais forte, mais denso, pois é um acúmulo do grande e do pequeno, do verossímil e do inverossímil, além de ser uma mistura de influências literárias, que se refletem inclusive na linguagem, ora direta, simples, clara, ora simbólica. Como o romance de Cony, o de Callado representa também a intencionalidade em criação artística. Mas, enquanto Cony estreitou o mundo a representar, para poder representá-lo, Callado ampliou esse mundo, quis tê-lo todo em seu romance, e desmandou-se em extensão, apresentando um larguíssimo baixo-relevo do Brasil atual, alinhando a corrupção administrativa, a degradação de classe, a dedicação estudantil, a participação religiosa, e a realidade dos fatos, com a situação nordestina, os seus camponeses maltratados pela estrutura social, a tentativa de reforma de Arraes, o golpe, a violência, a tortura e, como perspectiva, a luta armada. Nesse gigantesco painel, há de tudo”.[2]

Se para Nelson Werneck Sodré, Quarup é um livro “gordo”, para Paulo Hecker Filho, é um substancioso “bolo”, cuja receita seria:

duas xícaras de reportagem, duas de ensaísmo dialogado, uma de crônica carioca; uma colher de erudição e outra de pedantismo; umas nozes sem ralar de humor e, como cobertura (aí vem o bom), um depoimento valioso sobre mulheres e, como toque final, com consciência política autêntica, até romance.[3]

Polêmico, esse crítico vê em Nando, personagem principal do romance, um verdadeiro camaleão que muda de pele ao longo da obra, sem que isso corresponda a uma necessidade internamente criada. Personagem camaleão, romance camaleão, misturando seres reais com seres da fantasia, confundindo ficção com reportagem e crônica. E, sob essas observações, a restrição maior: romance de um jornalista. Assim, enquanto Cony seria um “romancista nato”, Callado seria autor de uma grande reportagem: “Os industriais da seca e os ‘galileus’ de Pernambuco”.

Também Wilson Martins compara o livro de Cony ao de Callado, mas, para ele, ambos são representantes de um projeto tradicionalmente frustrado no Brasil, desde O estrangeiro, de Plínio Salgado: o romance político. Projetados como “romances de revolução”, tanto Pessach como Quarup seriam muito mais os “romances da decepção, da amargura, do desencanto e da ironia”.[4]

Do ponto de vista da qualidade estética, distingue, como Nelson Werneck Sodré, o maior capricho artesanal na linguagem de Callado, em contraposição a certo desleixo estilístico de Cony, mas, por outro lado, também elogia a concisão deste, contra a falta de unidade e certo pitoresco em Quarup.

Para Paulo Hecker Filho, a crítica de Wilson Martins não passa de comentários genéricos que pouco ou nada dizem do romance, ao contrário da de Nelson Werneck Sodré, com a qual concorda em pontos fundamentais.

Entretanto, lidos assim à distância, os textos dos três críticos têm muito em comum, pois, além de coincidirem quanto às restrições feitas a Quarup, concordam ao valorizarem a última parte do romance, especialmente o final, que corresponderia a uma expectativa da época. Assim, para Wilson Martins, tanto Pessach quanto Quarup ter­ minam como “romances messiânicos” “que põem mais uma vez no futuro a esperança, a Canaã onde o leite e o mel escorrem pelo asfalto dos rios”, e realizam “um inquérito sobre a alma do Brasil”, constituindo um símbolo da “fase atual” e se adiantando à história, para vencer a “nossa adolescência revolucionária”.

E, para Paulo Hecker, “Werneck Sodré viu o evidente, que a narrativa ganha validez artística só depois das 400 páginas”. Para ele, ainda, “a última página de Pessach, como o último capítulo de Quarup, é o momento mais alto da obra de seus autores; pelo menos é assim que o leitor brasileiro de hoje não pode deixar de sentir”. E o que o leitor brasileiro sente, nesses finais do “dia que virá”[5] é que eles exprimem “o retrato fiel da intimidade nacional que mais conta porque voltada para o que está vindo a ser”, constituindo a “resposta genuína da literatura à nossa situação nesta quadra”.

É, portanto, pela representatividade em relação ao momento político do país que todos valorizam Quarup, apesar das restrições que lhe fazem. Nelson Werneck Sodré reconhece nele “momentos realmente épicos”, e Paulo Hecker Filho o considera “uma das irrealizações literárias mais ricas e interessantes da literatura brasileira contemporânea”.

Dessa forma, esses três críticos, representantes daquela “intelectualidade” que, segundo Glauber, não teria compreendido o livro, encontram-se com aqueles que o receberam entusiasticamente, de forma altamente elogiosa: Helio Pellegrino e Ferreira Gullar.

Nestes, a empatia com Quarup acaba provocando um trabalho muito mais profundo com o texto, uma análise que fornece inclusive argumentos contra a crítica de inverossimilhança e falta de unidade.

Para Helio Pellegrino, Quarup dá nascimento ao herói resoluto e novo, em oposição ao herói fracassado dos romances de 30. Enquanto estes expressariam a falta de radicalidade e vigor da revolução de 30, a fragilidade da burguesia e a decadência da sociedade patriarcal, Quarup seria expressão do novo momento político e econômico do Brasil do após-guerra e o questionamento radical das nossas instituições patriarcais.

Apesar do retrocesso político que o país sofreu em 64, Quarup seria um livro otimista e esperançoso porque vê as “forças revolucionárias do progresso” que fervilham sob a ditadura recém-instalada. O herói resoluto de Quarup expressaria a certeza (de Helio Pellegrino e dos leitores da época), de que “sob a noite da reação germina a primavera”.

Essa leitura, apesar de forçar a nota otimista e desenvolvimentista, busca seu fundamento analítico no texto de Callado e o encontra com muita pertinência, desvendando relações insuspeitadas para os críticos que apontam a falta de unidade. Assim, para Pellegrino, as transformações do padre Nando se justificam pela integração dinâmica e complementar da objetividade e da subjetividade no romance, e a chave dialética do movimento criador de Quarup é essa integração. Se atentarmos para ela, podemos compreender a sucessão de acontecimentos aparentemente arbitrária no romance: o abandono da Igreja por Nando; suas aventuras com mulheres no Rio de Janeiro, depois de sua iniciação amorosa com a inglesa Winifred; as perambulações dele e de seus companheiros no Xingu; a festa do quarup e a expedição ao centro geográfico; os encontros e desencontros com Francisca; o trabalho das ligas camponesas e a queda de Arraes; a prisão; a tortura; o retiro de Nando na praia, dedicado a ensinar a arte de amar; o jantar de homenagem a Levindo; a lenta recuperação de Nando em casa de Padre Hosana e sua partida no final, feito um novo Levindo, para a guerra de guerrilhas no sertão.

Esses vários momentos do romance, o desfile de personagens e as transformações inesperadas do herói concorrem para a criação de um conjunto fragmentado e desigual, segundo Paulo Hecker Filho. Já, segundo Helio Pellegrino, eles expressam, em diferentes níveis, a unidade dinâmica pela qual “uma obra de ficção, quando atinge o plano da verdadeira comunicação simbólica, ao mesmo tempo em que exprime as contradições e os dilaceramentos de uma situação determinada, carrega também consigo as possibilidades da resolução criadora destas contradições”.[6]

Esse crítico explica também o papel da mulher no romance, como “meio de libertação de Nando e possibilidade de acesso às sombras do eu (sexo) e às sombras do país (a floresta). Confrontando uma forma de relação amorosa que respeita a liberdade tanto do homem quanto da mulher, com a sexualidade predatória que reduz a mulher a objeto do homem, o romance problematizaria a relação predatória com a terra no mundo patriarcal, onde predomina o princípio masculino sobre o princípio feminino.

Através das mulheres, mas especialmente através de Francisca, Nando tomaria contato com o arquétipo psíquico da anima, contra o patriarcalismo que a nega, e inventaria um novo matrimônio e uma nova sociedade. Só pela conquista do seu lado feminino, Nando poderia ser uma totalidade, integrar centro e periferia na sua própria pessoa, e fazer a sua revolução particular, tal como, no país, a conquista do centro e a sua integração no conjunto da nação permitiria construí-la.

Às transformações de Nando corresponderiam, portanto, transformações do Brasil, num intercâmbio criador entre a consciência e o mundo, e num movimento alternado de recolhimento de Nando sobre si mesmo e abertura para a ação social transformadora:

Objetividade e subjetividade se integram dinamicamente, se complementam e se iluminam em seus respectivos significados e, assim, funcionam como polos capazes de refletir um pelo outro, o esforço de totalização que percorre o romance. Nando, desalienando-se de sua sombra, caminha para a sombra brasileira e, desta forma, exprime um passo à frente dado pela consciência nacional. Ao vencer o medo imaturo da autoridade, põe em questão, simbolicamente, o domínio autoritário das instituições patriarcais e feudais sobre o organismo social brasileiro. A posse da mulher prenuncia e anuncia, no romance, a luta dos camponeses nordestinos pela posse da terra.[7]

Assim como vê essa coerência de fundo entre a trajetória individual do herói, em Quarup, e os fatos sociais e políticos com que o romance trabalha, Helio Pellegrino também consegue integrar às demais partes do livro, num todo orgânico, as passagens relativas aos índios, e ao quarup propriamente dito. Sendo o quarup uma cerimônia em memória dos chefes mortos, seu significado é de morte, mas também de ressurreição, de pranto e força, de luto e júbilo. Lembrando que a morte de Getúlio é narrada simultaneamente à cerimônia, Helio lê, no fato político, essa mesma ambivalência. E, mesmo depois, quando os índios desaparecem por completo do romance, o sentido simbólico do quarup permanece, sob a forma do novo sacerdócio a que se entrega Nando, depois de ritualmente ter devorado, num quarup de brancos (o grande jantar de homenagem), o revolucionário morto. Se, para Helio Pellegrino, as personagens de Quarup sentem-se irremediavelmente atraídas pelo centro do Brasil, ele como os leitores do seu tempo (afinal, estamos a alguns poucos anos da criação de Brasília) também sentem essa grande atração. Em Quarup o que se lê fundamentalmente e o que atrai é o mito do centro, expressão do nacionalismo desenvolvimentista. Veja-se o tom eufórico do texto crítico quando trata desse ponto:

Em Quarup, o centro geográfico do Brasil possui, em termos de nossa dinâmica nacional profunda, significado equivalente. A nação brasileira, através de todas as funestas vicissitudes que ameaçam esmagá-la, marcha para o seu centro, isto é, para a integração de suas energias originárias, cuja expressão institucional e política representará. em nosso país, a vitória da revolução popular.

Em plena selva, um punhado de brasileiros abraça terra e água, mergulha no elemento primitivo e se despoja de tudo o que não seja a vontade de ouvir o coração telúrico do país, pulsando em sua fonte.

A marcha para o Brasil central, a reverência à cultura indígena, o esforço para preservá-la em sua autenticidade, representam um movimento de perfuração de nossas camadas étnicas fundamentais, destinado a libertar e assimilar as energias básicas do inconsciente coletivo brasileiro. O Brasil, para chegar como nação ao seu centro, precisa antes desnudar-se a seus próprios olhos. Para que possamos construir nosso destino, fiéis ao que nele existe de irredutivelmente novo e inaugural, temos que agarrar com as mãos o barro mais profundo de que somos feitos.[8]

Vendo nos indígenas do livro, “muitos deles ainda intocados pela civilização branca”, o testemunho da “matéria nova do Brasil novo, a presença em nosso processo histórico de tudo aquilo que, como elemento virgem, tem que subir à superfície para ganhar forma e exprimir-se”, Helio Pellegrino está reafirmando um nacionalismo que fundamentou os projetos de revolução na década de 60 e que, como veremos pela análise de Quarup, o próprio livro, retrabalhando as ideologias em jogo na época, já problematizava. Desse modo, apesar de coerente, e justificada analiticamente, a leitura de Helio revela-se parcial, o que é compreensível num texto escrito no calor da hora. (1967).

Essa leitura revela também algo que já tem sido estudado em análises da produção cultural do período populista, a confiança excessiva na linguagem e no seu papel revolucionário, dentro daquilo que Wilson Martins chamou o “primarismo das esquerdas brasileiras” (que Quarup já critica) e que Helio Pellegrino volta a enfatizar quando, comentando a parte do livro que se intitula “a palavra”, diz: “Ao progresso do verbo na consciência dos homens, corresponde um avanço dos homens no sentido da ação. Verbo é ação, a palavra é forma que o real aceita, das mãos que o trabalha!”. É de formação da “consciência nacional”, é de conscientização pelo alfabeto, que nos fala o texto de Pellegrino. E tais temas, hoje estamos cansados de saber, são parte integrante das ilusões da esquerda de 60, tão fortes que, às vésperas de 68 e depois de 64, ainda velavam para nós mesmos, subestimando, a dimensão do sucesso da “revolução” dos militares.

O mesmo tom de euforia, a mesma idealização da realidade transposta para o livro de Callado, aparece na crítica de Ferreira Gullar, publicada em 1968, na Revista Civilização Brasileira, que no limite, confunde a revolução com o próprio livro.

Eis como Gullar inicia a sua apreciação:

Isso é que é, na verdade, a Revolução Brasileira. E a gente acredita mais nela quando surge, diante de nós, um livro como Quarup, porque se vê, nele, que a Revolução continua· e se aprofunda, que ela ganha carne, densidade, penetra fundo na alma dos homens. O rio que vinha avolumando suas águas e aprofundando seu leito, até março de 1964, desapareceu de nossas vistas. Mas um rio não acaba assim. Ele continua seu curso subterraneamente, e quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor debaixo da terra.[9]

A leitura que Gullar faz de Quarup o situa, de imediato, na tradição da literatura brasileira vista como retomada permanente do projeto romântico de construção da nacionalidade:

De fato, enquanto lia o romance, não podia deixar de pensar nos índios de Gonçalves Dias; em Iracema de Alencar, em Macunaíma de Mário de Andrade, em Cobra Norato, mesmo nos Sertões, de Euclides, em Guimarães Rosa. Pensava na abertura da Belém-Brasília, no Brasil, nesta vasta nebulosa de mito e verdade, de artesanato e eletrônica, de selva e cidade, que se elabora, que se indaga, que se vai definindo.[10]

Depois dessa introdução bastante significativa pela confusão entre literatura e realidade, bem como pela curiosa separação entre o plano econômico e o político, salvando o desenvolvimento mas condenando o golpe, como se um nada tivesse a ver com o outro, Gullar passa a fundamentar sua interpretação do romance por uma análise bastante detalhada, que tem muitos pontos de contato com a leitura de Pellegrino.

Para ele, “no curso do romance, Nando vai se afastando de Deus e se aproximando da História. Através da experiência sexual, ele se reintegra na aventura comum. Por amor a Francisca aproxima-se dos camponeses que lutam por uma vida melhor e sofre a crua realidade da repressão. Depois do golpe militar, sente-se exilado em sua própria terra e não vê outro caminho senão cavar dentro de si mesmo”.

O banquete final, em homenagem a Levindo, mártir da revolução e ex-noivo de Francisca, é lido como devoração ritual e encerramento de uma fase da vida de Nando (a fase da praia). E o livro, como um todo, “lição de desaprendizagem”, descrição do “processo de desalienação de um homem, que termina por se transformar em povo, que pode agora ser qualquer um”.

Haveria também, no romance, uma afirmação implícita “de que é preciso deseducar-se, livrar-se das concepções idealistas, alheias à realidade nacional, para poder concentrar-se”.

Outro problema importante que, segundo a leitura de Gullar, o livro coloca é o da “questão política” como intimamente ligada à vida interior das pessoas, ao “próprio sentido da vida”: “os problemas existenciais decorrem do contexto social e político. A queda (e o suicídio) de Getúlio muda a vida de Fontoura. A injustiça social do Nordeste leva Levindo ao sacrifício. O golpe de abril transforma a vida de Nando”.

Quanto à busca do centro geográfico do Brasil, pelas personagens do livro, expressaria a verdadeira obsessão por isso no país. Como símbolo e denúncia do subdesenvolvimento, “Levindo quer trazer para Recife a terra do centro do Brasil. Nando acredita que é mais importante ir até o centro do território brasileiro do que conhecer Olinda ou Ouro Preto. O governo quer colocar um marco no centro. Fontoura – que chama o centro de ‘cloaca’ – não resiste ao seu apelo e vai colar o rosto no chão coberto de formigas. No centro está um gigantesco formigueiro (‘Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil’). Mas já na primeira Constituição brasileira está o mito do centro. No romance de Callado, esse mito é, a um só tempo, a carência da unidade nacional, da integração do país, como o símbolo de um sentido para a vida de cada um – vida essa que não se desliga do destino global da nação”.

Mas Gullar vai adiante, percebendo a relação entre a mulher e a terra, entre a proposta revolucionária e o amor:

Fontoura morre entre as pernas de Francisca (‘como se nascesse’) e, ao fim do livro, Nando vê que ‘aquele mundo todo com sua cana, suas gentes e seus gados, era Francisca molhando os pés na praia e de cabelos ardendo no Sertão’. Essa identificação da mulher com a terra, do sexo com o centro do país e do centro do país com o centro da vida – o sentido da existência – define a necessidade de integração global que o romance propõe e exprime.[11]

E nessa “cadeia de relações simbólicas” tampouco lhe escapa o sentido do título, traçando relações entre o modo de vida dos índios e a invenção da “academia de amor” de Nando na praia, bem como entre o banquete de Levindo e as comilanças do quarup, a festa indígena, em que também “se evoca o espírito de um morto”. No caso, o morto é Levindo, “cujo corpo é simbolicamente devorado por Nando que, mais tarde, adota-lhe o nome”.

É uma espécie de antropofagia – que também se exprime pela fome sexual de quase todos os personagens – e que se liga tanto à tradição histórica e cultural do pais como ao processo de assimilação do que vem de fora, da civilização. Ou seja, o processo de acumulação de riquezas e de técnicas, capaz de transferir para dentro do pais a determinação de seu destino.[12]

No final, aproveitando para atacar o “formalismo vanguardeiro” e reafirmar a importância da arte política, Gullar considera que Callado é representante de um realismo novo, “que decorre do propósito… de traçar um painel da realidade nacional mas a partir do ‘centro’ do país e não de sua periferia industrializada (curiosa inversão da terminologia de hoje)”. Um realismo novo que não apenas “constata a vida como ela é” mas, na esteira de um Checov, “indaga a vida como ela deve ser”, e “indaga no quadro especifico da realidade cultural brasileira”. De onde conclui que Quarup é um autêntico romance brasileiro, “uma criação autônoma de nossa cultura – fruto legítimo do secular processo antropofágico de nossa formação”.[13]

O ASSUNTO E O PROJETO: DA RELIGIÃO À POLÍTICA

Tanto nas críticas favoráveis a Quarup como naquelas que lhe fazem rigorosas objeções, observa-se a tendência de torná-lo uma obra exemplar do “realismo novo”, apresentando-o como o romance da revolução brasileira. Os marcos teóricos em que se movem essas leituras são os princípios dos Centros Populares de Cultura, de uma arte engajada e mobilizadora, do romance realista lukacsiano, o conceito de conscientização, bebido na pedagogia de Paulo Freire, os princípios isebianos de Cultura Nacional, Modernização e Consciência Nacional. É isso que se busca e é isso que se lê em Quarup. O assunto e o tom ainda otimista do romance correspondem às expectativas de um público que, tendo perdido a revolução na realidade, quer conservá-la viva, pelo menos nos livros.

A resenha de Nelson Werneck Sodré, também de 1968, explicita esse ponto, sugerindo mesmo que o livro foi concebido a partir da intenção de fazer arte participante no que, mais uma vez, o paralelo com o livro de Cony se impõe:

Dois romances ocupam, no momento, lugar destacado na vendagem de livros, o de Antonio Callado e o de Carlos Heitor Cony. Como todos sabem, venda numerosa e qualidade literária nem sempre coincidem. Coincidem nos dois casos, é preciso dizer, desde logo; mas há que acrescentar, desde que é um dado que a realidade apresenta, que o interesse dos numerosos leitores deriva não apenas da qualidade literária desses romances, mas ainda do assunto, do tema, e até do enredo deles. Não há mal nenhum nisso, evidentemente, mas os próprios autores, como homens de inteligência, hão de reconhecer que isso é o transitório; o que assegurará o interesse continuado, o interesse permanente, é a qualidade literária que apresentam os dois romances. Como curiosidade há que acrescentar algo mais: o que diz respeito à intenção em literatura, e particular­ mente em literatura de ficção. O assunto – como a relação entre numerosa venda e qualidade literária – nos levaria longe. Não vamos aprofundar esse aspecto; registrar que ambos os romances obedeceram a uma intenção é necessário: a intenção de exteriorizar determinada maneira de julgar, a intenção de participar, a intenção de influir. […] Cony e Callado, participantes na vida cotidiana, de ações políticas, decidiram participar através de romances, obedecendo a uma intenção, a de situar em termos de ficção a fase que estamos atravessando.[14]

Embora não tenha participado diretamente do CPC ou de outro grupo qualquer que, na década de 60, se propunha a fazer uma literatura engajada e politicamente revolucionária, Callado participou de tudo à distância, “à brasileira”, como costuma dizer, sendo simpatizante desses movimentos onde tinha vários amigos, a começar pelo próprio Ferreira Gullar. Sua participação política mais direta, na época, se deu através do jornal. No entanto, se antes de Quarup, seus romances não tinham referências políticas tão imediatas, depois dessa obra – verdadeira divisora de águas – sua produção literária parecerá mover-se pelo sentido da urgência, debruçando-se sobre a realidade político-social imediatamente anterior; os romances, daí para a frente, aparecem pouco tempo depois da reportagem, no máximo três ou quatro anos depois dos fatos que tomam por matéria. Com Quarup se inicia um processo de transformação da ficção naquilo que era a sua própria essência no entender de Alencar: o avesso da História. Daí para a frente, a tentativa do escritor será iluminar e desvendar, pelo esforço da imaginação, aquilo que o jornal e a História oficial deixam na sombra.[15]

Ora, a inauguração dessa nova fase não só é consequência do momento político em que o escritor produz e vive, como justifica as leituras que fazem de Quarup o romance exemplar do período. Se ele não foi projetado para pôr em prática as ideais defendidas pelos teóricos da literatura popular revolucionária, trazia muitos elementos que lhes permitiram encampá-lo como sendo um dos seus primeiros produtos ficcionais.

A ficção como o avesso da História, e a ficção como forma de “revelação e conhecimento do país”, o projeto romântico é ainda o projeto de Callado que, como Gonçalves de Magalhães, como Gonçalves Dias, como Oswald de Andrade, ou Graça Aranha e, como hoje, Fernando Gabeira (para só nomear alguns), no exílio e a partir dele redescobre o Brasil.

Conforme declarou recentemente o próprio Callado, Quarup (e seus primeiros romances) ainda é fruto de certo deslumbramento pelo Brasil, depois de prolongada ausência, na Inglaterra e na França:

Os seis anos passados na Inglaterra foram importantíssimos para a vida literária de Callado e influíram para dar à sua obra o cunho de nacionalidade que a caracteriza. Para isso, contribuiu, decisivamente, a saudade do Brasil. Um dia deu-lhe loucura para ler livros sobre a terra natal, e viajar por ela. Logo depois, começou a tomar notas para um romance – Manoa – tendo como cenário a Amazônia.[16]

O depoimento é significativo, especialmente por essa atração pela Amazônia. Qualquer um que vá à Europa percebe a curiosidade do europeu pela grande floresta amazônica e pelos índios brasileiros. No caso de Callado, parece ter sido contagiado por esse interesse ao ponto de, voltando ao Brasil, não só programar um romance sobre a Amazônia, como engajar-se em uma expedição com Assis Chateaubriand e o filho do coronel Fawcet, em busca do esqueleto da Lagoa Verde que resultou na reportagem (talvez a mais notável) do mesmo nome. Além disso, há uma peça, Frankel, de 1955, em que o cenário reaparece junto com o tema dos índios, retomado quase 10 anos depois em Quarup.

Mas o deslumbramento pelo Brasil não se manifesta só nessa espécie de obsessão pela Amazônia e pelo índio. A obra de Callado é um verdadeiro mapeamento do país: vamos do alto do Xingú a Pernambuco, de Pernambuco a Corumbá, de Corumbá ao Rio de Janeiro, do Rio de Janeiro a Congonhas do Campo, desta ao Juazeiro da Bahia, com algumas escapadas fronteira afora, para a Bolívia, via Puerto Suarez, estendendo o interesse e a curiosidade para o contexto mais amplo da América Latina. E nesse deslocamento pelos trópicos vamos recompondo o Brasil ou os Brasis, pelo cheiro e pela cor, pelos sons característicos, pela fauna e pela flora. Novo “eco dos bosques e florestas nossos”, designação de Alencar para qualificar a obra de Gonçalves Dias, o escritor-repórter viaja, registra e mostra, “como se pretendesse fazer um levantamento documental do Brasil”, localizando “suas obras – sejam elas teatro ou romance – em regiões típicas: o sertão nordestino, a floresta amazônica, as cidades coloniais mineiras – utilizando, evidentemente, problemas específicos da região”.[17]

A mesma característica do exilado que redescobre o país é assinalada por Carlos Heitor Cony, nas observações que faz a Madona de Cedro:

Callado foi um homem que, depois de passar alguns anos no estrangeiro, voltou ao Brasil e quis comer e beber o Brasil. Tanto em sua ficção como em seus artigos de jornal, optou por aquilo que de mais genuíno encontrou em sua terra: índios, camponeses, favelados, Aleijadinho, Portinari, Arraes e Julião, Nando e Delfino Montiel.

Misturo a ficção e a realidade pois admito que Antonio Callado atingiu o status de criador – e sua realidade é, agora, intemporal.[18]

Mas esse localismo ostensivo que amarra a obra de Callado ao projeto romântico, até mesmo regionalista como quer Alfredo Bosi para Madona de Cedro (e como poderíamos aceitar também para Assunção de Salviano), tem, desde o primeiro romance, a sua contra­ partida universalizante, como percebeu Tristão de Athayde, seu primeiro crítico. Para Tristão, os romances de Callado da década de 50 pertencem à fase em que a literatura brasileira passa do nacional ou regional ao universal:

Quatro ou cinco romancistas novos se revelam, então, na primeira linha, a começar pelo próprio Jorge Amado, embora de tendências diversas ou mesmo opostas, no seu humanismo. Otávio de Faria e Lúcio Cardoso, a princípio, e mais recentemente Guimarães Rosa, Gustavo Corção, Fernando Sabino e Antonio Callado. Em todos eles o que notamos é essa passagem ao universal, mesmo no mais estritamente regional de todos eles – Guimarães Rosa.

Em todos eles, o romance passa a ter dimensões que transcendem as fronteiras do país e se fixam nos grandes problemas da vida e da morte, da pureza e da corrupção, da incredulidade e da fé.

É nessa última categoria que veio inserir-se Antonio Callado com seus dois romances até agora publicados, entre os seus trabalhos dramáticos e as suas espetaculares reportagens nordestinas.[19]

Apontando a influência do romance inglês sobre Callado, Tristão assinala ainda que boa parte desse universalismo lhe vem dessa influência, especialmente de Graham Greene quando “nos mostra a natureza humana em seus aspectos também mais sórdidos” ou quando escolhe para seus romances, em vez de paisagens calmas e “mansas colinas”, os desertos, as florestas e os pântanos. Dessa forma, Tristão sugere uma interpretação simbólica para a natureza exuberante e, ao mesmo tempo, ameaçadora dos romances de Callado, conotando, ao nível do cenário, como atmosfera, um veio temático constante: “o lado negro da alma humana”, “o espetáculo universal do sofrimento”, contra o qual, entretanto, se projeta “um rio de esperança e o contraste dos valores ressalta a cada passo de modo precisamente a criar o clima típico da tragédia e da catarse. Tudo isso num ambiente de romance policial que transcende de muito os ‘casos policiais’ das crônicas de delegacia”.[20]

Essa dimensão universal da obra de Callado se faz portanto, desde o início, pela mediação das influências estrangeiras (o romance inglês, sobretudo, mas também James Joyce e, mais recentemente, algumas influências francesas – Proust, Gide e o Nouveau Roman) e encontra os grandes temas do romance de pensamento católico da década de 50. Não é por acaso que, ao comentar a obra de Callado, Tristão de Athayde o aproxima de um Lúcio Cardoso ou de um Otávio de Faria.

Aliás, a passagem para o romance político, comprometido com as teses marxistas da década de 60, e mesmo a revisão posterior (a crítica à esquerda festiva, ao populismo, ao romantismo das guerrilhas e dos sequestros, pelos romances de 70) conserva certa religiosidade, uma visão da revolução como martírio e dos líderes como mártires. O simples resumo de cada romance e o acompanhamento do destino das personagens principais, do primeiro ao último, comprova este aspecto que tornaremos a apontar na análise de Quarup e Sempre­ viva.[21]

O próprio Callado reconhece que, em grande parte, a religiosidade presente em sua obra se deve à sua formação, numa época em que o catolicismo era uma prática e um pensamento do dia-a-dia das famílias de classe média e alta no Brasil.

Seus romances transpirariam assim um clima religioso sob o qual viveu, bem como teriam logrado captar (sobretudo Quarup) o momento de virada da Igreja, a partir de João XXIII, o que, no Brasil, ele teve oportunidade de seguir de perto, observando a entrada súbita dos padres nos movimentos sociais, por exemplo, no Nordeste, onde constatou uma mudança radical da Igreja entre 59 e 63.[22]

Aliás, sobre isso, é interessante notar que, novamente, Callado está muito próximo das ideais do tempo. Se folhearmos a Revista Civilização Brasileira ou acompanharmos as publicações da Editora Paz e Terra entre 1961 e 1968, veremos que a questão religiosa estava sendo debatida. Há mesmo um artigo de Nelson Werneck Sodré chamando atenção para a importância da Igreja no momento e criticando a cegueira de algumas correntes de esquerda que não dispensavam a devida atenção ao seu papel nos movimentos sociais de libertação:

Trata-se de um eco, o eco da Igreja nova,(…).
Desconhecer essa voz, simular a inexistência desse clamor é mais do que um crime, porque é um erro. E, para terminar, e a propósito de erro: há uns poucos dias, quando outra figura eminente do clero católico, no Rio de Janeiro, propunha o diálogo com os estudantes, houve um diretório estudantil que, em sua irrefreável revolta ante os desatinos sofridos, afirmou que aquela não era a hora de ‘conversar com o bispo’. Os que me conhecem bem sabem que – nascido e criado em família católica, de religião tradicional mas também de religião autêntica – acontece que não sou católico. Na verdade, sou materialista. Mas não tenho receio de afirmar que esta é a hora histórica no Brasil, precisamente, de conversar com o bispo.[23]

Caracterizando o romance brasileiro posterior a 1950, Alfredo Bosi comenta que, ao lado das tendências experimentais (seguidoras do novo romance francês, na prosa, ou do Concretismo na poesia), há três grandes correntes: a intimista, que vinha de 30 e 40, a tendência nacional-popular do romance político-social e a tendência do romance religioso. Assim, “ao lado das reações políticas, stricto sensu, há um retorno das consciências religiosas às suas fontes pré e antiburguesas. Escritores cristãos, como Bernanos, Saint-Exupéry, Julien Green, Evelyn Waugh e Graham Greene, nortearam a criação das personagens por uma linha de conflito entre o mundo e a graça divina. De um modo sumário, pode-se dizer que o problema do engajamento, qualquer que fosse o valor tomado como absoluto pelo intelectual participante, foi a têmica dos romancistas que chegaram à idade adulta entre 30 e 40. Para eles vale a frase de Camus: “O romance é, em primeiro lugar, um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada”.[24]

Antonio Callado começou a produzir sob essas coordenadas e até hoje sua ficção traz a marca do pensamento católico impregnando projetos estéticos e políticos da esquerda, combinação aliás polemicamente apontada por alguns e muito criticada mas, na verdade, pouco estudada.

Dessa forma, tanto Assunção de Salviano, quanto Madona de Cedro, trabalhando com a imagem do martírio, do pecado, da penitência e da salvação (esquema que veremos retomado em Quarup) com as antinomias do bem e do mal, retomadas na figura de Deus e do Diabo, entre as quais as personagens se debatem ao longo de suas histórias, abrem dimensões para a crítica social, antecipando aspectos que serão desenvolvidos em romances posteriores, mais diretamente políticos. Assim, padre Estêvão, com a obsessão de fazer um trabalho mais útil junto aos índios da Amazônia, prefigura Nando e manifesta desde o início de Madona de Cedro aquela insatisfação com a vida de sacerdote tradicional que será a centelha a empurrá-lo (como à personagem de Quarup) para fora da Igreja em busca de uma ação social transformadora.

E o beato de Assunção de Salviano, espécie de Antonio Conselheiro renascido na Bahia, novo padre Cícero ou, talvez mais modestamente, prefiguração de Francisco Julião, representa uma força popular contra a Igreja (ainda àquela altura comprometida fundamentalmente com o latifúndio) mas contrária também ao Partido Comunista com seus esquemas abstratos e sua revolução pensada de cima para baixo. Assim como Quarup e Madona de Cedro teriam prefigurado as profundas transformações que se gestavam no interior da Igreja no Brasil e no mundo, Assunção de Salviano teria ligado, por “um arco de fantasia”, “O Juazeiro de Salviano ao Engenho Galileia”.[25]

Dessa maneira, a batalha entre Deus e o Diabo se transfere da arena interior do homem para a arena social. É nesse terreno sobretudo que, a partir de Quarup, o repórter-romancista fará a cobertura da luta. Mas o escritor que deu seus primeiros passos na esteira do romance católico, preocupado com as grandes batalhas desenroladas na consciência do homem, não abandonará de todo o terreno intimo.  A tensão entre a perspectiva externa do romance histórico-político e a perspectiva interna do romance intimista, com maior ou menor insistência, será uma característica da ficção de Callado, de Quarup a Sempreviva e Expedição Montaigne, sendo que, nestes últimos, a opção parece ter sido mais radical pelo filtro subjetivo dos aconteci­ mentos históricos, contrariamente ao enfoque mais externo privilegiado em Reflexos do Baile.

Essa dimensão interna vai minando ironicamente, já desde Quarup, o tom eufórico do romance que, na trilha de Alencar e Gonçalves Dias, redescobre um Brasil gigante, de belas florestas, belas flores e belas iracemas. É uma tendência contrária àquela, menos evidente; é talvez Machado com sua ironia e seu profundo ceticismo que vai tomando conta desta ficção de inicio tão esperançosa nos destinos do País Novo e exuberante. É a desconfiança minando as certezas na vitória da revolução.

Nesse sentido, as análises que se seguem pretendem mostrar que, se Antonio Callado pode ser considerado um escritor representativo do projeto nacional-popular da década de 60, ele já traz, talvez desde o início, implicitamente nas redes das suas histórias feitas de morte e ressurreição, cada vez mais de morte e menos de ressurreição, a sus­ peita de que o nacional-popular é para os artistas e intelectuais brasileiros, pelo menos por enquanto, muito mais uma aspiração do que uma conquista possível.[26]

Exemplar do projeto de uma arte engajada, comprometida com a “nação” e com o “povo brasileiro”, estes romances parecem traçar também a história de uma impossibilidade: de um projeto nacional­ popular, enquanto não houver de fato uma nação e um povo brasileiros.

Como diz Arraes, talvez não por acaso prefaciando um livro de Antonio Callado, “precisamos descobrir de que Brasil falamos, o que é a Nação, o que são os interesses nacionais”.[27]

A hipótese deste trabalho é que, pelo viés da ficção, Callado retoma esse problema ao longo dos seus principais romances, indagando sobre a existência da nação, muito mais do que partindo dela como um dado.[28]

Como o poeta Carlos Drummond de Andrade que, tampouco por acaso, é citado por Arraes nesse prefácio, Callado atualiza a Canção do Exílio de Gonçalves Dias, revelando o exílio mais terrível e mais difícil de superar: o exílio do lado de cá, o encarnado aqui, para onde não se volta de avião ou de barco. Por isso, nele como em Drummond, a nação, objeto de desejo do exilado, se transfere do chão em que se pisa para a terra da utopia. O sabiá e as palmeiras concretas, seu símbolo, saltam para o parêntese da fantasia a construir: o sabiá, a palmeira, o longe.

Notas

  1. Patrulhas ideológicas, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1980, p. 31.
  2. Nelson Werneck Sodré, “O momento literário”, Civilização Brasileira, nº 15, p. 218.
  3. Paulo Hecker Filho, “O romance justificado”, Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, ano 12 (1968), n 594.
  4. Wilson Martins, “O ópio dos intelectuais”, Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, ano 12 (1968), n 553.
  5. Veja-se, a propósito da mesma solução na música popular desse período, o artigo de Walnice Nogueira Galvão, “MMPB: uma análise ideológica”, originalmente publicado na Revista Civilização Brasileira, e republicado em Saco de Gatos, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1976.
  6. Helio Pellegrino, “Quarup, o nascimento do herói novo”, Jornal do Brasil. 26.8.67 – cad. B-5.
  7. Idem, ibidem.
  8. Idem, ibidem. No mesmo texto, Helio Pellegrino explicita essa ideologia quando se refere a Juscelino como “fiador generoso” do desenvolvimento brasileiro.
  9. Ferreira Gullar, “Quarup”, Civilização Brasileira, n 15, p. 252.
  10. Idem, ibidem.
  11. Idem, ibidem.
  12. Idem, ibidem.
  13. Idem, ibidem.
  14. Nelson Werneck Sodré, op. cit.
  15. Em Quarup, podemos identificar facilmente, sobretudo depois de ler a obra jornalística do próprio Callado, algumas personalidades históricas, sob a máscara de personagens fictícias: entre outras, Francisco Julião, o líder comunista Gregório, o padre Melo, participantes nos movimentos de organização e defesa dos camponeses nordestinos, entre 61 e 64. Há cenas transplantadas quase em estado bruto do texto jornalístico para o texto literário. Há acontecimentos documentáveis ocorrendo lado a lado com os inventados ou com outros resultantes de uma fusão entre o real e o fictício. Padre Hosana, por exemplo, foi composto a partir da história ouvida sobre um padre do mesmo nome que havia assassinado um bispo, conforme se pode ler numa das reportagens reunidas em Tempo de Arraes. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
  16. Renard Perez, Escritores brasileiros contemporâneos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960, p. 36.
  17. Idem, ibidem, p. 37.
  18. Carlos Heitor Cony, “orelha” do livro de Callado, Madona de Cedro, 2ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
  19. Tristão de Athayde, prefácio a Assunção de Salviano, 2ª. ed.. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960.
  20. Idem, ibidem.
  21. Ver Antonio Callado, Literatura Comentada, São Paulo, Ed. Abril, 1982. Esse aspecto do “gosto pelo martírio” tinha sido lembrado por Wilson Martins no texto citado e por Maria N. Moreira quando estuda a simbologia religiosa usada por Callado, em: “Estilo e Simbolismo no Quarup de Antonio Callado”. O Estado de S. Paulo, 22.6.74. .
  22. Recentemente, nos seus últimos depoimentos, Callado refere esse fato que já na década de 60 discutia em algumas reportagens sobre o Nordeste.
  23. Civilização Brasileira, n 19/20, p. 201.
  24. História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultfix, p. 437.
  25. Veja-se a dedicatória a Franklin de Oliveira, na página de rosto desse romance: “Para (…) Franklin de Oliveira que viu um arco de fantasia exata ligando o Juazeiro de Salviano ao Engenho Galileia”.
  26. Conclusão a que explicitamente chegou Ferreira Gullar quando, voltando do exílio, concedeu uma entrevista sobre o assunto. Para ele, o nacional-popular “não seria mais que uma aspiração da intelectualidade progressista, que busca meios e modos de expressão capazes de, por sua forma e pelos problemas que abordam, compensar a hegemonia cultural e ideológica das forças dominantes internas e externas”. In Escrita/ Ensaio, ano 1, n 1, 1977, p. 42.
  27. In Tempo de Arraes.
  28. Nossa análise estará centrada especialmente em Quarup (1967) e em Sempreviva(1981), mas esses dois romances estarão constantemente referidos aos primeiros, anteriores a Quarup (Assunção de Salviano, 1954, Madona de Cedro, 1957) e aos que lhe são posteriores: Bar Don Juan (1974), Reflexos do Baile (1976) e A Expedição Montaigne (1982).O objetivo é, pelo estudo mais detalhado do romance de 60 e do romance de 80, destacar os elementos que julgamos essenciais na ficção de Callado, tanto para esclarecer sua trajetória específica de escritor quanto para discutir a questão mais geral do nacional-popular na literatura brasileira de 50 a 80.

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