1982

O nacional e popular na cultura brasileira – TEATRO

por José ArrabalMariângela Alves de Lima

Resumo

As marcas de origem estão claras no teatro jesuítico. O desejo de assimilar, a verticalidade do movimento de aproximação e, a par disso, a imensa riqueza horizontal do acontecimento teatral. Nota-se aí a seguinte contradição: teatro é o que o jesuíta diz, mas é também o que o índio faz.

Sem dúvida, Anchieta constitui a metáfora que permite identificar um movimento e depois avançar, especulativamente, até os grupos de teatro que se organizam no interior da Pastoral Operária. Outra vez a catequese e uma vez mais o encontro entre ator e público produzindo alguma coisa que a instrumentalização da cena não pode conter.

João Caetano trata da arte do ator. Nesse caso, a ênfase recai sobre a questão do modelo, proposta já nas “Lições Dramáticas” e proposta de novo em diversos momentos da história.

Até certo ponto é a manutenção de um modelo que impossibilita o espetáculo, tornando-o muitas vezes insensível às transformações sugeridas pela sua relação direta com o público. O modelo paira acima da comunicação direta, enfraquecendo a essência do encontro teatral. João Caetano, no seu esforço para “abrasileirar” a arte teatral, esbarra involuntariamente na complicada questão do popular. Afinal, é preciso descobrir como vivem e se organizam os habitantes desta terra sem a interferência dos portugueses.

Outros, que colidem intencionalmente com a definição de povo, trabalham, entretanto, segundo a proposta platônica de uma interpretação modelar. O que acontece é que em algum ponto a “perfeita encarnação  da  nobreza”  e  o  “tipo  brasileiro”  se  encontram   no  processo de produção da arte teatral, numa estranha combinação.

“O poeta e a inquisição”, texto a propósito da peça de Gonçalves de Magalhães, procura, nos meandros da obra, a identificação de um momento em que o dramaturgo pensa agressivamente a sua intersecção na sociedade, além de buscar reconhecer as formas mais evidentes de organização dessa sociedade.

Fazendo sua profissão de fé romântica, Gonçalves de Magalhães apresenta propostas que são, ainda hoje, moeda corrente no país. No fazer teatral, entretanto, a dificuldade de atualizar um programa é ainda uma vez indício da vontade de pautar a ação cotidiana por um códice que contraria a formação e a inclinação pessoal do artista. É como se o artista, para iniciar a construção de uma peça, precisasse recuar para fora do seu tempo e do seu espaço para depois voltar municiado de um projeto perfeito ao qual a obra e a vida devem conformar-se.

A inconsciência do atrelamento a um código passado é outra questão importante que o texto permite identificar. O moto-contínuo negação/proposta resulta num teatro híbrido, quando não completamente paralelo ao discurso que sobre ele se faz.

Como uma dramaturgia que parte de esferas mais sublimes do que as do cotidiano, a solução entrevista para esse cotidiano é, naturalmente, a meritocracia. Nesse, como em outros momentos do texto, vê-se que o teatro é pensado para veicular perfeitamente um projeto político nacional. Em termos tais que a questão do povo precisa ser apenas mencionada, porque já está consideravelmente definida, quando se trata da organização do poder.

Com muito cuidado, Magalhães examina a possibilidade da inscrição cênica de personagens populares. E chega a configurar uma matriz do nosso teatro – a relação entre artista e povo – que pode ser encontrada até em “Gota d’água”, peça de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes.

Essa aliança, que aparece em muitas propostas teatrais como uma necessidade histórica iniludível (no caso de Magalhães a contingência que a desperta é a formação da nação), se reafirma em todos os momentos de crise cultural, institucional ou política. Do ponto de vista das poéticas, é uma aliança que não poderá ser rompida sem desencadear trágicas consequências. A ameaça dessa tragédia está sempre presente, iminente. A vítima entretanto é indefinida. Quem sofrerá com o rompimento, o artista ou povo?

Como contraponto “O prazer de Macário” fala de uma vivência integral da experiência artística, desprezando a imposição de uma missão sobre a construção da peça teatral. Ao contrário dos seus contemporâneos, a peça de Álvares de Azevedo permite entrever um teatro que respeita mais os desígnios da escrita do que a fascinação dos modelos. A liberdade excepcional e prazerosa de Macário é uma exceção, certamente, mas lembra um teatro possível.

Com as considerações sobre o projeto artístico do TBC e de outras companhias elegantes dos anos cinquenta, revela-se o reverso da mesma moeda, isto é, o teatro que se pretende internacional e sem classes sociais. Um teatro que se imagina reflexo de uma forma perfeita sem tempo e sem espaço definidos.

Mas aqui, curiosamente, surgem outras procuras de eixo e identidade, o teatro elegante é tocado pela vontade de equiparação; de ser “tão bom quanto”. Ao que parece, não é possível sentir-se justificado sem uma poética que inclua, ao menos como um dos itens, uma tarefa salvacionista.

O teatro dos Centros Populares de Cultura, tratado especialmente pelo seu projeto nacional-popular, é uma exegese da raiz autoritária desse e de outros projetos semelhantes que se acreditaram com a missão de conduzir as massas, através do teatro, em direção a uma redenção política e social. O modo como se constitui esse pensamento é seguido até o momento em que esse projeto deve transformar-se efetivamente numa prática teatral.

Transferidos para a produção teatral do circuito central, os desdobramentos do cepecismo provam, nos anos 1970, as consequências mais espontâneas de seu projeto. Em “A palavra” de Paulo Pontes é possível perceber que a adaptação do ideário cepecista acontece muito naturalmente. Muito se faz sob a alegação de “não entregar”. E mais ainda sob a alegação de que “este não é ainda o interlocutor”. Como um interlocutor intermediário, que pode financiar a arte cênica, pode levar ao interlocutor ideal, isto é, o povo. As incontáveis soluções de compromisso estão todas inscritas no interior de uma proposta autoritária, que desconsidera o público como força produtiva da relação teatral.

O estudo sobre a relação do Oficina com o seu público é um esforço para destacar, entre a homogeneidade gerada pelo tema da pesquisa, a vertente de grupos que escolheram como base de atuação o seu próprio lugar de classe, com todas as raízes múltiplas, contraditórias e de compromisso implicadas nessa postura. Os desdobramentos em claustrofobia e o desejo de ser outra coisa que resultam desse teatro íntimo estão também considerados em relação às poéticas missionárias.

Por fim, no último texto que compõe este conjunto de ensaios, há um voo livre sobre a questão que permite abandonar o terreno da crítica e da caracterização, para ensaiar uma proposta ou talvez uma reivindicação pela autonomia criativa do espetáculo, pela densidade da representação, contrapondo-se à secura e à transparência dos programas ideológicos que se sobrepõem ao fazer artístico.


ÍNDICE
  1. INTRODUÇÃO – MARIÂNGELA ALVES DE LIMA E JOSÉ ARRABAL
  2. VOCÊ É ÍNDIO – MARIÂNGELA ALVES DE LIMA
  3. ECCE ÍNDIO – MARIÂNGELA ALVES DE LIMA
  4. O POETA E A INQUISIÇÃO: A TRAGÉDIA DAS ORIGENS – JOSÉ ARRABAL
  5. O PRAZER DE MACÁRIO COMO LEGADO À ATUALIDADE – JOSÉ ARRABAL
  6. EU NÃO SOU ÍNDIO – MARIÂNGELA ALVES DE LIMA
  7. O CPC DA UNE – JOSÉ ARRABAL
  8. A PALAVRA DE PAULO FONTES – JOSÉ ARRABAL
  9. EU SOU ÍNDIO – MARIÂNGELA ALVES DE LIMA
  10. E NÃO É SÓ ISSO – JOSÉ ARRABAL

INTRODUÇÃO

Este trabalho partiu de uma incisão; como quase todas as incisões, um pretexto para perscrutar uma vez mais a história com a perspectiva do presente. Rodeamos aqui, e algumas vezes atingimos, a emergência do nacional e do popular como questões que se propõem para os homens de teatro, bandeiras de quase todos os movimentos em direção a alguma coisa.

É um teatro que começa, desde o seu primeiro momento, como instrumento para a conversão religiosa. E que mantém, ao longo do tempo, um desejo obsessivo de ser instrumento de salvação da alma e do corpo, da identidade e do sentido.

Digamos que a vontade de um teatro nacional e popular percorra todos esses caminhos onde os homens de teatro pensaram seu ofício, rodeando a prática por discursos que falam de raízes, de realidades concretas, de projetos de unificação para eliminar, de uma vez por todas, as partições sociais com a ajuda do diálogo da cena.

Exatamente porque esses discursos apresentam um tema recorrente, que preenche os momentos de inatividade, as lacunas temporais e todos os movimentos de autocrítica, é impossível solucionar teoricamente a questão reduzindo-a a uma relação de causa e efeito. Entre as múltiplas causas e os múltiplos efeitos intervêm os sonhos e as projeções de uma arte todo-poderosa, capaz de remendar velhos e propor novos universos.

No decorrer da pesquisa, enquanto procurávamos nas poéticas, na dramaturgia, na crítica e na historiografia os sinais dessa recorrência, fomos gradualmente abandonando a ideia de centrar a pesquisa nos diferentes matizes da questão através do tempo. A incidência do tema nos projetos contemporâneos pareceu-nos suficientemente significativa para justificar o perfil mais completo possível da mesma atitude. Decidimos portanto levantar os vários ângulos da questão, exemplificando em diferentes períodos e projetos onde cada um desses ângulos se delineia com maior nitidez.

Uma vez que o teatro que aqui se faz ainda se atribui a missão de fixar os traços da nacionalidade incerta e também a missão de falar ao povo sobre o seu destino, pareceu-nos que, ao tratar a questão hoje com muitas faces e muitas contradições, estaríamos descentrando a questão do seu estatuto de crença. E contribuindo talvez para que possa ser enfrentada na sua relação com outros teatros possíveis.

No caso do teatro, particularmente, onde a reflexão teórica limita-se a uma parcela mínima de produtores, as minúcias de cada proposta distinguem-se a tão duras penas que parece um trabalho de ourivesaria distingui-las. Em contrapartida parece-nos extremamente significativa a constância da mesma afirmação em momentos onde as diferenças históricas e as condições de produção do teatro são muito diferentes. De fato, é como se algumas dessas poéticas fossem completamente isoladas do curso dos acontecimentos.

Escolhemos portanto os pontos em que as afirmações por um teatro nacional e/ou por um teatro popular nos parecem marcar alguma característica peculiar do mesmo problema. De tal forma que a soma desses diferentes momentos permita reconhecer a fisionomia mais completa possível da mesma questão enquanto inscrita na contemporaneidade. Isso nos levou também a abandonar vários assuntos importantes registrados pela historiografia, mas que não nos pareceram especialmente importantes para este recorte. A característica destes ensaios é a de somatória de traços.

Evidentemente não há isenção completa nessa opção por este ou aquele momento. Os dois pesquisadores selecionaram também momentos que, pessoalmente, consideravam mais interessantes. Muitas vezes por gosto ou desgosto. É uma arbitrariedade que não ignora o objeto procurado, mas que nos permitiu manter uma relação personalizada com cada traço que notamos no desenho dessa questão do nacional e do popular.

A lógica desse tipo de arbitrariedade que considera as inclinações pessoais é possibilitar a interferência evidente de uma formação contemporânea em assuntos que já foram devidamente revirados por críticos e historiadores, abordados por outros ângulos. Francamente, pareceu-nos intolerável tratar novamente da espécie de povo e da espécie de nação propugnada pelos românticos. Outros fizeram e farão melhor.

A pessoalidade, entretanto, não impediu que começássemos em Anchieta. Afinal, todas as histórias da literatura ou do teatro começam em Anchieta. Nós, que rodeamos o pote do nacional e do popular, não conseguimos evitar o mesmo ponto inicial.

As marcas de origem estão claras no teatro jesuítico que propõe impertinentemente os traços que procuramos: o desejo de assimilar, a verticalidade do movimento de aproximação e, a par disso, a imensa riqueza horizontal do acontecimento teatral. Vimos aí a primeira contradição que nos interessa: teatro é o que o jesuíta diz, mas é também o que o índio faz.

Sem dúvida, Anchieta constitui para nós a metáfora que nos permite identificar um movimento e depois avançar, especulativamente, até os grupos de teatro que se organizam no bojo da Pastoral Operária. Outra vez a catequese e uma vez mais o encontro entre ator e público produzindo alguma coisa que a instrumentalização da cena não pode conter.

Outro texto que fizemos resvala também para o monumento: é sobre a arte do ator, começando em João Caetano. Neste caso o que nos interessa é a questão do modelo, proposta já nas “Lições Dramáticas” e inúmeras vezes reproposta cada vez que se trata, em diversos momentos da história, do trabalho do ator.

Até certo ponto é a manutenção de um modelo que impermeabiliza o espetáculo, tornando-o muitas vezes insensível às transformações sugeridas pela sua relação direta com o público. O modelo paira acima da comunicação direta, enfraquecendo a essência do encontro teatral. João Caetano, no seu esforço para “abrasileirar” a arte teatral, esbarra involuntariamente na complicada questão do popular. Afinal é preciso descobrir como vivem e se organizam os habitantes desta terra sem a interferência dos portugueses.

Outros, que colidem intencionalmente com a definição de povo, trabalham, entretanto, segundo a proposta platônica de uma interpretação modelar. O que acontece é que em algum ponto a “perfeita encarnação da nobreza” e o “tipo brasileiro” se encontram no processo de produção da arte teatral, numa estranhíssima combinação.

“O poeta e a inquisição”, texto a propósito da peça de Gonçalves de Magalhães, procura, nos meandros da obra, a identificação de um momento em que o dramaturgo pensa agressivamente a sua intera secção na sociedade, além de buscar reconhecer as formas mais evi dentes de organização dessa sociedade.

Fazendo sua profissão de fé romântica, Gonçalves de Magalhães coloca em circulação propostas que são, ainda hoje, moeda corrente no país. No fazer teatral, entretanto, a dificuldade de atualizar um programa é ainda uma vez indício da vontade de pautar a ação cotidiana por um códice que contraria a formação e a inclinação pessoal do artista. É como se o artista, para iniciar a construção de uma peça, precisasse recuar para fora do seu tempo e do seu espaço para depois voltar municiado de um projeto perfeito ao qual a obra e a vida devem conformar-se.

A inconsciência do atrelamento a um código passado é outra das questões que nos parecem importantes e que o texto permite identificar. O moto-contínuo negação/proposta resulta num teatro híbrido, quando não-completamente paralelo ao discurso que sobre ele se faz.

Como uma dramaturgia que parte de esferas mais sublimes do que as do cotidiano, a solução entrevista para esse cotidiano é, naturalmente, a meritocracia. Neste como em outros momentos do texto, vê-se que o teatro é pensado para veicular perfeitamente um projeto político nacional. Em termos tais que a questão do povo precisa ser apenas resvalada, porque já está consideravelmente definida, quando se trata da organização do poder.

Com muito cuidado, Magalhães examina a possibilidade da inscrição cênica de personagens populares. E chega a configurar uma matriz do nosso teatro que pode ser encontrada até em Gota d’água, peça de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes: a relação artistapovo.

Essa aliança, que aparece em muitas propostas teatrais como uma necessidade histórica iniludível (no caso de Magalhães a contingência que a desperta é a formação da nação), se reafirma em todos os momentos de crise cultural, institucional ou política. Do ponto de vista das poéticas, é uma aliança que não poderá ser rompida sem desencadear trágicas consequências. A ameaça dessa tragédia está sempre presente, iminente. A vítima entretanto é indefinida: quem sofrerá com o rompimento, o artista ou o povo?

Como contraponto O prazer de Macário fala de uma vivência integral da experiência artística, desprezando a imposição de uma missão sobre a construção da peça teatral. Ao contrário dos seus contemporâneos, a peça de Álvares de Azevedo permite entrever um teatro que respeita mais os desígnios da escrita do que a fascinação dos modelos. A liberdade excepcional e prazerosa de Macário é uma exceção, certamente, mas lembra um teatro possível.

Com as considerações sobre o projeto artístico do TBC e de outras companhias elegantes dos anos cinquenta, encaramos o reverso da mesma moeda: o teatro que se pretende internacional e sem classes sociais. Um teatro que se imagina reflexo de uma forma perfeita sem tempo e sem espaço definido.

Mas aqui, curiosamente, mergulhado no cadinho de outras procuras de eixo e de identidade, o teatro elegante é tocado pela vontade de equiparação: sermos tão bons quanto. Ao que parece, não é possível sentir-se justificado sem uma poética que inclua, ao menos como um dos itens, uma tarefa salvacionista.

O teatro dos Centros Populares de Cultura, tratado especialmente pelo seu projeto nacional-popular, é uma exegese da raiz autoritária desse e de outros projetos semelhantes que se acreditaram com a missão de conduzir as massas, através do teatro, em direção a uma redenção política e social. O modo como se constitui esse pensamento é seguido até o momento em que esse projeto deve transformar-se efetivamente numa prática teatral.

Transferidos para a produção teatral do circuito central, os filhotes do cepecismo provam, nos anos setenta, as consequências mais espontâneas do seu projeto. Em A palavra de Paulo Pontes é possível perceber que a adaptação do ideário cepecista se faz, muito naturalmente. Muito se faz sob a alegação de “não vamos entregar”. E mais ainda sob a alegação de que “este não é ainda o nosso interlocutor”. Como um interlocutor intermediário, que pode financiar a arte cênica, pode levar ao interlocutor ideal: o povo. As incontáveis soluções de compromisso estão todas inscritas no interior de uma proposta autoritária, que desconsidera o público como força produtiva da relação teatral.

O estudo sobre a relação do Oficina com o seu público é um esforço para destacar, entre a homogeneidade gerada pelo tema da pesquisa, a vertente de grupos que escolheram como base de atuação o seu próprio lugar de classe, com todas as raízes múltiplas, contraditórias e de compromisso implicadas nessa postura. Os desdobramentos em claustrofobia e o desejo de ser outra coisa que resultam desse teatro íntimo estão também considerados em relação às poéticas missionárias.

Por fim, no último texto que compõe este conjunto de ensaios, há um vôo livre sobre a questão que permite abandonar o terreno da crítica e da caracterização, para ensaiar uma proposta ou talvez uma reivindicação pela autonomia criativa do espetáculo, pela densidade da representação, contrapondo-se à secura e à transparência dos programas ideológicos que se sobrepõem ao fazer artístico.

Há resíduos nestes textos que. nos permitem ver, quando os examinamos em conjunto, que as transformações mais importantes do teatro têm um núcleo que não passa pela questão do nacional e do popular. Embora esse binômio seja frequentemente alegado para justificar a transformação que se vai operar e a transformação empreendida. Todos os momentos em que ocorre uma transformação realmente importante na linguagem do espetáculo, a força, propulsara está na relação palco e plateia. É nessa relação que a plateia força o palco a transformar-se para poder completar uma sintonia.

Onde quer que esteja o público, no mesmo lugar ou no ponto geográfico e social oposto ao do artista, ele altera a natureza do teatro. E muitas vezes inverte o sentido de um discurso, provando a incomunicabilidade ou a tradução imperfeita disto ou daquilo.

A importância dessa reivindicação pôr um teatro nacional e popular parece-nos óbvia pela repetição e também pela constância com que essa poética permanece, na prática teatral, à margem dos seus objetivos iniciais.

Daí a necessidade de, configurando esse ponto de partida, desencadear um tipo de reflexão e proposta que seja realmente capaz de encaminhar a prática teatral e considerá-la, enquanto reflete na sua natureza fundamental de empatia ou conflito, de atores e espectadores. Aqui lançamos ainda um diagnóstico ligeiro, evidentemente, confirmado pelos inúmeros e angustiados depoimentos de produtores teatrais que neste momento, em entrevistas e programas de espetáculo, reafirmam o dever de manter um ofício sem saber que nome dar a este impulso que os empurra para a cena. Cada vez mais tímidos em repetir as certezas aprendidas há uma década e comprovadamente incertas, mas ainda assim repetindo-as fracamente, papagaiando alguma coisa à espera de uma iluminação que institua outras bandeiras ou, mais uma vez, remende a velha bandeira (verde-amarela, cor-de-rosa, vermelha ou… ). Finalmente mencionamos aqui o que deixamos de fora. Nem nos passou pela cabeça falar de teatro feito em outros circuitos como o teatro do povo-pobre, de populares, do povão ou de qualquer outro nome que a nomenclatura do assunto reserva para os que não ocupam o protagonismo dos espaços públicos de comunicação social.

Quando muito o indicamos como uma presença-ausente, uma vez que é a personagem principal dos discursos de quase todas as poéticas que mencionamos anteriormente.

Por prudência, em primeiro lugar, deixamos de falar desses acontecimentos de outro tempo e espaço: a festa, a dança comemorativa, e todas as outras manifestações teatrais em que o sujeito que atua presume, instantaneamente, o desígnio imemorial do teatro de sua comunidade. Esses não fazem discursos que nos permitam, por nossa vez, discursar.

2. VOCÊ É ÍNDIO

“Porque o povo pertence à Igreja, num sentido assim de ele ter escolhido, feito opção pela Igreja; e pertence ao Estado por ter nascido. De certa forma também fez uma opção por uma nação. Então é o mesmo povo e deveria ter os mesmos princípios de justiça, de liberdade, de paz, ter o mesmo núcleo.” (D. Paulo Evaristo Arns)[1]

O núcleo é o mesmo, legitimado pela opção nesta fala contemporânea. A seara sagrada é o povo, e não a terra. Assim como o primeiro teatro que aqui se faz, empenhado em garantir não a posse de um território, mas de um povo. Para isso o teatro se infiltra no território de homens que ainda não constituem o rol dos filhos da Santa Madre.

Consigo o jesuíta traz a verticalidade: há um céu, que é sobre, há um inferno, que é sob. No plano do solo instala-se apenas a dimensão humana, permanentemente solapada pela transitoriedade. O Gênese e o Apocalipse colocam entre parênteses o presente das árvores, da caça, da pesca, limitando-o de ponta a ponta pelo passado e pelo futuro. No centro do acontecimento teatral há agora um homem e sua consciência: será tentado, pecará, expiará a culpa e será, finalmente, redimido.

Há, assim, duas operações no teatro de Anchieta, nosso primeiro teatro, que o tornam particularmente significativo para constatar a persistência da catequese na história do teatro.

A primeira operação consiste em eliminar toda a conceituação de tempo e espaço vinculada à experiência sensivel. A mensagem do jesuíta é universal e eterna. Por isso esse homem, diferente na pele, nos gestos, na fala, deverá fazer-se cristão. Aquilo que diferencia o índio do europeu é uma circunstância superável. Superar é parte do trabalho. Anchieta aprende a língua, ouve as narrativas, reconstitui o contorno das cerimônias coletivas, registra e reproduz em cena os comportamentos do cotidiano. Sobrepõe a essas obsevações o seu entendi mento de teatro. Mas, sem dúvida, permite que elas integrem o espetáculo como dados secundários, convergindo para a exegese da doutrina cristã.

Esse trabalho não prevê a crise de quem o realiza. Por isso é missão. Note-se que o jesuíta está inteiro no seu gesto. O que pode questionar é a eficácia dos seus instrumentos, mas nunca a legitimidade dos seus fins. E Anchieta realmente realiza esse questionamento em sucessivas obras, procurando um aperfeiçoamento que integre cada vez mais meio e fim.

O primeiro olhar do religioso sobre o índio, que o teatro e as cartas registram, é ainda um olhar de espanto, bem distante da compreensão. Não lhe ocorre, ao menos como possibilidade, que o seu teatro em cenas sucessivas possa ser percebido como simultaneidade ou ainda agrupado em uma ordem diferente da sua emergência. Da mesma forma as imagens de outra cultura que penetram a cena não podem ser entendidas pelo jesuíta como perturbações do significado intencionado. As plumas, os chocalhos, os membros pintados entram em cena primeiramente como se fossem caracterização.

Resguardada a medida do homem, o índio como cultura deverá desaparecer para renascer com outra identidade:

“ALMA- Eles mentem, os malditos:

o padre me batizou.

Depus os vícios proscritos,

seguindo os sagrados ritos:

batizado, cristão sou!

(…)

Mas após,

o bispo também me impôs

e do antigo senhorzinho,

Vasco Fernandes Coutinho

este nome que me pôs,

morri com ele sozinho.”[2]

Antes do renascimento há naturalmente a morte necessária. Pouco se perde. Aos olhos do jesuíta a cultura desse estranho não pode ter importância porque não se narra a si mesma e, portanto, não se representa para o europeu. Para o jesuíta existem apenas hábitos e costumes ainda não submetidos à necessária ordenação que lhes daria sentido.

Ao fim de cada encontro teatral é o sentido que é revelado, unificando o estranho e o europeu. A revelação que o teatro possibilita é a da redenção, comum a todos os homens e nivelando o apóstolo e o catecúmeno.

Nesse sentido o teatro é a recuperação de um equilíbrio natural, em que se distribui entre atores índios e espectadores uma verdade com a qual o jesuíta já foi agraciado. O teatro não propõe, não sugere. Revela alguma coisa sobre o próprio espectador que ele ainda ignora, mas que diz respeito ao seu destino.

Inteiramente comprometido com a mudança, esse teatro não coloca em pauta a percepção do seu espectador. Interessa-lhe sobretudo a soma final, que é a mudança de “hábitos e costumes”.[3] Seu resultado ótimo é a elevação do gentio à categoria de parceiro.

A marca dessa forma teatral é a divisão: o mundo hierarquizado, à sucessão temporal e o conflito. Mas a sua aspiração última é, a partir do estabelecimento dessa divisão, reinstaurar uma unidade. Nesse sentido Anchieta põe em cena não apenas os desígnios da Santa Sé, como o drama das sociedades europeias nesse momento da história.

A segunda operação do teatro de catequese, traço pertinente a todo teatro de catequese, é falar à consciência.

Qualquer que seja o peso cênico dado à virtude ou ao vício, há uma única senda para a redenção, desembocando inevitavelmente na decisão individual. No momento em que pesa a sua existência o espectador selvagem defronta-se com o livre-arbítrio.

Sem dúvida o jesuíta, na sua experiência de instructor, identifica o ponto nevrálgico do choque cultural (por mais incipiente que seja a conceituação desse choque). Tanto que os textos dramáticos, com a sua teologia consideravelmente simplificada, retornam sempre enfaticamente à questão do livre-arbítrio.

Há uma instrução nitida e segura para, através desse teatro pedagógico, separar o bem e o mal. Entretanto a decisão de redimir-se e não voltar a pecar separa o indivíduo da sua comunidade. É o momento em que o espectador deve aprender a interiorizar o tribunal cristão e dar a si mesmo um veredicto.

Para isso a encenação reserva um espaço privilegiado para o indivíduo, abrindo uma clareira que interrompe o aspecto coletivo da cerimônia. Há uma personagem muito semelhante à dos autos para dramatizar a confissão. Mas neste caso substitui-se a forma alegórica por uma individualização da personagem:

“Eu mesmo, por meu querer,

Ao pecado me entreguei;

com ele minha alma atei,

sem nunca amar e temer

a Deus contra quem pequei.

Virgem Mãe do eterno Rei,

acalmai Antão Vilhena!

Pois estou cheio de pena

que eu, vilão, me procurei

com culpa que me condena.”[4]

O percurso da alma, tanto quanto nos autos de Gil Vicente, é um percurso solitário. Não há nenhuma forma de participação da comunidade na trajetória para a redenção.

Como absoluta novidade o jesuíta introduz no mundo do índio o tribunal da consciência onde as ações do indivíduo são avaliadas fora da sua prática comunitária. Assim, o que até então é socialmente permissível pode tornar-se pecado, e vice-versa. Não há salvação coletiva. Por isso o encontro teatral não pode, pelo fim a que se propõe, realizar a fusão do indivíduo na coletividade.

A palavra “conscientização”, que se derrama pelos séculos posteriores, é certamente filha legítima dessa consciência erigida em árbitro da conduta. Ainda quando essa operação pretende uma unidade final, o seu processo é a separação.

É uma forma teatral onde os fatos do cotidiano só podem penetrar de uma forma genérica, quase irreconheciveis, depois de terem atravessado a clivagem do bem e do mal. Aqui a finalidade do teatro se sobrepõe à particularidade que é o cotidiano. Ou, enfim, o conjunto de práticas com que a comunidade marca o corpo do homem e o corpo da terra.

Para renascer com o nome cristão é preciso deixar atrás de si não apenas o nome da tribo, mas a própria tribo. O povo cristão será constituído de indivíduos para quem a ideia de solidariedade atravessa a decisão individual.

Enfim, trata-se de um teatro que, embora fale a todos, se dirige a cada um. Atribui-se ao sujeito o direito, e por vezes o dever, de renunciar ao que é criado pela memória coletiva.

“Em banquetes canibais

dançaram os meus avós:

sorvendo a divina voz,

abjuro a lei de meus pais.”[5]

Da conversão resulta um homem que é o centro do universo e, ao mesmo tempo, centrado em si mesmo. O canto coletivo que encerra cada um dos autos de Anchieta não é o canto de integração numa totalidade qualquer, mas um canto de comunhão, o uníssono de vozes novamente harmonizadas pela redenção. Deve representar um conjunto em que muitas vozes falam a mesma coisa, e entretanto nenhuma dessas vozes tem o poder de falar por todos. Antes de reunir, o espetáculo se encarrega de separar.

No teatro as duas operações da catequese se tornam facilmente complementares. Reduzindo a cultura desse estranho a mera circunstância, o teatro pode apropriar-se dela pelo seu valor cênico, pelas facilídades de comunicação que propicia. Além disso, separando o indivíduo da comunidade, através da intervenção de um tribunal da consciência, o espetáculo constitui-se em exemplaridade.

De um quadro que segue na sua composição geral as cores, as vestes e os ritmos da cultura indígena, destaca-se uma personagem que, em conflito com as leis coletivas e com a teologia do europeu, constrói o drama particular de uma consciência em conflito. O que ocorre a essa personagem durante o espetáculo é refletido de tal forma que a imagem se completa no público, funcionando como um vértice para onde convergem as ações reais, fora do tempo de duração do espetáculo.

Essas duas operações, que certamente não resumem a função da catequese, concorrem entretanto para a criação de um modelo, ideia que resiste bravamente ao longo da história do teatro. E que volta a ganhar força todas as vezes que um homem de teatro resolve dirigir-se a alguém que considera um estranho por este ou aquele motivo: ou porque o espectador pertence a outra cultura, ou a outro espaço, ou a outro segmento social. O teatro deve separar esse espectador estranho do que o torna diferente, para poder ensinar que a diferença é apenas o circunstancial ponto de passagem para uma igualdade que o palco vai ilustrar.

No palco está a voz do pastor mostrando o exemplo digno de ser seguido. O sonho ambicioso do pastor, entretanto, é a celebração. E o teatro, mais do que qualquer outra forma de comunicação, parece adequado para propiciar a celebração.

Quando tanto os atores como os espectadores convencionam um espaço sagrado (o da representação) e um profano (o do público) há, invariavelmente, a expectativa subjacente de que desse encontro nasça uma revelação. Todo teatro, que se dá a ver,[6] constrói um hiato para ser preenchido pela relação viva entre público e atores.

Mas o teatro da catequese pretende ainda outra coisa. Supõe que esse espaço de comunicação é preenchido pela integração do espectador com a verdade que o pastor conhece e que está disposto a partilhar com suas ovelhas. De tal forma que, ao final do encontro, seja possivel comemorar a posse de uma verdade comum que aplaina todas as diferenças. Saber e sentir em uníssono.

“O espirito de celebração é um espirito religioso, um espírito de comunhão. Os homens, reunidos em um determinado lugar propício ao culto que querem celebrar, numa determinada data que esperaram e para a qual se prepararam, pensam em uma mesma coisa, crêem nessa coisa que é melhor do que eles e à qual se oferecem, procurando alçar-se até ela. Nessa crença reencontram uns aos outros. E sua recompensa está nesse apaziguamento, nessa serenidade onde, durante o tempo da celebração, sentem esmaecer as pequenas diferenças que os separam, as pequenas hostilidades que os dividem e que não são, diante de uma ideia eterna, mais do que mesquinharias do amor próprio ou simples besteiras.”[7]

Ao mesmo tempo, o desejo de celebração é a contradição com que o pastor terá de defrontar-se. O teatro de catequese nasce da diferença, pois fala a um estranho que é preciso conscientizar.

Uma vez que é o homem de teatro que detém o conhecimento que se dá a ver no espaço cênico, esse teatro não pode admitir, no interior da cena, que apareçam, com a mesma força, outràs possíveis verdades que pertencem ao mundo desse espectador que será convertido.

Alguma coisa da ideia missionária deve ganhar corpo e instituir se na duração do espetáculo. Por isso o espetáculo fala à consciência, retirando o espectador do seu universo familiar (que é a diferença entre o pastor e o rebanho) e inventa uma identidade comum para que possam entender-se. Como por exemplo: “uma consciência fala a outra consciência” ou então “um homem do povo fala a outro homem do povo” e assim por diante.

Depois de ter provocado essa partição o espetáculo deve configurar-se em celebração. Deve unir novamente, por um poder que é próprio da cena, o espaço sagrado e o espaço profano, constituindo um todo irmanado por um sentido comum.

O ato teatral que aspira à celebração, aspira ao esquecimento de si. A contradição é portanto evidenciar o modelo que deve servir para pautar a vida fora do teatro enquanto o espetáculo desencadeia a momentânea suspensão do juízo e instaura uma irmandade ficcional. Esse ponto de crise no teatro de catequese, nítido na evolução da dramaturgia de Anchieta, permanece uma situação recorrente na história do teatro. De alguma forma o ofício de pastorear através do palco retoma essa contradição: há sempre o mesmo desejo de converter pela razão e simultaneamente celebrar uma união que é própria da natureza das relações entre o palco e a plateia. Na verdade o encontro teatral gera uma substância própria, dificilmente redutível à pedagogia. Esse teatro é quase sempre dilacerado pelo esforço de encontrar o equilíbrio entre contrários.

***

Mas também não é por acaso que a crítica ao teatro jesuítico se confunde com o anticlericalismo, perdendo a oportunidade de analisar esse teatro nas suas contradições próprias, enquanto teatro. A crítica que se faz ao teatro de Anchieta, como a que depois se fará com frequência a outras formas de catequese, é uma crítica ideológica, que abarca apenas a natureza da missão e contrapõe a essa verdade outra espécie de verdade gerada em outro tempo histórico. Não é por acaso, portanto, que até a historiografia “sociológica” do século XX reproduz, com outras palavras, o antijesuitismo dos positivistas. Para criticar o auto jesuítico enquanto teatro, ou enquanto proposta de comunicação, seria preciso renunciar, pelo menos como suspensão de juizo, à ideia de que o teatro é ainda um meio de converter o índio e propor a homogeneidade da crença fora do espaço da representação.

Este exemplo crítico do início do século XX resume outras atitudes sobrevenientes de contrapor ao teatro missionário uma crítica à natureza da missão:

“Os trabalhos da catechese, foram iniciados, e, parallelamente, os da divulgação das nossas riquezas das minas auríferas, das pedras preciosas espalhadas pelo nosso opulento solo, o que foi tudo minudenciosamente esmerilhado pelos padres da Companhia, para informar de tudo ao seu Geral em Roma. Nos trabalhos da catechese, que custaram muito menos do que andam elles a apregoar para encarecer o seu serviço, julgaram os jesuítas accertado empregar a fórma theatral, lançando mão das suas grosseiras representações scenicas, para por meio delas impressionarem o animo infantil dos selvagens e disciplinarem a desordem moral dos povoadores, entre os quaes se encontrava gente da peior espécie e catadura. Só com Tomé de Souza tinham vindo mais de 400 degredados.

(…)

Em todas as composições dramáticas dos jesuítas predomina a fórma de sabbatina escolar; elles tem a audácia de dar corpo às mais vagas abstrações, e não possuindo o genio creador que inventa os symbolos, privativos dos primeiros períodos da vida da humanidade e das raças mais fecundas, atrevem-se a server-se do symbolismo mas cahem na mais chata e amaneirada allegoria.

(…)

Não contentes em matar o theatro clássico, os jesuítas introduziram a fórma dramática no Brasil, paiz primitivo, que ainda não estava nesse estado de espírito genial que leva às grandes creações epicas. Fizeram o contrasenso de implantar uma fórma privativa dos mais altos períodos da civilização, em um paiz que ia começar a repetir as suas lendas seculares. O que aconteceu? Ficou a literatura brasileira sem cunho de nacionalidade; andou sempre mendigando fórmas arcadicas já obsoletas, sem conhecer as ricas tradições que tinha em casa.”[8]

A letra varia, mas o mesmo espírito anima muitas críticas ao teatro jesuítico. A violência da imposição de uma determinada ideia provoca com frequência interpretações como a de Múcio da Paixão, que atribui os mais esquisitos ingredientes à dramaturgia da catequese, aparentemente como se tivesse se enganado de texto. O que o interessa aqui é a identificação do teatro jesuítico com os interesses metropolitanos. Enfim, indignação que o faz passar ao largo de um outro núcleo da interpretação crítica, que seria o próprio fazer teatral.

Da mesma forma os áulicos, salientando no teatro jesuítico o espírito de sacrifício, a devoção missionária. Atribuindo forçosamente ao literato Anchieta as mesmas virtudes atribuídas ao religioso: tão perfeitos são os textos dramáticos quanto as virtudes do autor, que o recomendam à canonização. A arte e a missão formam um todo. O que subsiste de interessante para a compreensão de manifestações teatrais posteriores é que essas análises, mais ou menos passionais, rodeiam o próprio acontecimento e mal disfarçam a persistência dos mesmos traços no teatro que se segue.

Com diferentes matizes, de época para época, o teatro repete o movimento de chegada do jesuíta, que é o movimento de querer, através do teatro, instaurar uma nova civilização. Não só ao teatro, como a toda cultura, atribui-se uma função. É possível e desejável processar, através do teatro, a criação de um novo estado em que o espectador, até então considerado na categoria dos não-iniciados, irmana-se ao homem de teatro, partilhando um saber que transforma o entendimento de si mesmo.

A catequese é a eleição, entre todas as possibilidades do teatro, da possibilidade da tribuna. Mas é sempre teatro e por isso, com toda a sua racionalidade, deve gestar magicamente uma nova consciência. E, a partir daí, um novo mundo, uma inédita organização da matéria apenas vislumbrada pela consciência do homem de teatro que momentaneamente ocupa essa tribuna. O caráter de invenção, e portanto de criação, da atividade artística transfere-se para o lugar onde essa arte se exerce. Nesse sentido é também um sonho de poder, não importa a forma autocrãtica ou anárquica da tese proposta. O que identifica esse autoritarismo é o fato de que o teatro se imagina como uma força de interferência capaz de abalar o cotidiano ao ponto de transformá-lo. Não apenas transformar ou agir sobre ideias, mas inventar um novo cotidiano.

A salvação da alma depende estritamente da mudança de hábitos e costumes. Essa mudança, por sua vez, supõe outras representações, outro universo simbólico para expressar novas formas de cotidiano. A arte não produz neste projeto outro imaginário, mas sim outra forma de cumprir a existência.

Como forma recuada, presidindo a gênese desse movimento, Anchieta é sempre chamado às falas para lembrar essa retórica do espectador ingênuo. Mas há outras falas contemporâneas que, sem mencionar a existência de um espectador ingênuo, lembram essa generosa megalomania. Generosas falas porque, vale a pena lembrar, são esses projetos limítrofes, que muitas vezes confundem a invenção com a divindade, que produzem não outro comportamento, mas ondas de choque no interior da própria linguagem onde se instalam para dominar. Esta, por exemplo, é uma frase de 1980:

“Não há luta possível entre o capital e a cultura: ou o capital mata a cultura ou a cultura transforma a sociedade, para que ela conheça a felicidade do trabalho, mais que do trabalho, da criação humana.”[9]

Quanto de fé é preciso para poder divisar no capital e na cultura duas entidades distintas em combate singular! Só a crença torna possível operar essa separação, como se uma das entidades se alicerçasse no mundo da matéria e a outra no Olimpo. Estaria na natureza da cultura, além de propor, transformar efetivamente a sociedade numa outra sociedade.

Mas na verdade é essa espécie de fé cega, embriagada pelo sonho de poder e obliterando, por isso mesmo, o reconhecimento dos sujeitos, que serve para começar algum movimento de troca na catequese. Quando Anchieta escolhe o teatro para instrumentalizar a catequese é porque a música sacra, a pregação e as orações não são suficientes. Além do poder de convicção o teatro pode seduzir. É o que é preciso, antes de mais nada, para tornar possível a congregação e a aquiescência. Todas as vezes que a nossa epiderme contemporânea se arrepiar com a ideia de um povo indígena abjurando a sua origem, seria bom lembrar, também, o modo como foram conduzidos a esse gesto. Lembrar também, como possibilidade nada desprezível, que a abjuração pode ser, para o índio, um gesto artístico enquanto é, para o jesuíta, um gesto verídico.

***

Melhor seria entrar nesse teatro, revirar-lhe a roupagem para descobrir nele mesmo, e não na sua circunstância, as razões de uma recusa da história, de uma permanência obstinada no mesmo ponto que é a sua própria verdade. Que o faz, desde então, alheio ao que o contraria e desejoso de assimilar a história ao seu objetivo. Transformar a Companhia de Jesus num posto avançado do colonialismo e seus membros em agentes imperialistas não esclarece historicamente (supondo-se aqui que a história fala ao presente) a permanência de uma mesma relação teatral ao longo do tempo.

Na tentativa de criar um código comum ao habitante da terra, o jesuíta interessa-se pela observação dos “usos e costumes dessa gente”, talvez sem apreender o sentido do que observa, mas certamente cioso e cativado pela forma como essas culturas se manifestam.

Onde as palavras são insuficientes é possível encontrar correspondências visuais, ainda que sejam analogias aparentes. A estrutura dos “recebimentos”, presente em todos os autos, é emprestada a um cerimonial comum a várias tribos. Aquele que vem de fora é saudado com lamentos pelas suas aflições da viagem, confortado com promessas de descanso e restabelecimento. O viajante narra as suas atribulações com maiores detalhes e une-se aos da taba para festejar a volta e iniciar a reintegração. Cerimônia de aproveitamento particularmente impor tante se lembrarmos que os índios, nessa época, estão sempre recebendo alguma coisa ou alguém: relíquias, autoridades eclesiásticas, colonos, autoridades civis, missionários e mercadorias.

O espetáculo seria melhor do que o púlpito ou a sala de aula, porque permite a estilização de ações do cotidiano do índio, assim como permite também a reprodução dos efeitos psíquicos de certas cerimônias sobre a vida coletiva.

Esperar alguém que vem de fora e que é preciso integrar à comunidade, viver com esse estranho os seus feitos e atribulações, introduzi-lo na vida da comunidade através da refeição, do cauim e dos cantos comuns. Ao fim da cerimônia, no domínio do ritual, a comunidade se enriquece com a experiência desse estranho e, enquanto o reabsorve, impede que a experiência de fora desorganize o seu acervo de tradições. É uma forma de incorporar o novo sem perder o domínio das situações inéditas.

É, sem dúvida, a cerimônia mais apropriada para transferir-se ao território da catequese. Evidentemente o auto teatral reproduz essa cerimônia apenas ao nível da sucessão de fatos procurando reproduzir o mecanismo psíquico que reassegura a absorção do novo como uma aquisição proveitosa. No teatro de Anchieta a narrativa é estruturada como sucessão (uma vez que não se trata de uma cerimônia) e o “estrangeiro” inverte sua posição: é ele que tem a missão de absorver a comunidade no seu discurso, que é sempre o último do espetáculo.

Ao final da última cena, a dança e o canto em que se unem atores e espectadores, é o apaziguamento teatral, embora não o seja da vida social. Os atores são amigos e conhecidos que “emprestam” o corpo e a voz à máscara da personagem.

Neste caso, a familiaridade reforça a verdade da cena, porque cria a ilusão de que o espetáculo é o primeiro produto comum, realizando a fusão dos homens que chegam do mar com os homens da terra. Não se distingue com clareza, através dessa reprodução de formas emprestadas ao índio, quem se dirige a quem. Num olhar desavisado não se sabe qual dos dois interlocutores em cena tem a iniciativa de propor outra civilização. Colocar o índio em cena, fazer dele o ator do teatro e o autor aparente da narrativa é certamente mais eficaz do que evidenciar a sua situação de paciente de uma operação pedagógica.

O teatro é também necessário porque, onde as palavras não bastam, é possível encontrar correspondências visuais. O empenho em aprender a língua geral não evita completamente a dificuldade em criar numa língua nova os artifícios que a retórica da conversão exige. Para atingir a consciência do catecúmeno é indispensável ser ao mesmo tempo insinuante e incisivo, saber envolver e expor com clareza os vetores da moralidade cristã. A sedução dos sentidos, justamente equilibrada, não excederá jamais a persuasão. como boa forma de compreender os princípios teológicos.

A forma do auto pode perfeitamente abrigar esse equilíbrio, intercalando o fascínio da narrativa atualizada com as falas que esclarecem a doutrina para o espectador. Sem dúvida a combinação desses dois efeitos, incorporando imagens próprias da cultura do espectador, pode atuar com segurança muito maior do que um pregador em seu púlpito.

Dentro dos objetivos da catequese o teatro não é apenas um meio adequado, mas é o melhor instrumento disponível para a tarefa no momento. E só nesse sentido é uma escolha.

Não se pode atribuir nem a Anchieta nem a seu público uma necessidade de teatro, pelo menos da forma teatral representada pelos autos. Não se promovem espetáculos porque uma comunidade, em um determinado momento, delimitou um espaço para representar seu imaginário, mas sim porque há, atrás da representação, uma instituição e missionários com o objetivo de atuar culturalmente. O que acontece portanto é uma intervenção deliberada, transpondo formas da cultura indígena para outro tecido. E nesse processo ocorre que as formas culturais de que os missionários fazem uso passam a constituir vivências poderosas para os próprios jesuítas.

Há também, logicamente, pontos naturais de contato. Como, por exemplo, a fascinação pelo cerimonial, tão grata à Igreja quanto às tribos indígenas. Os rituais católicos familiarizam o jesuíta com o extraordinário poder de sedução da teatralidade. Pode-se também chegar ao divino através da repleção dos sentidos, uma repleção que transcende a sensualidade e faz das antenas do corpo os caminhos do espírito. (Ao mesmo tempo que Anchieta chega ao Brasil, em Lisboa, a Companhia ensaia no paço uma tentativa de retomar ao mundo pro fano a iniciativa da produção teatral e oferecer, em praça pública, espetáculos edificantes. Anacronismo, porque o teatro já estava irreme diavelmente laicizado. Enfim, há um gesto esboçado para retomar o domínio em um território negligenciado.)

É perfeitamente possível a coexistência do convencimento com o caráter propiciatório da cerimônia. No teatro o encantamento é a tradução profana da experiência mística da cerimônia cristã.

É o que permite a Anchieta, como autor e encenador, trafegar com desenvoltura por experiências puramente estéticas, exercendo no espetáculo a sua percepção individualizada do que é belo na cultura indígena e do prazer que o índio pode ter participando do espetáculo. Em linhas gerais a organização desse espetáculo é muito simples se considerarmos a sua estrutura: a repetição de semelhanças sensíveis entre duas formas culturais e o preenchimento das formas estranhas (consideradas aqui como formas vazias) por uma estratégia de substituições. Entretanto, até onde é possível ir sem comprometer a função pedagógica do teatro, o teatro de catequese deixa-se também enfeitar para poder atuar sobre essa comunidade com força paralela à das cerimônias que precedem o acontecimento teatral promovido pelos missionários.

“Eu, do rio Paraty,

venho ver a Mãe de Deus,

pintados os membros meus

em alegre frenesi.

Meu coração exultou

na glória da Mãe do céu:

tão exultante como eu

meu Pai Deus se ornamentou.

Quero achegar bem as celhas

para olhar seu esplendor

findemos em seu louvor

com a alegria das velhas.”[10]

Os membros pintados e o “frenesi” da experiência religiosa são formas tanto da vida social da comunidade anterior ao europeu, como imagens deliberadamente introduzidas no espetáculo (visuais e literárias) para promover mais uma vez a sensação de beleza e encantamento que deve constituir não só a catequese como o próprio espetáculo. A função da beleza é certamente pensada como utilitária, mas não apenas como tal. Os versos tematizam essa capacidade mobilizadora:

“Esta igreja nos arrasa

com pinturas que enfeitiçam

Por esta alma, que se abrasa,

deixei ontem minha casa

para aqui ouvir missa.”[11]

Pode-se perfeitamente imaginar, pela clareza dos versos, o cuidado com a produção literária, com a construção do aparato cênico que, considerando a especificidade dos recursos materiais disponíveis, deve ser sempre o mais belo possível. Talvez mais sedutor, como momento profano da comunidade, do que os ornamentos que se alojam nos novos templos. A preocupação com a beleza faz certamente parte do caráter publicitário do espetáculo.

Mas é essa estupefação dos sentidos, essa vontade de “arrasar” o espectador estranho cativando-o pela beleza que propicia o nascimento de uma outra coisa que não é só a função do convencimento, mas outro plano mais instável e ambíguo de invenção artística. Nesse momento o jesuíta propõe e se revela ele mesmo fascinado por imagens que não pertencem à sua experiência europeia. É por essa brecha que penetram no espetáculo as danças, a métrica e a melodia da língua geral, o periquito flautista, vários demônios jocosos, velhas que mastigam milho para fermentá-lo e os membros pintados. Entram em cena a nudez e os dosséis feitos de velas de navios. A iconografia, principalmente, é tão estranha ao passado europeu que um religioso como o Bispo Sardinha, deslocado da catequese, não pode senão horrorizar-se com o comportamento de religiosos que se entregam a semelhantes desvarios. É preciso ter vivido e pensado o contato entre duas formas culturais tão diferentes para ficar sensível, como Anchieta, a outras formas de representação do belo.

Do porto até o adro, a representação teatral é entrecortada por sinais da cultura do índio, por imagens recorrentes que o jesuíta pode notar pela sua aparência exterior e pela incidência como uma ponte para chegar a um entendimento onde a mensagem possa prevalecer.

Nesse caminho o espetáculo erige-se como uma terceira coisa que não é a mensagem nem a admissão de legitimidade da cultura indígena. Há um terceiro termo, invisível da superfície, que é a representação do confronto entre duas formas culturais e que produz, não obstante os seus antagonismos, um momento teatral capaz de harmonizar jesuítas e índios no mesmo divertimento. É um produto comum.

***

Em cena, desempenhando a função de ator está o índio. Lado a lado, na construção de uma obra comum, estão o jesuíta e o colono. Nesse momento são, pelo menos nesse momento, todos agentes e sujeitos da catequese. A obra cênica é o mais completo momento de interação, onde as relações e intenções de domínio se esmaecem diante do fato exigente da criação artística. Todos compõem e inventam o espetáculo, perfazendo funções significativas que nada têm a ver com o objetivo social da catequese. Seria temeroso avançar mais por esse campo supondo como cada um desses atores, considerando suas diferentes origens, percebe como se estrutura a sua própria atuação e a atuação do seu companheiro de cena.

A crítica ao teatro de catequese, se quiser avançar além do seu objeto, precisa considerar também que o teatro que se dirige a um estranho, com um desígnio missionário, não escapa ele mesmo às determinações e às possibilidades do mundo do teatro. Contrapor ao desideratum da missão uma outra função para o teatro pode resultar na mesma operação com substituição do valor dos termos.

No teatro missionário é impossível limitar o efeito da comunicação ao exercício sobre a consciência do espectador. A presença de um espectador estranho força-o a trafegar pelo universo da linguagem, antes mesmo de desencadear uma ação. É preciso, em nome da eficácia, descobrir o código comum entre o missionário e o índio. E nessa tarefa de construir termos significativos e comuns é indispensável encontrar palavras, sons, imagens que possam indicar o símbolo que o jesuíta pretende e, ambiguamente, produzir uma ressonância antiga e familiar no espectador.

O imediatismo europeu se introduz também na memória da cultura do índio e produz uma linguagem onde os sinais podem ter sentido duplo porque guardam a sua forma de origem.

É portanto no âmbito da representação que esse povo, que “pertence à Igreja”,[12] se insere nos interstícios da instituição para modificar-lhe a fisionomia e, gradualmente, o projeto original da instituição. Por essa fresta também ele dá a resposta possível à violência cultural da catequese, produzindo uma invenção onde o movimento do jesuíta está claramente representado mas onde as forças que se contrapõem ao seu trabalho nunca estão claramente representadas: estão sugeridas, multiformes, consideradas na sua sedução formal, vislumbradas apenas. Mas o que se opõe à catequese está incorporado à linguagem do espetáculo, integrando-o sem nomear-se.

E é por aí que o teatro extrapola a missão que lhe foi atribuída. Instrui, mas faz também uma outra coisa que é a dramatização cenicamente equilibrada de todas as forças presentes no momento da sua confecção.

Por natureza, o teatro não se resume à função de instrumento e acaba por extravasar-se em acontecimento coletivo, em manifestação das semelhanças mais caras e das diferenças mais irreconciliáveis do corpo social que o informa.

Há um trabalho sobre a consciência do espectador, mas há ainda a sedução necessária introduzida pelas penas coloridas, pelos membros pintados, pelas personagens fantásticas sem as quais, nesse momento, seria impossível a constituição de uma linguagem comum.

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Este é outro traço que marca, através do tempo, os movimentos teatrais imbuídos de um caráter missionário.

Outras práticas teatrais, dedicadas ao trabalho de “conscientização” incorporam pouco a pouco a interpretação que o acontecimento teatral provoca. Sua linguagem, no esforço de ser comum, deixa-se seduzir por sinais da cultura que quer penetrar.

Vale a pena observar que nos teatros “para o povo” o vôo (muitas vezes raso) sobre a cultura popular traz para o palco imagens que são tomadas como sinais descontínuos, pretextos para iniciar um diálogo. Entretanto são sinais que adquirem um estatuto próprio, que lembram a existência de uma outra ordem moral material, de uma temporalidade que não está cercada de ponta a ponta pelo passado e pelo futuro. São elementos que na sua aparente descontinuidade, na sua ambiguidade, na sua recusa de explicar a origem, acabam irredutiveis à explicação que o missionário previu para a totalidade do acontecimento teatral. O caráter indomável das contribuições extraídas da cultura do espectador estranho é uma fonte de angústia e sedução para o missionário. Só depois da intromissão do teatro esses elementos podem ser percebidos como um perigo e uma riqueza.

***

A historiografia oferece um sem número de hipóteses, mais ou menos plausíveis, mais ou menos fundamentadas para justificar a extinção da catequese. Pode-se adivinhar, inclusive, perscrutando a história com olhos imaginosos, a espantosa catástrofe que se desenrola nos bastidores dessas encenações teatrais.

Em Reritiba, com o concurso dos autos, dos cantos e das cerimônias religiosas, Anchieta chegou a congregar três mil índios de diferentes nações. Muitos atraídos pelo fascínio desses novos espetáculos, outros arrastados por expedições missionárias.

Três mil pessoas arrancadas do seu equilíbrio natural de pequenas comunidades, dizimadas aos poucos pelo apresamento dos colonos, pelas epidemias que grassavam ao primeiro contato com os europeus, pela fome provocada pela desorganização de meios tradicionais de subsistência. Três mil atores e espectadores encenando imensas procissões terminais, do porto ao adro, do adro ao templo. Sem dúvida uma das mais custosas produções teatrais de que se tem notícia. Lado a lado há o espetáculo (que deslumbra Fernão Cardim) orquestrado por um homem que, além de uma inequívoca paixão religiosa, sabe ser artista. Os primeiros cantos do “pelote domingueiro” no Auto da Pregação Universal e o último auto (Na Visitação de Santa Isabel) são peças de tantos recursos que por dois séculos nada se escreve por aqui que atinja tais alturas e delicadezas. É exatamente o caráter “interessado” dessas peças que lhes permite serem mais sutis e mais sinceras do que empresas literárias destinadas meramente ao cultivo de um chamalote social.

No entanto a metáfora de Anchieta é a do malogro. Quis alguma coisa com paixão, boa fé e naturalmente uma obliteração da crítica.

Empregou para isso considerável dose de engenho e arte. Entretanto seu fim explícito, integrar o índio à civilização cristã, só foi atingido num exercício de ironia: o aniquilamento físico ou cultural dos seus bons selvagens.

A lamentar o genocídio e a lamentar (por que não?) a tragédia do missionário “ingênuo”. A análise sociológica das forças em jogo não invalida esse sentimento de frustração, ou a mera contemplação de um drama humano congelado na história. O fato é que o missionário, à sua revelia, vem colado à proa do invasor. Seu destino histórico é ser ponta de lança de colonização, arraial de apresamento.

A despeito desse melancólico final verídico, o teatro de Anchieta não é igual aos resultados da sua missão apostólica. Ele é também a metáfora de uma interação possível no plano do desejo, ainda que impossível no plano da história. E como transfiguração desse desejo de irmandade, de totalidade, ele nos interessa ainda muitíssimo. Assim como nos interessa pelo seu componente de quixotismo inconsciente e prepotente.

Quando o acontecimento teatral é penetrado pelo seu destinatário ele atua também sobre o missionário, completando um ciclo de sedução. Não é uma reta endereçada ao índio, mas um círculo. É o tipo de documento remanescente, ou o ângulo de quem narra esse tipo de teatro, que torna impossível divisar a pororoca cultural que ele encerra. Há um erro de enfoque que só permite enxergar esse teatro como algo que é dado a ver, apenas pelo ângulo do espetáculo. Na verdade trata-se de um acontecimento gestado com relativa lentidão (através de várias encenações) por uma civilização que herdamos e por outra que colocamos com lápis e palavras à margem da história.

No exato momento em que o teatro é percebido como perigo e riqueza, ele sai da narrativa histórica.

Daí para a frente só é possível acompanhar o contorno do teatro jesuítico estritamente enquanto ligado ao projeto colonial.

A avaliação desse teatro é sempre determinada ideologicamente pela crítica ao projeto de dominação da catequese. Somente o texto dramático e a narrativa do espectador contemporâneo (comprometida através da simpatia pelos fins) permitem supor uma densidade maior neste teatro do que a da fala do púlpito.

Igualmente o entendimento de uma determinada espécie de teatro só constitui legado transmissível para as gerações futuras como extensão de um projeto político e social do qual o teatro é um meio. O que significa esse projeto e principalmente a realidade que adquire quando, a despeito dos seus organizadores, se torna uma presença mais consistente do que um instrumento. Sob esse aspecto o teatro é omitido da narrativa histórica, porque não cabe na linguagem do próprio missionário que o inventa. Mas, no caso do teatro jesuítico, a impressão dos seus espectadores e os textos dramáticos de Anchieta desenham, ainda que imperfeitamente, uma forma ficcional tão sugestiva quanto instrutiva, tão atraente para os sentidos quanto para a razão.

***

Sempre como metáfora Anchieta acoberta outras “viradas” históricas do nosso teatro. Nos momentos em que o teatro se viu compelido a repensar-se e propor para si mesmo um novo papel a figura da catequese sobrepôs-se a outras funções possíveis.

O comum das poéticas teatrais é o homem de teatro que dirige o olhar para um estranho, alguém fora da sua esfera de convivência, um espectador que é supostamente o protagonista oculto de todas as narrativas. Para este espectador será preciso ainda estender a palavra redentora da cena e revelar o seu protagonismo histórico e ficcional. Emprestando ao teatro, naturalmente, o estatuto de porta-voz.

Seria exaustivo e provavelmente tedioso alinhavar aqui todas as poéticas que atribuem ao teatro a missão de falar ao povo, ao povo em geral, aos proletários, aos camponeses e ainda uma vez aos índios. Como se falassem de agrupamentos humanos inconscientes da sua especificidade étnica ou social, selvagens a quem Deus concedeu uma alma mas que, desgraçadamente, não sabem que a possuem. Marcando o tempo pelo fato, é possível localizar esse tipo de discurso nas reflexões dos jesuítas e seguir o mesmo raciocínio através da Independência, da República, do Estado Novo e etc., até os encontros entre artistas de teatro nos seus Sindicatos, em 1981.

A esse bom selvagem o teatro se dirige para redimi-lo da ignorância, para atendê-lo no que precisa e não sabe que precisa, no que pode fazer mas ainda não pode fazer porque ninguém descortinou suas potencialidades. Muitas vezes o teatro se dirigiu a esse espectador a fim de narrá-lo minuciosamente para si mesmo, considerando que esse selvagem não poderia ver-se sem o espelho do missionário.

As distinções de procedimento e ideologia entre diversos tipos de atividade catequética está suficientemente clara em textos que enunciam para oteatro uma função primordial, no entender desses grupos ou artistas.

Não interessa aqui distinguir as sutilezas entre os diferentes projetos, mas assinalar a pertinácia de dois movimentos comuns a, todos esses grupos: (falar à consciência e generalizar “a priori” a experiência do espectador estranho). Dessa insistência nas declarações de fé de diferentes períodos, resulta, entretanto, um silêncio igualmente insistente sobre o retorno que o contato com o espectador tem sobre a elaboração de propostas teóricas. Aparentemente o compromisso com a retórica já esgota uma aspiração de teatralidade. Na prática do teatro outras formas ret6ricas devem repercutir.

O tom solene e a natureza normativa dessa retórica estão quase exemplarmente representados neste texto, pinçado do Primeiro Congresso Brasileiro de Teatro, 1951. Trata-se de uma tese de Maria Rosa Moreira Ribeiro, aprovada pela plenária do Congresso:

“Prestemos atenção ao judicioso pensamento de Agamenon Magalhães cristalizado nesta frase: O teatro é uma escola que transmite às massas populares impressões que perduram e se infiltram no subconsciente e vão influir na conduta social e política de milhares de espectadores.

Disse Victor Hugo: O teatro é uma escola.

Disse Beaumarchais: O teatro é uma tribuna.

(…)

… os males do nosso teatro são nossos, procedem de vícios de origens, portanto, de fundo hereditário; refletem os anseios de uma nacionalidade em formação; e o mercúrio do termômetro ainda não pode subir satisfatoriamente, porque a cultura foi até pouco tempo em nosso país o privilégio das elites; os analfabetos ainda pululam aos milhares; e mesmo um cultura média ainda não atingiu o seio das massas proletárias, as mais densas, e, portanto, as mais representativas das nacionalidades.”[13]

Muito bem. Uma vez constatada a infância da nação e a infância do cidadão ou da massa inculta, o teatro se afigura um meio, tribuna, escola. Evidentemente alguém pontificará dessa cátedra:

“Será necessário que o Governo difunda a cultura teatral como difunde a instrução: a Prefeitura mantém escolas primárias, secundárias e técnico-profissionais; o ensino particular, severamente fiscalizado, coopera enormemente na difusão educativa. É preciso que cada escola abrigue em seu seio um embrião de Teatro. Precisamos de Teatro a mãos cheias, como sol, como água, como pão! Precisamos urgentemente do teatro de cunho popular, baratíssimo, ou mesmo de graça, na cidade, nas zonas suburbanas e rurais e até nos morros…

(…)

Realizemos o teatro da democracia, o teatro popular que vai constituir o pão espiritual do nosso trabalhador pouco instruído ou quiçã analfabeto, que não pode cultivar a leitura, não compreende a música elevada, não reconhece o valor artístico dos verdadeiros quadros e esculturas mas compreende e gosta do teatro porque ele é a representação da vida; e o ignorante sente que existe, palpita e vibra ante as representações emocionais da vida que ele vive.”[14]

Os termos podem se reportar a Anchieta, a Gonçalves de Magalhães e muito proximamente a Castro Alves. Sem dúvida a tonalidade especialmente crua deste texto, afirmando a indigência dos seus almejados espectadores (neste caso nem alma possuem, mas sentidos), pode ser atribuída ao meio verbal circulante do período Vargas. Mas substancialmente é o espectro da catequese que anima e justifica o prazer que inclusive a autora possa dedicar à exegese da atividade teatral. Há entretanto, preparando a década de 50, uma sugestão de deslocamento para o sujeito que ocupa a tribuna teatral, pelo menos em algumas falas desse Congresso. Vejamos esta tese de Feijó Bittencourt, colocando a autoridade do saber sobre a autoridade do Estado:

“O teatro do estudante (eis no que é preciso insistir) deve ser próprio para o fim a que se propõe, havendo pois uma diferença grande entre ele e o teatro profissional. O teatro do estudante não se presta para muita repetição e deve ficar como sendo a intercorrência (que aliás pode deixar lembrança), mas intercorrência que agrada ver uma ou duas vezes no ano. Será teatro de exibição em público, mas teatro sério: porque assim é que ele educa pondo o seu ator em contato com o público, familiarizando-se com ele, aprontando, para quem representa, grande lance, e levando ao espectador o que interessa ouvir.

É um teatro, por exemplo, para exibições em bairros operários, uma vez que haja edifícios de espetáculo com que divertir o povo, e uma vez que os governos compreendam que por todos os meios devem educar o povo, posto que não basta a escola primária.

Nada é mais conveniente que utilizar o estudante nessa educação, pondo-o em contacto com aquele em quem deve influir com a cultura superior que recebe.

Haja concertos sinfônicos de acesso livre ao povo, e também um teatro que ao povo leve, da maneira impressionante que é o espetáculo, algumas ideias próprias para chegarem até o operário, ao em vez do governo sempre fazer crer que ele pensa como pensa o operário, e isto por conveniência política.”[15]

Finalmente há aqui uma fala do senhor Roberval Pompílio Nogueira, esta do Segundo Congresso Brasileiro de Teatro, em 1953. Trata-se de um representante autorizado do Ministério da Agricultura, com a qualificação de técnico em educação rural. Temos aqui portanto um autêntico representante do Estado opinando diretamente sobre a natureza e a função do teatro. As opiniões emitidas resumem com suficiência as razões por que o teatro é melhor, rende mais na espinhosa tarefa de conduzir as massas populares a integrar-se na modernidade da nação. Um legítimo discurso de pastor:

“O Ministério da Agricultura, reconhecendo que o problema de recuperação fixação das massas rurais não é apenas um problema de técnica de produção, mas também de ajustamento do homem ao seu meio, dando-lhe consciência de si mesmo e do grupo social a que pertence, criou para isso uma série de encargos que visam a educação dessas populações. Dentre as tarefas educacionais rurais surge como elemento de vulto o cultivo das artes, revivendo, revigorando e aperfeiçoando aquelas que são características de cada região campesina, bem como introduzindo novas modalidades de deliciar, elevando o espírito.

O Teatro não podia deixar de figurar como fator importante nas nossas campanhas de criar um bem-estar para a família rurícola, pois sabendo-se que no estado atual apenas cerca de 20% da população rural brasileira dispõe de corrente elétrica, está por isso mesmo privada dos dois agentes educativos recreativos – o cinema e o rádio – enquanto o teatro, podendo dispensar o auxílio da eletricidade, permite ser realizado com a frequência que o apuramento do grupo rural exigir e mesmo por não ficar dependendo de filmes e irradiações, coisas que vêm da cidade.

Mais ainda, o teatro no meio rural supera o cinema e o rádio como elemento educativo, por provocar a mobilização de vultosa parcela do grupo social para realizá-lo, criando in loco autores, atores, cenógrafos, compositores, músicos, mecânicos de teatro, etc., oferecendo outrossim, aulas de boa linguagem, sugestões para melhor arrumação de ambientes domésticos quando das cenas de interiores, estimulação ao aprimoramento das artes domésticas com a apresentação no palco de móveis, trabalhos de pano e agulha, pinturas e outros objetos de arte pertencentes a elementos da comunidade e possibilidades de encenar as lendas, tradições e fatos históricos da região, sendo assim um processo educativo que pode se apresentar com cor local, o que não é praticamente possível se obter com o cinema.”[16]

Outro ponto comum na fala desses graves conferencistas citados é o seu interlocutor. São pessoas que se dirigem ao Estado (quando não falam pelo Estado), responsabilizando-o pela criação de escolas de teatro na zona rural, edifícios teatrais nos subúrbios mais pobres, espetáculos no interior das favelas…

É comum a afirmação da necessidade de “elevação” do rurícola, do operário ou do índio, compensando, através da eficiência da pedagogia, a distância que os separa da modernidade.

Trazer ou devolver alguma coisa aos que não chegaram ao país das letras, da casa bem arrumada, dos campos produtivos. É o teatro que vai a algum lugar por força de uma intenção: ao campo, aos bairros operários. Neste caso, com a nítida marca da acomodação. Manter o homem do campo no campo, evitando que o subúrbio se enderece ao centro. Imaginando-se em qualquer caso como porta-voz de um direito alienado ao seu espectador. Ou então definindo-se como tal.

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Essa fala de remissão, pontualmente distribuída por quatro séculos, tem muitos pontos comuns com poéticas que nascem de projetos estéticos, sociais, políticos e religiosos diametralmente opostos (elucidados neste trabalho pelos textos de José Arrabal). E é por isso que é preciso considerar uma vez ainda o teatro que resulta dessa pedagogia, não atràvés do discurso proponente (que se repete), mas através da forma como se faz uma prática que o discurso não pode comportar.

O teatro de catequese, que Anchieta fez e que outros fizeram nos séculos seguintes, constituiu, historicamente, o veio por onde a cena se atualiza e incorpora a modernidade. Seguindo essa trilha há uma infinidade de grupos teatrais que se deslocam do seu centro de formação cultural para dirigir-se a camponeses, proletários, escolares, índios, ou qualquer faixa da população excêntrica em relação a esse ponto de origem.

Não há dúvida de que a obsessão de violar as fronteiras econômicas, geográficas e sociais de sua classe é, para um artista, uma obsessão da síntese. Mas é igualmente nítido que nesse movimento de procurar um estranho, o grupo de teatro leva alguma coisa que deve tomar possível a identidade entre sua verdade e a necessidade atribuída a esse público. No mais das vezes o desejo de síntese é representado por uma mistificação, que acena com uma igualdade futura entre o artista e seu público. Um futuro em que, como recompensa, o público atingirá a clarividência do artista.

Todas as vezes que o teatro apresenta corretamente a sua lição, o estandarte que carrega permanece como tal, intocado pelo contato com estranhos que partilham desse acontecimento sem poder tomar posse da bandeira. Um projeto pedagógico não pode admitir que duas verdades ocupem o mesmo lugar no espaço.

Em face da extrema singularidade do acontecimento teatral, o discurso que é uma forma completa, exato invólucro de um projeto social e político, é um discurso que não prevê a sua subversão. Que não comporta, especialmente, a ambiguidade, a complexidade, as múltiplas incertezas e verdades do seu público.

Na verdade o teatro da catequese pode dar certo para si mesmo, pode enriquecer-se com o que vê e experimenta, pode, enfim, provocar uma renovação da cena de tal forma que alimente a reflexão e a produção cultural no mesmo ponto em que esse teatro foi concebido. Entretanto o discurso da catequese com as suas verdades não deve ser atravessado, virado pelo avesso, apropriado pela expansão da teatralidade do catecúmeno.

A intenção de converter é um suporte demasiadamente rígido para desfazer-se no encontro teatral. Por onde as transformações se inserem pouco a pouco é ao nível do aperfeiçoamento desse instrumento básico, da incorporação gradual dos gestos, das imagens, da forma que esse espectador estranho dá ao seu cotidiano. Isso realmente penetra a linguagem da catequese e renova-a na sua origem. Mas é preciso considerar também que essa renovação é acobertada por uma atividade reflexiva que reduz imagens a conceitos, que aproveita essas contribuições como figuras ilustrativas de uma mensagem.

Há tantos momentos e tantos exemplos claros desse processo que basta citar alguns para compreender o que seria essa renovação que não subverte: a dramaturgia abolicionista dos românticos, os textos dramáticos produzidos durante os anos de vigência do teatro de Arena, os operários e nordestinos que povoaram o palco por mais de vinte anos Novas figuras entrando em cena para narrar a outros operários e nordestinos quem são e como vivem. E, sobretudo, como deverão viver para conseguir a harmonia entre essas criaturas de ficção e seu autor.

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Ainda exemplarmente, porque há outros movimentos em curso, Anchieta pode ser invocado para referir-se às Comunidades Eclesiais de Base. Instaladas, provavelmente, no espaço cultural mais promissor, onde estão em gestação inúmeras formas de produção artística ainda desvinculadas de um padrão imediato de consumo. É aí que a presença da catequese, renovada.em seus conceitos, continua forte. Uma catequese que, com a sua versão renovada da conversão, provoca expansões tão ricas quanto perigosas. Coisas de forma estranha, aparentemente descontinuas, que falam de outro tempo e de outras aspirações.

Ao lado das CEBs, em salas pequenas e remotas, começa a aparecer um teatro que pauta sua construção por outros meios de comunicação, como a televisão e o cinema e que frequentemente representa a dicotomia circulante entre patrões e empregados, opressores e oprimidos.

Há certamente outras coisas nesse teatro além dessas grosseiramente visíveis a olho nu. Aparentemente ele é mais primitivo do que a música, a literatura e o artesanato dessas mesmas comunidades. Provavelmente é o início de uma atividade alimentada pelos grupos teatrais que circulam entre o centro e a periferia das grandes cidades. Cercado pelas CEBs, pelo teatro “para o povo” e pela televisão, o teatro dessas salas tem traços de todos esses interesses e, ainda assim, um desejo de não deixar de ser teatro para consumir-se nos objetivos dos seus instrutores. Ou seja, esses elencos querem mesmo fazer teatro, e não apenas utilizar o teatro para reviver a televisão, concretizar o paraiso socialista ou harmonizar as diferenças sociais.

É um teatro que se processa à sombra de vários movimentos de catequese, nucleado principalmente pela força centrífuga da Igreja. De uma certa forma é subsidiário das verdades das CEBs, mas não é entretanto um agente da catequese. Seus atores e dramaturgos ainda podem ser considerados na categoria de catecúmenos.

Quem está no palco tateia por vontade própria os instrumentos da cena, movido mais pela vontade de representação do que pelo desejo de dirigir o diálogo teatral a um fim determinado.

Ao redor desse espaço cênico movimentam-se intensamente grupos de discussão de problemas da comunidade, organizações para reivindicação e autodefesa assim como grupos de estudos religiosos. Há um intenso movimento cultural e o teatro é apenas um desdobramento, sem constituir a via privilegiada de expressão dessa comunidade.

Enquanto esse teatro não for assimilado por um ou outro grupo de catequese, poderá constituir um interlocutor para a cena. É um momento especialmente precioso para que se deixe de pensar nele. Se esses ensaios bruxuleantes forem engolidos pela catequese, se forem transformados num simples instrumento por força do movimento circundante, não se pode aí esperar desse teatro nada mais do que a pedagogia seca e autoritária que já viceja no Departamento Cutural dos Sindicatos.

No máximo o teatro assimilado será um teatro de reforço, que entusiasmará seu público nas datas certas da movimentação social. Mas não poderá intuir, não criará por si mesmo soluções originais e, principalmente, fará a assepsia do que não for pertinente aos seus fins imediatos.

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O espaço teatral que se desenha agora (todos sabemos, mas a Igreja soube antes) é o espaço das pequenas comunidades, onde a visibilidade da cena é o contraponto dos meios de comunicação de massa.

“Aqui estou eu proclamando que a nossa época, por causa da alienação dos grandes meios, devia criar toda forma possivel de comunicação pequena, de grupos. Toda forma possível dentro da cidade. Nós incentivamos nossas comunidades, por menores que sejam, a terem seus boletins, seus grupos de comunicação, estes estão nascendo, estão pululando, estão nascendo da terra. Eu acho que todo mundo devia fazer essa propaganda. Que todo mundo tivesse pequenos meios de comunicação. O ar é um pouco denso demais para se comunicar, e esses canais passam pelo ar, é isso.”[17]

Nessas pequenas salas, onde mal cabem duzentas pessoas, em galpões, dentro das igrejas, nas pequenas clareiras dos grandes centros urbanos onde a ocupação do terreno é feita de forma a não propiciar o encontro, o teatro valoriza exatamente a possibilidade do encontro, do contato interpessoal. Existe para retomar o fundamento da proximi dade entre o espaço sagrado (o da representação) e o profano (o do espectador).[18]

Comparada ao que domina fora da sala, a comunicação possível é o cicio, o murmúrio, a intimidade de um acontecimento inter pares. Nada a ver com as procissões, com os bailes, com as grandes festas nos estádios em dias de futebol ou de movimentos trabalhistas.

Por isso mesmo, pela sua escala diminuta, é difícil aprender a observar com cuidado e a respeitar a potencialidade dessa miniatura no momento em que os discursos paralelos representam uma sociedade de massas com problemas e soluções mapeados em escala gigantesca. Estreitando os olhos daria para perceber que essa é uma expe riência cultural interessante porque não se dirige a um estranho, mas a um semelhante. Embora não se saiba o que pode resultar daí, para quem e quando, é um teatro que tem todo direito a desenvolver-se com rumos próprios. Se for a mesma coisa ainda assim vale perguntar a mesma coisa para quem?

É evidente que não há tal coisa como um teatro livre de influências. E certamente a influência cultural mais disseminada é exatamente a que tem a força de produzir situações gregárias; a atuação das Comunidades Eclesiais de Base. A dimensão está perfeitamente configurada nesta fala:

“Em princípio o povo não pode ser atingido de maneira cristã por massa, né? É pela mãe, é pelo pai, é por um amigo, é por uma professora, não é? Pode ser até que seja atingido por um padre, mas é em geral por aqueles que estão próximos: o jovem atinge o jovem, o profissional atinge outro profissional porque troca ideias.”[19]

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Esse teatro que reproduz com timidez o boca-a-boca das pequenas comunidades em imensos bairros urbanos não pode participar de projetos ambiciosos. Por enquanto não pretende muito mais do que expressar-se dentro da comunidade, aproveitando o circulo comunitário que a Igreja ajuda a formar dentro desses bairros.

Seria preciso olhar com olhos estranhos para extrair dessa manifestação cultural alguma coisa mais do que a expressão. E o olhar estranho, neste caso, não pode inventar para o teatro alguma coisa que ele não se propõe. As interpretações fantasiosas em geral levam ao primeiro gesto de apropriação e à primeira tentativa de aplainar a diferença.

Emprestar a esse teatro intenções ou instrumentos que ele não tem serã uma maneira de desfigurar-lhe a face (a diferença que ele expressa é realmente temivel). Outro risco é o da inutilidade: a ilusão de “transferir ao povo os meios de produção do teatro”. Os meios de produção deste teatro que herdamos dos gregos são meios de produção deste teatro. Servem, aliás mal, ao que queremos fazer.

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Da perspectiva de quem olha estas salas precárias e remotas com um olhar de esperança (e o observador aqui está situado no marco zero), é evidente que existe um fluxo de ir e vir entre o marco zero e a fimbria da cidade.

Para os herdeiros do teatro que a historiografia registra não há outro olhar possível a não ser olhar de fora.

Por isso mesmo, pela inevitabilidade dessa exclusão e desse interesse (porque é sempre lá que o teatro se renova) é preciso pensar qualquer movimento de aproximação como um diálogo interior do teatro; como um movimento cultural. Sem a pretensão de transformar o que lá está, embora conservando a pretensão de restaurar as forças.

O fato é que esse teatro estranho, feito por outra classe social e em outro espaço da geografia urbana, requisita o que é indispensável ao seu próprio desenvolvimento. Assim como empresta da televisão ou do jornal imagens e frases que considera pertinentes ou simplesmente belas. Da mesma forma esse teatro se apropria das especificidades da linguagem teatral, extraindo dela o que pode encontrar e utilizar imediatamente. Se for possível aos missionários da Igreja e dos partidos políticos se colocarem na posição de simples espectadores desse teatro é provável que sejam agraciados com o perigo e a riqueza de outra forma de saber. Entretanto, resistir ao autoritarismo não tem sido tradicionalmente uma virtude desses dois tipos de missionário.

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A ninguém é dado saber se esse teatro é melhor ou pior do que outro. Não se trata portanto de deixá-lo ser para descobrir qual é a melhor linguagem para comunicar-se com esses atores e esse público. Trata-se de permitir a emergência de outros sinais que falam de outra proposta política e outra religiosidade. A expressão, dentro desse circuito íntimo da comunidade, é simultaneamente uma constituição.

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Qualquer esforço de traduzir, cercar e interpretar o acontecimento teatral como mero sintoma de alguma coisa mais importante do que esse encontro pode contribuir para esvaziar a relação da cena com o espectador. O teatro de periferia, assim como o teatro de mamulengo dos nordestinos ou outras formas teatrais excêntricas, tem, antes de mais nada, a aspiração de preencher uma vontade de fazer e contemplar teatro. Outras coisas pouco a pouco a isso se acrescentam.

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Sobre esse teatro o observador postado no marco zero poderá fazer discursos mais ou menos interessantes. Discursos que muitas vezes contornam o tédio e a dificuldade em perceber todas as características de um determinado acontecimento teatral. De qualquer forma esse discurso deve servir para si e para os seus. Não pode ter a pretensão de dar ao teatro de um estranho a linguagem e o objetivo da sua esfera de desejo e conhecimento.

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O destino, o objetivo, a fisionomia de um teatro que eventualmente nasce em outro espaço social é o mesmo do seu destinatário, do espectador que os homens que fazem esse teatro elegeram pará endereçar a sua encenação. É um teatro que se transforma, muda, reitera, na medida em que seu destinatário assim o exigir.

É melhor aproximar-se dele como manifestação exótica do que apropriar-se dele para, mais uma vez, vesti-lo com figurinos desbotados de reis, damas e bobos da corte.

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”Quem vos mandou inventar índios… Morus,

ilhas escritas, Morus, utopias,

Morus, revoluções, Morus, ó Morus?

Os índios se esconderam no homem branco,

nos seus assombros, ele se invadindo

de ocasionados índios, ele outros índios.”[20]

3. ECCE ÍNDIO

“Voltaire era de parecer que para se representar a tragédia devia ter-se o diabo no corpo, e que, para fazer-se impressão em cena era preciso caminhar dois dedos além do natural; porém que, quem excedesse uma só linha desta medida, se tornaria fastidioso e desagradável.

Esta maneira de falar explica maravilhosamente o risco em que o ator se acha quando representa, podendo desagradar, já por demasiada, já por pouca expressão; precipitando ou esfriando o lance. Sem embargo, examinemos se se poderão achar na natureza modelos que, perfeitamente seguidos, produzam a extrema realidade, acompanhada da força necessária. Observemos, pois, o mundo, estudemos os homens em geral, e mais os pequenos do que os grandes senhores: estes, acostumados pelo uso e pela política a não se deixarem surpreender ao primeiro movimento em presença de outros, podem oferecer-nos poucos exemplos de expressão viva; porém os homens de uma classe menos elevada se arrojam facilmente às impressões que recebem, e o povo, que não sabe moderar os seus sentimentos, são os verda deiros modelos da expressão forte: entre estes se pode ver o excesso da dor, o abatimento de um vencido, o orgulho de um vencedor e o furor levado ao extremo, de modo que, nestes mais do que em todos os outros, se encontram os exemplos do alto trágico. Acrescenta-se aos referidos modelos um verniz apenas de politica, e tudo será perfeito. Em outras palavras, é preciso expressar-se como povo e apresentar-se como nobre. Foi isso que li e aprendi na Arte do Comediante.”[21]

Os duques, os príncipes mouros, os burgueses prósperos e as ingênuas martirizadas que povoam a cena da Primeira Companhia Dramática Nacional são formas arrendadas de um pretérito artístico. Convivem, no mundo da produção simbólica, com o desenho emergente de outras personagens menos nobres, mais contraditórias, pinceladas como os “tipos” que a crônica jornalística e a literatura descobrem como representantes legítimos de uma nação que se constitui. Parece difícil ainda permitir que exemplares menos nobres da espécie humana encontrem seu lugar no palco sem despertar o espectador de um encantamento feérico.

Se esta nobreza que frequenta o palco corresponde apenas ao mundo da ficção, ou ainda é uma satisfação ao imaginário de um público razoavelmente seleto, como fazer que, por necessidade da arte, ela pareça ainda assim verdadeira? Verdadeira dentro dos princípios da imitação, com toda consideração que se possa ter pela autonomia dessa imitação herdada de Aristóteles.

A justa medida, que possibilita fazer-se de um rei suposto alguma coisa de verdadeiramente real e de uma condessa alguma coisa de provável, só pode ser alcançada através de uma subversão dos modelos reais. Muito particularmente em um espaço e em um tempo onde a aristocracia só pode ser identificada através da papeleta de outorga do título.

É preciso, segundo João Caetano, atravessar a sociedade nessa procura de humanidade. A forma verdadeira, a que possibilita representar a verdade interior das mais nobres personagens e dos mais nobres sentimentos, está oculta na persona das classes sociais. Para reconstruir a emoção que não está visível no cotidiano é preciso recorrer aos “pequenos”, que despudoradamente fazem coincidir intenção e gesto, como um modelo coerente de interpretação do drama.

Não se discute ainda o protagonista dos dramas que preenchem a cena. Parece indiscutível, tanto a João Caetano como aos dramaturgos a quem ele recorre, que o arcabouço dessa representação é ainda uma personagem onde é possível projetar fantasias de uma sociedade mais feérica e de uma vida sentimental mais intensa do que se pode viver no dia-a-dia.

Entretanto, mesmo nesse momento, o homem do povo é chamado para informar o processo de construção da arte, ainda que só possa subir ao palco para animar intermezzo e compor a verossimilhança de um painel. Se ele não é o principal objeto dos golpes da fortuna, é pelo menos uma presença insidiosa, que não ocupa a boca de cena mas contribui para cada lágrima, cada gesto de ira, cada suspiro amoroso.

Embora não se façam personagens, “os pequenos” constituem a fonte da representação do ator, como depositários de humanidade. Não há dúvida de que, atrás dessa fala de João Caetano, há uma confiança na honestidade dos humildes, que não se deixam corromper pelas convenções sociais.

Ao mesmo tempo a fábula que dá origem ao drama não pode ser composta por essas personagens sinceras. O ator deve portanto transferir uma forma de expressão real, que lhe é contemporânea, para animar alguma coisa reconhecidamente extemporânea. O modelo da representação do ator é simetricamente oposto ao da escala social da personagem.

Um método de trabalho que tem necessidade de abstrair seu objeto para poder executá-lo satisfatoriamente é já um sintoma de crise, ou pelo menos de uma situação temporariamente crítica. Embora não seja possível para João Caetano, e menos ainda para outros atores do seu tempo, divisar a natureza dessa insatisfação, é sensível em todo seu trabalho como ator e posteriormente como empresário uma necessidade de transformar a sua arte em alguma coisa mais sintonizada com outros movimentos da cultura. Indistintamente o ator procura fora da fábula, em outros espaços da vida social, esbarrando involuntariamente com uma questão que apenas formula: o assunto que pode ser “verdadeiro” no.palco é outro.

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A maior parte das reflexões em torno da identidade da cultura brasileira passam ao largo dos teatros. Com a Independência é preciso criar companhias autônomas, mercado de trabalho para autores e atores. Mas essa é verdadeiramente a maior preocupacão dos atores de resto ocupados com a comunicabilidade da sua arte que, quando satisfatoriamente resolvida, mantém a casa cheia.

Essa relação imediata com o público não deixa margem para a interiorização de questões que não sejam resolvidas dentro desse espírito: satisfazer o público. Portanto muitas das questões sobre dramaturgia nacional, literatura nacional, cultura nacional, repercutem apenas como um eco remoto nos palcos e plateias. França Júnior, Martins Pena e o ator Vasques descobrem o Brasil através da crônica, do contato direto com as exigências e a receptividade da plateia. Outros autores, mais empenhados na formulação teórica de uma identidade nacional para o drama, produzem mais para o prelo do que para o palco. Realmente não é possível imaginar o “Gonzaga” fazendo furor entre as plateias da Capital Federal ou paulistanas. Entretanto é um drama ideado para substituir outros dramas de assunto menos instrutivo que chegam até o público carioca através de sucessivas e degradantes traduções e adaptações. Enfim, dão certo apesar dos pesares.

Até a metade do século XX, quando o teatro passa a constituir uma ocupação da “inteligentsia”, o circuito das artes cênicas teve um desenvolvimento bem mais autônomo, encetando a sua procura de identidade por um caminho mais pragmático. (Note-se que o teatro vira uma questão cultural intrigante no momento em que, ameaçado pela televisão, começa a ocupar a retaguarda do interesse público.)

Essa marginalidade do debate cultural, que nos atores, ensaiadores e cenógrafos é uma preocupação secundária diante das exigências profissionais, permite entretanto formulações tão singelamente claras e transparentes como as de João Caetano. Sem disfarçar a rapinagem artística, o ator desvenda a sua apropriação da expressão alheia para aplicá-la, como recheio, a personagens menos vulgares.

Da mesma forma, escapando da retórica dos interesses nobres, os produtores de teatro atrelam a batalha por uma Companhia Dramâtica Nacional às reivindicações de caráter econômico.

Fazer crescer e enraizar-se o teatro nacional significa, muito simplesmente, garantir a sobrevivência dos seus profissionais que, em piores condições de trabalho, perdem diariamente público para as companhias estrangeiras. O nacionalismo é, em primeira instância, uma espécie de protagonismo alfandegário. Sem desdenhar da qualidade artística das companhias visitantes, nem propugnar o mérito da sua, João Caetano propõe medidas tais como impedir que companhias estrangeiras se apresentem nos dias em que se apresenta a Companhia Dramática Nacional. Sabendo, evidentemente, que uma companhia nacional, para brilhar, tem que brilhar sozinha.

Enfim, o teatro nacional no século XIX era, aparentemente, uma questão econômica, fundamentalmente econômica.

O ator, mais do que qualquer outro profissional das artes cênicas, resume a simplicidade da formulação teórica que circunda o trabalho do palco. As bases teóricas da sua arte estão centradas em um lugar onde ele mal se sente à vontade. Cada trabalho comprometido com uma transformação teórica é um esforço para interligar o pensamento ao presente da representacão onde a sua relação com o público não pode ser mediada por ruídos de outra intensidade. Em resumo, a arte do ator só se transforma quando premida por uma imediata lacuna de comunicação com o público.

E é o que faz com que João Caetano, como eminência do interesse público, se dedique a refletir sobre a arte do ator e a formar uma companhia que, aproveitando sua experiência pessoal, fortaleça as bases coletivas dos intérpretes.

O caminho sugerido, de fundamentar a interpretação tendo como modelo um homem do povo, não é certamente indicio de que o grande ator esteja interessado num público popular. Ainda não é o momento de pensar em outro público, uma vez que o teatro se ocupa apenas de mantet um público. Nesse momento o teatro aspira a uma sublimidade que é a da criação rica, se possível erudita, embora confundindo refinamento com abundância.

O conservatório, local que João Caetano institui para a formação de atores, deve suprir uma deficiência de capacidade de execução que não permite ao teatro brasileiro representar com a devida sutileza o refinamento necessário para transportar o público a outra dimensão social e geográfica. É portanto um refinamento para consumo indiscriminado, uma espécie de erudição que permite ao teatro atingir o universal. Não se trata de um aperfeiçoamento exclusivo. Entretanto, seria ótimo figurar no Olimpo da arte:

“Sei bem que a ação exagerada e fora do natural é aplaudida pelas massas pouco instruídas e até mesmo fascina às vezes aos que não são ignorantes; mas entre eles sempre há um ou outro que reconhece a falsidade da ação. Quando o ator executa uma cena sentimental, importante e arrebatadora, exagerando os gestos, recorrendo a grandes movimentos de fisionomia e de todo o corpo, ainda que seja falso o jogo com que exprime o sentimento, deslumbra a quem o vê e fascina por tal forma que acha uma beleza aquilo que é puramente um grande erro.”[22]

O “homem pequeno” a quem João Caetano se refere como material de observação para a criação artística é um homem que expressa o que sente enquanto sente. É portanto a simultaneidade da expressão e do fato psíquico que garante a sinceridade da riqueza dessa expressão como fonte de inspiração artística. Essas expressões são transferidas para personagens de outros estratos sociais e em situações que nada têm a ver com as situações originais em que o ator as observou. É o gesto do “homem pequeno” que, transposto para outra esfera social e para um tempo mitificado, pode emprestar a essa fábula mais delicada o sabor da verossimilhança.

A arte do comediante consiste em dar a esse gesto emprestado uma forma mais polida, adequada apenas à ficção, ainda assim mais verdadeira do que a máscara que se atribui aos grandes senhores. Curiosamente o que está no palco é mais real porque moldado sobre um segmento social que ainda não adquiriu o protagonismo da ficção teatral.

Considerando-se o repertório do ator João Caetano, essa aspiração de realismo pode parecer uma incongruência. Entretanto é essa a medida justa, o equilíbrio que um ator excepcional procura através do seu texto teórico e que é um dos índices do que se imagina, no século XIX, como boa qualidade da representação. É o mesmo critério que fundamenta a crítica jornalística dos seus contemporâneos.

A apropriação do gesto e da expressão verbal do “homem pequeno” é o processo através do qual o ator imprime um sopro de verdade a uma estrutura narrativa e a uma seleção temática verdadeiramente fabulosa. Por isso é necessário procurar a identidade de trabalho do ator fora do texto e fora ainda da sua própria experiência. Só esse deslocamento pode propiciar a viabilidade da comunicação de uma arte que se refere a seres imaginários, desenhando-se através de experiências extraordinárias, mas que têm a pretensão de agir sobre a contemporaneidade.

À contracorrente do romance de época, João Caetano não idealiza a sua fonte de inspiração. No drama que representa já está presente o assunto “nobre”, sem que o ator se detenha nas relações sociais que emergem desses textos. Quase todos os ensinamentos transmitidos aos atores aprendizes são, apesar das copiosas citações, fundados na prática do trabalho. Para representar qualquer coisa, inclusive o assunto “nobre”, o mais importante é encontrar uma ligação com o espectador que partilha de outro tempo e de outro espaço, embora possa ter amado como Otelo.

Pouco a pouco as experiências do palco, relacionadas com o agrado ou o desagrado da plateia, formam a base instrumental por onde o ator inicia a sua reflexão teórica. A procura dos meios expressivos, e mesmo da função da arte, é predominantemente uma prática. Aprende-se com o público e com grandes atores que aprenderam com o público.

Como consideração teórica a questão social é estranha ao ator João Caetano, como será para a maior parte dos atores até meados do século XX. Sua pretensão é a de criar um circuito para sua própria produção, diferenciando seus recursos na mesma medida em que o espectador se transforma. Sem propor a eleição deste ou daquele públiéo. Por muitas razões, inclusive para sobreviver financeiramente, o ator João Caetano enfrenta um mote da história do teatro: “popularizar o teatro”. Não chegou ainda a encontrar a antinomia de sentir-se obrigado a “fazer o teatro popular”.

***

Como forma de atuação cultural o teatro recebe, através da história, duas contribuições diferentes, de dois tipos de trabalho. Por um lado há o autor, que quase sempre é quem teoriza sobre a produção da cena contribuindo para dar à historiografia a sua feição particular. É o autor que se responsabiliza, durante muito tempo, pela “nacionalização” dos temas, pela concepção e pela forma em que as tradições populares e o próprio povo, como personagem, entram em cena.

João Caetano vive lado a lado com Martins Pena, Joaquim Manoel de Macedo, Araújo Porto-Alegre, Gonçalves de Magalhães e França Júnior. Entretanto o intercâmbio entre o ator e esses intelectuais é permeado pelas relações de produção da empresa teatral. São escritores que oferecem material a ser trabalhado pelo ator, mas que não partilham das mesmas inquietações intelectuais.

Como a mais importante figura da cena brasileira, João Caetano desenvolve suas reflexões sobre o ator no campo da sua própria experiência. A invenção de um povo temático interessa-o tão pouco quanto debruçar-se sobre a especificidade cultural de um país que ele considera antes de mais nada como desatualizado. Difícil é concorrer com as produções dramáticas e cênicas que, por mais civilizadas, atraem o público devido ao ator brasileiro.

Essa urgência de sobreviver resulta num projeto artístico relativamente sem ambição, que se completa numa relação passional com o público. É a mesma relação que, como tendência permanente, dissocia a produção cênica de outras áreas de reflexão cultural. E que permite também que o palco congregue, sem uma mediação que justifique, os mesmos temas que preocupam outras áreas da reflexão sobre a arte ou sobre a história. Mas por isso mesmo o teatro pode representar com uma formulação mais clara, menos alusiva do que as representações que têm um objetivo fora da criação.

Enquanto João Caetano discorre candidamente sobre a vulgaridade do vulgo, a literatura se ocupa da idealização da personagem nacional, na procura de uma fórmula curativa para as dores do transplante. Considerando a crueza das pessoas que alimentam o “refinamento” da sua arte, o ator não poderia idealizar a sua percepção do que sejam as “massas ignorantes”. Não quer especialmente falar sobre essa massa e nem para ela.

É apenas involuntariamente que o ator chega a esbarrar na questão da identidade do público enquanto origem social. Assim como é involuntariamente, na defesa das suas condições de trabalho e de um mercado para a sua profissão, que algumas das suas soluções para a estética da representação são influenciadas pela voga do nacionalismo.

“Na minha juventude declamei eu como os mais atores com quem principiei o tirocínio, porque quase todos declamavam; porém, deixando-os para formar uma companhia nacional (como formei em 1833), e acabar assim com a dependência de atores estrangeiros para o nosso teatro, perdi os meus primeiros costumes pelas reflexões que fiz sobre uma arte para a qual a natureza me dera algumas vantagens: mudei, pois, o fundo da minha representação e apareci mais simples e verdadeiro, grangeando por isso a pequena reputação de que gozo.”[23]

O campo onde o ator se exerce é marcado pela duração no tempo, pela fluência da sua comunicação num determinado momento da convivência com o espectador. O que faz com que muitas das poéticas da interpretação sejam marcadas pela fluidez e pela momentaneidade desse encontro. O “simples”, o “verdadeiro” e outras coisas que acabam por constituir-se como categorias na arte do ator, são descobertas tateantes. São muitas vezes adaptações frequentes a um arcabouço de princípios adquiridos no contato com o público. Sobre isso, em diferentes épocas e circuitos de circulação dessa mercadoria teatral, o ator pode pincelar a sua teoria da representação.

Na crônica dos seus contemporâneos a figura do grande ator João Caetano é louvada em prosa e verso por qualidades que encontram sempre o “Inexprimível”. Sua imagem registrada em letras combina quase sempre o descritivo com a admiração por alguma coisa que não pode ser transposta para outra linguagem. De qualquer forma há um esforço perceptível para captar essa forma de expressão e conferir-lhe uma estatura digna de figurar no mundo das letras.

Inversamente os homens que pisam o palco pouco se ocupam de dissertar sobre o seu processo de criação. Com maior frequência os atores assumem o teatro como outra linguagem e o seu processo de produção como um círculo à parte nas esferas sociais. Há um mundo próprio para atores, com hábitos e horários diversos, visivelmente distanciados da vida social de uma classe definida. Antes de 1950, quando a cultura começa a unificar-se sob um pensamento que contempla o seu processo, o teatro trafega ao abrigo dos rótulos e dos grandes temas de discussão coletiva. Pranteado quando chateia e louvadíssimo quando provoca risos e lágrimas no seu público.

Por mais de um século o ator ocupou-se com o apuramento dos seus instrumentos de trabalho de tal forma que pudessem propiciar a rentabilidade de uma comunicação bem-sucedida: um público satisfeito e comovido. Outros projetos, culturais, políticos ou de ideologias vagas, dificilmente penetraram o palco pela mão dos atores.

É o autor quem, através do texto, cria as ligações lógicas entre o que a cena apresenta e o país ou o povo. João Caetano representou aqui, como em Portugal, com igual sucesso e autogratificação. Como os atores de novelas se deliciam com a possível universalidade do seu trabalho que pode agora chegar a Portugal, à África e talvez a outros lugares.

A responsabilidade de ser brasileiro ou de dirigir-se ao povo brasileiro casa-se mal com o Otelo de Ducis. Aí podem entrar também o “Gonzaga” de Castro Alves, o “Antonio José” ou “A Moreninha”. Aos olhos do ator essas personagens precisam apenas de alguém que as saiba fazer verdadeiras. A medida última da sua grandeza será dada pelos aplausos que resumem o valor de um espetáculo sob qualquer ponto de vista que o analisemos.

***

Esse desejo de popularidade (lado a lado com o desejo de consagração) obriga o ator, por necessidade de sintonia com um público que se pretende cada vez maior, a ensaiar o perfil do seu interlocutor. Portanto a popularidade obtida por João Caetano tem também a sua carga de história. Não é a mesma que Procópio Ferreira visualiza para 1935. Congelando João Caetano em um panteão de elite, o ator Procópio escolhe outra espécie de nume tutelar no seu livro sobre o ator Correia Vasques:

“A arte aristocrática de João Caetano fora mais uma gala, do que uma necessidade pública. João Caetano tinha mais admiradores na elite do que na multidão. Era mais remunerado do que adorado. Jóia enorme de uma coroa que raras vezes se punha. A modalidade artística de Vasques vinha, por isso, como diagnóstico sábio.

(…)

O povo não compreendia João Caetano. Admitia-o porque ele existia. E de sua arte, só lhe aplaudia o vigor dos arroubos violentos nos gritos impressionantes das tragédias. Não era Otelo – ciúme – que se admirava; era Otelo – punhal! Não era Hamlet – dúvida; era Hamlet -desgraçado amante! Não era o expressivo desenhista do terror de A Gargalhada; era o fôlego daqueles pulmões que sustentavam uma escala de riso fenomenal! Só a elite conselheiral descobria-lhe afinidades com os grandes da Europa, muito falados, muito célebres… “[24].

Mais uma vez, em se tratando de um ator profissional que pensa a sua inserção na cultura, a raiz da crítica é extremamente singela. Na reflexão do ator Procópio Ferreira, o ator de -“elite”, aquele que o povo não compreende, é, em última análise, o que se dedica à representação de tragédias.

Reduzindo-se a retórica do livro a seus pontos fundamentais é possível perceber que a dimensão da figura de Vasques, em contraste com a de João Caetano, ergue-se sobre a sua verve de ator cômico. Consequentemente, a inclinação de Vasques para um teatro popular fica identificada com o anseio popular pelo cômico. Em João Caetano só seria possível ao povo admirar o atleta da arte, uma vez que as tragédias da dúvida e do ciúme estão fora das aspirações populares. Procópio registra aqui mais uma polêmica que percorre as discussões em torno do popular, cada vez que se pretende invocá-lo no palco: quem gosta de tristeza é a elite.

A dissensão entre o pensamento crítico e a prática do trabalho do ator é mais um esforço para identificar a especialidade, a estranheza do comediante que se identifica apenas com o público, e portanto com o povo. Outras atribuições da arte, como o pensar-se, são alijadas da esfera de competência do trabalho do ator.

É o ator, que se comunica “sem pensar” que pode encontrar mais facilmente a via de acesso à alma popular. “Cada povo tem a arte que merece” diz João Caetano. Atribuindo à sua arte a capacidade de moldar-se de forma a corresponder perfeitamente ao merecimento e ao desejo desse povo. Povo esse entendido como público, totalidade suficientemente numerosa para preencher uma sala de espetáculos durante muitas noites.

É para esse povo, pois, que o ator dirige a sua instituição no sentido de captar-lhe os·desejos e responder integralmente às suas necessidades. No decorrer desse processo o ator aprende a definir as características gerais desse público-povo:

“O povo, indiferente à arte dramática que lhe queriam impor, reagiu, com ovações e gargalhadas homéricas, consagrando o Orfeu na Roça[25] em cem representações consecutivas, no tempo em que a cidade do Rio de Janeiro contava com pouco mais de trezentos mil habitantes.(…)

O segredo de vitórias semelhantes reside pois na verdade com que a vida é levada para o palco. Esta nossa vida de hábitos serenos, sem as complicações que lhe querem atribuir os intoxicados intelectuais.(…)

São imposições da vontade popular diante das quais toda teoria literária torna-se inútil e ridícula. Como brasileiro, vivendo do meu povo e para ele, sentindo e com ele marchando, penso que a esses expatriados intelectuais não lhes assiste nem autoridade nem direito de insultá-lo, indiretamente, através de nós artistas que somos prolongamento desse povo. A invariável palavra da crítica, sempre que oferecemos ao público a arte que ele reclama, é dirigida no sentido de nos afastar do seu convívio, criando uma arte para elemento reduzido, de mentalidade importada. A esses ‘paladinos’ da nossa civilização tem respondido o Brasil com cascatas de riso, em mais de um século de evolução teatral.”[26]

Há nessa fala de Procópio muitos traços de contemporaneidade: o artista como prolongamento do povo, a ideia de que há um pensamento brasileiro-popular legítimo em contraposição a um estrangeiroelite impostor e finalmente o mais doce de todos os enganos que é a confusão, permanente, entre popularidade do ator e o ator popular.

Essa última colocação assume, pela constância com que é invocada e pelo caráter de pedra fundamental que lhe é atribuido, o estatuto de uma tendência no interior da produção teatral. As produções dramáticas que têm amplo alcance (sucesso de público) são frequentemente tomadas por índice do interesse popular. A esse interesse contrapõe-se o gosto de uma elite a quem as tragédias e as complicações parecem mais interessantes do que o riso.

Há portanto o ator que assume a existência de uma identidade popular genérica e que, ao mesmo tempo, acredita que o riso corresponda ao traço mais incisivo dessa fisionomia popular.

Quem verdadeiramente ri, e do que ri, é um problema que o ator não tem condições de colocar para si mesmo durante muitas décadas. Isso implicaria em questionar a qualidade intrínseca da comunicação que se estabelece, supondo a existência de outras formas possíveis de desenvolvimento da relação entre ator e público.

João Caetano, Procópio, Vasques, Dulcina, Dercy e tantas outras figuras de proa da cena brasileira identificaram o saber e a experiência. De tal forma que o palco corresponde exatamente à medida do mundo.

***

Como entender por que esse ator, tão pouco interessado em extrapolar a medida do palco, tenha defendido sempre (de João Caetano a Juca de Oliveira) a constituição de um teatro brasileiro que seja melhor e mais forte do que um teatro de importação?

Entre os atores a luta por um teatro nacional cola-se invariavelmente a uma luta pelo mercado de trabalho, por uma defesa da própria produção. Com todos os seus possíveis desdobramentos, trata-se de uma luta econômica. Contra a concorrência, contra o avaloir, contra as pressões do mercado que o empurram para uma finalização rápida e não permitem o aperfeiçoamento da expressão.

Enquanto em outros setores da cultura a constituição de uma produção de caráter nacional vincula-se a um projeto politico (pas sando pela formação da consciência nacional), esses homens de teatro assumem, com mais simplicidade, que o caráter nacional está dado. E, mais que isso, que são os profissionais capazes de expressá-lo.

Não há objetivos mais amplos ligados ao nacionalismo. Trata-se apenas de organizar um sistema de autodefesa a fim de enfrentar e tornar viável a empresa teatral que expressa essa nacionalidade. Especialmente para os “grandes atores”, que lideraram as companhias mais prestigiadas durante décadas, o problema maior, francamente falando, é a concorrência. Política é outro departamento. Uma tendência que sobrevive em 1981 nos sindicatos e em outras associações de classe e, especialmente, nos diálogos que a categoria profissional mantém com os poderes públicos.

***

Os projetos de fazer da arte teatral alguma coisa mais do que a comunicação intensa entre o espaço do palco e o espaço da plateia passam, a partir dos anos cinquenta, a envolver o ator na sua esfera de abrangência. São ideias que têm origem num mundo alheio ao do teatro, mas que passam a considerar os trabalhadores do palco não apenas como instrumentos da comunicação emocional, mas como militantes conscientes de um projeto de veiculação e mobilização do público. Não é mais ao autor ou ao crítico que compete pensar o teatro. Compete ao teórico da arte teatral executá-la e descobrir novos instrumentos para tornar a pessoalidade da comunicação do ator um meio especialmente útil.

Entra em cena o ator com consciência de classe. O ator do Arena, dos Centros Populares de Cultura. É um ator que acompanha o processo integral de produção da sua arte, desde o texto até a circulação da sua peça pela geografia social. Ao contrário de Procópio, que considera a sua brasilidade como ponto pacífico, é um ator que se empenha obsessivamente na descoberta da dramaturgia brasileira, da encenação brasileira e do gesto brasileiro para compor a personagem brasileira. O que o distingue especialmente da brasilidade de Procópio ou Dercy é a sua dúvida e a investigação teórica que desencadeia a fim de dirimir essa dúvida de identidade. (A crítica ao capitalismo e o projeto revolucionário que se liga a esse questionamento estarão melhor explicitados em outros trabalhos. Não interessa aqui recuperarmos esse ideário a título de explanação.)

O que interessa a este trabalho é observar que o ator com um projeto poliítico não é mais o ator-intérprete, consumido diariamente pela sua relação com o público e resumindo o seu saber ao palco. É agora um ator-autor, que interpreta no palco sua obra, ou pelo menos que participa da concepção teórica dessa obra. Com isso transformam-se algumas das relações de trabalho dentro do teatro, proporcionando o exercício dessa figura que junta as atribuições intelectuais do autor às do ator.

É curioso ponderar que o rosto de Otelo pode constituir-se com tinta escura e uma barbicha, acrescido invariavelmente de um brinco dourado. Já a fisionomia de José da Silva deve ser intensamente perseguida pelas ruas na procura da sua contrafação artistica que possa viver no palco:

“Uma das coisas malucas e interessantíssimas que fazíamos na época: cada vez que a gente encontrava um tipo interessante na rua seguíamos essa pessoa como uma sombra, procurando observar e descobrir os menores gestos, a maneira de andar, etc. Era um trabalho extremamente absorvente e quase obsessivo.”[27]

Na procura do gesto, da voz, do modo de andar do brasileiro, do homem brasileiro e ao mesmo tempo do povo brasileiro, o ator procura no exterior um ponto que possa dar credibilidade à sua comunicação que, de acordo com o seu projeto político, é uma afirmação de nacionalidade. Por um lado procura e por outro afirma.

Não é suficiente mais uma comunicação no escuro, onde o público é e deseja alguma coisa que o ator deve intuir a partir da sua afinidade com esse público. Num certo sentido o ator que procura a face da personagem, para poder reconhecer a face do seu público, é um ator que não se acredita com a delegação espontânea de representar a sociedade. Sua delegação tem outra origem e vem de uma autoridade que não é a do público. Por isso mesmo não se coloca audaciosamente como Procópio, verdadeiramente uma encarnação dos mais caros desejos do povo. Coloca-se, mais sutilmente, com uma produção que se propõe a descobrir e revelar a identidade popular para o público que representa condignamente esse popular.

Esse ator que se vê na obrigação de criar e dar forma a alguma coisa que corresponde à realidade acredita-se também com o dever de incorporar essa descoberta ao patrimônio coletivo. Ou seja, quem vive essa condição de povo brasileiro não sabe quem é, nem o que vive, assim como o ator ainda procura desvendar essa imagem. A imagem cênica deve ser composta portanto com outros instrumentos, bem diferentes daqueles que apenas corporificam as aspirações e os sonhos de público.

De uma forma talvez excessivamente simplificada pode-se dizer que o ator desse teatro brasileiro e popular substitui a louvada intuição pela ênfase sobre o conteúdo lógico da sua personagem e das relações dessa personagem. “O que dizer” e o “como dizer” tornam-se certamente mais importantes do que os processos que permitam a recuperação e a transmissão dos estados anímicos do drama.

Há uma pesquisa estética em curso, de uma estética instrumental, que possa servir para a revelação definitiva de uma imagem que não pertence apenas ao domínio da arte, mas é o rosto velado da história. Esse ator que sabe mais do que o que está no palco e propõe mais do que uma relação imediata entre ator e espectador, não pretende emocionar por outros meios senão o do mútuo reconhecimento não apenas de uma identidade, mas de um destino que aguarda esse público. A emoção que propõe é a da ciência, a do espanto provocado por uma revelação inquestionável que se incorpora ao público como um saber. Por esse meio, o ator acredita instituir em cena a realidade do espectador. O que não existia passa a existir como realidade fora da cena. Como se a arte pudesse, através da ampliação da consciência, criar outro país e outra organização social.

Não é estranho, portanto, que, nessa procura que se pretende afirmação de identidade, o artista seja obrigado a investir sobre novos espaços sociais e culturais que não são o seu próprio. Ele vai até onde imagina que possa encontrar a matriz das suas propostas.

Quase todas as personagens do Teatro de Arena e das dramatizações dos Centros Populares de Cultura são construídas com o auxílio “tipos”. Da peregrinação detetivesca atrás do cidadão comum ou do homem brasileiro saíram gestos padronizados: o malandro de morro, o coronel nordestino, o migrante, o jogador de futebol e o operário. Cada uma dessas personagens correspondendo inclusive a um padrão de fala regional e a uma caracterização visual moldada sobre uma forma única.

A procura de uma fala e de um gesto condizentes com uma situação dramática racionalizada é feita pelo lado de fora, pela exteriorização dos signos da vida social, arranjados de tal forma a se tornarem símbolos de uma ordem social. Uma ordem social que o ator pode representar seguindo o método com que a situação foi construida, ou seja, aceitando aproximar-se da personagem pelo lado de fora. Raramente se permite ao ator uma forma de trabalho personalizada, que some à personagem a experiência pessoal do ator ou a exegese da sua própria condição de classe. Seu trabalho refere-se a uma totalidade que é atingida a partir de uma abstração lógica.

Na constituição dessa forma de diálogo, em que o palco propõe a ciência para o público, não podem entrar formas de interpretação que dependam da psique do ator. Stanislawski não é o mentor mais adequado para impulsionar uma fala que intenciona a obliteração do sujeito. Inversamente o ator “engajado”, de um teatro “engajado”, tem que pesquisar sua expressão artística em um território estranho.

A fim de propor uma unidade, que é um projeto social que elimine as diferenças, o ator tem que experimentar essas diferenças como tal. Entretanto o fato de que o seu projeto social já é uma verdade indiscutível impede o contato com as diferenças. Ao fim e ao cabo, o ator deve contentar-se com um método de trabalho que seleciona alguns tipismos de cada classe social e encaixa-os numa composição lógica econsequente. Se oobjetivo é coletivizar uma ideia, parte-se do genérico.

Num artigo de 1968, Oduvaldo Vianna Filho inicia uma tendência crítica desse tipo de ator, exemplificando através do Teatro de Arena de São Paulo. Seria o ator que “sente bem” mas não “diz bem” e que além do mais fala para um “público cúmplice”.[28]

Há uma espécie de insatisfação de consumidor rodeando esse ator que não se compromete especificamente com a boa qualidade artesanal de sua arte, mas antes com a funcionalidade dessa arte para transmissão de uma ideia.

Mas há outro centro da questão que o comentário de Vianna Filho não chega a resvalar: não se trata de sentir bem, mas de estar em cena imbuído de uma convicção revolucionária que unifica a encenação independentemente das suas qualidades particulares. Digamos que o ator sente alguma coisa que derrama indiferentemente por diferentes personagens. A crença e o sentimento decorrente o fazem pressupor que o seu público é também uma unidade. Cada representação torna-se igual à anterior, eliminando assim a comunicação peculiar ao encontro teatral.

Tampouco interessa traduzir por diferenças qualitativas o trabalho individual desses atores. Como todo o processo da encenação tem um único objetivo, não interessa destacar a participação individual deste ou daquele ator. O que sem dúvida concorre para estabilizar a aprendizagem do ator e uniformizar o rendimento de um ensemble. É uma seara pouco propícia para o cultivo das estrelas, mas que permite um ator disciplinado e afinado. A insatisfação do consumidor, provavelmente, refere-se, em 1968, ao esgotamento da matriz desse teatro que não avança enquanto espera o avanço das forças sociais.

Uma arte permanentemente segura dos seus meios e fins não pode renovar-se a partir de si mesma.

É esse ator, ligado a uma produção teórica mais abrangente, que perfaz um traço de união entre o trabalho do palco e a totalidade da produção cultural, começando a investigar a interpretação artística como um trabalho entre outros trabalhos. Representa certamente uma nova atitude, se o compararmos com Procópio Ferreira ou, contemporaneamente, a Paulo Autran.

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Há duas linhas de concepção do trabalho do ator que se constituem num paralelismo até hoje irresolvido. Esquizofrenicamente os dois processos de trabalho se excluem.

O ator que se imagina porta-voz de um projeto social redentor está ainda vis-à-vis com o ator que se imagina satisfazendo o povo no seu desejo de rir. Em 1980, numa série de encontros promovidos pela Cooperativa Paulista de Teatro, a discussão polarizou-se uma vez mais entre “engajados” e “alienados”. Significativamente os encontros aconteceram no Teatro Eugênio Kusnet (ex-Arena).

O que vale mais: Kusnet ou Boal? O que vale mais: Stanislawski ou Brecht? O engajamento ou a arte pela arte? Fazer um teatro universal ou fazer um teatro brasileiro? Falar a todos ou falar a populares?

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É um tanto exasperante observar como numa plateia cronologicamente renovada as questões se repetem sem se repropor, fazem um giro dividindo o público em duas metades e se esvaziam sem tanger a contemporaneidade. Ninguém enfrenta o fato de que há, no centro desse círculo, uma arena vazia.

De 1950 a 1980 a mesma coisa não pode ser exatamente a mesma coisa. Deve existir em gestação ou de fato uma atuação que os participantes desse encontro ignoram. Percebem entretanto que a dicotomia que se instala na sala do Eugênio Kusnet é uma dicotomia esgotada enquanto tal.

O mais provável (e nem por isso menos melancólico) é que um outro teatro esteja fora desse espaço ao abrigo do olhar desses profissionais tão interessados, tão esforçados, mas tão limitados dentro de um circuito de ideias que não podem romper porque não se incluem nele. Há aí um ator que entende tão bem o público que dá a ele o prazer desejado. Outro que entende tão bem o público que o coloca dentro da cena e o explica para si mesmo. Em ambos os casos o ator sabe pouco de seu desejo e de seu destino.

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Falar sobre o teatro é bem diferente do que pensar-se no teatro. Sem incluir-se, quando problematiza o fazer artístico, dificilmente o ator poderá sair das mesmas questões. Especialmente neste momento quando é o ator, e não o dramaturgo, quem se encarrega de compor um projeto para a encenação.

Quando as questões são lançadas para fora do fazer artístico o artista perde-se na totalidade da reflexão sobre a cultura porque não é capaz de encontrar um centro onde possa fincar os próprios pés.

Há um centro próprio, que é o da criação, a partir do qual o ator pode entender-se como sujeito e enfrentar todas as contradições da história que ameaçam esse fulcro. O caminho inverso é o do avestruz, em que o artista se exime como sujeito e atribui isto às forças históricas ou aquilo ao desejo imperioso do seu público ao qual só lhe resta fazer vênia.

Sem dúvida ao nível das “contribuições” pode-se aproveitar o transporte leonino de João Caetano dos Santos, a via cômica de Procópio Ferreira, a intensidade emocional de Cacilda Becker e a nitidez didática dos atores do Teatro de Arena de São Paulo. Desde que nenhuma dessas figuras se santifique e dê origem a uma nova seita com fiéis seguidores. A estratificação de questões e a instituição dos mitos sagrados tem provado que não basta recorrer para obter o mesmo efeito. Certamente há outras formas de comunicação possíveis. Capazes até de interessar espectadores.

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De uma certa maneira os rótulos fáceis para um estilo, a repetição de palavras de ordem fossilizadas contribuem para adiar um enfrentamento por certo doloroso de uma complexidade do espectador que exige uma correspondente complexidade da representação.

Como solução mais imediata e grosseira os signos da representação teatral têm-se modificado ao sabor do circuito de produção econômica.

O ator é diferente do “protagonista” das antigas companhias apenas na medida em que seu tempo de ensaio é menor e as suas condições de trabalho são mais precárias. No processo de composição do seu trabalho usa ainda os mesmos métodos dos profissionais dos anos cinquenta. Há relativamente poucos grupos de profissionais que conseguem aprender a cartilha e lançar-se a outras escritas mais inventivas e contemporâneas.

***

Tanto o ator “engajado” quanto o defensor da “arte pela arte” partem da presunção de que o seu espectador é alguém que foi decifrado. O ator detém a chave desse enigma. Um, decifra através da intuição. Outro, através da paciente pesquisa que lhe permite configurar uma fisionomia geral. Ambos estão em condições de propiciar através da representação uma benesse necessária.

Espelho e reflexo, o palco assume o poder de revelar ao público o que ele é e o que vive. Sem perceber que, pelo menos hipoteticamente, o público pode saber muito bem isso tudo.

Mas há outro poder, próprio do teatro, que a cena apresenta muito raramente e timidamente: o poder de avançar além do vivido e além da mera especulação da identidade de um estranho para propor além do sabido e percebido. Para isso seria preciso que o artista repousasse da sua função demonstrativa (“Eis aqui”) e passasse para o território do que ainda não sabe.

A fábula do palhaço sofredor talvez explique melhor os riscos da pressuposição:

“Por habituar o público a rir, foi por ele condenado todas as vezes que pretendeu presenteá-lo com uma gota da sua melancolia. Quando lhe assomava aos olhos a primeira gota de emoção, o público ria em estrondosas gargalhadas: estava morto o artista dramático.”[29]

4. O POETA E A INQUISIÇÃO: A TRAGÉDIA DAS ORIGENS

para Décio de Almeida Prado

NOTAS PARA TESES

Este levantamento descritivo de algumas questões específicas do texto O Poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, procura compreender as sutilezas da peça, dotando-a de uma leitura mais complexa, no seu sentido de origem da literatura teatral no Brasil já independente da dominação portuguesa. Não se expõem aqui teorias gerais do romantismo brasileiro a partir do exemplo de Magalhães. São notas sobre atos, cenas ou conceitos observados conforme a ambiguidade estrutural desse texto de transição, ora trágico, ora dramático, pois que movido tanto pela fatalidade das situações, na sua feição histórica, como pelo conflito passional, no procedimento de sua rede de intrigas.

Esta leitura descritiva da obra de Magalhães de modo algum pretende esgotar seus problemas. Fixa-se em apenas cinco temas conforme são tratados na peça:

  1. A Condição do Teatro
  2. A Teatralidade
  3. O Sentido da Razão e do Desejo
  4. O Artista e a Questão Nacional
  5. O Discurso Trágico e o Discurso Dramático

Tem-se uma compartimentação preocupada em didatizar as questões em jogo. Referências à reflexão que, sem dúvida, obteria melhor proveito com a leitura simultânea do próprio texto. Tais notas são como que contribuições a pequenas teses dedicadas a uma análise de certas ideologias então emergentes que irão mais ou menos conduzir de certo modo a feição do chamado teatro brasileiro para além do romantismo até nossos dias. A peça de Magalhães, embora sendo uma obra simplória, cresce de significado por semear certos pontos de vista ainda hoje muitas vezes presentes no que se toma por dramaturgia nacional: ideias como as de nação, povo, artista, etc

A CONDIÇÃO DO TEATRO

Em obra de feição exemplar e moralizante, tratando da vida trágica de um dramaturgo, sendo este enamorado de uma atriz, sem dúvida, há que se auferir desse contexto qualquer referência à condição de existência do teatro. E isto é explícito em O Poeta e a Inquisição. Já no primeiro ato a questão se explicita sob feição didática. Magalhães não se satisfaz apenas com o seu desejo de inaugurar a dramaturgia nacional. Quer ser um renovador das artes, alcançando inclusive o próprio sentido da encenação, onde o teatro tem a sua plenitude. Pelo autor, se expressa Mariana, personagem-atriz, na peça. Em diálogo com Lúcia, criada que “fala como o vulgo”, ela irá compor todo um contraponto de indicações pertinentes à situação do artista frustrado por seu esforço. A feitura do teatro é, nesse esforço, mal recompensada:

Mariana: ………………..Ante o espelho,

Estudando paixões, compondo o corpo,

Mil expressões numa hora procurando,

Meus dias passo; – e tu doida me julgas

Quando me vês gritar, lutar, ferir-me,

E às vezes investir-me delirante!

A função do teatro é a composição de um modelo complexo de bom comportamento social, seja divertindo o público, seja levando-o à catarsis de seus dramas e falhas: ora “salutar remédio”, ora “interpretando a história”, nas “sublimes lições da poesia” que suas referências analógicas compõem por quadros “que são normas”:

Mariana:…………………nos tratam

Como uma classe vil e desgraçada,

Sem honra e sem pudor,…………..

CRIME E VIRTUDE

O teatro é um espelho da vida, uma revelação de sentimentos conflitantes que tem por objetivo o equilíbrio social desses conflitos. Este é o seu “crime”, como tal, sua “virtude”: desempenho expresso pela duplicidade da representação, em favor dos outros:

Mariana: Um imenso teatro é este mundo;

Um papel aqui todos representam;

Eu represento dois, de dia e noite.

Eis meu único crime.

Tais observações metateatrais, na realidade das aspirações da obra, sintetizam o conjunto de toda uma lição moralizante em plano fundamental de preocupações que tentam recompor a importância social do artista e, por conseguinte, do palco, junto à plateia. Isto, quando se procura erguer o “teatro nacional” como um dos esteios da formação de valores da pátria. O conceito de história para o poeta é modelar: “úteis lições para o presente”. E assim se aspira a um novo tempo, uma nova época, como uma nova nação. Solo em que o artista também busca o seu lugar. Um lugar que lhe seja glorioso, conforme a ideia que tem de seus direitos naturais: “A recompensa do gênio é a glória”, diz Magalhães em seu “Discurso Sobre a História da Literatura do Brasil”.

Tem-se um artista sofrido e submisso à imposição mitológica do talento, serviçal que pretende ser reconhecido como trabalhador do espírito, a mais ârdua missão:

Mariana:…………Vê como é difícil

O trabalho da mente ……………..

Nesse sentido, Mariana tenta convencer o público e Lúcia (curiosa identificação) de seus argumentos, pois que agora, findada a época dos mecenas, o artista se dirige ao “povo”, nesse “povo” procurando o reconhecimento e o sustento de suas atividades. Clarifica-se, porém, na obra, a diferença entre as partes, nesse desejo de aproximação. Para o artista, uma diferença natural, demarcada por sua vocação, por sua sensibilidade.

Nesta passagem do texto também se tem a apresentação de Antonio José, de sua tragédia e martírio, artista popular esquecido na hora do infortúnio por aqueles a quem serviu com suas “operas”. Não é vã a sua imediata entrada em cena, após a fala de Mariana. Exposta a contraditória condição de vida do produtor de arte, mostra-se então sua personagem mais pungente.

A TEATRALIDADE

O esforço do intérprete, a dor de sua missão, situação de que se serve para valorizar-se junto ao público, não é apenas uma referência conceitual na obra de Magalhães, nem somente uma referência expressa por falas de seus personagens. É de sobremaneira um dado presente na movimentação de cena, conforme deixam claro as rubricas da peça.

A partitura transcende aos diálogos, procurando uma feição cênica clara, delimitada e definida. Procura-se reformar “a monótona cantilena com que os actores recitavam seus papéis, pelo novo méthodo natural e expressivo, até então desconhecido entre nós” (Breve Notícia Sobre Antonio José da Silva, por G. de Magalhães, 1839). Assim se tenta superar a postura teatral neoclássica, com o desejo de um modelo romântico para a encenação.

O ator será mais do que mero porta-voz das falas de um texto. O seu desempenho será algo integrado a se compor no palco, contudo sem deixar de o ser sob indicação expressa do dramaturgo. Indicações sempre presentes no texto. Um momento de radicalização dessa disposição teatralizante é a última cena do ato, quando os Familiares do Santo Ofício prendem Antonio José. Ai o texto é quase só rubrica: as falas se restringem a exclamações e a um mínimo de frases, enquanto as rubricas indicam todo o desenvolvimento da ação dramática.

Também a cenografia e a indumentária não foram deixadas de lado neste processo de reforma da cena. Cada passagem da obra é um registro dessa renovação de métodos de encenação, com suas implicações sintomais ou sentidos subjacentes. No decorrer de cada quadro sucedem-se indicações comportamentais, de modo minucioso.

MENTE FORTE, CORPO FRACO

Desde o primeiro ato, tal preocupação se corporifica. Mariana não apenas entoa a “monótona cantilena” de sua condição social. Há toda uma série de dados que confirmam, por seus atos e sentimentos, as suas palavras. Tanto como Lúcia, a criada, é personagem vivo nas indicações de seu comportamento no palco. O que contrapõe as duas não são simplesmente ideias ou conceitos, são condições palpáveis e concretas de ação e presença em cena. Mariana está cansada, doentia, sofrida, violentada pelo árduo trabalho, pelo esforço de sua missão, ainda que esforço não reconhecido como o de alguém que serve à sociedade. Lúcia, a serviçal, a que pelo hábito e costume o “vulgo” julgará como sendo a imagem do verdadeiro trabalhador, mostra-se cheia de saúde, vitalidade, disposição física. Uma indicação serve à outra, nos seus contrastes, se observadas como projeção de suas representações sociais.

O talento e o espírito de Mariana são fortes. O físico é fraco. O oposto se dá com Lúcia. Assim ambas se movem em cena. Não apenas falam, com palavras, de seus sentimentos, mas também os confirmam com a naturalização de gestos e expressões indicadas, no microcosmos do cotidiano que o palco pretende ser.

Mariana: (levantando-se) Vê como é difícil

O trabalho da mente, e o quanto custa…

ALIANÇA PARA O EQUILÍBRIO

A fala e o gesto se compõem para alcançar o intuito temático: a valorização do trabalho intelectual, confrontado com o trabalho manual, encargo de Lúcia. Um pouco antes, fora Lúcia quem trouxera o remédio para o corpo doente de Mariana. As duas, nas suas representações, se complementam, numa aliança cuja plenitude pretende o equilíbrio, mantidas as suas diferenças, devidamente valorizadas.

Esta aliança é uma impingência dos novos tempos, da nova nação, considerada a naturalidade das diferenças entre as partes: entre o “vulgo” e o “talentoso”. A ruptura dessa aliança será uma ruptura trágica: é o que procura se dizer, em dada instância exemplar da obra. Concepção da relação artista-povo presente até hoje em muitos textos do chamado teatro brasileiro, sendo exemplo disso o musical Gota D’Água, de Paulo Pontes e Chico Buarque de Holanda.

Trata-se de um desejo de aliança e aproximação nada simplório nem imediato, pois que sua complexidade é evidente, no mundo de existência peculiar em que cada parte há de ser situada pela peça. Diferença a ser preservada na sua graduação, somando-se a isto o dado difuso do que vem a ser “povo”, pois que não se trata de classe trabalhadora, na sua expressão fundamental, já que esta é o braço escravo. Trata-se pois de uma massa informe, de circulação urbana, descaracterizando-se, é claro, quaisquer relações classistas mais a propósito. Conceito difuso no que diz respeito ao “vulgo”, e não no que irá determinar a categoria dos artistas. Este é o que informa e qualifica os valores sociais, para a grandeza nacional. E no teatro essa relação de indicação cultural se reproduz no próprio confronto vertical entre o palco e a plateia.

A estrutura complexa da obra objetiva conduzir o público de modo autoritário às injunções do pensamento do autor. O público é trazido ao centro da ação, conduzido por suas dores, ânsias ou alívio, pois que esse teatro moralizante é um indiscutível exemplo a seguir. Afinal de contas, seu produtor, o artista, é um ser especial, um “nobre do espírito”, a maior das nobrezas:

O Conde:……………………………………

Sei que um bom escritor vale mil Condes,

E curo de deixar úteis escritos.

A SITUAÇÃO NATURAL

A teatralidade, a mobilidade cênica, como dado de naturalização de situações dramáticas, é uma exigência permanente do texto, para que ele se faça crível e consequente como verdade inabalável nos seus propósitos de indicação comportamental junto à plateia. Magalhães, na sua minúcia ao rubricar cada passagem, assim determina, pelo procedimento formal, o senso, a ideologia, ou o padrão que reproduz por cada fala. É esse cuidado cênico, um cuidado maior de O Poeta e a Inquisição.

Como evidência, isto se explicita categoricamente no instante em que a tragédia toma seu rumo definitivo, justo na cena VII do ato, passagem em que Frei Gil consegue sua prova fundamental contra o Judeu, o bilhete que este enviara ao Conde. A cena é toda marcada, detalhe por detalhe, até sua culminância:

Frei Gil:…………………………………

Oh! que coisa feliz! Como apanhei-o!

É de Antônio José. Ei-lo assinado!

Estará ele aqui?… Se está! É ele

Que ontem vestido estava de criado.

Vai para lá de noite!…Hei de esperá-lo.

Que livro!…Vou já pô-lo sobre a mesa

(procurando pôr o livro no mesmo lugar)

No seu lugar…Aqui; creio que é isto.

Estava mais deste lado, assim virado.

O Conde o que estará fazendo agora?

(Chega-se à porta escutando)

Muito bem… Muito bem… aí vem gente

(Vem, assenta-se pé ante pé, tira da

algibeira o breviário e põe-se a ler)

Não peco contra a forma.

A RAZÃO E O DESEJO

Há questões menores, contudo básicas para uma decodificação mais apurada de O Poeta e a Inquisição. São dados de pano de fundo, marcando toda a obra. Um dessas questões é a polêmica que se trava em torno dos conceitos de razão e instinto, cuja polarização se expressa por duas falas contraditórias do texto. Uma delas, formulação do Conde (“A culpa é nossa, que da razão tão pouco nos servimos”.), por ocasião de seu longo diálogo com Antônio José, no ato. A outra fala é de Frei Gil (“… o mundo com razões não se embaraça”.), no ato, por ocasião de seu primeiro encontro com Mariana.

O que se contradiz sintetiza-se como juízo, na reprodução dos conceitos ideais de história e predestinação que movem o raciocínio de Magalhães a propósito da vida e da realidade social. O acaso é um dos móveis da obra, como também é seu motor certa relação mecânica de causa e efeito, na medida da participação dos homens em dado contexto. Uma conjunção ambígua de fatores complexos que cada personagem (como também o autor, é claro) usa ou dela participa enquanto vitima, a seu modo, conforme os interesses moralizantes da trama.

A razão é uma razão ideal e metafísica, dai ser inviável para impedir o desfecho trágico. Por ser mecânica na sua expressão de possibilidades permite-se aos artifícios do acaso. Assim, a história torna-se uma história de mitos e aspirações mitológicas. De predestinados e “vulgos”. Uma história distorcida, de acordo com a aspiração de quem a manipula, no caso, Magalhães. No fundo, é claro, tem-se também uma fábula romântica, portanto não há o que mais se esperar disto.

Outra questão menor que compõe o pano de fundo de sustentação das questões maiores, em O Poeta e a Inquisição, é a condição de existência do desejo, da sexualidade.

É a sexualidade que leva, de certo modo, Frei Gil ao desespero e ao descontrole, na sua perseguição a Antonio José: disputa “irracional” por Mariana:

Frei Gil:…………………………………

Que me faz palpitar de amor o peito.

Vinde, cara Mariana, eu vos adoro,

Abraçai-me.

É a sexualidade o que constrange Mariana em sua profissão mal vista pelo público a quem serve:

Mariana: Que nos vê com desprezo e que nos trata

Como uma classe vil e desgraçada,

Sem honra e sem pudor;………………………………..

SEXO: PAVOR E DESESPERO

Por toda a peça rondam o desejo contido e a sexualidade sublimada. E quando esses sintomas se explicitam, desencadeia-se um fato trágico ou uma situação dramática. A sexualidade explicita promove o pavor e o desespero, chegando a ser determinante de confusos sentimentos de amor e ódio:

Frei Gil: Tanto orgulho já me irrita!

Eu quero, mulher louca, eu quero ver-vos

No Santo Tribunal com esse orgulho.

O estigma do desejo irá atormentar Antonio José no seu sonho, verdadeira premonição da tragédia. E quando mais tarde esse sinal de desejo vem ao consciente, se expressando na sua proposta de casamento a Mariana, para ela se dá o desfecho trágico: sua morte. Mera coincidência? Jamais, principalmente numa obra tão mobilizada pelo acaso.

O sonho de Antonio José, na cena IV do ato, está carregado de símbolos e referências eróticas(” sonhava com serpentes.”). Seu pavor conota uma sexualidade reprimida. Em questão, a salvação de Mariana perseguida por um homem que a empurra para a fogueira. Mariana, salva e desmaiada aos pés de Antonio José, não será o suficiente. Este investe contra o fogo do Santo Oficio, espalhando tochas por toda a praça. A arma que tem em mãos, no embate, é uma espada. Os índices são óbvios, não apenas prenunciando a tragédia, mas também toda a questão passional e dramática que a envolve. Sua falha e seu conflito.

Desejo e morte se entrelaçam sob o estigma da violência e do medo. Para ambos, desejo e morte, a salvação está em Deus, instância única da felicidade:

Antonio José:………Deus ouviu-me,

E de minhas misérias condoeu-se! …

Eu vitima vou ser no altar de fogo,

………………………………………….

………………………………………….

…………………………..- Eia, partamos.

Adeus, masmorra! Oh! mundo! Adeus, oh, sonho!

O ARTISTA E A NAÇÃO

O próprio Magalhães é quem irá considerar O Poeta e a Inquisição “a primeira tragédia escrita por um brasileiro, e única de assunto nacional”. Há portanto que se reproduzir na obra este seu intuito nacionalista, auferindo-se dai o seu conceito de nação.

No caso, toma-se a ideia de nação como uma somatória populacional determinada por dado solo pátrio. Antonio José é um poeta brasileiro, por ser o Brasil o seu berço de nascimento. Concepção decorrente da mitologia romântica, que toma a pátria como uma ideia-força básica.

O Conde de Ericeira localiza esse conceito, determinando seus compartimentos:

O Conde: O que é Nação? A soma de escritores,

De artistas, mercadores, e empregados,

Gente do campo, frades, e governo.

Formulação que nos permite aglutinar tamanhas peculiaridades em três estamentos, destacando-se como primeiro desses, o que reúne escritores e artistas, situando-se como o terceiro, o que reúne frades e governo. Isto numa disposição justo o inverso da situação social do poder e do mando lusitano que nos traça a peça. No trânsito mediano, está aquilo que se pode chamar de “povo”: mercadores, empregados, gente do campo, sem dúvida o mais complexo e numeroso conjunto dessa compartimentação.

A nação se constrói com sua história. A glória dessa história será o motor de sua feição no presente e no futuro. E nesse âmbito, fundamenta-se a importância do intelectual pátrio, uma espécie de nobreza do espírito, nobreza maior, ainda a ser reconhecida, e a quem cabe registrar os passos dessa nação, marcos que lhe servirão de exemplo no seu desenvolvimento histórico.

A partir dessas concepções, tem-se um confronto de duas nacionalidades. Uma delas, decadente e corrupta, incapaz de reconhecer seus valores intelectuais. Um Portugal opressivo, nação que outrora não soubera considerar seus filhos de talento: o drama de Camões revive-se no de Antonio José. Nação em que impera o medo e onde o governo “a servidão ao povo contagia”. Espaço nacional em que a religião se vê dominada por espíritos do mal que desviam o sentido da doutrina: ·

Antonio José:………………………………

Era de corrupção e decadência!

E o que fazemos nós! A passos largos

Marchamos para a queda. (…)

Onde está Portugal? Nação que outrora

Do mar o cetro sustentava ufana,

E mandava seu nome a estranhos povos?

É a advertência exemplar que se faz à outra nação, esta, jovem e emergente, que procura construir seu futuro, solidificar suas bases gloriosas. Considera a peça que o primeiro passo para isso deve-se dar pelo reconhecimento e respeito ao valor desse estamento superior, a intelectualidade.

O INTELECTUAL E O VULGO

O ideário de Magalhães sempre retorna a seu ponto de partida: a reafirmação da importância do intelectual no contexto social. Dado que pretende consolidar nas novas perspectivas do pais, invertendo o sentido da tragédia que se descortina a olhos vistos, tomada como uma fatalidade, como já o dissera Camões:

“O favor com que mais se acende o engenho,

Não no dá a Pátria, não, que está mettida

No gosto da cubiça!”

Magalhães, ambíguo em suas reflexões, crê e descrê na viabilidade de seus propósitos. O esteio da nação, conforme se aufere das palavras do Conde, é o povo. Mas para o próprio Conde o povo é ingrato, além de submisso aos opressores. Antonio José, por sua vez, confia no povo, pois entende ser sua corrupção determinada pelos governos:

Antonio José: Sustenta o povo a carga enquanto pode,

E, quando excede o peso às suas forças,

Ergue-se e marcha, e deixa a carga e o dono.

A advertência do poeta é aos poderosos. Como ao povo, adverte o Conde, homem poderoso, mas nobre esclarecido:

Conde: Pois que se erga, e que marche; eu não o impeço.

A proposta liberal frente à revolta popular contra a corrupção governamental é um dos pressupostos aparentes da peça. Contudo, para que se capte sua concretude, basta que se determine no texto quem é a representação do “espirito popular” e como este se expressa.

É a criada Lúcia a expressão personalizada desse sentimento, conforme a visão do autor. Ora ela, em cena, age como simples coro trágico, ora não é mais que personagem farsesco, ingênuo e medroso. Sempre um serviçal fiel. Às vezes, um tanto a voz da razão. Mas que razão? Nas situações pungentes, dela se exige o apoio. Além disso, não lhe resta mais que sair de cena.

Lúcia é o “vulgo” ainda incapaz de compreender a importância daquele que lhe serve quase como escravo e que tanto precisa de sua consideração: o artista. A peça se propõe a guiar esse “vulgo” ao significado dessa necessidade, dessa consideração para com o “trabalhador do espirito”.

Além do “povo”, há um outro aliado do artista: é o nobre esclarecido. Aqui a aliança é mais firme, menos calcada nas aparências. Para o artista, essa nobreza tem um projeto definido, viável e que sem dúvida lhe é de grande agrado:

Conde: (Só) É um homem de gênio. Assim o Estado

Soubesse aproveitar o seu talento;

Assim o gênio governasse o mundo;

Ou então entre os Reis e as classes nobres

Só deviam nascer os grandes homens.

O SÁBIO E A FALHA

Magalhães difusamente aspira a uma meritocracia, em que o mérito maior reside no talento, no saber, no intelecto. Uma nação em que em última instância o poder esteja nas mãos do sábio, do esclarecido bem intencionado. Confrontando-se o Conde de Ericeira com Antonio José tem-se uma outra situação complementar. A falha de um é exaltação, o extremismo; a de outro, a paciência. Nisto, procura-se um equilíbrio delicado, com seu ponto de apoio no “povo”. Frágil ponto de apoio, ainda que necessário, principalmente na hora do infortúnio. O “trabalhador do espírito” não pode prescindir do trabalhador manual, consideradas suas diferenças e seus solos. Na hora do infortúnio, o sábio deve tanto saber adotar a imagem popular (Antonio José foge da Inquisição, com roupas de criado), como agradar a certos camarotes.

Assim se compõe o ideário de Magalhães. Mas a delicadeza do equilíbrio social que busca veicular e reivindicar é tal que seu discurso é um tanto descrente de suas possibilidades. O prefácio da tragédia se encerra com essa revelação descrente: “Mas ah! na porta do templo da immortalidade está escripto para os Brasileiros estas palavras, como na porta do Inferno de Dante: Lasciate ogni speranza, voi che’ntrate”.

Por isso, seu discurso trágico é impositivo e moralista: advertência catastrófica que se compõe verso a verso, cena a cena, quando o desequilíbrio provocado pela intolerância ameaça a todos.

O liberalismo do texto propõe uma ficção convencional, um acordo entre “classes”, para a glória da nação: no ápice das preocupações, a glória do artista, meta a se alcançar, em benefício geral. Ambígua pretensão, pois que o equilíbrio desejado e frágil, reconhecido como sonho, no mundo das artes.

As falhas de Antonio José são complexas e desencadeadas por muitos fatores que são de determinação natural ou social, tais como sua origem judaica, seu comportamento exaltado e perturbado pelos ímpetos do desejo e do instinto, sua ambiguidade pouco explícita na relação com o povo e a nobreza esclarecida (serve ao povo divertindo-o e recusa ouvir os conselhos daquele que o protege). Neste quadro de tensões e falhas, Antonio José se perde, como há de se perder também o Conde de Ericeira, de certo modo, o “outro” de o Judeu. O modelo é uma somatória de seus sentidos. O destino dos dois será. o céu, pois que na terra não há lugar para seus sonhos. Da peça, resta a advertência e a pretensão do equilíbrio, quando ela fala à plateia e aos camarotes.

Magalhães parece ver nessa impingência modelar a única e frágil possibilidade de o artista soltar-se à renovação das artes, sem precisar entrar no inferno das opções marcadas pela fuga ou pela morte. Uma renovação sem intensidade, contida no seu desejo. Calcada em mitos e na distorção da história, para se tornar viável.

Ambígua na sua viabilidade, pois que objetivando o soerguimento nacional, conduz a nação pela crença numa história mitológica e distorcida.

O TRÁGICO E O DRAMÁTICO

Não se pretende aqui discutir a propriedade da estrutura trágica de O Poeta e a Inquisição. A questão é pacífica entre os estudiosos, pois de muito já se reconhece a fragilidade do motor trágico da obra, tão dependente de frágeis coincidências e de tantos recursos folhetinescos.

O que se propõe com esta nota é a inserção de novos dados no âmbito das conclusões a propósito da questão. Considera-se que, além do móvel trágico da peça, há também nela um motor dramático que se levado em conta dimensionará sua leitura, além de melhor esclarecer o significado ideológico de sua ambiguidade estilística.

Magalhães é autor de transição. Passa à experiência romântica, não se livrando totalmente de certas lições neoclássicas. Situação que se evidencia no texto, ao rastrearmos seus sintomas, na busca do modo de composição desses modelos.

A mobilidade da obra se calca basicamente em duas determinantes. Uma de frágil motor trágico: Antonio José, na multiplicidade de seu significado, é uma personagem trágica. Por outro lado, tem-se o motor dramático: a questão passional em jogo na peça.

A desesperada paixão de Frei Gil por Mariana comporta conflitos íntimos que compõem uma personagem dramática. Lida a peça através desses conflitos, enuncia-se, na tragédia de frágil feitio neoclássico, o procedimento do drama romântico. O equilíbrio dessa transitoriedade modelar alcança sua plenitude no quinto ato quando as duas personagens – o trágico Antonio José e o dramático Frei Gil – se defrontam em composição complementar.

Ainda que renovador das artes, Magalhães é um ponderado no seu pioneirismo. Na verdade, um compositor de delicado equilíbrio, conforme tenta conjugar seus dois heróis.

Antonio José, no calabouço do Santo Oficio, encontra-se com o espirito fortalecido e o físico em frangalhos: é o artista. Com Frei Gil dá-se o contrário: justo como antes o drama caracterizara Lúcia, a criada, o “vulgo”. Sua alma padece de dor, embora esteja forte e são fisicamente. Os dois se encontram numa identidade de dupla direção: para o céu e para a terra.

Em cena anterior, no mesmo ato, Antonio José deixará claro ser a vida uma passagem: “em dor começa e em dor acaba”. Agora, Frei Gil, o único sobrevivente da tragédia, pois seu personagem dramático é o exemplo vivo dessa dor terrena, buscando refúgio no seu remorso infinito. Seu apoio na vida virá daquele que vai morrer para a glória. Antonio José o perdoa para que Frei Gil possa crer na purgação de seu arrependimento.

Por seu lado, é o drama de Frei Gil o que sustentará Antonio José, empurrando-o à certeza do céu. Ao que fica na terra, cabe o sofrimento do remorso. A instância da felicidade reside na morte, porta para o paraíso:

Antonio José: E entre a fumaça de meu corpo em cinzas,

Minha alma se erguerá com um aroma

puro do sacrifício à Eternidade!…

Recebei-a, Senhor! – Eia, partamos.

Adeus, masmorra! Oh mundo! Adeus, oh sonho!

Fuga e morte. Remorso na fuga; glória na morte. Eis a contextura de uma religiosidade paulina que se sobrepõe compondo todo um ideário judaico-cristão.

Falando ao público, a peça tenta assim, pode-se dizer, estigmatizar com a dor do sofrer na terra, a nova nação emergente, cheia de incertezas, pois sociedade em crise de transformações. Perspectiva, aliás (ainda que consideradas as devidas diferenças), tantas vezes presente em muitos dramas contemporâneos que se arvoram como sendo de um teatro de combate e oposição ao status quo, sob uma feição de arte pretensamente comprometida com o “povo”.

5. O PRAZER DE MACÁRIO COMO LEGADO À ATUALIDADE

para

mariângela

Barthes

& brecht, santíssima trindade, nesta trabalheira

FRUTO DO DELÍRIO

O sentido de MACÁRIO[30] não se basta numa visão da obra conforme os projetos modelares da literatura de sua época, no Brasil. É arte de transgressão. Obra solitária que nos expõe de certo modo, nas suas origens, toda uma crise de consciência da chamada dramaturgia nacional. Daí nossa preocupação com seu significado, no conjunto dessa pesquisa.

Se ao trabalhar com seu material temático, Álvares de Azevedo, de acordo com os modelos e costumes estéticos dominantes de época, não se satisfaz (sentindo-se obrigado à justificativa, alegando ser a obra um “fruto do delírio”), a peça, nem por isso, deixa de efetuar uma ruptura – o seu sentido maior – com esses modelos e costumes, nas suas possibilidades. E é a observação dessa ruptura o que não se pode deixar de lado, no registro do papel histórico da obra. Daí, neste estudo, a indicação de uma revisão de MACÁRIO como necessária, interpretação que lhe dê um lugar mais apropriado, mesmo que lugar solitário, na trajetória da produção romântica, no Brasil.

É claro que essa proposta de atualização de uma visão de MACÁRIO jamais irá fazer da peça uma obra de nosso tempo. Mas sim uma obra considerada no seu tempo, enquanto produção que alcança a contemporaneidade com os seus reflexos, matriz de um veio diverso da tradição preponderante na “dramaturgia brasileira”, superando a condição meramente arqueológica a que praticamente estão relegada as demais peças teatrais do romantismo, por seus méritos e/ ou deméritos.

A SOLIDÃO E A RETÓRICA

Por outro lado, uma perspectiva de análise que procure calcarse numa relação dialética sincrônico-diacrônica da presença de MACÁRIO na história da literatura no Brasil, logicamente, não pode abrir mão de entender a conformidade das possibilidades do tempo espaço de sua produção literária. Pois esta será a condição primeira de toda a demarcação da grandeza da obra, uma peça muitas vezes mal compreendida, justo por se tentar situá-la apenas de acordo com os modelos dominantes de época, sem uma viabilidade que lhe abra· espaço enquanto modelo peculiar e ímpar entre os seus contemporâneos. Modelo peculiar de expressão da condição de existência sensível do artista, no seu espaço, falando assim de si, para falar de seu tempo (Brasil, meados do século XIX, após a falência da revolta liberal de 1842 e a consolidação de um estatuto imperial conservador) e despido das máscaras de uma linguagem bem comportada, pois que sob a mobilização dessa controvertida existência sensível. Existência tão controvertida como necessitada de uma retórica fantástica, possibilidade talvez única para uma exibição mais pungente de suas contradições: os modelos vigentes e dominantes – a nível do consciente – são mais fortes do que a solidão do artista transgressor, na hora de compor sua ruptura com o senso comum da arte frente o real. E se alguém compreendeu MACÁRIO como expressividade significativa e particular, na maioria das vezes conteve essa compreensão na admiração pelo pasmo. Exemplo disso será como Mario de Andrade registra a peça, entre a coragem e a reverência: “…a coisa mais genial que o poeta criou”.[31]

DUAS FACES DO PRAZER

Mas a consideração de MACÁRIO para uma sua inserção dentre as obras de transgressão e modernidade própria exige de nós irmos além do pasmo. Exige primeiro que admitamos o escritor como sendo alguém que enxerga a linguagem como um local dialético, no qual as coisas se fazem e se desfazem. E esta preocupação nos remete à sofisticação do método, buscando apoio em Roland Barthes, mais explicitamente em O Prazer do Texto, onde a avaliação das obras como modernas se fundamenta no caráter da duplicidade. MACÁRIO como obra de gênio e o gênio – no dizer do poeta seu autor – sendo que nem o Juno latino: “tem duas faces”. Eis o universo de procedimento estrutural da peça, em que suas personagens se debatem na ânsia por explicitá-lo. É a exibição (sem dúvida, romântica: consideração básica) do desespero da contradição. Um desespero que, embora já sendo de Álvares de Azevedo, não deixa de ser nosso contemporâneo. Pois será o próprio Barthes quem, falando ainda do prazer do texto, nos pergunta: “quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição?” E se Barthes nos responde categórico que será “o leitor do texto” o único capaz dessa postura resolvida frente à contradição, tem-se então uma obra para a propriedade do leitor, sobretudo: mensagem determinada, diríamos, de fio a pavio, do autor para o leitor a fim de que esse leitor possa incendiar-se no seu prazer peculiar. Ou melhor, e sem retórica, para que esse leitor possa transformar-se diante do sentido da obra, pelo prazer. Diante de seu sentido temático, como também de seu procedimento formal: uma tenta tiva de se explicitar o tempo e o espaço da existência sensível, nas suas ânsias e delimitações. Eis o que é MACÁRIO para o seu leitor. Uma questão que a própria filosofia mais contemporânea ainda se coloca: “O que acontece atualmente e o que somos nós, nós que talvez não sejamos nada mais e nada além daquilo que acontece atualmente?” Sendo esta a indicação fundamental mais intrigante que o palco nos terá de mostrar com MACÁRIO.

O desespero da contradição, quando a contradição é a própria história, tanto no seu significado existencial (história das individualidades, das sensibilidades íntimas), como no seu significado social (história da luta de classes contraditórias), isto assim disposto em compartimentação didática, pois que essa binomia por si só (individual e social) compõe um todo antinômico, todo que se move e se historiciza por suas contradições. O desespero frente à contradição para compreendê-la como mediação de uma totalidade impossível se o projeto é a permanência dessa totalidade.[32] Pois que a história não é a permanência, sendo o movimento: no desenvolvimento da peça, a viagem. E a contradição, o seu móvel, na medida em que na obra há mobilidade.

O DELÍRIO COMO TRANSGRESSÃO

MACÁRIO, mesmo que aprisionado num dado estágio de nível de consciência crítico de sua época, é uma tentativa angustiada e demoníaca de compreensão dessa complexidade. E sua transgressão, nesse sentido, será a transgressão com o nível de consciência dominante entre os artistas brasileiros de então, insuficiente para satisfazer os intentos da tarefa que, em “delírio”, Álvares de Azevedo se impõe “como pintor febril e trêmulo”. Insatisfeito.

Macário: “…Enquanto não se inventar o meio de ter mocidade eterna, de poder amar cem mulheres numa noite, de viver de música e perfumes, e de saber-se a palavra mágica que fará recuar das salas do banquete universal o espectro da morte antes disso pouco tereis adiantado.

Dizes que o mundo caminha para o Oriente. Não serei eu, nem o sonhador daquele livro que ficaremos no caminho. O harém, os cavalos da Arábia, o ópio, o haxixe, o café Moka e latakiá são coisas soberbas!

A poesia morre: deixá-la que cante seu adeus de moribunda. Não escutes essa turba embrutecida no plagiar e na cópia. Não sabem o que dizem esses homens que para apaixonar-se pelo canto esperam que o hosana da glória tenha saudado o cantor. São estéreis em si como a parasita. Músicos – nunca serão Beethoven, nem Mozart. Escritores – todas as suas garatujas não valerão um terceto de Dante. Pintores – nunca farão viver na tela uma carnação de Rubens ou erguer-se no fresco um fantasma de Miguelângelo. É a miséria das misérias! Como uma esposa árida tressuam e esforçam-se debalde para conceber. Todos os dias acordam de um sonho mentiroso em que creram sentir o estremecer do feto nas entranhas reanimadas.

Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas da floresta, nas torrentes das serranias, como lá tivessem dormido ao menos uma noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como Hamlet no cemitério a cada caveira o seu passado. Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração; que na floresta há insetos repulsivos, répteis imundos; que a pele furta-cor do tigre não tem o perfume das flores… que tudo isso é sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade! Escuta-me ainda. O autor deste livro não é um velho. Se não crê é porque o ceticismo é uma sina eu um acaso, a sim como é às vezes um fato de razão. As cordas daquela lira foram vibradas por mãos de moço, mãos ardentes e convulsas de febre… talvez de inspiração… Foi talvez um delírio; mas foi da cabeça e do coração que se exalaram aqueles cantos selvagens…” (MACÁRIO, pp. 154/155)

SEM TRAMA NEM ENREDO

Nos termos de seu procedimento formal, tem-se na obra uma ruptura significativa com o modelo aristotélico de drama. Rompe-se com essa tradição. Ruptura margeada pelo romantismo, porém já expressando certa inexistência de um conflito dramático típico. Não há propriamente uma trama em MACÁRIO, e mesmo, nem muito bem delineado, um enredo. Trata-se de uma viagem dramatizada. Leitura daquilo que o viajante (ou melhor, os viajantes) nos relata(m) das margens “da trajetória opressiva: o tempo e o espaço, a história de que participa certa sensibilidade. Do princípio ao fim, se é que MACÁRIO tem um fim: o voyeurismo, a possibilidade extrema que resta à postura romântica como instrumental passível. de apreensão da totalidade contraditória (ou duplicidade complexa) da existência. E no sentido desses objetivos, considerada é claro a sua retórica fantástica, MACÁRIO pode ser entendida até como uma peça que didatiza a sua temática: motivo implícito de certa rigidez na compartimentação binômica das antinomias da totalidade exposta.[33]

Macário: “A filosofia é vã. É uma cripta escura onde se esbarra na treva. As ideias do homem o fascinam, mas não o esclarecem. Na cerração do espírito ele estala o crânio na loucura ou abisma-se no fatalismo ou no nada.

Penseroso: Não; não é o filosofismo que revela Deus. A razão do homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites muito, que ela se apagará.

Macário: Só restam dois caminhos àquele que não crê nas utopias do filosófo. O dogmatismo ou o ceticismo.

Penseroso: Eu creio porque creio. Sinto e não raciocino.

Macário: Talvez seja a treva de meu corpo que me escureça minha alma. Talvez um anjo mau soprasse no meu espírito as cinzas sufocadoras da dúvida. Não sei. Se existe Deus, ele me perdoará se a minha alma era fraca, se na minha noite lutei embalde com o anjo como Jacó, e sucumbi. Quem sabe? – eis tudo o que há no meu entendimento. Às vezes creio, espero: ajoelho-me banhado de pranto, e oro; outras vezes não creio e sinto o mundo objetivo vazio como um túmulo.” (MACÁRIO, pp. 156/157).

O HOMEM NA ESTRADA

Jovem, culto, ainda descomprometido o bastante socialmente com a composição de uma perspectiva ideológica dominante, se não por sua formação de classe, ao menos pela dinâmica dos poetas que mais admirava – Byron e Musset -, Álvares de Azevedo, sensibilidade aguçada por ânsias que se debatem no conhecimento e no prazer, penetra nas angústias complexas de sua época, para dar resposta ao enigma que se realça com a falência dos mitos individualistas do “novo regime”. O “enigma edípico” de sua contemporaneidade, ou seja, não somente a questão da definição do homem, bicho que anda com quatro pés pela manhã, dois à tarde e três à noite: a Esfinge tem agora uma pergunta mais complexa. O que é a história desse homem e o que resta a esse homem na história, na estrada, na viagem? Eis a questão.

Macário: “Muito bem, Penseroso. Agora, cala-se: falas como esses oradores de lugares comuns que não sabem o que dizem. A vida está na garrafa de conhaque, na fumaça de um charuto Havana, nos seios voluptuosos da morena. Tirai isso da vida – o que resta? Palavra de honra que é deliciosa a água morna de bordo de vossos navios!

Que têm um aroma saudável as páginas de vossos engenhos a vapor! Que embalam num farniente balsâmico os vossos cálculos de comércio! Não sabeis da vida. Acende esse charuto. Penseroso, fuma e conversemos. Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada parem! O mundo está de esperanças desde a primeira semana da criação… e o que tem havido de novo? Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansara de afogar homens na água do dilúvio, nem mandar como ficar, macilenta e ensanguenta, a imagem de Cristo divino. O mundo hoje é tão devasso como no tempo da chuva de fogo de Sodoma. Falais na indústria, no progresso? As máquinas são muito úteis, concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e mármores, mas a arte degenerou em ofício e o gênio suicidou-se.” (MACÁRIO, pp. 153/154)

O TEMPO E A NATUREZA

A questão da história do homem e o lugar do homem na históría, questão de uma época em que se começava – conforme diria Valéry mais tarde – a se desconfiar que já passara o tempo em que o tempo não importava. Pois que já passava o tempo em que o ser humano podia acreditar na sua harmonia com a natureza. E será essa desarmonia então atormentadora para o jovem poeta tumultuado de sensibilidades o móvel interior da descontinuidade de sua peça. O móvel que fará dela espaço necessitado do demônio enquanto condutor da viagem de reflexões frente à existência. Acompanhado por Satã, assim Macário traça sua aventura, sendo esta sua companhia quem irá libertá-lo dos sonhos e das esperanças míticas de Penseroso (este, o seu outro, a metade de sua totalidade significativa), na adoção do delírio que há de reajustá-lo no tempo: delírio comedido de voyeur.

Macário: Se eu pudesse morrer! (Desmaia)

(Satã entra)

Satã: Que loucura! Esse desmaio veio a tempo; seria capaz de lançar-se à torrente. Porque amou, e uma bela mulher o embriagou no seu seio, querer morrer! (Carrega-o nos braços) Vamos… E como é belo descorado assim! Com seus belos cabelos castanhos em desordem, seus olhos entreabertos e úmidos, e seus lábios feminis! Se eu não fora Satã, eu te amaria, mancebo… (Vai levâ-lo).

Penseroso: Quem és tu? Deixa-o…. eu o levarei.

Satã: Quem sou eu? Que te importa? Vou deitá-lo num leito macio. Daqui a pouco seu desmaio passará. É um efeito do ar frio da noite sobre uma cabeça infantil ardente de febre. Adeus, Penseroso. (MACÁRIO, p. 145)

Explicar esse tempo que tanto importa, para se situar nele, na sua viagem, e resolver-se frente à desarmonia com a natureza da existência são as preocupações fundamentais da peça, na mobilização subjetiva de Álvares de Azevedo:

Macário: … A natureza é um concerto cuja harmonia só Deus entende, porque só ele ouve a música que todos os peitos exalam. Só ele combina o canto do corvo e o trinar do pintassilgo, as Nênias do rouxinol e o uivar da fera noturna, o canto de amor da virgem na noite do noivado e o canto de morte que na casa junta arqueja na garganta de um moribundo. Não maldigas a voz rouca do corvo: ele canta na impureza um poema desconhecido, poema de sangue e dores peregrinantes como o do bengalim é de amor e ventura! Fora loucura pedir vibrações a uma harpa sem cordas, beijos à donzela que morreu, fogo a uma lâmpada que se apaga. Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera. (MACÁRIO, p. 152)

O DEMÔNIO E A MORAL

Mas que instrumental teria o poeta para alcançar, com sua literatura, a explicitação de suas tormentas? Justo ele, um romântico e no Brasil dos meados do século XIX, na província de São Paulo? Instrumental precário, sem dúvida. Mas explicar o tempo e resolver-se frente à desarmonia com a natureza da existência serão mesmo os problemas essenciais de Álvares de Azevedo, em MACÁRIO, pois nisto o poeta vê a própria razão de ser do drama e do teatro, definidos por ele como “espelho da sociedade”. Um espelho peculiar, romantizado, subjetivizado, quando nesse mesmo espelho “é necessário que o sonho do poeta deixe impressões ao coração e agite n’alma sentimentos de homem”.[34] Funções em crise, pois que são também contraditórias para o poeta, no seu modo de ver os destinos sociais da arte, ora “apostolado moralizador”, ora lugar onde se há de “cantar os sentimentos da época”. E nesse processo, novamente a duplicidade se implanta como ânsia de apreensão da totalidade, o ambíguo sendo então a expressão possível de entendimento da história, por seus reflexos.

Mas como viabilizar a aliança que se ensaia com o demônio – a ruptura, a transgressão – tomando-se também por fundamento uma preocupação moralizante. Por isso, Macário se debate entre a culpa e a orgia, acomodando-se no voyeurismo. Contendo o próprio Satã, quando este ainda insiste em continuar a viagem:

Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas. Que noite!

Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem! Escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como ópio, é o Letes do esquecimento. A embriaguez é como a morte…

Macário: Cala-te. Ouçamos. (MACÁRIO, p. 170)

ALÉM DA VISÃO DA ORGIA

A obra, porém, é maior do que sua personagem homônima. Grandeza, contudo, só pertinente ao leitor, na sua fruição. Grandeza da projeção histórica da peça, ao revelar sentimentos de época a uma leitura critica que da obra pudermos fazer. Grandeza maior da obra, no procedimento de sua estrutura dramática descontinua, fundamentalmente. Procedimento que há de passar como tal – como discurso de transgressão – à estrutura de pensamento do leitor que, viajando lado a lado de Macário e Satã, não há de se conter de olhos colados na descrição da orgia, não há de se conter por detrás de uma vidraça fumacenta, querendo assim saber daquilo que Satã tem ainda por dizer.[35]

Na peça, o que mais insatisfaz é a sua última cena. O drama se encerra como se não encerrasse: eis o que se tem no texto. A viagem está no meio do caminho, e as atenções do viajante Macário são distraídas na perdição dos que não participam, embevecidos com a condição de plateia: é lógico, condição ansiosa.

E o leitor? E o leitor diante disso? Ora, toda essa tormenta de ambiguidades há de movê-lo para além desse Macário desintegrado, homem partido ao meio – após Penseroso ter morrido, incompreensível morte – metade apenas de uma totalidade que Álvares de Azevedo não soube resolver na sua dinâmica, ou melhor, que a sua época e seu espaço – a formação do poeta – não lhe permitiram explicitar: eis o dilema que se exibe.

Não nos cabe aqui, com isso, justificarmos Álvares de Azevedo pelas limitações de sua obra, mas explicá-lo ou ao menos entendê-lo nos planos binômicos, isto é, ambíguos, de sua mensagem: a moeda corrente de uma sensibilidade que nos mostra as faces dessa moeda dissociadas, para nós sabermos juntá-las numa perspectiva de contra dições: a tarefa que se impõe ao leitor atento e crítico. Sendo também o que resta a um encenador de MACÁRIO, hoje, caso esteja interessado em transcender os sentimentos em que sucumbe o drama, na grandeza de suas tentações. Isto, para que se reproduza no espectador uma apreensão sincrônico-diacrônica, um entendimento dialético, enfim, de contemporaneidades. O sentido da atualidade de MACÁRIO.

UMA PARÓDIA DA PARÓDIA

“Os estudantes de São Paulo, com suas blasfêmias exteriores e retórica decorada, suas pobres orgias à luz da lamparina, regadas a cachaça, ao som da magra viola sertaneja, não criaram atmosfera para outra coisa senão a paródia”.[36]

O que diz Antonio Cândido é próprio para MACÁRIO e não menos para Álvares de Azevedo. Lamparina, cachaça, viola sertaneja são referências da peça, coisas do espaço e do tempo descritas e situadas nos âmbitos de um romantismo cheio de revoltas, como também atrelado a certa postura passiva diante da vida: as blasfêmias exteriores e a retórica decorada, no caso, sob a égide de um discurso metaliterário.[37]

Mas, não há por que recusar MACÁRIO também como uma paródia peculiar, sobreposição de paródias, em última instância, paródia da paródia: o que há de clarear ainda mais a sua grandeza transgressiva frente os modelos de época. As “Páginas de Penseroso” estão na peça confirmando esta indicação de modo explicito. Paródia, seja no sentido grego da expressão, “canto do lado de outro”, seja mesmo na absorção do aspecto burlesco para todos os planos da composição onde emergem referências imitativas, analógicas e/ ou paralelísticas com o cotidiano, o real produzido, em MACÁRIO. São paródias que se sobrepõem, refletindo-se na própria cosmogonia da temática: a vida entendida como arte e a arte como vida, totalidade pretendida num contraponto mimético sempre em realce na peça. A começar pelas analogias entre o ideal da amante e o ideal da arte. A procura da mulher amada e a tentação do belo, fenômenos com os mesmos coloridos, nas suas impossibilidades concretas, tamanhas as contradições que lhes são intrínsecas.[38]

Penseroso: A mulher! Oh! Se todos os homens as entendessem! Essas almas divinas são como fibras harmoniosas de uma rabeca. O ignorante não arranca dela um som melodioso embalde suas mãos grosseiras resolvem e apertem o arco sobre elas – embalde! Somente sons ásperos ressoam. Mas que a mão do artista as vibre, que a alma do músico se derrame nelas, e do instrumento grosseiro do mendigo ignorante ou do cego vagabundo, como do estradivário divino, exalem-se áis, vozes humanas, suspiros acentos entrecortados de lágrimas.

Macário: Oh! Sim! Se na vida há uma coisa real e divina é a arte; e na arte se há um raio do céu é na música; na música que nos vibra as cordas da alma, que nos acorda da madorra da existência a alma embotada. Oh! É tão doce sentir a voz vaporosa que trina, que nos enleva e que parece que nos faz desfalecer, amar e morrer!

Penseroso: E é tão doce amar! Eu amei, eu amo muito. Sabe Deus as noites que me ajoelho pensando nela! A brisa bebe meus suspiros, e minhas lágrimas silenciosas e doces orvalham meu rosto (MACÁRIO, pp. 143/144).

Paródia no colorido burlesco com que se matizam as angústias de Macário/Penseroso, a tragédia de uma ânsia da totalidade, numa sociedade de desencontros:

Macário: Tudo isso não prova que ele não trota danadamente. Falta-nos muito para chegar?

Satã: Não. Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia: iluminada, mas sombria como uma eca de enterro. (MACÁRIO, p. 119)

MACÁRIO SATÃ E O LEITOR

Enfim, uma sobreposição de paródias do tempo e do espaço subjetivizados, conforme a sensibilidade de Álvares de Azevedo, esboçada “numa noite de insônia, como um poema que cismei numa semana de febre”, condição de possibilidade para a viabilização das transgressões com o senso comum da literatura vigente e dominante. A febre e a insônia, o delírio, na linguagem das controvérsias, como justificativas do consciente para os conflitos morais do autor em meio às audácias de sua obra: no que ele se debate.

“Mas se eu imaginasse primeiro a minha ideia, se não escrevesse como um sonâmbulo, ou como falava a pitoniza convulsa agitando-se na trípode, se pudesse, antes de fazer meu quadro, traçar as linhas no painel, fá-lo-ia regular como um templo grego ou como a Ataláia arquétipa de Racine”.[39] A paródia como instrumento de exibição do indizível, linguagem substitutiva que tende a nos informar aquilo que a razão não ousa desvelar, sendo desvelada – pois paródia da própria paródia – então somente pela apreensão das duplicidades de um traçado de emoções.[40] Isto, sob a tensão de um tempo descontínuo e demoníaco: o tempo de MACÁRIO. Como demoníaco e descontínuo foi o tempo do autor, conforme indicação de seu instrumental de análise na reprodução da realidade de sua vivência: ”uma aberração dos princípios da ciência, uma exceção às minhas regras mais íntimas”. Aberração de princípios e regras sem dúvida necessária, pois que se tinha – é claro – a ciência de um país e de urna sociedade econômica, política e culturalmente sobretudo interdependente, mas atrasada e bastante comprometida com as relações capitalistas internacionais mais avançadas e dominantes. A economia capitalista desse país, sustentada pelo braço escravo – contradição maior – e sua “inteligência” – seus intelectuais – se inquieta e insatisfeita, “descolada” absolutamente de urna vivência das tensões sociais mais aguçadas da luta de classes interna. Intelectualidade fundamentalmente distante – do outro lado – das condições objetivas de vida e trabalho dos mais insatisfeitos concretamente com a ordem social. Intelectualidade majoritariamente integrada nos setores dominantes da sociedade e quase sempre diretamente comprometida com o Estado, seja na sua organização, seja na sua preservação administrativa.[41]

As expressões “aberração ” e “exceção “, conotadas pelo autor de modo pejorativo, têm em si outro dado de descomprometimento do artista com sua obra, na busca por um lugar de respeito na ordem intelectual dominante. Contudo, são palavras de um prefácio. E a obra, indo além do prefácio, assim se reafirma, conotando por outro lado a ambiguidade das possibilidades intelectuais de Álvares de Azevedo, em seu contexto social. Pois a obra é a obra. E o prefácio, o prefácio. Dissonância, no caso, que nos expressará emocionalmente uma vivência. Como dissonante é a satisfação de Macário, do outro lado da orgia: no voyeurismo. O que não será a satisfação da obra, nem a satisfação do leitor. O apelo do diabo vê-se contido pelo impalpável, pelo que se passa do outro lado do vidro fumacento, intransponível, se não pelo olhar turbado.

Na referida cena, Macário e Satã estão agora mais a sós do que antes da morte de Penseroso. A sós, mas na companhia do leitor. E esse leitor, aquele que suporta as contradições “sem nenhuma vergonha”, na busca do prazer do texto, por isso não há de se satisfazer com essa dissonância envergonhada, que toma assim um colorido de denúncia de um dado estado de coisas da sensibilidade. Eis o sentido social da obra, apesar do caráter subjetivo da revolta que lhe perpassa.

SÃO PAULO SABOR ITÁLIA

Sem dúvida, conforme observa Alfredo Bosi,[42] “o fulcro da visão romântica é o sujeito”. É ele o “emissor da mensagem”. E, de novo concordando com o autor de História Concisa da Literatura Brasileira, o “eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à evasão”. Mas, no seu corpo, na sua estrutura relacionada com o leitor, por ser uma sobreposição de discursos, MACÁRIO de certo modo também transgride com isso, quanto à sua atualidade. A começar por ser ambígua a satisfação da fuga. Por ser a evasão, o epílogo de uma obra em aberto. Ambiguidade o bastante para manter Satã – o condutor da viagem – ali, lado a lado, com a personagem em evasão, E se Satã se cala, não deixa, com sua companhia, de reafirmar a trajetória na perspectiva de sua continuidade, ao menos para o leitor. Nesse sentido, não é à toa que os ideais da fuga romântica, a Idade Média gótica, o oriente exótico, se despontam nos horizontes da fuga de Macário, são a seu modo, contraditórios quanto à obra, pois o são também descartados, seja explicitamente, seja pela presença insistente de elementos do aqui e agora do escritor, elementos que se sobredeterminam por descrições antinômicas: a cachaça, a viola sertaneja, a descrição topográfica e das relações sociais, a Itália com gosto de pauliceia.

A REVELAÇÃO PELO FANTÁSTICO

Mas a paródia não será o bastante como instrumento de controvérsias, para Álvares de Azevedo, no testemunho metaliterário de seu tempo-espaço. A perspectiva polêmica da peça há de exigir do autor um esforço maior, uma coloração que cubra ainda mais a tessitura dos “delírios” dramáticos, na sua contrariedade com o mundo que o cerca. É nesse sentido que se funde a analogia da paródia à composição de um discurso calcado no fantástico. Melhor processo não havendo para a exibição do indizível, por parte desse “moço tão distinto” mascarado de boêmio e fanfarrão, atormentado pela diferença de seu saber, seu sentir e a inércia de um meio mediocrizado, como só assim deveria enxergá-lo esse Byron tropical.

MACÁRIO será uma paródia-fantástica de seu tempo-espaço. E o sobrenatural, o matiz de reforço da paródia, garantindo ao autor maior margem de segurança para expressar sua temática não passível de descrição mais verista. Uma leitura neste sentido desvela a obra, revelando o artista. Eis como se pode encontrar até nas fraquezas do texto, o fortalecimento, o fortalecimento de suas emoções. Porque, na perspectiva de atualidade da obra, com a sobreposição bipolarizada de métodos da escritura, se de um lado a paródia servirá a MACÁRIO (e não propriamente a Álvares de Azevedo), acentuando-lhe o sentido de transgressão de seu material temático frente ao senso comum de época, de outro lado, o sobrenatural há de dimensionar suas rupturas ideológicas, no que se refere ao procedimento de sua estrutura.

É claro que com relação ao modo realista, essa complexidade contraditória pode ser até considerada de expressividade menor, o que não se toma em consideração aqui, neste estudo, pois seria esta uma consideração fora da obra e de suas possibilidades históricas.[43] O romantismo é o seu modo de expressividade fundamental e fora dele não teríamos MACÁRIO de Álvares de Azevedo. Além disso, uma proposta de leitura de atualização de dada obra teatral não deve ultrapassar suas condições de modo de expressão, o que, muito pelo contrário, no seu aproveitamento cênico, só merece ser acentuado e destacado, é claro que sob efeito de distanciamento, ou seja, sob dada historicização.

DESVELAMENTO DE DISSONÂNCIAS

Cabe dizer que, quanto a isso, no caso de MACÁRIO, o movimento de suas contradições internas, a sobreposição de polos geradores de expressividade – a paródia fantástica – por si só são o bastante, como indicadores de historicização. Subvertem estruturas de pensamento, permitindo que o objeto de sua mensagem – a exibição ambígua da mobilidade de uma sensibilidade, num dado tempo/espaço obtenha um alcance critico significativo para o seu observador, na revelação descontinua de uma sociedade descontinua. No desvelamento das dissonâncias da existência.[44] E na medida em que expressa, além disso, um discurso complexo – e historicizado sobre as relações e os sentimentos do artista com seu solo de produção, a arte.

MACÁRIO é assim uma proposta que enriquece o romantismo no Brasil. Um momento – ainda que isolado e solitário – de avanço que a história da chamada literatura brasileira não pode ignorar ou dispor em segundo plano, baseada em análises padronizadas por modelos tradicionais. Dai uma necessidade de revisão de seu lugar histórico, dos porquês de sua solidão em “nossa” dramaturgia, para vermos como se organizou concretamente – numa dinâmica dialética – a história oficial da arte que se lhe seguiu, neste país.

6. EU NÃO SOU ÍNDIO

Outro desejo que atravessa a criação teatral desde os seus anos de império é o desejo de “sermos tão bons quanto… “. Por trás disso reluz o ideal da comunicação universal – colado à matriz da forma perfeita. Seguem-se os corolários para atingi-la:

  • Em algum ponto da Europa e, depois, em algum ponto dos Estados Unidos, reverbera essa forma perfeita irradiando seu fascínio para o planeta.
  • O teatro não tem pátria: a paixão do ser humano é universal.
  • O bom teatro é aquele que consegue estabelecer com o seu público uma intensa troca emocional.
  • A história, por onde penetra a modernidade, resume-se à atualização da expressão.
  • A sensibilidade do homem contemporâneo é o refinamento (ou a brutalização) do antigo e do eterno.
  • Por tudo isso são eternos Shakespeare, Calderon de La Barca e lbsen.
  • Algum dia, com capricho, perseverança e algum dinheiro, chegaremos lá.

Essas e outras palavras semelhantes circulam pelos textos dos anos quarenta e cinquenta, com uma monotonia que torna difícil distinguir, através das poéticas, as diferenças expressivas entre as diferentes companhias de arte. Tanto Os Comediantes, quanto o Teatro de Brinquedo, o Teatro do Estudante, o Teatro Brasileiro de Comédia ou o Teatro de Amadores de Pernambuco partem do princípio de que revigorar a arte cênica do pais é atingir um apuro de execução capaz de colocar as companhias à altura das exigências das grandes obras da dramaturgia universal.

É preciso ser tão gracioso quanto exige uma comédia de boulevard, atingir a profundidade psicológica das personagens de O’Neil, ter o controle do tempo dramático necessário para levar à cena uma peça de Sófocles.

De fato, mais do que a emergência das grandes personagens e dos ensembles de atores perfeitos, o teatro dos anos cinquenta realizou a atualização das técnicas de produção da imagem cênica. Tornou possível que o ilusionismo de textos realistas ou a abstração de textos metafóricos encontrassem uma tradução convincente para as três dimensões do palco.

Trabalhando sob a ideologia da forma perfeita, a organização interna do trabalho da cena concretizou uma divisão de trabalho apenas esboçada: surgiram os cenógrafos, os cenotécnicos, os iluminadores, os maquinistas, o bilheteiro, o faxineiro, o tradutor, o diretor e finalmente o dramaturgo dessas companhias.

A ideia do ensemble depende desse trabalho especializado, hierarquizado, organizado para resultar numa forma única e orgânica onde a explosão dos talentos individuais está perfeitamente controlada porque há um espaço em que esse talento se transforma em virtuosismo. É uma produção em série que precisa de conhecedores para apreciar as sutis variações de um mesmo projeto. Precisa de um público estável.

Um público estável tem uma identidade conhecida, que o teatro revela e satisfaz através de sucessivos espetáculos. A obra não é o espetáculo, mas um conjunto de encenações que devem contribuir para a formação de um hábito.

O que se deseja é o mesmo espectador comparecendo a todos os espetáculos de uma companhia. Trata-se de um tipo de projeto artístico que não sofre a angústia da renovação do público ou da multiplicação geométrica das suas bases de espectadores. É suficiente que o mesmo espectador aprenda a distinguir determinada companhia com uma marca de qualidade. Voltará ao mesmo ponto todas as vezes que se interessar por teatro.

Mas há, além de uma função de lazer, um desempenho ótimo que o teatro procura atingir: proporcionar, além de diversão, uma vida cultural mais rica e mais sofisticada. Tal qual oferecem os teatros europeus e americanos, que se sustentam economicamente muito bem enquanto recebem há séculos o mesmo tipo de espectador. Um sujeito polidamente bem-vestido, com discernimento para avaliar esta ou aquela interpretação, comparando-a com outras interpretações da mesma obra. É um espectador capaz de fruir as excelências de uma dramaturgia de frases rigorosas e também de apreciar as variações e a adequação de todos os elementos de cena.

O Teatro Brasileiro de Comédia,[45] tomado exemplarmente, é um teatro dirigido a um público burguês. Afinal o espectador com disponibilidade para transformar-se em freguês habitual é o mesmo que pode dispor de tempo e dinheiro para cultivar-se.

Não se trata entretanto de uma Qttrguesia brasileira (conceito que começa a circular vigorosamente na sociologia e na política desse período) mas de uma classe social idealizada, que não tem pátria de eleição nem uin pensamento enraizado neste ou naquele espaço geográfico. Para efeito de público o burguês-espectador tem uma relação determinada com o capitâl que lhe permite acumular e distribuir cultura. São Paulo do TBC é uma metrópole.

Essa figura instaurada como destinatária do diálogo corresponde certamente a um esforço para propor, através do palco, a universalidade da técnica. Para tanto é indispensável a construção prévia de um conteúdo que interesse a esse espectador supostamente culto e sintonizado com a evolução do teatro fora do país.

Analisadas em perspectiva, as sucessivas encenações do TBC são variações sobre o mesmo tema, reiterações de uma identidade que é uma crença dos produtores dessa arte. Em linhas gerais os artistas acreditam que esse público pode interessar-se por um humanismo sem fronteiras, desde que elegantemente representado.

Mas na verdade o teatro afirma sobre a sociedade uma tese que ele acredita progressista. Repousa seu desenvolvimento econômico, a sobrevivência e a proliferação do capital empenhado na certeza de que a burgues a brasileira pode ter o status de um consumidor internacional. Não é por acaso que esse teatro começa pela intervenção de um empresário, que empenha no teatro o capital da indústria. O que dá certo na indústria pode dar certo no investimento cultural.

Por esse processo o TBC universaliza e despersonaliza as relações sócio-econômicas[46] fazendo uma arte que poderia ser consumida na Europa, ou pelo menos tão boa quanto a que se consumia na Europa.

Na prática, o projeto de atualização da expressão corresponde a um marco zero. Trata-se de começar de novo, rejeitando a experiência teatral do público e dos atores e inaugurando uma era de modernidade que dispensa inclusive a contratação de profissionais já empenhados no trabalho teatral.

O TBC começa com iniciantes ou amadores. Nada do que se enraizou como expressão dramática ou como hábito de consumo serve a essa companhia que intenciona varrer da produção da arte a imagem da província, colada especialmente à cidade de São Paulo. De uma maneira geral a atuação do TBC abomina os regionalismos ou o ufanismo nacionalista. Em vez disso propõe a consolidação de outros hábitos, adequados a úma era de internacionalização, de entrada e participação ativa do pais na comunidade internacional dos negócios e da cultura.

***

Entretanto essa ideia de sermos tão bons quanto é o indício de que os produtores desse teatro não falam de si mesmos. Ou seja, a perspectiva dos produtores não é a mesma do público. Na verdade o TBC se propõe a revelar para o público formas e possibilidades ainda obscuras na vida social. Desse ângulo os produtores de arte dispõem de um conhecimento que ainda não está disseminado entre o público. E de um tipo de conhecimento que diz respeito à identidade desse público.

Nesse sentido o TBC é tão progressista quanto a imagem que tem da vida social. Pretende não apenas ser o porta-voz de uma cultura internacional, mas também executar possibilidades ainda indivisas da cultura brasileira. Quer instaurar um hábito, formar um público, corresponder a um padrão que o público merece mas ainda não sabe exatamente qual é, porque não teve a oportunidade de experimentar. Como fundo desse sonho de riqueza cultural há indisfarçavelmente o contraponto de uma observação de que a vida cultural da cidade é provinciana, inadequada, precisando urgentemente da intervenção de intelectuais para adquirir alguma grandeza e algum brilho.

Portanto esse espectador familiar, que volta sempre a um ponto onde reconhece o que é produzido, deverá ser informado e formado pela intervenção do teatro. Não basta atrai-lo reconhecendo seus desejos. É preciso antes mostrar-lhe quais são os seus desejos.

A formação do “gosto” é uma ideia que perpassa todas as encenações, explicando a necessária reincidência de grandes mestres da arte. Não se trata ainda de representar mais uma versão criativa de Pirandello, mas de introduzir ao público paulista esse revolucionário dramaturgo europeu; Da mesma forma que o Romeu e Julieta encenado pelo Teatro do Estudante nos anos quarenta teve que conformar se com a glória de introduzir Shakespeare no país. Não se poderia apreciá-lo como mais uma interpretação maravilhosa de Romeu e Julieta.

O pensamento de que o teatro universal e eterno pode instalar-se nas terras brasílicas porque já há condições para o seu florescimento é simultâneo à constatação de que o teatro existente é coisa do passado. Implícita há a crítica de que as técnicas de encenação que precedem esse teatro internacional-progressista são toscas, intuitivas e totalmente inadequadas para expressar novos ou profundos conteúdos.

Outra vez o teatro se define por contraponto. Qualquer movimento que se disponha a colocar a pedra fundamental do edifício teatral está, naturalmente, rejeitando in totum o teatro que o precede. No caso dos anos cinquenta as novas companhias rejeitavam um passado encarnado pelas figuras de Dulcina de Moraes, Procópio Ferreira, Jaime Costa e Dercy Gonçalves. Os velhos tempos eram representados pelas companhias que centravam seu trabalho na atuação de um protagonista.

O público dessas companhias personalizadas é definido, pelos próprios atores (vide Proc6pio Ferreira) como um público-massa, que vem apreciar o trabalho dos seus ídolos sem grandes preocupações intelectuais. Não chegam a constituir, do ponto de vista desses produtores, uma classe econômica definida. São “o povo”, nas palavras de Procópio Ferreira.

Em nenhum momento o TBC tem a intenção e pretensão de dirigir-se ao brasileiro. A nova proposta é exatamente selecionar de uma camada bastante restrita da população, uma quantidade de espectadores suficientemente grande para sustentar a continuidade do projeto artístico. É um espectador que não precisa adquirir os adjetivos qualificativos de probreza e nacionalidade.

***

Falando retrospectivamente[47] o ator Paulo Autran avalia a contribuição inovadora do TBC:

“Aos poucos, principalmente em contato com diretores de gabarito, diretores de maior nível cultural, de maior compreensão do que seja o teatro, como foram os diretores do TBC… Homens italianos que sabiam o que estavam fazendo e que se propunham a criar um elenco jovem, num país jovem para fazer um teatro da melhor qualidade possível

(…)

TBC surgiu numa época em ue as pessoas eram totalmente alienadas, não estavam preocupadas com nenhum problema social e político. Surgiu muito como uma escola de atores.

Adolfo Celi foi, sem dúvida alguma, um grande professor, além de ser um grande diretor.

Quando ele veio para cá já tinha dirigido espetáculos inclusive com Vitório de Sicca, na Itália. Quer dizer: então em contato com Ruggero Jacobbi, com Ziembinski, com Celi, com Luciano Salce, com Flaminio Bollini, eu comecei a pensar o que era o teatro, comecei a me interessar por teatro. Sob um ponto de vista exclusivamente artístico, a arte do teatro, a arte da interpretação. Tomei conhecimento do que era Stanislawski, do que ele tinha escrito. Então aquilo que me parecia tão fácil, tão gostoso de fazer, passou a se transformar numa profissão difícil, numa profissão delicada, numa profissão que exige um empenho muito grande de quem a faz.

(…)

Todos nós sabemos que os grandes momentos de teatro no mundo vêm do trabalho continuo de um grupo. Normalmente o grupo está ligado por uma fé, uma ideia, ou está girando em torno de alguém com um grande poder de atração. Você vê, no Brasil, os grandes momentos de teatro no Brasil foram o TBC, que era um grupo reunido, fechado em torno de uma ideia que era a de fazer teatro do nível artístico o mais elevado possível…( … ) No momento em que acaba a fé, esse amor ou essa paixão unindo, o grupo se desfaz.

(…)

Eu nasci a sete de setembro de 1922, o que não me transformou num grande nacionalista ou num grande patriota”.

Antes representava-se por vocação, com talento, com intuição. O próprio Paulo Autran, antes de ingressar no TBC já experimentara vários sucessos como amador e alguns como profissional, sem jamais ter treinado técnicas de interpretação. Depois, a partir dessa nova pedra do edifício teatral, introduz-se a consciência na dor da vítima. Para um teatro civilizado é preciso ter método, passar pela disciplina de um diretor, aprender a funcionar em sintonia com os parceiros de cena e finalmente familiarizar-se com uma determinada poética teatral que tem as suas exigências e seus objetivos próprios. Não basta o talento ou a empatia de uma figura atraente.

***

Esse segundo processo civilizatório vem junto com a aceleração da indústria na cidade, com a mais radical transformação de uma economia beneficamente de matérias-primas em uma economia onde se inscrevem as “indústrias de base”.

O engenheiro industrial Franco Zampari, fundador do TBC, começa pensar em um teatro moderno a partir de conversas com intelectuais que frequentam o mesmo círculo social. É o mesmo círculo de pessoas que, em anos anteriores, ensaiara alguns passos amadores para introduzir no palco paulista a modernidade europeia. Zampari acrescenta a essas vagas conversas a decisão e a finança.

A diferença entre intelectuais sonhando um teatro moderno e um empresário italiano financiando o teatro resulta num empreendimento híbrido, que reúne amadores completos em torno de um projeto que precisa de profissionais completos.

O fato é que esse teatro moderno e internacional precisa de um aperfeiçoamento técnico que só é possível reproduzindo essas condições técnicas que existem nos países europeus. Daí o TBC ter funcionado, através de diretores-instrutores, como uma escola de formação teatral. O que diz Paulo Autran rendendo-se à sabedoria dos italianos é mais ou menos o que acontece, em escala maior, com todo o teatro paulista. Atores veteranos e o próprio público contemplam o TBC como uma fonte de ensinamentos úteis para futuras iniciativas.

A partir de São Paulo essa exemplaridade expande-se para outras capitais de estado. O TBC está no Rio e em São Paulo. Leva espetáculo de sucesso a Porto Alegre. E em cada uma dessas cidades, embrionariamente, surgem outras companhias animadas pela ideia de um repertório internacional, sofisticado e de excelente nível de execução.

Por muito tempo se associou o cuidado formal do TBC com o dinheiro do empresário que o financiava. Na verdade todas as experiências teatrais anteriores, notadamente as de Procópio Ferreira e Dulcina de Moraes, caracterizaram-se pelo extremo cuidado com o acabamento dos seus espetáculos. Em cena estavam também belos móveis, roupas de bom corte, atualizadas com Paris, preciosas estilizações de como viveriam os ricos deste ou daquele país.

A diferença está no didatismo do TBC, que cuida do acabamento porque pretende instaurar um gosto. O que está em cena é exatamente o que os ricos vivem, mas o que deveriam viver num futuro próspero cada vez mais próximo. Não é espelho; mas projeção.

Com esse propósito, o TBC permite-se, jogando com o futuro, realizar experiências de abstração, muito além de uma cena meramente informativa. Há mais elementos em cena do que o que está visível, competindo ao espectador o jogo de associar e descobrir significados.

Um fotógrafo de cena especialmente contratado (Fredi Kleeman) eterniza em fotogramas, cenas que são um legado deliberado para os pósteros, documentação intencional de um “teatro em progresso”[48] feito para um país “em progresso”.

Não são apenas meros retratos de atores para a divulgação de um espetáculo, mas um projeto de documentação nos moldes dos ensembles europeus que fazem da companhia um fato cultural importante da vida de um pais. Por tudo isso o TBC é uma companhia que se vê atravessando o tempo e florescendo com a prosperidade de uma nova era industrial. Trata-se de um teatro civilizador, pioneiro, que se encara como destinado a constituir um patrimônio cultural de uma sociedade que só ele está preparado para representar e satisfazer, uma vez que está apresentando a essa sociedade instrumentos inéditos para revelar-lhe sua imagem e satisfazer seu desejo de diversão teatral.

É precisamente esse teatro, com o olhar voltado para fora e para o alto, que reaviva por iniciativa própria (e posteriormente pelo estímulo às críticas) a discussão sobre a identidade do teatro brasileiro. Seu projeto de atualizar, internacionalizar e, ao mesmo tempo, formar um público com esse gosto, é um projeto para reintegrar uma cultura no que se supõe que seja o seu verdadeiro centro: a Europa seria ainda a “pátria espiritual das Américas”. E, mais do que isso, a Europa e o Brasil estão, no momento em que esse teatro se constitui, vivendo o mesmo estágio de desenvolvimento econômico (no en nder dos homens que comandam o ideário do TBC).

O que se supõe é que a arte teatral esqueceu-se paralisada durante quatrocentos anos, à espera de um príncipe encantado que venha despertá-la do seu torpor.

O teatro que se faz antes de 1948 (com raras exceções preciosamçnte registradas)[49] está fora da influ ncia e do interesse dos circulos intelectuais. Seria uma manifestação degradante de um teatro há muito em desuso na Europa.

Note-se que o TBC não se vê como transplante (nem mesmo numa época em que tanto se fala de importação de tecnologia). Pelo contrário, tanto na produção teórica do TBC (livros de diretores, entrevistas, críticas, textos de programas), quanto na produção cênica, há a certeza de que sua tarefa é reavivar uma característica cultural que é própria do país, embora adormecida.

O didatismo não é para ensinar a fazer melhor, mas para iniciar outra coisa que tanto os atores como o público vivem cotidianamente sem saber como expressar ou consumir. Faz tábua rasa de outras experiências artísticas locais porque acredita-as incapazes de expressar o que verdadeiramente existe.

Desta vez a proposta de renovação erige-se recusando antecedentes culturais, expurgando todas as tentativas de apropriar-se e transformar tradições. Inconscientemente, o TBC acredita que é possível, na vida cultural, uma ruptura brusca e definitiva com formas expressivas do passado.

O que se moderniza e refina é, entretanto, a cena brasileira. É impossível livrar-se desse qualificativo, mesmo assumindo-o como designação localista. Nem mesmo esse projeto de uma arte de padrão internacional pode desligar-se da ideia do “descaminho” da arte teatral no país. Tanto que, a partir do TBC, a palavra “descaminho” eternizou-se como epíteto teatral. Como se os momentos anteriores ou simultâneos ao TBC fossem eivados de erros que cumpre a uma boa alma corrigir.

Enfim, não basta fazer bom teatro. Em vista de uma situação geral do país é preciso salvar a cena dos deslizes de anacronismos ou perspectivas enganadoras. Ainda que com um projeto puramente artístico o TBC pretende, seguramente, uma recuperação mais abrangente da cultura brasileira. Pretende afetar todas as atividades culturais que circundam a arte teatral, mesmo que não a constituam.

***

Tornarmo-nos tão bons quanto implica em não termos sido tão bons quanto. Esse sentimento inconfesso de inferioridade, de uma defasagem irrecuperável, compõe, entre outras coisas, a constituição desse gesto elegante e perfeito, desse gesto teatral que deve sublimar todas as contingências.

O fato é que se trata de um país onde a cultura sobrevive a um passado colonial e enfrenta um presente onde as múltiplas influências se cruzam (sujeita às leis do mercado) de tal forma que não é preciso afirmar o internacionalismo no vácuo: basta olhar em volta. Em tudo isso o único traço realmente constante é a sucessiva adaptarão de formas expressivas que chegam, cruzam-se, chocam-se e vão mais ou menos constituir as camadas superficiais de um antiquíssimo sambaqui cultural. Dentro disso fica muito difícil instalar e fazer funcionar permanentemente uma fábrica de produção de formas perfeitas. A regra mais visível é o contágio.

Com essa percepção das diferenças o TBC evita recuperar passo a passo a evolução da cena europeia. As encenações funcionam como projeção, satisfazendo a um dever histórico. Devem portanto superar o realismo e representar com ênfase o refinamento e as possibilidades de um futuro próximo.

Uma vez que não tratam da realidade, não tratam diretamente do presente. Seu poder de convencimento se faz através da sugestão, conduzindo o espectador a uma experiência estética e emocional mais intensa do que o que ele poderia viver no presente. Evitando reproduzir as cenas (aliás em superação) de uma contemporaneidade um tanto quanto grosseira e confusa. O espetáculo do TBC deve ser, em tudo e por tudo, melhor do que o que espera o espectador porta afora depois de encerrar-se a sessão.

A ideia de um teatro eclético que o TBC propugna não tem a ver, neste caso, com a satisfação de todas as preferências visando a atingir um público quantitativamente grande. Pelo contrário, trata-se de um ecletismo que satisfaz primeiramente à aspiração de universalidade da arte. Digamos que se trata de um ecletismo interno, que serve mais aos produtores desse teatro do que ao desejo do público. De acordo com a visão dos artistas é preciso oferecer a esse espectador ainda bugre todos os matizes de uma arte que manipula inúmeras expressões para comunicar o mesmo acontecimento.

Sobre a particularidade de cada encenação paira esse cuidado de fazê-las todas homogeneamente sugestivas, capazes de transportarem o público bem além da sua experiência cotidiana. Aí está por que o TBC não precisa as suas formas de interpretação vinculando-as ao realismo. Uma vez que a experiência artística deve contribuir para a ultrapassagem de um presente mesquinho, a cena deve apresentar sempre um tanto a mais do que os sentidos podem captar fora da casa de espetáculos. Há uma intenção ambiciosa de conferir ao encontro teatral uma significação maior do que a da fruição estética. O espetáculo deve realizar uma mudança qualitativa na percepção do cotidiano. Talvez mesmo ensinar o espectador a comportar-se com mais elegância, uma vez que o tempo da barbárie já passou.

É um otimismo eufórico que faz com que, com o passar do tempo, o espectador delegue ao teatro a responsabilidade de repetir essa experiência certamente agradável. Afinal, trata-se de um tipo de teatro que confia cegamente no progresso do pais e no direito do público de sonhar e confiar em dias melhores. Todos os espetáculos do TBC, mesmo os que se referem a destinos trágicos, têm em comum o cuidado em reafirmar o prazer do espectador.

De todos os teatros com uma proposta semelhante nas décadas de 50 e 60, o TBC foi o único que conseguiu reunir em torno de si um público estável. O que quer dizer que o seu vinculo suposto com a identidade social do espectador não era equivocado. Havia efetivamente um público interessado em atualizar a sua vida cultural acertando-a de acordo com os ponteiros internacionais.

Evidentemente a ideia de um teatro para a burguesia não está explicita nos planos do TBC. O que se pretende é satisfazer a uma elite de sensibilidade e cultura ou, mais precisamente, criar essa elite de sensibilidade de tal forma que a vida cultural corresponda às possibilidades econômicas do espectador. Como se fosse possivel, depois do lucro, investir na aquisição de cultura.

Dificilmente um projeto desse tipo poderia ocupar-se da análise de como o seu espectador se insere na vida social e econômica do pais. A capacidade de vislumbrar esse país “em progresso” nasce de uma visão globalizante, fundada no plano institucional e não numa análise da história. Por isso o TBC pode sonhar com a prosperidade e a igualdade do pais no concerto das nações.

Enquanto premissa, o diálogo com o espectador apóia-se na estilização, no reforço dos contornos que acentuam uma imagem genérica. Essa imagem não pode ser preenchida com contribuições do cotidiano, sob pena de destruir a ilusão e a beleza da criação cênica. É um teatro que evita a particularidade.

***

A identidade entre um teatro burguês e uma plateia burguesa é também uma identidade forjada pelo discurso que circunda a atividade teatral. Os artistas do TBC não pensam em burguesia por que, como bem diz Paulo Autran: ” … as pessoas não estavam preocupadas com nenhum problema social e político”.

A sociologia não penetra a cena, senão quando é necessário render-se a um império de outro gosto emergindo no público. Francamente e com esforço o TBC pode incorporar, nos seus anos finais, a dramaturgia de Jorge Andrade com seus camponeses em revolta e com os seus senhores rurais pauperizados. Ainda assim essas personagens só pisam esse palco porque são tratadas com a ótica de um humanismo universalizante.

Convinha-lhe mais representar um proletariado russo estilizado (não internacional, porém russo) e exótico do que permitir que a história próxima e recente penetrasse um palco mais àfeito à beleza e à transcendência.

Os dois autores prediletos do TBC (Abílio Pereira de Almeida e Jorge Andrade) oferecem muitas oportunidades para que a encenação transforme o particular em uma metáfora da capacidade ou incapacidade individuais para transpor barreiras.

Para citar um exemplo: Ernesto Ghirotto é, antes de sua configuração social explícita (um imigrante que chega a industrial), um indivíduo dota.do de excepcional capacidade para aproveitar as circunstâncias e invertê-las a seu favor.

Com isso aparam-se as possíveis arestas históricas que poderiam levar essas personagens a um conflito que o TBC não está aparelhado para resolver. De alguma forma a sua encenação deve resolver o conflito e incutir no público a confiança no teatro e na sua própria atuação fora dele. Um teatro que pretende refinar e criar hábitos não pode defrontar-se com um conflito insolúvel entre os seus meios expressivos e novos conteúdos. Isso exigiria transformações que combinam mal com a sua proposta de estabilidade e formação do público.

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Essa fidelidade exemplar aos seus princípios otimistas e progressistas fazem do TBC o alvo ideal para a crítica que se faz ao teatro burguês nos anos sessenta.

As características são nítidas e reafirmadas durante dezesseis anos: peças internacionais, estilização, técnica atualizada e a preocupação de comunicar-se através de um clima denso de sugestões. Os novos movimentos teatrais têm alguma coisa bem clara para cofrontar.

É preciso que alguém se diga antes internacional, culto, bem feito e, finalmente, tão bom quanto para que o teatro subsequente possa contrapor nitidamente o seu projeto de renovação: não queremos ser tão bons quanto. Queremos, isto sim, uma identidade sem pontos de referência exteriores, investigada a partir de nossa experiência geográfica e social. Depois disso queremos ser melhores do que.

Em ambos os casos (o “tão bom quanto” ou o “melhor que”) procura-se um fulcro que está fora da prática teatral, um ponto que possa centrar uma origem e um destino que os homens de teatro procuram para si mesmos enquanto produtores de arte.

Fora do campo da linguagem a história dos tempos recentes do teatro é pautada por enterros e ressurreições de modos de produção artificialmente vinculados à história social. As poéticas têm como material único de composição operações intelectuais.

Raramente os projetos de renovação se fazem sobre uma relação já existente com o público, experimentando a cada espetáculo as reações e a demanda desse público.

Tanto o TBC quanto os movimentos anti-TBC que se iniciam nos anos sessenta partem de uma ficção sobre a identidade e a necessidade do público. Sem ignorar os ditames do consumo (alguns são sucessos constantes de público), ignoram as mudanças factuais da vida desse público.

É a discussão entre essas duas formas de fazer artístico, iniciada pelo Teatro de Arena de São Paulo e continuada por sucedâneos de todo o país, que permite entrever o quanto as polêmicas se instalam sobre uma espécie de vácuo histórico, exorcizando da constituição das poéticas qualquer traço de experiência ou qualquer informação contraditória.

O fato de que uma parcela significativa do mesmo público possa circular, com igual prazer, entre o teatro “engajado” e o teatro “alienado” dá bem a ideia de quanto os artistas ignoram a identidade do seu público. É certamente um público mais contraditório e complexo do que imaginam as duas facções que se contrapõem.

***

Desde de sua inauguração (1948) o padrão TBC vigora com a invencibilidade das coisas bem feitas, de material sólido e duradouro. Seus eventuais fracassos não abalam a confiança genérica no padrão de qualidade.

O TBC seria, para poucas vozes nos anos cinquenta e para muitas nos anos sessenta, a introdução de um corpo estranho em nossa continuidade histórica.

Efetivamente as suas produções intercalam poucos autores aborígenes a um número grande de autores europeus e americanos.

A segunda diferença considerada como um estrangeirismo pernicioso está na ideia de ensemble contrariando uma prática teatral que deixa o espetáculo ao sabor e à inspiração de um talentoso ator.

Além disso o TBC contrata diretores para orquestrar o trabalho da cena fazendo-a confluir para a sua própria interpretação pessoal do significado daquele texto. Gravíssimo se considerarmos que quase todos esses diretores, pelo menos até os últimos anos do TBC, eram italianos.

É um método de trabalho que não poderia jamais conviver com o desregramento, a intuição e a improvisação de estrelas do palco como Oscarito, Dulcina de Moraes ou mesmo Olga Navarro.

Finalmente, outro argumento levantado contra o TBC é que significava uma anomalia em termos de organização financeira. A riqueza das suas encenações, garantida pela generosa contribuição de industriais paulistas, era uma concorrência desleal a outras companhias que, com igual talento, não poderiam sustentar tanta seda.

De início, nos anos cinquenta, são raríssimas as vozes que ousam opor-se ao fascínio dessa nova companhia que efetivamente preenche o palco com belas palavras e belas imagens. Uma dessas raras vozes” contrárias é a do critico Miroel Silveira, marcando o ponto de atrito entre duas formas de teatro como forma de produção.

O primeiro artigo insurgindo-se contra o TBC é de 1950 e é uma raridade porque faz uma análise econômica da produção teatral num período em que esse tipo de comentário restringia-se aos administradores de companhia, mas não merecia o destaque de assunto público. Mais do que uma querela de natureza estética, o TBC provocou uma tendência nacionalista que se sentiu justificadamente ameaçada pelo poderio econômico aparente dessas produções de gabarito internacional. O comentário de Miroel Silveira é um modelo com modificações superficiais a partir de 1960:

Não foi à toa que o romancista norte-americano Hemingway, se não me engano, recusou certa vez um prêmio literário que lhe fora concedido, alegando não conceder à classe enriquecida por meio de negociatas o direito de patrocinar a arte. Esta pode não ter classes, e deve libertar-se de uma vez das tradições feudais do Mecenas, do homem rico e poderoso que usa os artistas, afinal de contas apenas como meros jograis de sua corte, hoje industrial.

Felizmente para Hemingway ele estava nos Estados Unidos onde o escritor pode dispensar prêmios porque a simples venda de seus livros junto a um público imenso lhe bastará para assegurar-lhe a subsistência e às vezes, para possibilitar-lhe uma fortuna. Entre nós, não só a literatura e o teatro e muitas outras artes dependem da classe financeira dominante, dependem consequentemente do grã-fino e toda sua infeliz ausência de humanidade.

(…)

Principalmente no teatro pode ser muito nefasta essa exagerada aproximação entre classes tão afastadas: os proletários da ribalta, de um lado, e de outro os gozadores da vida, os que a enxergam através dos óculos risonhos de Pangloss, não vendo na incomensurável dor humana senão uma emoção estética a mais. O dinheiro a tudo corrompe muito rapidamente. Ele traz uma ascensão nos aspectos exteriores dos espetáculos pela possibilidade de melhores teatros e de mais ricos cenários. Mas a essência do teatro, que é ser uma arte vital, uma expressão da vida e da sociedade (e não de uma sua parte intima) fica prejudicada.

(…)

Enquanto isso a verdade do teatro, as suas lutas imensas, a sua busca em direção ao povo, a sua natural função de exprimir-lhe as tendências e aspirações, desaparecem, somem abafadas num fru-fru de tafetás e num espoucar de champanha.”[50]

E é por essa senda, a questão de um teatro de classe, de um teatro sem fronteiras e sem compromisso com o povo, que vai penetrar a crítica e a teoria cênica dos grupos que sucedem o TBC.

Na realidade, o TBC está longe de corresponder à prosperidade que lhe atribuem. Como outras maneiras de criar utopias, o TBC se alicerçou numa figura ideal de público e numa frequência ideal, nem sempre correspondida. O dinheiro que sustentava esse teatro não era propriamente de grã-finos. Era a fortuna pessoal de um empresário, esgotável portanto. A burguesia-público pagou o TBC durante algum tempo, mas não durante dezesseis anos.

Também o internacionalismo e a futilidade temática do repertório não constituíam hábito de exceção no teatro da época.

Desde João Caetano as companhias mais importantes sempre alternaram poucos autores nacionais a uma plêiade de textos importados, em número sempre maior do. que o número de autores nacionais levados à cena.

Cada sucesso (raro) de dramaturgo brasileiro é saudado com o relevo de um acontecimento inaugural que merece mais atenção do que as traduções que chegam aos magotes ao palco. A regra geral é a reedição de dramas europeus, de raro em raro entrecortados por um. “Deus lhe Pague”. Nisso o TBC esteve em boa companhia.

Finalmente o alto custo das encenações não traduzia propriamente o poderio econômico dos produtores. Seguia um hábito estabelecido aqui e em outras partes de atrair o público com um visual ostensivamente luxuoso. Outras companhias dos anos trinta e quarenta distinguiam-se pelo capricho das produções, com tantas sedas e cristais quanto os do teatro da Major Diogo.

O que realmente faz do TBC a estrutura ideal para o contraponto dos anos posteriores é a perfeita linearidade das encenações aparen temente insensíveis à passagem do tempo. É talvez o mais perfeito exemplo de um teatro cujas produções mal registram a intensa fermen tação do seu interior, marcado por constantes crises de mercado. Por alguma razão (e a mais provável é a sua crença no inevitável progresso da industrialização) a companhia nunca abandonou o seu primeiro programa de atuação. De 1948 as transformações são quase imperceptíveis aos olhos dos espectadores, embora a execução seja gradualmente mais dificil.

Quando o TBC encena Jorge Andrade, Dias Gomes e Abílio Pereira de Almeida, há por trás dessas encenações o mesmo ideal de forma perfeita que permite a assimilação de diferentes textos a matrizes imemoriais como “tragédia grega”, “comédia de costumes” e “drama burguês”. Em cada volta da história do teatro é possível descobrir um modelo anterior onde se encaixam essas novas peças de autores brasileiros. Quando o TBC os encena é porque são tão bons quanto.

***

Seria possível, com os mesmos instrumentos, fazer um teatro comprometido com o fato histórico e com a revolução social? As técnicas de interpretação, de cenotécnica, de iluminação, de construção de texto, poderiam funcionar como meios frios para a divulgação de um ideário oposto ao do TBC?

De início, o Teatro de Arena de São Paulo achou possível. Outros grupos que se formaram a partir de meados da década de cinquenta também acharam que bastaria contrapor ao projeto de teatro burguês um projeto de teatro proletário. Ou melhor, de um teatro que, no dizer de Augusto Boal, adotasse a perspectiva do povo.

Ponto por ponto esses grupos ofereceram uma contraproposta: ao internacionalismo um teatro brasileiro; à representação das paixões atemporais a encenação de dramas com a marca nítida da história; ao ecletismo uma linha reconhecivel politicamente, etc. e assim por diante. Em pouco tempo descobriram que, mudando de projeto, é preciso se mudar de estilo, de circuito, de forma de produção, de espaço cênico e assim por diante…

Há atualmente um número razoável de críticas e documentos publicados sobre os mais significativos conjuntos teatrais das décadas de cinquenta e sessenta. As publicações do Serviço Nacional de Teatro configuram detalhadamente os projetos de alguns desses grupos. Não seria interessante portanto voltar a eles.[51]

Entretanto interessa a este trabalho observar que a poética desses grupos, observada como conjunto, forma um diálogo entre projetos. Com frequência a oposição se faz a partir de premissas que não correspondem à relação experimentada entre a cena e o público.

Exemplarmente vale a pena lembrar que o TBC, quando ofereceu munição aos seus críticos, partiram estes sempre do seu projeto. Quase não se discutiu em que medida sua prática teatral correspondeu ou não a uma necessidade do seu público. A linguagem da cena, certamente diferente da da companhia de Procópio Ferreira, também foi observada com excessiva naturalidade, confundida com os epítetos de alienação e grã-finismo.

Com isso as semelhanças entre essa e outras práticas se obliteraram, confundidas pelo evidente contraste dos projetos.

Tanto quanto o TBC imaginou-se formando o gosto de uma classe que seria elite e poder, os grupos que se seguiram imaginaram-se formando a consciência de uma classe que seria elite epoder.

Sem dúvida há aí uma diferença essencial: o primeiro forma o gosto e o segundo forma a consciência. Tanto quanto se sabe, o segundo projeto é muito mais ambicioso que o primeiro. Tanto quanto se sabe, ambos os projetos fracassaram enquanto ideário. E ambos foram bastante bem-sucedidos como atuação teatral. Tiveram seu público, seu relativo sucesso de bilheteria e, finalmente, repercutiram na totalidade da vida cultural circundante.

A fermentação que se dá no interior da atividade teatral, a despeito de corresponder mal e mal às teorias, é uma coisa acontecida. No interior de um mesmo circuito teatral e praticamente com o mesmo público, as duas tendências produzem, por força dos seus espetáculos, uma renovação do palco.

A incomensurável distância entre os objetivos explícitos de um e de outro tipo de teatro produzem um movimento uniforme de fertilização da atividade teatral (multiplicação de companhias, aumento de público, inovações de linguagem, etc.). Há um pouco de tudo.

***

Quaisquer que sejam as diferenças entre esse “teatro burguês” e o “teatro nacional e popular” há uma semelhança que os transforma em complementares do ponto de vista do público. Ambos falam do mesmo centro, com um raio de ação que atinge o mesmo circuito. Não se trata de um mesmo centro geográfico ou de um circuito do ponto de vista de circulação da mercadoria teatral. É uma semelhança mais profunda, de atitudes, de fontes de informação e da identidade social dos produtores.

Por isso a radicalização dos projetos supervenientes ao Arena não atinge o espetáculo com a mesma força que as suas poéticas anunciam. Ao que parece há um centro contraditório que tende a congelar-se em anacronismo sem produzir uma síntese. Vejamos uma fala de Paulo Pontes, 1975. Portanto, vinte e dois anos depois da formação do Teatro de Arena de São Paulo:

“Mas, se estamos vivendo na Idade Média e chega o capitalismo, não vamos ficar lamentando: ai, que saudade da Idade Média! A saída, eu acho, é disputar esse bolsão (com poder aquisitivo).

(…) Em face desse problema está começando a surgir a seguinte mentalidade: vamos criar um circuito paralelo, um mercado junto ao estudante etc. Acho que o mercado paralelo é coisa importante, mas a luta principal é para defender o palco brasileiro como centro de nossa atividade. Se surgiram no Rio 200 mil espectadores, temos que disputá-los.

Vamos tentar criar um espetáculo para essas 200 mil pessoas. Fugir delas é ir para o marginalato, que é a pior solução.”[52]

O projeto que precede esta fala distributivista é em tudo semelhante ao ideário do Arena, dos Centros Populares de Cultura, do Teatro Opinião, dos teatros de estudantes de quase todas as universidades brasileiras nos últimos vinte e cinco anos. Acrescente-se o esforço conciliatório para fazer circular pelo público (cuja identidade não interessa tanto quanto a sua disponibilidade financeira) um teatro que teria outro destinatário.

***

Muito bem. O TBC ajuda a definir a vontade de um teatro que não seja burguês e não seja para burgueses. E também um teatro que seja feito exclusivamente por brasileiros.

Suas “lições” de método de trabalho, técnica de montagem e construção de texto são devidamente apropriadas pelos grupos que se sucedem no que têm de interessante e útil para esses grupos. A ideia de ensemble, por exemplo, é das mais oportunas para os que querem fazer um teatro que não seja para burgueses e que não seja permeado de estrangeirismos.

Quanto ao mais as transformações se processam recorrendo sempre a uma interpretação sociológica do acontecimento artístico. É a sociologia que permite a esses grupos pós-TBC propor as relações ideais com o público e analisar a sua obra como projeção dessas relações ainda ideais.

Dessa forma as análises e mesmo as autocriticas de muitos grupos no trabalho passam ao largo da experiência do palco. O artista revê o seu projeto tomando como parâmetro as relações de produção da sociedade, o avanço das forças históricas, etc e tal… Tudo menos o que se produz no contato direto com o público. Ao fim e ao cabo é obrigado, como Paulo Pontes, a estudar a melhor forma de conquistar o.mesmo espaço que o TBC ou os TBCs folgadamente preenchem. A entrevista de Paulo Pontes aplica-se muito bem a um sem número de discursos atuais sobre o teatro, vindos dos mais diferentes lugares. Das companhias mais regulares, de grupos independentes, de cooperativados, de grupos que trabalham/vinculados a um projeto social e político e atuam no off-Bixiga e também dos empresârios e artistas de ópera brasileiros. Não obstante a diferença entre um cantor de ópera e um ator cooperativado que trabalha em subúrbios, todos se pautam por conceitos de produção e distribuição originados em um único centro.

O que há de comum é que as criticas e projetos formam também blocos uniformes, diagnosticando a natureza e os problemas da atividade teatral a partir de oposições fora do teatro. O Estado é o Judas surrado com maior frequência (como provedor, bem entendido). Outras vezes a raiz dos problemas ou deficiências de criação é localizada no imperialismo cultural. Contra ele se propõe uma batalha contra a conspiração internacional que esmaga os nossos originalíssimos e geniais produtos artísticos.

“O rock, O Hair, a androginia, a substituição da linguagem por gestos físicos, tudo isso que entrou como vanguarda e que imediatamente certos setores da nossa inteligência apanharam como uma saída, inclusive como um protesto, significava nada mais nada menos do que uma estratégia das multinacionais no sentido de padronizar o gosto, para que atrás disso viesse a indústria da padronização: o disco, o cassete, o videocassete, etc.”[53]

***

A persistência e a monotonia dessas falas que remetem sempre a fatores exógenos a responsabilidade pelas crises do teatro, além de não renovar, têm um resíduo potencialmente perigoso. Tendem a perpetuar a improdutividade da crítica porque sugerem a exclusão do artista dessas crises e das possíveis batalhas por novas formas de criação. Todos os perigos vêm de fora, como o inimigo, que pode ser o imperialismo, a indústria cultural, a censura, o diabo a quatro. Mas que, pela sua exterioridade e fácil formulação, esse inimigo é a personagem empática de uma fala envolvente e inconsequente porque permite a veiculação fácil da ignorância e do ressentimento.

Raciocínios como estes, que permitem ao homem de teatro eximir a sua produção de qualquer responsabilidade pelos vínculos que efetivamente cria ou deixa de criar com o espectador, provocam o congelamento da cena adormecida, enquanto espera o aniquilamento fatal do capitalismo, das multinacionais, dos latifúndios, etc. e tal. Por isto e por aquilo a maior parte dos artistas de teatro considera-se guardiã da brasilidade e das aspirações mais legítimas do povo do país. Walter Pinto, por exemplo, um empresário pouco afeito a generalizações, considera-se o produtor da mais nacional de todas as formas de diversão, o teatro de revista. Entretanto as atrizes de sua companhia não podiam frequentar a praia. A mulher sonhada pelo espectador brasileiro, no entender do empresário, é alguma coisa entre o rosa e o branco pérola.

Talvez seja isso que tenha que ser enfrentado: a contradição entre um imaginário expurgado da cena por indecoroso e uma poética que nunca chega a configurar-se no palco por falta de pecados e imperfeições políticas.

7. O CPC DA UNE

para

zé celso &

amir haddad

“meu sonho acabou, papai.”

(frederico, meu filho,

5 anos, certa manhã, ao acordar)

NÓS, O DESEJO DO POVO

O CPC/UNE (Centro Popular de Cultura) como desejo. Um desejo de artistas e estudantes: a aproximação com a massa trabalhadora, essa “parte do povo que tem pouca ou nenhuma consciência de seus próprios interesses, que não se organizou ainda para defendê-los, que não foi mobilizada ainda para tal fim”. Esse desejo move o CPC, na sua velocidade a “toque de caixa”, com a vontade de seus militantes, um voluntarismo à moda do “dá pra fazer”, sem as medidas do tempo e da história. Só com as medidas do desejo: “Faz parte das tarefas da vanguarda do povo, consequentemente, educar e dirigir as massas do povo”.

Os passos do CPC são outra história. O desejo é alcançar a massa e “dar-lhe consciência política”. O sujeito é o conscientizador dirigindo-se àquele que deve ser conscientizado. A relação é de doação do saber de quem é privilegiado, essa condição que faz dele vanguarda da massa. O conscientizador é um missionário cheio de boas intenções. Que pretensões?

Coloca se a serviço do povo, “na defesa dos reais interesses do país”. Que interesses? As questões políticas da conjuntura. O programa de reformas de base do governo, basicamente. Reforma agrária, controle da remessa de lucros, uma política externa independente, o voto do analfabeto, fortalecimento da Petrobrás, a reforma univer sitária, o controle da corrupção administrativa.

Então, uma atitude reformista. A atitude revolucionária é outra estória, que se remete ao futuro. Devagar é preciso, viver não é preciso.

O instrumento: alguns gêneros da arte, a serviço da propaganda e da agitação de questões do momento. O movimento: uma ida à massa, como desejo. Essa vontade, esse voluntarismo.

E QUEM É O POVO

E quem é o povo, no Brasil, para o CPC? “O conjunto que compreende o campesinato, o semiproletariado, o proleriado, a pequena burguesia e as partes da alta e média burguesia que têm seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutam por este. É uma força majoritária inequívoca. Organizada é invencível” ( Quem é o povo no Brasil?, Nelson Werneck Sodré, Cadernos do Povo Brasileiro, 1962).

E quem é a massa “que tem pouca ou nenhuma consciência de seus próprios interesses”? O campesinato, o proletariado e o semiproletariado. Essa massa “passiva” e “inculta”, à margem da história. E quem é a vanguarda dessa massa? Intelectuais progressistas e revolucionários, parte do povo, “enérgicos e vibrantes” da classe

média.

E a luta de classes?

O CPC é uma crença. Uma fé no seu desejo.

“Não há povo no mundo que aguente

Viver sua história como indigenté!” (Auto do 99%, texto de teatro cepecista)

O PODER DAS IDEIAS

O remédio para esse povo é a tomada de consciência do que ele é, de sua realidade, de sua condição de vida, o saber de si, das ideias corretas para o povo. Esse poder das ideias.

“Se não fosse possível à consciência o adiantar-se em relação ao ser social e converter-se, dentro de uma certa medida, em força modificadora do ser social, também não seriam exequíveis nem a arte revolucionária, nem o CPC”.

(Anteprojeto do Manifesto do CPC).

ONDE ESTÁ A MASSA?

O CPC é um esforço. O conscientizador cepecista se esforça por seus desejos. Em um ano, no seu primeiro ano de vida: montagens de peças, curso de filosofia, produção de filmes, musicais, shows, participação em comícios, discos, livros, cepecês criados fora da Guanabara, cadernos do povo, início da construção de um teatro próprio, na sede da União Nacional dos Estudantes, uma carreta-palco, cartazes, uma noite de música popular brasileira.

Mas e o povo, ou seja, a massa, no meio do povo? Começa a ser difícil alcançar a massa.

” … tínhamos a ilusão, na época, de que poderíamos entrar facilmente em contato com o povo, mas a decepção foi terrível. Tivemos duas surpresas desagradáveis. A primeira delas foi a descoberta de que, na periferia, a polícia era mais ativa do que em Copacabana. Fizemos várias tentativas, mas, muitas vezes fomos interrompidos pela polícia do Lacerda, que invadia o local da apresentação ou impedia nossos espetáculos por outros meios. A segunda surpresa foi a ausência do operários nos locais onde supúnhamos que ele devia estar: os sindicatos. Montamos muitos espetáculos em sindicatos mas não aparecia ninguém para assisti-los. É interessante observar que coisas como estas nunca são mencionadas pelos intelectuais e pelas novas gerações que fizeram a famosa crítica do populismo. Assim, a dificuldade não estava em montar espetáculos que pudessem ser levados à massa: a dificuldade estava em entrar em contato com o povo, uma vez que não existiam estruturas de conexão entre o grosso da população e os grupos culturais politizados que queriam sair fora dos circuitos elitistas”. (Carlos Estevam, “Depoimento: História do CPC”, Arte em Revista, nº 3) O cepecista não tem como encontrar a massa. Ele conhece a massa, sabe o que ela precisa, o que é bom pra ela, sabe o que dizer pra ela. Mas onde está a massa? O desejo permanece e a postura dos que desejam, também. Troca-se então de povo? Há povo e povos para tudo:

“Apesar de termos feito algumas incursões interessantes junto aos trabalhadores, o CPC acabou mesmo conquistando o público estudantil. A UNE, como todo mundo sabe, não tinha uma vinculação direta com a massa dos estudantes, poucos estudantes sabiam o que era a UNE. A direção da entidade percebeu então que teria seu acesso facilitado junto às suas bases via CPC. O CPC fazia peças especiais para a abertura de cada congresso, além disso participamos de várias UNE-volantes, corremos o Brasil todo com a UNE, levados pela UNE e levando a UNE à massa estudantil”. (Carlos Estevam, idem)

A ARTE COMO ARMA

O CPC/UNE é um dilema, uma encruzilhada, um trevo de desejos e objetivos. Dar consciência ao povo-massa ou organizar os intelectuais e artistas em tomo de uma “arte popular revolucionária” ou organizar os estudantes em tomo da UNE. Uma aventura à toque de caixa. Nessa multiplicidade de desejos o CPC range.

A “arma” dessa luta é a arte. O teatro é a carabina, o obus, o tanque de guerra mais barulhento. Um teatro de ideias, martelando ideias, bate-estaca de ideias na cabeça do público. Esse público inconsciente que o.conscientizador se esfalfa, se pela e se arrebenta para dizer pra ele as coisas claras, o que fazer, agora, já, sem demora,

A arte é sua arma de mudar o mundo:

“Quando o homem do povo pergunta à nossa arte: o que sou?, devemos responder-lhe, em primeiro lugar, com a posição que ele ocupa no mapa da objetividade, com o papel que desempenha nas conexões causais entre os fenômenos, com o desafio que encontra nas articulações materiais a que está subordinado o ser do homem em seu essencial pertencimento ao mundo; e, em segundo lugar, devemos responder-lhe com as atitudes, as predisposições, as crenças e as esperanças que possibilitam e atualizam o exercício da vontade de libertar e de se libertar”. (Anteprojeto do Manifesto do CPC)

OS ARTISTAS E OS ARTISTAS

E os artistas? Há artistas e artistas. Há os conformistas, os inconformistas e os revolucionários. Os conformistas são os “ideólogos da expoliação”. A neutralidade dos inconfomistas “não passa, o mais das vezes, de umainocente ilusão de independência e as escaramuças com que, em momentos de maior hostilidade, assaltam as cidadelas dopoder, não são capazes de causar maiores danos porque, na medida em que não obedecem a um plano conjnto inspirado numa visao global da realidade, esses atos de rebeldia se perdem no oceano das manifestações epidérmicas que de modo algum põem em perigo os detentores efetivos do poder”(“….Manifesto”).

E os revolucionários?

“A terceira alternativa é aquela escolhida pelos artistas e intelectuais que identificam seu pensamento e sua ação com os imperativos próprios à consciência da classe oprimida. Somente enquanto satisfazem a esta condição é que os artistas e intelectuais que compõem o CPC se sentem autorizados a afirmar sua qualidade primeira e fundamental de revolucionários consequentes.”

A categorização das pessoas que lidam no mundo artístico é meramente moral e comportamental, não contendo em si esboço qualquer da formação histórica dessa intelectualidade que se deseja organizar num programa e num processo de luta cultural. a história se ideologiciza para a satisfação da moral cepecista.

APONTANDO AS SOLUÇÕES

No CPC “se encontram os artistas e intelectuais revolucionários. O CPC é “um órgão cultural do povo” e “só é possível num momento de ascenção das massas”. Certo disso, faz arte e fala o artista revolucionário do CPC, e fala “não somente à classe revolucionária, mas ao povo em geral”, pois o importante é que ele “critique e Aponte soluções de acordo com a perspectiva da classe revolucionária”.

Essa perspectiva é seu compromisso com a política de reformas de base do governo. A divulgação de seus pontos de vista e a promoção de seus defensores, em que se empenham instrumentos de uma cultura popular que para isso se imagina.

O objetivo dessa cultura popular, diz-se, é a “aceleração do processo de transformação dos suportes materiais da sociedade”. Uma cultura popular empenhada numa “reforma cultural revolucionário”. Revolucionar é reformar.

A mesma estória de que uma revolução cultural “só pode ter lugar quando o povo tomar o poder”. Por enquanto é a hora das reformas, no universo da cultura. No mundo das ideias. A propaganda como arma desse projeto. E de outros projetos.

“Como nos momentos em que o povo luta não nos comportamos como artistas e sim como membros ativos das forças populares, podemos bem avaliar enquanto atuamos como artistas a importância que têm as armas culturais nas vitórias do povo e o valor que adquirem as ideias quando penetram na consciência das massas e se transformam em potência material. Aí está por que afirmamos a necessidade de centralizarmos nossa arte na situação do homem brasileiro posto diante do duplo desafio de entender urgentemente o mundo em que vive, o ser objetivo da nação em suas estruturas, em seus movimentos, em suas tendências e virtualidades, e de munir-se da vontade, dos valores e dos sentimentos revolucionários e de todos os elementos subjetivos que o habilitem a romper os limites da presente situação material opressora” (Manifesto)

ESTETIZANDO A POLÍTICA

“Entender urgentemente o mundo em que vive” e “munir-se da vontade, dos valores e dos sentimentos revolucionários” etc, e tal, para o CPC, nesse voluntarismo, “fora da arte política, não há arte popular”. A política é a fonte de arte e daí se esteticiza a política, em vez de se politizar a arte. De certo modo, se confunde a prática artística, com a prática política. A propaganda e a agitação, como tarefas de um possível militante político, reivindicam para si o estatuto de arte e de arte revolucionária. O discurso e a retórica lhes dão legitimidade para tanto.

“Eis por que afirmamos que, em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular. Com efeito, se o povo é um universal ele só pode estar presente como povo, e, portanto, como universal, nas obras que versam sobre as questões humanas analisadas à luz de uma perspectiva política. Expressando-se ações e situações de outra ordem, que não revertem em último termo ao denominador político, não se trata mais do povo como protagonista de seu próprio drama e promotor de seu próprio destino. Se a política não for a fonte de onde brota a inspiração, se não for política a substância das situações de conflito que formalizamos, então em nossas obras não estaremos mais falando direta e revolucionariamente ao povo enquanto tal, ao povo como entidade coletiva que precisa escapar como um todo ao cerco de miséria de que é vítima e que encontra na atuação política organizada, unificada, seu único caminho de redenção. É uma verdade que paira acima de qualquer contestação a tese de que não pode haver dois métodos distintos, um para o povo tomar o poder, outro para se fazer arte popular” (Manifesto).

Assim vão se consolidando práticas missionárias de propagandistas e agitadores do modelo político de então, tomadas como práticas redentoras de uma arte de libertação tanto do artista, como do povo.

“Os membros do CPC optaram por ser povo, por ser parte integrante do povo, destacamentos de seu exército no front cultural. É esta opção fundamental que produz no espírito dos artistas e intelectuais que ainda não o fizeram alguns equívocos e incompreensões quanto ao valor que atribuímos à liberdade individual no processo de criação artística e quanto à nossa concepção da essência da arte em geral e da arte popular em particular” (Manifesto).

AS ARTES E O POVO

O CPC funciona sob a promoção de si mesmo como lugar único de qualquer atividade mais consequente do artista. O sentido do artista deve ser o seu compromisso político com uma dada noção de transfor mação da história. Mas a história para o CPC não chega a ter base materialista:

“O eixo dessa arte (a arte do CPC) é a transmissão do conceito do movimento dialético segundo o qual o Homem aparece como o próprio autor das condições históricas de sua existência”.

A dialética é um conceito retórico. O sujeito da história, um Homem com H maiúsculo, como o sujeito da arte, possivelmente um Artista com A maiúsculo. Esse artista que fala para o povo as verdades que imagina para o povo. E o povo e as artes?

Há três modelos de arte que se relacionam com o povo. Diferençados, há uma arte do povo, uma arte popular e uma arte popular revolucionária, esta, a “arte praticada pelo CPC”. O que estes modelos têm em comum é o público, como tal ou como pretensão. De resto, diferem entre si.

A arte do povo é a produzida “no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a industrialização”. Aí, artista e público se confundem.

O cepecista demarca sua diferença como artista que se proclama comprometido com a causa popular. E não o faz sem antes hierarquizar e valorizar essa diferença que lhe dá grandeza. Já na arte do povo “artistas e públicos vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração artística é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada”. Pois que essa arte do povo, do público que o sonho cepecista pretende encontrar dia virá, não passa de uma “tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais dados à sensibilidade mais embotada. É ingênua e retardatária e na realidade não tem outra função que a de satisfazer necessidades lúdicas e de ornamento”.

Esse desprezo pela vivência popular é uma necessidade do conscientizador cepecista, para a manutenção de seu estatuto de vanguarda. Ele “critica e aponta soluções para os problemas de acordo com a perspectiva da classe revolucionária”. E assim sendo, também será ele quem haverá de definir que perspectiva é essa.

A luta de classes não é só um conceito vago para o CPC. É um espectro que assusta o CPC, desmontando seus mitos, desvelando seu caráter voluntarista enquanto trabalho cultural calcado numa linguagem autoritária de inculcação de ansiedades pequeno-burguesas – se bem que como desejo – junto às classes trabalhadoras.

UMA OUTRA ARTE POPULAR

O que o CPC chama por arte popular é outra estória diversa da arte do povo. Seu público é a população-povo dos centros urbanos desenvolvidos. Seu produtor, um “grupo profissionalizado de especialistas”. Artistas e público se diferenciam. A produção dessa arte popular se insere no mercado, fora do controle do público popular. Este, consome essa arte popular.

Do ponto de vista do CPC, tanto a arte do povo, como a arte popular não são sequer arte, sequer do povo, sequer popular. A primeira se dirige à “sensibilidade mais embotada”. Apenas satisfaz a necessidades “lúdicas e ornamentais”. Já o que se chama por arte popular, ainda que mais “apurada” e tecnicamente “superior”, está “desprovida de dignidade artística” que a credencie como “experiência legitima no campo da arte”. Sua finalidade é a de “oferecer ao público um passatempo, uma ocupação consequente para o lazer, não se colocando para ela jamais o projeto de enfrentar os problemas fundamentais da existência”.

O cepecismo tem na sua moralidade a fonte inesgotável de fundamentos de sua argumentação.

O caráter lúdico da arte e seu sentido de diversão são menores e insignificantes para o cepecismo. O próprio sentido do prazer é um dado menor, pois importante é que a arte “desperte o homem” para a “reflexão e consciência de si mesmo”, voltadas às “provas e os sofrimentos do cotidiano”. Uma espécie de tomada de consciência pelo desprazer purgado.

Havia humor na arte do CPC, sem dúvida. Mas um humor sempre lado a lado a uma retórica de inculpação, ponto de apoio do ímpeto mobilizador do cepecismo.

Exemplo disso é o Auto do 99%, uma peça de teatro para estudantes, versando sobre a reforma universitária, mas sobretudo calcada no desejo de consolidação do papel do “estudante consciente” como alguém comprometido com a massa “ingênua e passiva”, compromisso que deve impulsionar esse estudante a sua condição de vanguarda esclarecedora da direção de luta dessa massa.

O Auto do 99% “chegou a deslocar o maxilar de um espectador de tanto rir, em Alagoas” (Depoimento, Carlos Estevam). Há qualquer coisa de simbólico nessa consequência. A peça se apoia no coro, assim fazendo a cabeça do espectador, remetendo-o. a uma situação culposa, com o que se caracteriza esse espectador.

Coro: Colegas, estudar é um privilégio

Dos que foram para o colégio

 custa do papai e da mamãe.

Colegas, nenhum de nós é operário,

Nenhum de nós camponês.

Estudamos dos salários

Dos filhos dos operários

Dos filhos dos camponeses.

Colegas.

Cabide de emprego, lugar de sossego!

A mobilização pela culpa e pelo discurso impositivo:

Coro: O colega pode crer, o colega há de saber.

UMA CONSCIÊNCIA CULPADA

Uma consciência culpada e inculpadora jamais pode valorizar o prazer. E a consciência cepecista é uma consciência culpada a serviço da inculpação das consciências. O conscientizador age como um missionário, um empenhado, um herói. Um exemplo de dedicação a causas. Seu observador, seu público, o ser a se conscientizar, o seu outro, esse “colega” omisso, um culpado de seu não empenho, de sua omissão, de seu não heroísmo, de sua inconsciência. De seu não voluntarismo pela causa justa, a do conscientizador, a quem se deve seguir:

Estudante: Abaixo a Universidade! Abaixo os velhos! Esperem! Vou à forra! Há de haver alguém no Brasil que se interesse por nós! Esperem! (Sai. O bedel sai atrás. O Velho 4 volta a dormir. Os velhos se recompõem. Voltam ao seu lugar de reunião.)

Não é em vão o exemplo, a tomada de consciência como um impulso e o gesto heróico. Como não é em vão a sua sutil consequência: o bedel saindo atrás do estudante agora, na peça, pronto para a luta à procura de “alguém no Brasil que se interesse por nós”. A dedicação, o compromisso, o interesse, o empenho, a causa justa, a opção política tomada como um ato de moralidade radical.

“Dentro de uma tal perspectiva, não pode o intelectual conceber seu trabalho como uma atividade indeterminada e gratuita, ou como uma simples expressão de obscuros sentimentos individuais”. (Ferreira Gullar, Cultura Posta em Questão)

O intelectual gratuito e o intelectual engajado. O culpado e o que vai pela estrada da vida, purgando suas culpas, seu pecado original de classe privilegiada. O conscientizador diz o que pode e o que não pode, o que é pra se fazer e o que não é pra se fazer, nessa purgação, nessa redenção dos homens aqui na terra.

“Em consequência disso, o movimento estudantil contribui generosamente para a renovação cultural do país, criando nos jovens a necessária receptividade àquela crítica dos valores estéticos, filosóficos e políticos a que aludimos.” (Ferreira Gullar, Cultura Posta em Questão).

NACIONALISMO: ESSA REVOLUÇÃO!

Arte do Povo e Arte Popular: nestas valem os estereótipos, pois que o resto é coisa da massa inculta. E por fim, a arte do CPC: a arte popular revolucionária :

“A Cultura Popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira. Cultura popular é compreender que o problema do analfabetismo, como o da deficiência de vagas nas Universidades, não está desligado da condição de miséria do camponês, nem da dominação imperialista sobre a economia do país. Cultura popular é compreender que as dificuldades por que passa a indústria do livro, como a estreiteza do campo aberto às atividades intelectuais, são frutos da deficiência do ensino e da cultura, os quais são mantidos como privilégios de uma reduzida faixa da população. Cultura popular é compreender que não se pode realizar cinema no Brasil, com o conteúdo que o momento histórico exige, sem travar uma luta política contra os grupos que dominam o mercado cinematográfico. É compreender, em suma, que todos esses problemas só encontrarão solução se se realizarem profundas transformações na estrutura sócio-econômica e, consequentemente, no sistema de poder. Cultura popular, é, portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária”. (Ferreira Gullar, Cultura Posta em Questão)

A revolução como uma compreensão. E o mercado de produção de bens simbólicos vai mal, e é preciso compreender isso, pelo camponês e pelo operário, essa massa inculta, passiva, ingênua, politicamente indigente.

“A expressão ‘cultura popular’ designa um fenômeno novo na vida brasileira, cuja importância está na razão direta dos complexos fatores sociais que o determinam”. (F. G., Cultura Posta em Questão)

ou

“A cultura popular tem caráter eminentemente nacional e mesmo nacionalista. Nem poderia ser de outro modo, já que a visão cultural que a alimenta – como movimento e como fenômeno – emerge dos problemas de estrutura do país e coloca a necessidade da participação do intelectual na solução desses problemas”. (F. G., Cultura Posta em Questão).

Cultura Popular, enfim, é a “nossa” cultura popular, ou seja, o que a ideologia cepecista diz que é cultura popular, um “fenômeno novo”, da idade do cepecismo.

A cultura popular como uma tomada de consciência. Um ato de compreensão de uma “realidade concreta”, essa expressão mágica que ao conscientizador cabe definir e dizer o que é e resolver o que é.

Nada mais, nada menos do que todo um discurso pela modernização do capitalismo no Brasil, sob o sonho em berço explêndido de alianças mágicas, patrões, nacionais, é claro, trabalhadores e esse ser feiticeiro, o intelectual, luz das massas.

E a modernização capitalista tomada como uma missão de consciências revolucionárias, revolução fruto do ato de compreensão do real. A prática ditada pelo saber, pela ideia. A vivência ditada pelo saber. O saber e a ideia movendo os homens, como se isso bastasse, esse exercício intelectual a partir daquele que se legitima defensor do popular, sempre supondo a partir de seu discurso e decreto o que é o ser popular, por saber que é popular a sua vontade de compromisso com o povo que deve segui-lo, sem dúvida, irá segui-lo. Essa rede de sonhos; Esse intrincado de desejos. A compreensão do real, um real-desejo, bastando. Ama com fé e orgulho a causa por que te empenhas, na terra em que nasceste.

MEU PAPEL, HISTÓRICO

E o artista popular revolucionário? Ele opta por seu compromisso, definindo o seu papel, sua missão carregada de boas intenções.

Os artistas e intelectuais do CPC escolheram para si outro caminho, o da arte popular revolucionária. Para nós, tudo começa pela essência do povo e entendemos que esta essência só pode ser vivenciada pelo artista quando ele se defronta a fundo com o fato nu da posse do poder pela classe dirigente e a consequente privação de poder em que se encontra o povo enquanto massa dos governados pelos outros e para os outros. Se não parte daí não se é nem revolucionário nem popular, porque revolucionar a sociedade é passar o poder ao povo” (Manifesto).

Entre os dirigentes e o povo, o artista popular revolucionário, na sua luta por passar o poder ao povo. Percebendo a sua missão, nisso se empenha. Sua arte apresenta um duplo desafio para o “homem brasileiro”: o de entender a realidade na qual vive, seus processos materiais etc. e tal e o de munir-se dos valores e sentimentos revolucionários que lhe permitam vencer a atual situação opressora.

O poder do saber e o poder da vontade: condimentos para se fazer um revolucionário. E daí, o poder para o povo. Eu sei, portanto eu me armo dos valores desse saber, para ser um revolucionário e então passar o poder para o povo.

O papel da arte revolucionária é “desvendar o mundo objetivo para o homem do povo”. Isto, “pela investigação e pela análise”. Eis o discurso de toda uma prática voluntarista que, superestimando o papel da intelectualidade num dado desejo de mudança social, qualifica e legitima por si mesmo, essa intelectualidade como vanguarda do povo sofrido por sua condição de vida opressiva. Vanguarda que não é só vanguarda, mas também quem sabe que condição de vida é essa, pois nem isso, talvez, o povo saiba: daí a necessidade de toda uma retórica da miséria em favor do miserável e se possível – o destino do esforço – para o miserável. A poética da miséria como retórica. Retórica do missionário que toma para si a missão de passar o poder para o povo, enquanto divulga, propagandeia e faz alarde dos benefícios do programa reformista e modernizador do governo. O voluntarismo cepecista à serviço da propaganda e da agitação desse programa, junto a seu público.

O conscientizador sempre necessita de uma boa intenção, o seu mérito munindo de transcendência o seu desempenho e a sua prática. A retórica e o que há por trás da retórica. O conscientizador é zeloso de sua imagem, de seu papel estórico, nessa história que é outra.

VIVA O CONTEÚDO!

A arte popular revolucionária tem sua inimiga mortal, que é a arte ilustrada das elites dirigentes. Uma briga de morte. Antagonismo que tem seu solo de luta na noção dual da obra como uma ligação bem clara de determinadà forma a determinado conteúdo. Essa visão esquizofrênica da obra: a forma da obra e o conteúdo da obra. O conteúdo é isso e a forma é aquilo. E a obra? Ora, é sempre a obra: sua cabeça e seu corpo, sua aparência e sua essência, uma divina dualidade, nem sequer trindade, pois que pouco importa a obra, já que para uns importa é o conteúdo e para outros a forma. Para a APR, o conteúdo. Para a arte ilustrada das elites, a forma. E assim sendo a obra é o conteúdo, para o CPC. O que lhe importa é dizer e expressar o que tem a dizer e expressar, não importa como. Ou nem tanto importa o como.

Quanto à forma: “Com efeito, seria uma atitude acrítica e cientificamente irresponsável negar a superioridade da arte de minorias sobre a arte de massas no que se refere às possibilidades formais que ela encerra. O artista de minorias não encontra nenhum obstáculo à sua legítima aspiração de aperfeiçoar os seus recursos expressivos e de desenvolvê-los ilimitadamente.”(Manifesto).

Contudo:

“Os artistas e intelectuais do CPC (… ) consideram que a situação não é a mesma quando se pensa em termos de conteúdo” (Manifesto).

A forma das artes de elite é superior à da Arte Popular Revolucionária. Já o conteúdo desta, por sua vez, é superior à das artes de elite. Paradoxo ou encruzilhada? Nada disso, pois que não interessam questões formais, já que tendo optado “pelo público na forma de povo”, o artista do CPC sabe que seu público “em sua apreciação da arte não procede segundo critérios formais de julgamento”, sendo que “suas relações com a arte são predominantemente extra-formais”:

“trata-se de um público que reage diretamente ao que se lhe diz, um público em que é nula a capacidade de se desfazer das preocupações práticas com sua existência, de abstrair os motivos, as esperanças e os acontecimentos que configuram os quadros de sua vida material. Em uma palavra, lidamos com um público artisticamente inculto, inserido a tal ponto em seu contexto imediato que lhe está vedado participar da problemática da arte. As preocupações formais e a capacidade de perceber e usufruir na obra tudo que nela significa progresso, riqueza ou destreza formal são itens que compõem a esfera vital daqueles que, na divisão social do trabalho, situam-se do lado do trabalho intelectual e não do trabalho manual” (Manifesto).

OS LIMITES DO POVO

A diferença se determina com sua hierarquia. Consolida-se o status da intelectualidade, estrato social que sabe das coisas, além de saber sentir as coisas, esse trabalhador intelectual. Quando do lado do povo, sua missão é divulgar esse saber, contudo, sempre nos termos da incapacidade desse povo, da compreensão limitada desse outro do intelectual-vanguarda-do-povo, o trabalhador manual, público inculto, a quem a cultura deve chegar conforme sua incultura.

A diferença legitima a relação de poder, nesse império do conteúdo para o povo. O poderoso sabe cumprir o seu papel, sabendo o que deve ouvir o povo e o jeito de se falar para o povo, um jeito simples, direto, conforme as limitações desse povo limitado. É assim que se deve agir, para um dia se passar o poder ao povo. Não o poder do como saber, mas sim os frutos dosados desse saber, de acordo com as condições restritas de apreensão das coisas pelo povo. O artista do CPC tem um compromisso com a clareza, para que sua arte seja eficaz no que se propõe e divulga. Essa eficácia se fundamenta em toda uma mitologia do simples e do simplificado, o que o povo precisa, porque o povo é simples. E precisa não mais que isso, os limites do povo.

“Desejando acima de tudo que sua arte seja eficaz, o artista popular não pode jamais ir além do limite que lhe é imposto pela capacidade que tenha o espectador para traduzir, em termos de sua própria experiência, aquilo que lhe pretende transmitir o falar simbólico do artista” (Manifesto).

ou

“Se estamos solidários com o povo é porque afirmamos que nossa arte só irá aonde o povo consiga acompanhá-la, entendê-la e servir-se dela” (Manifesto).

O conscientizador reproduz os limites da consctencia de uma consciência limitada. E o boi fica amarrado no pé da cajarana. O boi e o povo. Ou não, pois que o povo é o povo e o conscientizador cepecista, o conscientizador cepecista, com seus sonhos e mitos.

Esse artista eficaz age assim e se vangloria de não criar o novo. Para ele, quem cria o novo é o artista de elite, que lida com um público de condições culturais privilegiadas. O artista popular revolucionário, na sua arte cheia de clareza, utiliza-se do usado e com ele executa sua criação. E é justo esse artista quem se chama de revolucionário.

Utiliza-se do usado naquilo que ele chama por arte popular e por arte do povo, duas manifestações toscas e desajeitadas da arte, mas que lhe dão recursos para uma aproximação com o público que esse artista pretende. E nesses recursos insere os conteúdos da arte popular revolucionária. Assim, a arte popular revolucionária torna-se uma arte de estereótipos. Sua feição para o povo é caricatural.

“Graças à inconsequência estilística da arte do povo e da arte popular, são encontrados em coexistência pacífica elementos formais heterogêneos provenientes das mais diversas origens geográficas e históricas. O acentuado espírito conservador com que o povo se imobiliza no uso das formas que obtiveram êxito quando pela primeira vez adotadas permite que o artista revolucionário retome tais formas e as recupere para a veiculação de conteúdos inteiramente distintos daqueles que lhes deram origem.” (Manifesto).

A MÁSCARA DE POVO

O fundamental é se penetrar cada vez mais fundo na receptividade das massas. Essa aproximação dá-se por toda uma relação utilitarista de qualquer possível linguagem popular. A diferença não se vivencia e muito pelo contrário se mascara com o artifício de traços superficiais e aparentes:

“a forma não interessava enquanto expressão do artista. O que interessava era o conteúdo e a forma enquanto comunicação com o público, com o nosso público. Uma vez, fomos com a carreta para o Largo do Machado, estávamos fazendo um espetáculo em um dos lados da praça, enquanto que no outro havia um sanfoneiro e um sujeito tocando pandeiro. Apesar de todo nosso equipamento de som e luz, o sanfoneiro e o pandeirista juntavam mais gente que nós. Saímos dali para fazer uma reunião de avaliação e saiu uma paulcira fenomenal. Lembro de que me pus aos berros: “Não é possível, isto é um fracasso total e completo, eu vou sair com os sanfoneiros e vocês ficam aqui, vocês pretendem se comunicar com a massa e estão levando uma linguagem que não está passando”. Foi daí que surgiu esta concepção do CPC de que deveríamos usar as formas populares e rechear estas formas com o melhor conteúdo ideológico possível. Isso deixava o pessoal que era artista com mágoa” (Carlos Estevam, Depoimento).

ou

“Uma experiência estética interessante foi a do teatro camponês, quando se desenvolveram as ligas camponesas do Julião no Rio de Janeiro. Joel Barcelos, grande ator popular, liderou a equipe que se locomovia para o Estado do Rio. Os primeiros espetáculos que foram feitos na área rural foram fracassos lamentáveis. Diante disso, Joel Barcelos teve a feliz inspiração de rejeitar os textos prontos e exte riores à realidade do local, sugerindo que o grupo chegasse ao local da apresentação uns dias antes e se dedicasse a estudar os problemas e os tipos humanos mais característicos do local; cada ator elegia um tipo, e o grupo montava um texto em que aparecessem estes tipos com os nomes ligeiramente alterados, e os problemas que a população local enfrentava. Isso funcionou otimamente”.

O cepecismo busca assim a eficácia de seu voluntarismo. Nos sinais mais estereotipados da arte do povo inserem-se valores que lhes são estranhos, um conteúdo nessa “forma” que o CPC considera pr6pria da “sensibilidade mais embotada”. Alcança-se desse modo uma forma bastarda de cultura de massas. Dinamizam-se os estereótipos da arte do povo fazendo com que rendam “a máxima eloquência”, sem dúvida uma eloquência envergonhada, indo s6 até onde o povo “consiga acompanhá-la, entendê-la e servir-se dela”.

Como na cultura de massas, têm-se técnicas de reiteração de comportamentos e visões de mundo, conforme os desejos de seus produtores, esse artista que se diz revolucionário. Este é um sedutor que fala para quem quer seduzir. Uma relação de sedução entre o que sabe e o que está ali para saber segui-lo. A participação popular, no caso, (enquanto público) é chamada à ação, para uma atuação rebocada. O humor reiterativo e a inculpação do observador são os principaís meios para a eficácia do método.

EIS AÍ MEU SACRIFÍCIO

O artista se propõe a falar como o povo, o que para esse artista é uma restrição, um sacrifício pessoal, um sacrifício de sua sensibilidade, seu ab ndono proclamado do prazer da arte. Esse sacrifício é a sua glória, pois que o importante é que o povo aceite e assimile o que se fala: o troco, o que o conscientizador espera do povo, em benefício do povo. O conscientizador posa como quem não quer nada para si, pois o que deseja para si é o benefício do outro. Para o conscientizador o que significa é o desempenho de sua missão redentora em favor do outro – o povo, o inculto, o embotado, o indigente, a quem o conscientizador pretende passar o poder. Não o poder que tem o conscientizador, mas o poder de um outro outro do conscientizador popular e revolucionário, o poder da elite dirigente.

O conscientizador não tem lugar. Ele tem compromissos, missões, lutas, combates, empenhos, com o seu saber que só serve a ele na medida em que ele põe a serviço de outro, contra um outro outro. O conscientizador cepecista é um solitário dedicado. Porque ele não é massa, não é povo, nem é elite dirigente. É uma vanguarda autonomeada, sob o impulso de seu voluntarismo. Ora, o conscientizador e sua boa intenção!

“Nossa arte se populariza porque repudia a métrica e a ótica do ego da arte alienada e ambiciona, ao contrário, intensificar em cada indivíduo a sua consciência de pertencimento ao todo social; busca investi-lo na posse dos valores comuns e das aspirações coletivas, consolidando assim sua inserção espiritual no conjunto dos interesses comunitários.

A popularidade de nossa arte consiste por isso em seu poder de popularizar não a obra ou o artista que a produz, mas o indivíduo que a recebe e em torná-lo, por fim, o autor politizado da pólis”. (Manifesto)

UM OUTRO CIRCUITO

O CPC como viagem. A mudança do circuito na produção de bens simbólicos. Como se a mudança de circuito fosse o bastante para alterar o caráter de classe da arte. Mas não há tanto porque falar nisso, pois que a mudança do caráter de classe da arte jamais teve lugar no desejo cepecista: o CPC desdenha “a sensibilidade embotada” do povo.

O CPC alarga o mercado para a eficácia das implicações políticas com que se compromete.

O CPC como movimento. Seu impulso, o desejo de seus militantes. A moralidade de seus princípios lhe dá aura. Um movimento que se diz cultural, a serviço da mobilização política, por questões da conjuntura. Essa mobilidade deslocada de seu lugar produz o discurso cepecista, a imagem do CPC e daí todo um modo peculiar de se ver as relações da arte com a política, influenciando até hoje os projetos culturais de esquerda no Brasil.

“Queríamos fazer e fizemos um trabalho educativo, que abrisse possibilidades de transformar a realidade. Não tínhamos nenhuma dúvida de que estávamos trabalhando pelos interesses mais profundos e históricos das classes populares. Entendiamos, com uma aguda consciência (isso está na letra de uma de nossas músicas), que éramos pessoas socialmente privilegiadas; tínhamos tido acesso à compreensão de uma porção de coisas e achávamos que o nosso dever era o de tentar transmitir isso àqueles que não tiveram as mesmas condições e oportunidades que tivemos. Sabiamos, também, muitíssimo bem que a nossa atuação “de cima para baixo”, por causa de seu conteúdo e de sua finalidade, destinava-se a produzir atuações de baixo para cima. Mas, o principal para nós não eram as intervenções de baixo para cima que as nossas atividades pudessem suscitar no plano cultural. O principal para nós eram as intervenções de baixo para cima nos planos econômicos, social e político. Se não fosse para isso, por que diabo fomos fazer justamente o CPC e não uma empresa qualquer – de teatro, de cinema, de publicações – uma empresa qualquer que nos desse dinheiro e a oportunidade de fazer arte pela arte, protegidos pelo direito à liberdade que é concedido aos criadores no campo da estética?” (Carlos Estevam, Depoimento).

O movimento cepecista por sua ânsia imediatista, por seu caráter pequeno-burguês, por sua nervosa tentativa de consolidar o papel do intelectual como vanguarda e luz do povo, diversifica-se por múltiplas direções e nisso se perde. Deseja aproximar-se do povo pobre, da “massa inculta”, do “indigente político”, levando até ele o saber, a consciência. Deseja organizar a intelectualidade em torno de um projeto de cultura nacional-popular adaptado às contingências da conjuntura. Deseja fortalecer a União Nacional dos Estudantes junto às massas estudantis. Uma multiplicidade de desejos e um laboratório de experiências de técnicas estereotipadas de agitação e propaganda política a toque de caixa, para “engrossar e enraizar o movimento pela transformação estrutural da sociedade brasileira”.

O sonho: “tínhamos a perfeita sensação de que as classes popu lares haviam vencido”. E a crença no sonho.

O CPC E O ABSURDO

O cepecismo atrela a questão cultural à luta política. É uma, redução da grandeza da luta ideológica.

A forma – dizia-se – não interessava ao CPC. Interessa o conteúdo. O CPC, mais que tudo, foi formalista. Existiu um padrão CPC. Toda uma homogeneidade no modo de agir e de se praticar o cepecismo. Desde a postura cepecista à retórica de seu discurso impe rativo. A forma cepecista como uma rigidez.

A fala cepecista era a certeza, como um outro da dúvida. A fala do justo. Não cabe no CPC a contradição. O que é contraditório, o CPC vê como um absurdo. A situação do país é um absurdo. A situação do povo é um absurdo. A universidade é um absurdo. O latifúndio é um absurdo. O imperialismo é um absurdo. O Lacerda é um absurdo. A história é um absurdo. A inconsciência é um absurdo. A alienação é um absurdo. Sua omissão é um absurdo. Seu privilégio é um absurdo. Você é um absurdo. O que está na história e o CPC não gosta é um absurdo. Contradizer o cepecismo é um absurdo. O sanfoneiro atrain do público e o CPC não, é um absurdo.

O CPC é uma fala sob esse modelo. Daí sua mitologia. O mito como uma fala.

“O que é preciso entender é isso: nós estávamos atuando no limite do nosso tempo histórico” (Carlos Estevam, Depoimento).

Certo! Nada mais que isso. A atuação do CPC no seu tempo histórico. Nos limites desse tempo histórico, não indo além desses limites. Fincado nesses limites. Reiterando esse tempo histórico e seus limites, lá.

Assim, o cepecismo, hoje, não tendo mais lugar, nesse outro tempo histórico, se desejado, irá ocupar quando muito o lugar da nostalgia.

para

são bernardo

santo andré

são caetano

com o barulho do silêncio

nos provaram o contrário

“…………………………..

arrombando portaberta

a verdade não vale

o pédecabra”

(in “Cortina”, Roberto Prado)

8. A PALAVRA DE PAULO PONTES

UM TEATRO, BRASILEIROS!

O ideário de Paulo Pontes para o que entende por teatro brasileiro é uma retomada, na conjuntura cultural dos anos 70, das propostas e formulações de Oduvaldo Vianna Filho, em seu texto-programa Um Pouco de Pessedismo Não Faz Mal a Ninguém, conjunto de reflexões produzido na década anterior, antes do chamado “milagre econômico” da ditadura. É o desejo de um teatro uno, redondo, sem contradições internas, sem luta de classes no seu interior e lutando por seu fortalecimento empresarial.

O centro de suas preocupações é o teatro comercial. A identidade do teatro é o teatrão, o teatro do grande circuito, do mercado. A Paulo Pontes não importa uma análise que aponte para uma mudança ou alteração estrutural nas relações de produção desse teatro. O que importa transformar é a temática de seus palcos.

Quer um teatro forte empresarialmente, acompanhando o desenvolvimento capitalista da sociedade brasileira, um teatro de grande público, importando apenas que seus temas sejam hegemonicamente a realidade e essa realidade “é uma questão de se dizer o que todos querem ouvir, mas nem todos estão dispostos a dizer”. Um teatro “nacional e popular”, pois “existe um público imenso para o teatro desde que este abandone o subjetivismo e o elitismo, aproximando-se da construção de uma cultura nacional-popular”:

“O Brasil começa a ter, como os Estados Unidos, a sua Broadway e sua off-Broadway. No centro da atividade teatral está o teatro eminentemente comercial, e nas beiradas está a experiência teatral radical. Eu não acho que isso seja desejável, entre outras coisas, porque o Brasil não é os Estados Unidos. O capitalismo brasileiro só atinge uma fração de sua população. Já vi gente propondo: vamos para as salinhas, vamos fazer um teatro paralelo. Sou contra isso. Entregar o centro do teatro brasileiro, a maioria dos palcos de Rio e de São Paulo ao teatro comercial e se exilar nas salinhas não é a política correta. Nós temos é que lutar para que o centro do nosso teatro continue a ser questionador e brasileiro”.

EMPRESÁRIOS SEM TUTELA

As aspirações de Paulo Pontes se sustentam num documento da Associação Carioca de Empresários Teatrais (ACET), produzido em 1973. Nesta época, Orlando Miranda é presidente da entidade patronal. Paulo Pontes participa da diretoria. É um documento enviado ao Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Na oportunidade, a ACET, após fazer um balanço da situação do teatro, “atividade que se inscreve no setor terciário da economia”, reivindica do governo formas de financiamento, e não paternalismo ou assistência. Quer o fortalecimento infra-estrutural do teatro. O objetivo em última instância é uma carteira de crédito e financiamento a juros módicos que permita às companhias teatrais trabalhar independentemente da tutela estatal, desenvolvendo uma infra-estrutura própria de auto-sustentação.

No ano de 1974, Orlando Miranda é nomeado diretor do Serviço Nacional de Teatro. O seu primeiro plano de trabalho diz, dentre outras coisas, que se pretende colocar em um “estabelecimento bancário oficial a importância de até 3 milhões de cruzeiros, para empréstimos a produtores teatrais. Tais empréstimos serão concedidos a juros baixos, prazo de 12 meses para amortização e prazo de carência para o início do resgate”. Estão mantidos, no caso, os propósitos do documento da ACET de se desenvolver o empresamento de espetáculos “independentemente da tutela estatal”. Por outro lado, o plano do SNT também registra que o Estado “tem como função essencial a de intermediário” do processo cultural. À história coube definir a ambiguidade do plano de ação do Serviço Nacional de Teatro.

UM ANIMADOR CULTURAL

Nesse sentido, Paulo Pontes é sobretudo um animador cultural que tenta, em meio a esse projeto, resgatar para o palco toda uma série de ideologias que guiaram a história do chamado teatro brasileiro, sua vida e sua glória, principalmente ideologias de cunho nacionalista e populistas dos anos 50/60, tentando adaptá-las ao momento, hora política em que se vivia o projeto de distensão do governo Geisel.

Os meandros do raciocínio do autor de Dr. Fausto da Silva não são simples, nesse processo de adaptação de desejos do passado a uma outra conjuntura. Limpar seus conceitos é um trabalho problemático, na medida em que suas aspirações se expressam por nexos tão desencontrados. Mas o confusionismo dessas aspirações expressas é o bastante para nos mostrar que seus frutos serão diversos daqueles que anuncia.

Paulo Pontes parece sempre expressar com suas palavras e compromissos um plano dual de desejos e conquistas. O desejo é o que diz com o verbo, o que se fala e se expressa por palavras. Um desejo apalavrado. O que se conquista, se vela por essa verborragia contraditória, quantas vezes paradoxal.

Aliás, todo o discurso de Paulo Pontes é dual. Seu pensamento é dual: um mundo subdesenvolvido e um mundo desenvolvido, o positivo e o negativo, um teatro comercial e um teatro radical, o certo e o errado, a cabeça e o corpo, a forma e o conteúdo, a consciência e a prática.

UM PROBLEMA DOS DIRIGENTES

A consciência é o bastante. Um saber, uma informação. O recado certo das cabeças pensantes que constroem uma noção da realidade, urn conceito de nação, uma percepção do real, uma ideologia do popular. Uma verdade, uma realidade, mesmo que diversa do que se constata na situação concreta do que se conceitua.

O dualismo como uma necessidade. O desejo das palavras enfumaçando a consolidação paulatina de um projeto capitalista para o teatro, que vai saindo aos poucos das gavetas dos planejadores culturais do regime. Palavras sutis ou não:

O “que caracteriza a produção cultural brasileira neste momento. É a incapacidade efetiva de sua elite política e intelectual de apreender a complexidade do processo que está aí. E isso é prejudicial para todo mundo e, neste momento, fundamentalmente para as classes dirigentes. Porque elas têm que se preocupar em adquirir, da maioria da população, um consentimento espontâneo para o projeto que tenham para o país – já que aspiram à continuidade. E isso, esse consentimento, só pode ser adquirido com uma discussão honesta, clara e objetiva dos problemas do país”. “A sociedade dirigente não pode fundamentar seu papel apenas nas suas forças coercitivas. A partir de determinado momento, se ela aspira à continuidade, ela tem que ganhar a consciência. da maioria das pessoas. Porque, senão, se criará um fosso intransponivel entre a consciência da maioria e os projetos das classes dirigentes”.

UM LUGAR SEM REALIDADE

No princípio sempre foi o verbo e daí, uma montoeira de imperativos. Há dois teatros. Um perplexo e outro tentando refletir a realidade. Um subjetivo, outro objetivo, um nacional, outro submetido aos modismos das vanguardas americana e europeia, um popular e outro elitista. A situação é tétrica, porque “na atual fase do teatro brasileiro a realidade saiu do palco”.

“É um problema conjuntural, que impede que o artista se desenvolva da• realidade do povo brasileiro. Se o teatro tivesse condições de utilizar novamente a realidade, acho que seria o setor artistico que mais se desenvolveria nos dias de hoje”.

O que acontece no palco de então não é a realidade. É o irreal, com certeza. A subjetividade é irreal, a perplexidade é irreal, o modismo das vanguardas é irreal. Porque a realidade é o que se mapeia como verbo.

NÃO SE IMPORTA O QUE IMPORTA

Para Paulo Pontes, na sua imensa maioria, os espetáculos dos circuitos carioca e paulista não são nacionais. É tudo uma vanguarda importada, um maneirismo formalista, nada tem a ver com a realidade. É tudo um experimentalismo esotérico. Não é teatro brasileiro. É como vê a produção teatral em 1973:

“E isto acontece num país vítima de uma cultura colonizada, onde cada geração tem de começar do zero para fazer alguma coisa”.

É a dominação cultural estrangeira descaracterizando as raízes, as tradições, a história da cena nacional. Tirando a realidade do teatro e o teatro da realidade. Essa é a realidade: “Os elos estão sem nexo em nosso teatro”. Mas o que é a realidade?

E isto acontece, quando “a História está à espera da filosofia, da estética e da cultura do III Mundo, que tem de assumir o papel de agente do desenvolvimento sócio-cultural da sociedade internacional. Dizer isso não significa tomar apenas uma posição política. Mas, sobretudo, aliar-se a uma tomada de posição cultural”.

Os chamados países desenvolvidos, os dominantes, estão falidos culturalmente, ainda que dominantes. Não têm nada a propor à “sociedade internacional”, ainda que dominantes. A cultura que produzem é uma “cultura de anões”. Gigantesco é o III Mundo, celeiro da sabedoria do tempo.

“Não é à toa que os Estados Unidos, com todos os seus dólares, estão estudando e dissecando a cultura do III Mundo. Fazendo um balanço do passado, do nosso passado que nós mesmos deixamos esquecido. Em teatro, como em quase todas as coisas. Isso me leva a subvalorizar as tendências experimentalistas ou esotéricas tão em voga entre nós, atualmente.”

O dualista é sempre um palavroso de seu voluntarismo:

“A dramaturgia dos anões que fique com os países desenvolvidos. A dramaturgia dos gigantes ficará com o III Mundo. Precisamos não cometer mais equívocos, precisamos não sucumbir ao complexo de inferioridade que as metrópoles impingiram aos colonizados. O III Mundo é o celeiro da criação que o mundo aguarda. Vamos ao balanço. É o que proponho”.

E, nesse instante, a proposta é a reavaliação do passado da chamada dramaturgia nacional. Nada demais e bem a propósito. O desenvolvimento capitalista da sociedade brasileira começa a exigir uma reavaliação de sua cultura burguesa, de sua história cultural. Uma reavaliação de seu teatro, da dramaturgia brasileira.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Apenas isso e tudo bem. Tarefa que aos poucos os aparelhos culturais do Estado foram tomando para si. Tarefa que tem sua significação e sua importância, mas que não se trata, é claro, de nenhuma batalha pela libertação nacional ou de quem quer que seja.

“Este é um problema a mais de nosso teatro. Ninguém se dispõe a um balanço do que se fez em termos de espetáculo e dramaturgia nas décadas que já se foram. João Caetano, Leopoldo Fróes, Martins Penna, Arthur de Azevedo, Procópio Ferreira, Joraci Camargo e centenas de outros. Estes deram forma à tradição e à linguagem do teatro brasileiro.”

UMA HISTÓRIA DE LUTAS

Pensando assim, Paulo Pontes chega a elaborar esquematicamente toda uma historiografia peculiar dos últimos 150 anos de teatro brasileiro. Divide a história desse teatro em três grandes fases:

” … uma que vai de Martins Penna, grande comediógrafo brasileiro até meados da década de 50, mais ou menos 56, 57. De 57 até 64. De 64 até hoje. Vamos ver como se comportava o teatro brasileiro nessas três fases. Nessa primeira fase, podemos dizer que era um teatro que acompanhava a vida de seu público. Ele não era mais profundo, nem menos profundo nem ia além, nem ficava aquém da existência cotidiana dos cidadãos daquela época. Era um teatro crítico, embora não conseguisse, entre a crítica que fazia e a vida das pessoas que assistiam a peça, criar uma mediação ideológica muito profunda. Mas era um teatro próximo do sofrimento das pessoas, da existência cotidiana delas. Martins Penna era um comediógrafo atento, um juiz de sua época. Pegou a moral estreita da pequena burguesia da época, as pequenas vicissitudes.(…) Uma vida pequena, mesquinha, lenta, modorrenta. Tudo isso está no teatro de Martins Penna. Quase como um fotógrafo”.

Martins Penna é o dramaturgo: Vasques é o ator. João Caetano, o empresário. Três batalhadores acompanhando a vida do povo com o palco:

“Como Martins Penna que se exprime no campo da dramaturgia, Vasques, que é o primeiro grande ator popular que o Brasil teve, exprime-se no campo da interpretação. Essa tentativa de apanhar o brasileiro tal como ele é na sua vida normal. Ele tentou pela primeira vez botar o jeitão do brasileiro, a forma mais descontraída que existiu do homem brasileiro daquela época.

Em contraposição há o João Caetano, o ator das elites que trabalhava segundo padrões mais ou menos europeus, como ele intuía que era o grande teatro feito na época. Mas o João Caetano como empresário (foi empresário de Martins Penna durante muito tempo) fazia, no campo do empresariado, o que Vasques fazia na interpretação e Martins Penna na dramaturgia. Tentava fazer um teatro brasileiro presente e acompanhando a existência dos cidadãos”.

POR UMA PROSÓDIA NACIONAL

Esse processo descrito por Paulo Pontes percorre o século XIX, mas chega ao século XX com um teatro brasileiro que não passa de um teatro português:

“Velhinhos como Armando Gonzaga, Renato Vianna, Freire Júnior, Oduvaldo Vianna. Uma gente muito afeita ao nosso cotidiano, às vicissitudes, aos sofrimentos, aos problemas da população, eles deixaram muita coisa bacana dentro dessa ótica. Fizeram com que o teatro fosse brasileiro, coisa que até aqui não era. Até o início do século era um teatro português. A maioria das companhias eram portuguesas, os atores eram portugueses, não só porque nasceram lá, mas porque representavam à maneira portuguesa aqui. Ao ponto de nessa época de 30 a 40, a grande luta do autor brasileiro era fazer com que as peças fossem escritas e representadas no Brasil com prosódia brasileira. Que é isso, né, criolo, vai, vem, a gíria era crime. O autor que escrevesse assim era pichado como de mau gosto. O teatrólogo brasileiro escrevia com prosódia portuguesa”.

PARA FRENTE E PARA O ALTO

A segunda fase, na verdade, se ensaia com a queda do Estado Novo, mas toma ímpeto e se consolida durante o governo JK, O teatro tem novos titãs, outros heróis e uma outra perspectiva:

“(…) a fase mais rica, mais profunda do teatro brasileiro, quando ele deixa de ser apenas um espelho e passa a ficar adiante da sociedade. O cidadão ao assistir o espetáculo teatral, reconhece-se, encontra seus problemas. É uma época de dramaturgos extraordinariamente bem dotados, porque tiveram condições de se desenvolverem, conseguiram dar um mergulho profundo na realidade do país. (…) Essa segunda fase é caracterizada por um teatro que aprofunda os limites do que era visto até então. Ultrapassa a imagem dos cidadãos. Como um raio-X, avança dentro da alma do homem e da sociedade brasileira. É o teatro de autores como Jorge Andrade, Dias Gomes de Pagador de Promessas, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, que morreu há pouco, Nelson Rodrigues que parou de escrever. Uma quantidade enorme de grandes talentos. Não só porque estivessem ajudados por 15 anos de livre debate. Tiveram condições de se desenvolver e meter a mão livremente nos problemas que a sociedade tivesse. Esse foi um período de enriquecimento muito grande do teatro brasileiro, que vai até 1964, marco de uma nova fase do teatro”.

A IDADE DAS TREVAS

As diferenças não importam. Guarnieri e Nelson Rodrigues. Jorge Andrade e Vianna Filho. O teatro brasileiro é uma coisa una, sem arestas. Um ser sem contradições. Espaço de luta permanente em favor da cultura, do povo e da realidade. Mas a terceira fase é que é a lástima. O tempo em que se vive exige luta redobrada, esforço maior:

E a terceira fase. Onde o teatro brasileiro não mais reflete os limites do cidadão, nem mais o aprofunda. Pelo contrário, fica atrás. É um teatro mais pobre do que a vida das pessoas. Essa terceira fase que vem de 64 para cá, eu a considero a mais pobre, a mais medíocre, a mais triste do teatro brasileiro neste século. Basta vocês saírem daqui, agora, e irem a qualquer teatro do estado do Rio de Janeiro, de São Paulo, do país. E se tiver lá qualquer problema que seja parecido com os que vocês vivem todos os dias nas suas casas, qualquer problema que seja parecido com os que vocês vivem todos os dias nas suas casas, vocês me chamem de idiota. É um teatro sem problemas, que vive de macetes mecânicos para iludir, para evadir as pessoas de seus problemas, que não tem nenhuma importância. Ao acabar o espetáculo, não se leva nada, absolutamente nada. Até a crítica imediata de costumes que o velho teatro que nossos avós faziam, não existe mais. Quero que vocês me descubram um teatro falando do aumento da gasolina. Eu não digo que o teatro fale da dominação da economia estrangeira sobre a brasileira, hoje. Onde está o teatro que fala do custo da carne? Isso era uma coisa frequente no começo do século neste país, o açougueiro ser gozado não só pela carne ser cara, mas também porque roubava no peso. Hoje não há um teatro, um espetáculo, uma revista, um sketch que mencione o preço de um par de sapatos”.

Paulo Pontes parece não compreender o que acontece com a sociedade brasileira, no seu processo de desenvolvimento capitalista e assim clama saudoso do passado, conforme a história que ele compõe desse passado. E seu discurso torna-se ainda mais estranho se atentarmos que assim ele se expressa em 1976, quando o seu maior sucesso, Gota D’Água, está em cartaz, a todo o vapor. A sua divisão da história do teatro é tão arbitrária, como arbitrâria é a descrição dessa história, mais comovente do que precisa.

“A consciência de cada um de vocês, por mais ou menos culta que seja, por mais ou menos intelectual que seja, a consciência de cada um de vocês, só pelo fato de viverem diariamente, de fruírem experiências da vida, ela é mais rica que qualquer problema que esteja no palco de qualquer teatro brasileiro no momento. Qualquer vereador está dizendo coisas mais importantes que qualquer peça brasileira. (…) Culpa de quem?”

Uma história de heróis sempre exige sacrifícios. É uma história de redenção e culpa, a luta pela cultura brasileira.

A DOR DO CONSCIENTIZADOR

Paulo Pontes foi “um conscientizador, um homem que refletia sobre todos os assuntos. Refletindo ele resolvia. Resolvendo, ele passava para você… ” (Bibi Ferreira, depoimento em Versus, coleção Testemunho 1).

Para esse tipo de conscientizador, a realidade é sempre um outro. Seu meio de expressão fundamental, a palavra, porque é com a palavra que ele produz a realidade, constrói essa realidade, pois que a realidade existe para ser pensada e daí verbalizada. A vivência da realidade é a vivência do outro desse conscientizador. Há os que pensam a realidade, expressam a realidade no palco, falam dessa realidade. Há os que vivem essa realidade que o conscientizador pensa. E o conscientizador sempre sofre mais ao pensar a realidade, ao pensar sobre a realidade. Sente mais dor ao refleti-la, do que aquele que a vivencia: “É uma luta desesperada”.

” … os fenômenos se amontoam diante de nós, a realidade bate na nossa cara e a nossa capacidade de pensá-los é pequena… ”

A realidade que se há de refletir é um objeto diante ou debaixo do conscientizador participe das elites pensantes. É preciso estar sempre “opinando sobre a realidade”.

“A realidade saiu do palco.” E de onde sai esse palco? A palavra também saiu do palco, deixou de ser “o centro do acontecimento dramático”. Justo a palavra, o que mais pode dar legitimidade à realidade. A realidade como uma oralidade.

“A minha escola de teatro foi o rádio.”

IMPASSE DAS ELITES

Há dois impasses para a expressão dessa estranha realidade que precisa ser pensada, refletida como questão de se dizer, dever das elites pensantes: a censura e a marginalização da cultura brasileira.

A censura é um problema da realidade, ainda que na realidade ela seja desnecessária, ou melhor, seu rigor seja excessivo, além do necessário, fora da realidade:

“Eu considero que não há a menor necessidade de se fazer uma vigilância rigorosa em cima da dramaturgia brasileira, porque os dramaturgos mais sérios de nosso pais estão preocupados em apanhar, enfocar a condição humana do homem brasileiro em nossa sociedade e isso é uma contribuição, ao autoconhecimento dessa sociedade e de seu próprio homem. Isso, sem dúvida, não prejudica sistema nenhum. O teatro tenta esclarecer o que é o homem brasileiro, dotando-se de um maior conhecimento a respeito de si próprio, permitindo-lhe tomar conta de seu destino e assumir uma posição ativa na sociedade em que vive. Isso é extraordinariamente positivo. Imaginem uma sociedade de homens mortos, passivos a seus destinos. Isso, de início prejudicaria nosso próprio desenvolvimento econômico. O maior capital para o desenvolvimento econômico é o homem. E seu espírito tem de ser elevado, vibrante, transformador. E para tanto, ele tem de tomar conhecimento de sua realidade, da realidade que o cerca, e então ter apetite pelo desenvolvimento. O teatro tem como função fundamental revelar criticamente aquilo que o homem tem de mais humano dentro de si. Do que ele tem de mais vigoroso para criar. Limitar isso, limitando-se o teatro, é um paradoxo, do ponto de vista desenvolvimentista”

O POVO NO MERCADO

Por um lado, é preciso menos rigor da censura, em benefício de “nosso próprio desenvolvimento econômico”. Por outro, é necessário um teatro nacional popular, bem sustentado empresarialmente. “Não há uma crise de público para o teatro, mas sobretudo uma crise de teatro para o público”. O que se pode resolver fazendo “voltar o nosso povo ao nosso palco”, pois esse nosso povo é o que quer o público consumidor de espetáculos. Tematizar o povo no palco é sobretudo uma questão de mercado. Ademais, o público do teatro comercial é a classe média “e as camadas médias têm sido o fiel da balança, na correlação das forças políticas”.

“Eu tenho inquietações interiores para exprimir. Eu sou como todo homem de classe média de trinta e seis anos, no Brasil, um sujeito que tem suas neuroses, suas encucações. Não me custa nada sentar na máquina e escrevê-las, tentar botar pra fora e vomitá-las. Mas voluntariamente Chico e eu resolvemos abrir mão desse capital subjetivo.”

O “capital subjetivo” é insignificante. O “nosso povo” é o que existe de objetivo e falar dele no palco dá público. Uma questão de mercado, como uma questão política, no prato da balança em que o fiel é a classe média, a nossa plateia. Ainda que uma classe média dilacerada, “sem identidade, (que) não se reconhece no que produz, no que faz e no que diz”:

“Ela só tem chance de sair da perplexidade quando se descobre ligada à vida concreta do povo, quando faz das aspirações do povo um projeto que dê sentido à sua vida. Isso porque o povo, mesmo expropriado de seus instrumentos de afirmação, ocupa o centro da realidade – tem aspirações, passado, tem história, tem experiência, concretude, tem sentido. É, por conseguinte, a única fonte de identidade nacional”.

O sentido e a identidade vão estar sempre num outro, num outro de que se fala, sobre quem se pensa. Falo e penso, logo combato. Um outro que é sempre o único real, o concreto e o objetivo, a identidade de um eu que é uma abstração, possivelmente.

“Artistas, escritores, estudantes, intelectuais, arrancados do povo, a fonte de concretude de seu trabalho criador, caíram na perplexidade, na indecisão, no vazio, mazelas conhecidas da classe média, quando fica reduzida à sua impotência. O desespero, o esteticismo, a omissão, o povo folclorizado, a importação do vanguardismo, o deboche, o autodeboche foram alguns sintomas nascidos da falta de substância social (de povo) na cultura brasileira. Agora que a experiência de todos esses anos já nos permite uma avaliação, fica cada vez mais claro que nós temos que tentar, de todas as maneiras, a reaproximação com nossa única fonte de concretude, de substância e até de originalidade: o povo brasileiro. Esta deve ser uma luta, de modo particular, do teatro brasileiro. É preciso, de todas as maneiras, tentar fazer voltar o nosso povo ao nosso palco”.

UM BURACO NEGRO

A cultura brasileira, a verdadeira, a real, a concreta, a que se define por essas e mais e tais e tais palavras, a nossa (?) cultura, foi posta à margem. O que existe é uma nação sem cultura, um “vazio cultural”. Um buraco negro cultural ocupa o lugar que essa cultura brasileira deveria ocupar. O real novamente é um conceito do real. O que existe em meio às contradições culturais da sociedade brasileira, no seu processo selvagem de desenvolvimento capitalista, não existe, é um vazio. O real não é o real, pois o real não é o que se pratica e se vivencia. É um saber objeto de tomada de consciência, frases de um discurso.

“O fundamental é que a vida brasileira possa novamente ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro”.

ou

“Achei Tóquio menos japonesa do que pensava”.

Um quadro complexo, sem dúvida. E sendo assim, reivindica-se a complexidade da situação como dado de legitimação do desencontro das formulações em pauta:

“O Estado fundado em 1964, de um lado, operou modificações importantes na base da sociedade. Modernizou o tecido produtivo e desenvolveu potencialidades das forças produtivas que eles encontraram em 1964. Mas a sociedade se modifica embaixo, enquanto em cima a cultura não pode pensar, é posta à margem, não tem capacidade de refletir. Isso vai dar no momento que nós estamos vivendo hoje: quando a cultura se dá conta, ela tem diante de si modificações que não percebeu como se fizeram. E encontra um quadro muito mais complexo que sua capacidade de articulá-lo”.

ou

“Qual é a grande contradição em que estão metidas as forças que estão no Poder hoje? É que a sociedade brasileira é muito mais complexa, diversa, difícil e complicada do que esse Estado estreito e inflexível que está ai é capaz de assimilar. Há uma contradição entre a complexidade de interesses da sociedade e o Estado pequeno e estreito que a está regendo. Esta contradição não é nossa, do povo brasileiro, é da elite que está no Poder. E ela vai ter de resolver isso. Porque está vivendo essa crise. (… ) Essa nova realidade exige uma nova geração de dramaturgos. Não é um dramaturgo só, uma peça só, que vai arrancar o que está aí. (… ) Cadê o dramaturgo dessa realidade nova? A drama turgia americana tem obras maravilhosas sobre o capita lismo. Cadê o O’Neil brasileiro? A nossa sociedade está vivendo uma complexidade ao grau da sociedade que gerou o O’Neil”.

ou

“Hoje, com honestidade, temos que reconhecer que a socie dade que aí está é mais complexa que nossa capacidade de pensá-la. É isso que eu acho que caracteriza a crise da produção cultural brasileira neste momento. É a incapacidade de sua elite política e intelectual de apreender a complexidade do processo que aí está. E isso é prejudicial para todo mundo e, neste momento, fundamentalmente para as classes dirigentes. Porque elas têm que se preocupar em adquirir, da maioria da população, um consentimento espontâneo para o projeto que tenham para o país – já que aspiram à continuidade”.

UM MOVIMENTO DAS ELITES

Um problema não apenas dos homens de teatro, da “classe teatral”, da intelectualidade, mas sobretudo das forças que estão no poder. O movimento social é o movimento das elites: tanto das elites pensantes, da elite intelectual, como das elites políticas, da elite no poder (curiosa formulação dual, que por sinal não é privilégio de Paulo Pontes: falar em elites pensantes e em elite no poder, como se os homens no poder não pensassem).

E se pensa assim e se fala assim, a complexidade da sociedade brasileira é uma questão que interessa às classes dirigentes, pensantes ou governantes, pois que “as camadas inferiores como classe estão reduzidas à indigência política”.

Pois é, o povo, esse indigente. E o povo? Há que ser conscientizado:

“O capitalismo, agora, precisa de um Estado mais aberto porque já foi capaz, na prática, de assimilar os focos de rebeldia. Ao mesmo tempo, se a abertura chegar ao pessoal lá de baixo. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

TRABALHAR NAS BRECHAS

Não se oferece, nem se tem, nem se pretende uma política própria para o teatro, política essa que se confronte ou se esboce como alternativa crítica à política oficial de cultura do regime para essa nova conjuntura complexa. O que se pretende é fazer avançar os planos do regime para o teatro. Conforme já deixara bem claro o documento dos empresários, em 73.

“A ida de Orlando Miranda para o SNT tem um aspecto positivo: demonstra que o Ministério da Educação, pela primeira vez, nos últimos doze anos, tem uma política teatral. Um fato positivo, porque nunca teve nesse período. Não havia planos, era um órgão sem verbas e não víamos nenhum interesse efetivo no SNT em estimular a atividade teatral. Com Orlando, inaugura-se uma política teatral no contexto da Revolução. Mas isso não quer dizer que a política cultural inaugurada esteja correta. Ela é errada porque se baseia única e exclusivamente na ajuda material. Eu acho que equipar teatros, subvencionar companhias, premiar concursos de dramaturgia, estimular a atividade teatral nas escolas, estimular o teatro infantil, tudo isso é importante. Não se pode fazer arte teatral sem recursos materiais. Mas esgotar nessas medidas a política de estímulo à atividade teatral não é correto. O fundamento do teatro é sua capacidade de se exprimir sobre os problemas da sociedade. Há, claro, o aspecto positivo na atual gesta.o do SNT, que é o ingresso de novos estímulos materiais para a atividade teatral. Mas uma coisa é profundamente negativa: não se move uma palha para aumentar o horizonte expressivo do teatro brasileiro.”

“Aumentar o horizonte expressivo do teatro brasileiro”, fazendo o povo retornar ao palco, como objeto, temática dos espetáculos para a classe-média, fiel, na balança da correlação das forças políticas. Fazer o povo retornar ao palco de um grande teatro empresarial digno e condizente com o desenvolvimento capitalista da sociedade brasileira. Um passo à frente, pois a certeza é de que os donos do poder mais cedo ou mais tarde estarão perdidos por si só e para isso é preciso pensarmos também como eles pensam, trabalhando nas brechas de seus planos, fazendo avançar seus planos, o que não é nada de mais, pois deles nos diferençamos por nosso compromisso com o povo, o nosso outro, o nosso sentido, a nossa concretude. Quem somos nós: palavra!

Nossa identidade, nossa vivência, nossa realidade é de um outro, com quem estamos comprometidos e sobre quem pensamos e falamos. Aquém ou além disso, é uma abstração. E passo a passo se chega lá, com a nossa legitimidade, pois basta para isso que nossa consciência, sendo a consciência do outro que ele não tem, passe a esse outro, a esse povo: ideal e promessa dessa cosmogonia dualista e gradual, para o porvir e para o povão.

“Um teatro começa a ser popular primeiro se a sua temática está próxima do povo e da sua visão de mundo. O segundo componente de um teatro popular está, digamos, na sua forma: na sua narrativa, na sua construção de personagens, no modo de se ordenar o espetáculo, deve-se incorporar elementos da cultura do povo, elementos de sua vida real e concreta, do seu dia-a-dia. Terceiro elemento: o teatro popular teria, claro, que se destinar ao povo. Na atual etapa do teatro brasileiro tem sido muito difícil fazer as três coisas. Já houve uma fase em que se conseguia a primeira e a segunda, havia atores, diretores e dramaturgos que faziam um espetáculo popular aproveitando formas de cultura popular. Mas poucas experiências eficientes se fizeram no sentido de buscar uma plateia popular. (… ) A única maneira de se fazer isso é ter um palco volante que se desloque para locais, digamos, de aglomeração popular.”

ou

“Gota d’Água talvez seja uma contribuição no sentido de colocar novamente a necessidade de se retomar o contato com o povo e com formas de narrar que sejam populares. Mas o terceiro requisito Gota d’Água não cumpre e está longe de cumprir. Apesar de ser um espetáculo de forma popular”(…) (E se de repente ela fosse jogada no terceiro requisito) “não tenho dúvidas: seria um extraordinário sucesso. Agora, essa é uma questão de aprofundar. Muito bem. A peça tem quinze atores/personagens, dois guardas – dezessete – duas crianças – dezenove – doze bailarinos – trinta e um – oito músicos – trinta e nove – dois contra-regras – quarenta e um – o diretor, os autores que são remunerados, mais uns três ou quatro maquinistas, iluminadores, aí está uma comunidade de quarenta e cinco pessoas mais ou menos que vivem desse espetáculo (sem contar família). Como conciliar o custo disso com a necessidade de se fazer o espetáculo e com o fato de o povo não poder pagar o preço do ingresso?”

UM MERCADO PARA O POVO

Esse falar do povo e assim o povo nunca será sujeito de um teatro popular, pois será quando muito sujeito a um teatro popular em que ele ora é tema, ora é o público a quem esse teatro se pode destinar um dia, com um “palco volante que se desloque para locais, digamos, de aglomeração popular”.

Um povo para o mercado de produção de bens simbólicos e um mercado também para o povo.

Esse teatro popular deve “incorporar elementos da cultura do povo”, mas seu produtor será sempre um partícipe das elites pensantes, o conscientizador, um ser sem identidade própria, um dedicado, um batalhador, que abre mão de si mesmo em favor do outro. Um ser possivelmente sem princípio (quem conscientiza o conscientizador?), nem fim (pois a luta é permanente). Um ser cuja identidade, cujo princípio, o fim e a concretude estão no outro, no povo reduzido à “indigência política”.

E a construção desse teatro feito (um dia virá) para o povo, mas sempre pelo outro do povo, deve ser lenta e gradual (primeiro passando pelo fortalecimento do teatro de empresa) como o modelo de distensão política do regime. E é chegado o momento para se recomeçar, para se retomar essa tarefa:

“Procuremos agora fazer a distinção necessária entre capitalismo e autoritarismo. Se o segundo foi condição para a consolidação do primeiro, é indispensável perceber que estamos diante de categorias distintas e, a esta altura, em certo grau, contraditórias. Há um conflito nítido, hoje, entre a complexidade e diversidade de interesses desta sociedade, e o Estado inflexível, estreito, que a está dirigindo e ajudou a implantá-la em passado recente. O centro da crise política que as classes dominantes estão vivendo hoje, no Brasil, é este: como criar formas de convivência política entre interesses tão diversos e, em muitos casos, contraditórios, mantendo as classes subalternas em estado de relativa imobilidade. Enquanto a tão solicitada imaginação criadora dos políticos não resolve o dilema, a crise se aprofunda, com as cabeças mais lúcidas do sistema pedindo um afrouxamento do cinto. O capitalismo, agora, precisa de um Estado mais aberto porque já foi capaz, na prática, de assimilar os focos de rebeldia. Ao mesmo tempo se a abertura chegar ao pessoal lá de baixo… Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

Em meio a isso, por outro lado, todo cuidado é pouco, pois isso pode ser também a gota d’ água, a grande tragédia, o espectro de um retrocesso violento da distensão rondando as nossas vidas.

Daí a Gota d’Água. Paulo Pontes & Chico Buarque.

CAÍDA DO CÉU

Mas o que é a Gota d’Água? A publicidade diz, na época: uma tragédia carioca. Nem tanto, nem tão pouco. E não passa de uma advertência generalizada, dizendo aos céus e à terra que o caldo está por entornar e, entornando, muita gente vai ter de pagar por isso. A coisa se inscreve, sem dúvida, numa visão trágica de mundo: cuidado, porque o destino é esse!

A tragédia, como tal, não criticada, é uma somatória de purgações das falhas cometidas por seus personagens. Veicula, hoje, por seu universo contextual, a moderação, buscando um equilíbrio metafísico, de certo modo oportunista. É uma advertência voltada à estabilidade do status quo: a seu observador, todo um sentimento de autopunição compensado que o fará sair com alívio da terapia cênica a que se submeteu. Lá fora, o mundo é outra coisa. À tragédia, dá seus aplausos. Na vida cotidiana, o mesmo comportamento de antes. Jasão, Egeu, Joana e Creonte falharam de algum modo e pagaram pela falha. Principalmente Joana, por saber “que tudo está na natureza encadeado e em movimento”, o que a tragédia não admite como verdade, pois ela é metafísica por excelência.

Mas é justamente por ser metafísica e fatalista que a tragédia, hoje, é inviável, se questionada a sua autoridade, sua violência fatalista, o que dá legitimidade a seu discurso. Pois que a viabilidade do trágico como tal (e não distanciado, frise-se) está na sua afirmação categórica imposta a seu observador crítico: esta é a sua mentirinha.

Dado que a tragédia nos faz crer como verdade, pelo poder do imposto como inquestionável. A tragédia é ditatorial. Instrumento de manipulação da massa pelo poderoso, já que só ao poderoso interessa manter o status quo. Esse é o sentido do espectro da tragédia.

A tragédia é a fórmula consagrada da expressão artística de uma democracia com escravos. Por essas e por outras que, no tempo da dialética como meio de apreensão da realidade, a tragédia é um engodo, uma farsa, se tomada como modelo indicativo de ideologias libertárias. Pois que por ora não há como fazer acreditar no destino manifesto, senão com a violência.

A peça Gota d’Água, em suas significações e desdobramentos, reproduz o discurso da autoridade, como um valor legitimo, veiculando toda uma metafísica do poder como uma necessidade, ainda que as aparências de suas palavras digam o contrário. E no caso, a autoridade do artista diante do público, pensando para o público que tem de engolir o recado. Só que não engole, mas o mundo continua como tal. No fundo, a tragédia é bem sucedida, porque não aspira transformar nada, ainda que finja ser a transformação o seu objetivo último. Daí a farsa.

DE NOVO GLÓRIAS DO PASSADO

Gota d’Água é a estória e o destino fatal do abandono de Joana por Jasão que preferiu o sossego da cama e da mesa de Alma, filha de Creonte, poderoso dono das coisas, um capitalista tropical. Só que Jasão não é Jasão. Nem Joana, Joana. Cada um interpreta sua representação, em meio ao coro trágico, massa popular manobrável conforme as contingências. Jasão seria, de certo modo, o intelectual capaz que abandona as raízes de seus compromissos e entendimentos populares, preferindo ser comensal do poder. Joana, essas raízes, onde Jasão se alimentou no seu oportunismo. Gota d’Água fala das consequências trágicas desse abandono, catástrofe passional. A analogia temporal é evidente: de novo o teatro insistindo em interpretar a realidade, a história, pelo método analógico. Falsa perspectiva.

“A economia é cada vez mais dependente e, por isso, cada vez mais seletiva. Mas há algo de politicamente diabólico no processo de seleção posto em prática: em cem, assimila trinta; só que os trinta são os mais capazes. O que acabou foi a incapacidade, pré-capitalista, que essa economia tinha de cooptar os melhores.

Se é certo que não há (ou há muito pouca) tradição revolucionária no Brasil, é nítido que havia uma tradição de rebeldia nascida e alimentada nos setores intectualizados da pequena burguesia brasileira”. (…) “a ironia, o deboche, a boemia, a indagação desesperada, a anarquia, o fascínio pela utopia, um certo orgulho da própria marginalidade, o apetite pelo novo são algumas marcas dessa nossa tradição de rebeldia pequeno-burguesa. Hoje é possível perceber que essa rebeldia era fruto da incapacidade que os diversos projetos colonizadores sempre tiveram em assimilar amplos setores das camadas médias e dar-lhes uma função dinâmica no processo social. O que estava reservado ao intelectual pequeno-burguês antes do período a que estamos nos referindo? O jornalismo mal pago, o funcionalismo público, uma cadeira de professor de liceu, o botequim, a utopia, a rebeldia. Por falta de função ele era posto à margem. Até muito pouco tempo eram muito poucas as opções do estudante universitário – tudo era criado fora, o carro, a geladeira e a ideologia. Assim, o sistema econômico não tinha como assimilar a capacidade criadora dos melhores quadros da pequena burguesia que ficavam colocados, perigosamente, no limite da rebeldia. O que acontece agora, inversamente, é que a radical experiência capitalista que se faz aqui começa a dar sentido produtivo à atividade dos setores intelectualizados da pequena burguesia: na tecnocracia, no planejamento, nos meios de comunicação, na propaganda, nas carreiras técnicas qualificadas, na vida acadêmica orientada num sentido cada vez mais pragmático, etc. O disco, o livro, o filme, a dramaturgia, começam a ser produtos industriais. O sistema não coopta todos porque o capitalismo é, por natureza, seletivo. Mas atrai os mais capazes”.

A FUGA PRA ALMA

Mas o Jasão que se tem, Joana não o conhece tanto: “- Quando o meu bem querer me vir estou certa que há de vir atrás… “. Contudo, assim “que bateu o primeiro pé de vento”, lá se foi Jasão dos braços de Joana, pro leito confortável de Alma. Fugiu levando da pobre amásia “todo o sangue que o teu coração transferiu pro meu”. Deixando Joana “co’a alma entrevada, bunda tombada pelo patrimônio histórico, museu, ruína, arquivo, carne congelada”. Logo ele, Jasão, a quem Joana dera “o primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro sapato (… ) o primeiro violão”, sarro, refrão, estribilho, matéria-prima para seu trabalho e sei lá mais o quê. Que canalha esse Jasão!

Mas Jasão, oportunista, vai para os braços de Creonte: o que a peça não quer. Pois Joana, abandonada, vinga-se, entorna o caldo, o que a peça também não quer: ” – Deixa em paz meu coração que ele é um pote até aqui de mágoa. E qualquer desatenção, faça não. Pode ser a Gota d’ Água”.

A tragédia de Jasão é ter abandonado Joana: mas será que Gota d’Água pretende insistir na falácia de que Jasão tal como é e representa, deve ficar com Joana? Grossa manutenção de um oportunismo intelectual de feição populista, a que parece servir a beleza do espetáculo.

A tragédia se reafirma na estupidez de Creonte: nova advertência da peça. Separar Jasão de Joana!? Mas por quê!? Vamos com calma, Seu Creonte, nada de violência, passou a hora do autoritarismo, modera e vai com jeito (e em termos de teatro, então: nada de censura, Seu Creonte, dê a subvenção, alargue os horizontes do teatro, dá o financiamento a juros módicos e deixa o resto por conta dos Jasões da vida!). Pois afinal Jasão é oportunista e tem valia no seu sentimento popular. Sabe até onde pode esticar o saco do povo. Com Joana, ele também poderá te servir, Creonte. Deixa ele sugar mais um pouco dessa Medéia tropical, a voz, o jeito, a força que não tem a cultura de elite, o resto que Joana tem pra dar. Separado de Joana, o samba de Jasão acabará sendo um “samba brocha”. E o seu caldo, Seu Creonte, vai entornar, porque Joana não é flor que se cheire.

Mascara-se de lá, mascara-se de cá, mas é isso também o que diz Gota d’Água. E pede: um pouco de liberalismo, um tanto de moderação (coisa que Creonte já deu pro pessoal da vila, para a massa de manobra, contornando a revolta deles). Com Joana, porém, Creonte exagera, falha: e assim fazendo, terâ de pagar pelo feito. O espetâculo exibe o panorama, prevê seu destino trágico e adverte que sem um jeitinho, tudo irá pras cucuias. Deixando as coisas como estão, na pior.

NÃO ENTORNE O CALDO

Gota d ‘Água não entra no mérito das relações de poder e de suas reproduções ideológicas, embora diga aparentemente que pretende alterá-las. Em resumo, sob ameaça, pede que os Jasões continuem com as Joanas. Sugando as Joanas. Adverte ao poderoso de que ele deve ser prudente e moderado. Que não entorne o caldo! E que o oprimido, o abandonado, o indigente também não faça o mesmo. O negócio é manter as coisas equilibradas.

Diz o texto que Jasão preferiu Alma por ser aproveitador. Não, na verdade, ele é e sempre foi oportunista. E o texto se esquece de perguntar o porquê desse oportunismo, quanto é justamente nisto que reside o busílis desse pobre herói ( que devia ser – pensa a peça – herói dos pobres). Historicamente, o oportunismo dos Jasões se deve a uma formação alimentada num populismo que deu no que deu. Informado, até que Jasão é.

Mas era isso, basicamente, o que fazia o populismo e indo a seu reboque o teatro populista: falava dos problemas apenas informando, didatizando-os de modo simplório e aparente, para um comprometimento intelectual, superficial e idealista de sua plateia, baseado numa visão de mundo moralizante e catequista. Abria mão da práxis. E principalmente de qualquer dialética que lhe permitisse a viabilização de uma autocrítica. Autoritário e redentorista, cenicamente, veiculava a ideologia do poder. A ideologia dominante. Se criticava o imperialismo e o latifúndio, defendia a chamada burguesia nacional, iludido com uma tática de alianças mágicas. Era ponta de lança de uma outra opressão montada nas massas trabalhadoras. E reproduzia essa cavalgada, proclamando a superioridade do artista, redentor dos humilhados e marginalizados, levando todo um oba-oba demagógico para o público.

UM PALCO DE COISAS FALADAS

Tal qual, Gota d’Água reproduz a velha crença elitista de que a nós, intelectuais, cabe o dever moral e a função redentora de manobrar a massa (que foi sempre de manobra) em favor de nossos ideais puros e inquestionáveis. Essa estória das elites pensantes; Pois pergunta que Gota d’Água deixa sem resposta, pergunta que a peça não se faz, é porque a massa (coro de lavadeiras, homens do botequim) é – no entender do próprio texto – sempre massa de manobra, turma que vai a reboque. Por quê? Manobra de Egeu, de Jasão, de Joana e por fim, de Creonte, o mais forte. Manobra última do próprio espetáculo, pois ele veicula e endossa essa visão de mundo, por seu comportamento cênico. Porque essa massa não pode pensar? Traçar seu destino? Por que deve existir sempre quem pense por ela? O seu conscientizador. Ficando ela sempre à disposição das manipulações do mais forte e as coisas se dando nesses termos: ao mais forte, tudo; à massa, o dever de apoio, na instância mais avançada que se parece pretender.

“O autor precisa começar falando de coisas sabidas e não conquistadas. Parece que vivemos em uma sociedade em que as coisas sabidas já foram levadas à prática e já são dominadas, porque partimos para sondar o desconhecido. Eu acho que a posição política do homem de teatro, de arte, de cultura é, ao contrário, esfregar as coisas sabidas na cara do mundo, para que a sociedade as conquiste na prática. E a gente tem uma porção de coisas sabidas mas não postas em prática para revelar, para fazer disso o conteúdo permanente do nosso produto cultural. Assim, conseguiremos fazer com que a nossa arte tenha uma identificação preliminar, que passe a ser a experiência comum do artista e do povo. Por incrlvel que pareça, isso não tem acontecido.”

ou

“No teatro, o que dá consistência à personagem é a palavra, suas frases e falas.”

ou

“Se existe um elemento externo que limita em cheio a temática mais interessante à plateia, aí, você tem no palco uma coisa que pouco ou não interessa a ninguém. E na bilheteria, o prejuizo dos empresários, um grupo de homens que vivem de teatro, que empatam dinheiro em teatro, para ganhar dinheiro, e acabam empobrecendo e se frustrando nos seus investimentos. Aliás, isso precisa ser visto com muito cuidado. O teatro é uma atividade comercial significativa que, limitado como está, só gera prejuizo ao nosso próprio universo comercial e empresarial. Ora, desenvolvimento implica, no caso de nossa sociedade, em lucros. E um setor de nossa economia, como o teatro comercial não pode se ver preso à ameaça de prejuizos e perdas permanentes.”·

E ESSE MUNDO DE ATORES

A palavra de Paulo Pontes não é uma simples peroração, criação ou só uma proposta pessoal de seus anseios e compromissos. Não é uma palavra só dele. É filha da conjuntura daqueles anos 70. Muitos o ouviram, tantos o seguiram. Alguns discordaram. Outros falaram como ele, em outros setores da vida política e cultural brasileira, no seio da oposição à ditadura. Esse discurso missionário, discurso de conscientização do outro, sempre falando pelo outro, para o outro e sobre o outro, impedindo assim o olhar para si mesmo, despido de palavras.

Mas tudo bem, ou não: “A história das falsificações realizadas com base no conceito de povo é uma história longa e complicada, a história da luta de classes”: palavra de Bertolt Brecht. Mas é.

9. EU SOU ÍNDIO

“O nome exato dessa criação coletiva seria Grupo Oficina Brasil em Re-Volição – criação coletiva – apresenta Gracias Señor, pois Gracias Señor é uma obra em Viagem, em processo, inseparável da própria história recente do Oficina, e do processo atual de Re-Volição do Grupo, de toda faixa de população que o Teatro Oficina foi um dos espelhos: os filhos prediletos – o setor mais informado da classe média jovem, essas 100000 pessoas, mais ou menos, que formam uma parcela mais ou menos marginal e insatisfeita da população brasileira.

Gracias Señor é uma viagem no processo de procura dessa faixa social, à qual pertenceram as várias pessoas que passaram pelo Oficina nos últimos anos e deixaram sua colaboração nessa Criação Coletiva – e também uma viagem diária, cada apresentação em que cada espectador inevitavelmente acaba atuando, deixando sua marca na Criação Coletiva.

Gracias Señor não pode ser visto com critérios tradicionais, convencionais, pois inevitavelmente o espectador objetivo não existe no caso: ele é parte integrante, sujeito e participante, quer queira ou não.

Toda a área do Teatro, com todas as luzes acesas considera todos participantes dessa Assembleia, e os resultados a que se chegar, quer como revelação da verdade social, quer lúdicos, vão depender da Sala, do Homem presente no recinto.

As ações são fáceis, claras e dizem respeito à experiência mais ou menos comum de toda sala – a capacidade do ator não está no brilho do seu jogo, mas na sua capacidade de mostrar que ele é um do público, com sua roupa de rua, com a diferença que ele inicialmente se declara aberto e se usa como Exemplo nas experiências cre contato que todos poderão fazer.”[54]

Muito bem, temos aqui um teatro que não quer ensinar, que se dispõe a aceitar a identidade comum entre o ator e o espectador sem nuançar diferenças qualitativas. Vamos supor que neste teatro ninguém sabe mais. O encontro é que produz o conhecimento, que revela para o ator e para o espectador o que se pode saber dentro de circunstâncias históricas comuns aos dois interlocutores do diálogo teatral.

Trata-se de um teatro que expressa o que vive o espectador e o que ele é. O ator sabe tanto quanto o espectador. Funciona como exemplo de uma vivência e é essa a sua única superioridade. Quanto ao mais o que se produz é a verdade social ou o jogo.

Socialmente o Oficina se coloca no mesmo ângulo de visão do seu espectador. A tal ponto que denomina de Assembleia o encontro teatral.

O palco seria o centro onde se cruzam as particularidades daqueles participantes e onde se reitera a experiência comum. Não é mais o ponto de irradiação de uma verdade, mas o centro onde essa verdade se revela através da ação coletiva do espetáculo.

Só com modéstia tática é possível realizar esse projeto. É um teatro que não fala ao mundo, nem às massas. Fala aos filhos prediletos, recruta espectadores entre uma faixa social numericamente insignificante, avaliada em 100000 pessoas.

A despretensão numérica é certamente uma novidade em um panorama teatral que fala à sociedade ou ao povo em geral, quando não pretende falar às massas. Aqui o grupo Oficina identifica-se com uma parcela da sociedade e procura falar aos companheiros desse reduzido e privilegiado setor (que detém, do ponto de vista de comunicadores, o maior dos privilégios: a informação).

Desde Os Pequeno-Burgueses (1963) que delineia-se um tipo de artista (cheio de contradições e voltas sobre si mesmo) que se considera com poucos atributos morais para poder fazer proselitismo. Pelo contrário, é um tipo de artista que investiga a cada trabalho a sua identidade social e o seu processo de trabalho, procurando ao menos um reduzido ponto de apoio para iniciar um diálogo eivado de incertezas. É preciso uma constante pesquisa de recursos cênicos para que essa incerteza não transforme o diálogo da cena numa conversa entre gagos. Entretanto o Oficina não pode ser louvado pelas suas qualidades democráticas. Recusa-se a afirmar unilateralmente uma verdade que solucione a vida dos espectadores. Afirma do palco, em sucessivas encenações, as suas dúvidas e incertezas. Mas exerce outro poder, muitas vezes discricionário, de manipular a plateia através da supervalorização da criação cultural, inferiorizando o espectador pela sua incapacidade de expressar as mesmas dúvidas e incertezas que partilha com o espectador. O que faz com que o trabalho do grupo ganhe publicamente o rótulo de autoritário.

Autoritarismo à parte, é um tipo de trabalho que isola o fazer teatral de outras formas de trabalho e atribui ao artista poderes mediúnicos. Sem essa autoconfiança o Oficina não poderia provavelmente subsistir artisticamente sem a Tábua da Lei a que recorreram outros grupos de teatro.

Gracias Señor, como um dos últimos trabalhos do Oficina como grupo de teatro (posteriormente o grupo se transformará em um núcleo de ação cultural com participantes em constante rotatividade) é uma espécie de síntese dessa postura equidistante da catequese e do conformismo.

Nesse espetáculo, preparado em 1971 e apresentado ao público em 1972, a sala é um lugar de vivência que não precisa supor uma ação previsível, com início e desfecho completos. O que se procura é a afirmação de uma identidade em ato. O efeito desejado do teatro é eliminar o discurso sobre essa vivência e transformá-la em uma linguagem comum a comunicadores e espectadores sem passar pela mediação da narração. Não é uma identidade narrada pelo ator, mas uma identidade vivida por atores e espectadores. Em vez de porta-voz o homem de teatro seria um agente (te-ato) que deslancha a criação de uma experiência coletiva.

Mas é preciso convir que a identidade dos “filhos prediletos” não está dada. Na ótica dos anos cinquenta o grupo Oficina procurou inicialmente essa identidade: forjou, para si mesmo, o rótulo de pequenos-burgueses. Menos pelo modo como se encaixavam na sociedade do que pelas referências artísticas oferecidas pelas peças de Gorki e Tchecov.

Em 1973 rotulam a si mesmo, como a seu público, de setor mais informado da classe média jovem. Informação e juventude. A universidade é ainda o ponto de referência para essa identificação. Os espectadores são, provavelmente pessoas que frequentam cinema, lêem livros, frequentam teatros. O que é muito pouco para reconhecer o público, mas o suficiente para identificar-se com hábitos e preferências.

***

Os grupos como o Oficina em São Paulo ou o Teatro Ipanema no Rio de Janeiro são deliberadamente circulos constritos. Pequenos pontos fincados em território próprio dentro de metrópoles. Repercutem nos centros nevrálgicos da produção cultural: na imprensa, na universidade, nos programas “seletos” dos meios de comunicação de massa. É nesse mesmo circuito que trafegam os outros projetos culturais contrastantes. A diferença é que o teatro para os “filhos prediletos” reconhece como legítima, ou talvez inevitável, a limitação desse circuito. Quando se dirige a alguém fala centrado em si mesmo para espectadores que partilham desses privilégios e dessa limitação.

Um teatro que nasce da contemplação (científica e disciplinada) do próprio umbigo é um teatro que desconfia de um ideário extra artístico. No momento em que surge o Oficina o país inteiro procura um novo modelo político, um novo centro geográfico (Brasilia, ISEB) e uma nova forma de distribuir os bens culturais e materiais. As discussões sobre sociologia e política já estão suficientemente acirradas nos pontos mais ativos de produção cultural.

Dentro disso o Oficina situa o seu lugar de origem no seu lugar de classe. No mesmo ponto é possível encontrar a identidade e a inspiração para inventar.

Desde Os pequenos-burgueses até As três irmãs (1973) o Oficina se representa dentro dessa perspectiva. A imensa confusão ideológica e existencial dessas personagens pré-revolucionárias transfere-se do palco para o grupo social que esses artistas representam. E, inversamente, é a confusão experimentada no cotidiano que permite informar com detalhes essas personagens tomadas contemporâneas.

Como dado secundário, é preciso considerar também a produção econômica desse teatro. O parentesco de classe entre o artista e o espectador inclui considerações sobre a circulação dos bens simbólicos. Quem compra o ingresso é o tipo bem-informado, interessado, entre outras coisas, em uma produção cultural diversificada.

Nos trabalhos do Oficina esses dados se incorporam ostensi vamente ao espetáculo, que recorre frequentemente à reafirmação dos vinculos de identidade de classe e da especificidade da criação cultural, único traço que distingue atores de espectadores. Em Gracias Señor, como trabalho do grupo, essa relação toma-se o único centro do espetáculo, com o objetivo de provocar um confronto entre a diferença subsistente: os que criam e os que usufruem. A tal ponto que a nomenclatura da representação se transforma: o teatro é agora te-ato e os atores assumem a função mais genérica de comunicadores.

Num certo sentido essa unidade temática substitui várias ficções de unidade e grandeza que o grupo não pretende e não deseja assumir. Essa condição de setor social reduzido, propondo uma comunicação entre semelhantes, evita que o grupo se interesse por bandeiras que possam não combinar muito bem com essa identidade.

Tudo é permitido nesse círculo restrito dos filhos prediletos, dada a ausência de um programa de redenção coletiva. A cada trabalho há o desvelamento de fontes teóricas que não encontram substitutivos nacionais aceitáveis: Stanislavsky, Brecht e, finalmente, Grotowsky. A informação circula internacionalmente e na maior parte das vezes o que circula na Europa ou nos Estados Unidos é melhor do que o que circula neste país. Ou pelo menos momentaneamente mais conveniente. Frequentemente o Oficina descarta-se de teóricos usados e adquire novos para as próximas produções.

Por não ter um projeto social o Oficina não se sente obrigado a refazer o caminho de valorização da dramaturgia brasileira ou a procurar o traço distíntivo do ator brasileiro. Seu campo de ação para atualizar-se no tempo e no espaço é o espetáculo, que conta com a presença de um interlocutor presumivelmente conhecido e possivelmente tão inseguro quanto os próprios atores a respeito do futuro político da sociedade.

Os traços característicos de um determinado – tempo e espaço penetram a cena pelo meio mais espontâneo, ou seja, pela atualização dos recursos expressivos. Evitando procurar o caráter ou a imagem totalizadora do teatro brasileiro, o Oficina pode deter-se sobre o momentâneo, sobre a particularidade, sobre as mínimas transformações de linguagem que ocorrem na vida social do ator fora do teatro. São esses dados que se incorporam à linguàgem da cena, transformando-a todas as vezes que é preciso atualizá-la.

É esse tipo de sintonia e disponibilidade que pode produzir a espantosa novidade de O rei da vela. De repente os atores, além de treinados em Stanislavsky, incorporam à representação os trejeitos e a inspiração das grandes estrelas de teatro de revista.

Partindo do princípio de que todos se conhecem, de que os participantes do espetáculo compartilham a experiência cênica como expressão de uma vivência comum, o espetáculo pode detalhar a exploração dessa identidade comum e utilizá-la para fins especificamente dramáticos. O conflito, centro nevrálgico do drama encenado pelo Oficina, é a contradição dessas pessoas presentes.

O reconhecimento de um lugar próprio permite a exploração dos últimos meandros dessa posição: a história, a política, a sexualidade, a auto-imagem de uma parcela da sociedade são dissecadas por um grupo teatral durante quase vinte anos. Uma parcela ligada, por suas relações de classe, ao todo social que ajuda a compreender por oposição.

A informação, um dos distintivos desses “filhos prediletos”, escasseia cada vez mais a partir de 1968. Com reduzidos canais de comunicação as possibilidades de intercâmbio desse setor diminuem de tal forma que o teatro partilha o isolamento dos seus espectadores. Um isolamento que exaspera as contradições do grupo social e do teatro que se dispõe a representá-lo.

A encenação de Galileu, Galilei, em 1968, onde aparece um carnaval do povo que engole os protagonistas desequilibrando as forças da representação, é o primeiro sintoma de que a contradição, tematizada, tende a tornar-se o único centro dramático, gerando um problema artístico de esgotamento. Insolúvel, enquanto o Oficina se considerar como “representação” do grupo social que experimenta esse confinamento.

A força nova, o espectador novo, o ator novo que esse espetáculo propõe é, embora com originalidade e energia expressiva, o primeiro quarteirão de um beco sem saída. O carnaval do povo indica a entrada de outra personagem que nunca chega a instalar-se definitivamente, mas ameaça o protagonista, sugerindo a insuficiência artística desse protagonista.

Daí Gracias Señor, com sua carga de urgência. A viagem pelo país, a busca de novas informações e de um novo público para gestar o processo criativo é a inversão do processo habitual do Oficina, que sempre expandiu sua criação a partir de um núcleo geográfico e social estável.

Pela primeira vez, no interior do nordeste do país, o grupo se dirige intencionalmente a um espectador estranho com a esperança de que esse público possa realimentar o processo criativo.

No entanto Gracias Señor é o mais introjetado dos trabalhos do Oficina. Atinge sua forma de encenação mais elaborada quando chega, depois de peregrinar pelo nordeste e centro-oeste, ao bairro da Bela Vista. No lugar de sempre. E é, de todos os espetáculos do Oficina o que mais se esmera na exegese da pequena burguesia, dos “filhos prediletos”. O objetivo da encenação é experimentar, com a presence ativa desses espectadores familiares, a confluência do espetáculo com o momento vital. Enfim, uma só coisa. Com o risco de eliminar o teatro dessa transação entre iguais.

“Neste momento nós e o público que nós espelhamos está entre vender ou não o seu saber.

– Nós optamos por fazer o antiespetáculo onde os valores de ritmo, ordem, boa produção, não importam e o nosso espetáculo passa a ser uma investigação conjunta com as pessoas da sala.

POR QUE ESTAMOS AQUI?

POR QUE VAMOS CONTINUAR A DIVERTIR? IMPRESSIONAR, MORALIZAR VOCÊS?

POR QUÊ ? PRA QUÊ ? PRA QUEM?”[55]

Ainda assim o antiespetáculo é o espelho de uma intimidade. O fazer junto, no espaço da sala, é a tentativa de, através do espetáculo, produzir um acontecimento que seja teatral mas, ao mesmo tempo, possa dar a virada indicando uma relação nova. “A relação está morta” é uma das frases constantes do espetáculo. A relação entre iguais dentro de uma forma teatral em que a igualdade é quebrada por diferenças de espaço de representação e espaço de público, bilheteria, texto, etc…

Mesmo na procura de uma relação nova o Oficina evita instrumentalizar a encenação. O espetáculo deve ser um acontecimento presente, uma relação entre iguais. Para tanto o espectador é chamado à cena como sujeito da ação, estimulado a interferir no teatro segundo os mesmos padrões de comportamento que utiliza fora do teatro. O espetáculo não será assim veículo para transmitir alguma coisa, mas será ele mesmo a reprodução exemplar de cenas e atitudes que podem vir a ter múltiplos e imprevistos significados históricos.

Com essa expansão das atribuições da cena o Oficina chega não ao antiteatro mas, num certo sentido, ao anti-Oficina. Pela primeira vez o Oficina, conscientemente, projeta do palco para a cena uma vontade de transformação coletiva desse grupo social que representa e endossa em outra coisa. Da provocação e da ironia da autocrítica o Oficina propõe agora soluções mais radicais, ou pelo menos questionamentos mais radicais: “OU ACEITAMOS NOSSA FUNÇÃO DE FAZER O GRANDE SHOW CONTINUAR OU DESCOBRIMOS UMA NOVA MISSÃO. CADA GERAÇÃO TEM NUM CURTO ESPAÇO DE TEMPO E DENTRO DE UMA RELATIVA ESCURIDÃO, QUE DESCOBRIR SUA MIS SÃO, CUMPRI-LA OU TRAÍ-LA”.[56]

Muito bem. Descobrindo a missão descobre-se também uma função do teatro que não é apenas a sua natureza, mas o que dele se espera como resultado: “A função do teatro – o verdadeiro papel do teatro – é levar o público para fora dos teatros”. E assim um grupo chega, depois de uma persistente investigação do seu próprio território cultural e social, à iniciativa de propor o abandono desse público. Em direção a outro grupo social e a outro espaço.

***

A descoberta dessa “missão”, da saída para fora do teatro, é o sinal de que a conversa entre os filhos prediletos chegou a seu ponto de exaustão. O mergulho em profundidade dentro de sua própria classe garante a sinceridade da comunicação que se recusa a escapar para fora das atribuições e das possibilidades da arte. Com o tempo esbarra-se num obstáculo concreto – a impossibilidade de fazer circular mesmo essa informação restrita, porque as fontes originais estão pauperizadas. É a espessura e a intransponibilidade desse muro que forçam o grupo na procura de uma totalidade.

A partir de Gracias Señor, o Oficina faz uma última incursão pela sala de espetáculos antes de dissolver-se como grupo de teatro e inaugurar uma nova fase de atuação cultural. O último espetáculo, As três irmãs, retoma a função de espelhar os filhos prediletos, colando os cacos da fragmentação provocada por Gracias Señor. E começa a procurar o outro lado do espelho.

O diálogo entre conhecidos é substituído bruscamente pela proposta de abandonar todas as mediações do espetáculo e procurar outro público, outra forma de comunicação, outro espaço de atuação e outras fontes de informação. O desejo de viver uma integração, depois de ter esgotado a particularidade de um grupo social, inverte a direção dó trabalho do Oficina para a estranheza de todos os níveis da comunicação artística.

De fato, os grupos de comunicadores que se sucedem sob a direção de José Celso Martinez Correa já não aspiram tanto a atingir outro público ou a operar em outros espaços sociais. Querem ser outra coisa, ter outra identidade social para poder falar de si num outro lugar. De uma ou de outra forma o Oficina experimenta a possibilidade extrema, ou melhor, a impossibilidade. Com a identidade perde-se o saber, a memória e o projeto que levou à recusa de uma determinada identidade.

***

Não é possível afirmar que o Oficina tenha um caráter de exemplaridade. A trajetória peculiar do grupo e a presença de uma liderança que praticamente determina essa trajetória, tornam o Oficina um caso à parte na evolução de um grupo teatral.

Nem todos os grupos que mergulharam na particularidade social, até defrontar-se com todas as dobras da sua identidade e do seu público, chegaram ao desejo de um contrário.

O que é possível detectar, por enquanto, é que outros grupos como o Oficina, que nos últimos anos dedicaram-se à exploração do próprio quintal, conseguiram, por isso mesmo, enfrentar sua condição de produtores de cultura e encontrar razões para o seu trabalho que não mistificam a relação teatral atribuindo-lhe poderes que efetivamente não possui.

***

O próximo trabalho do Oficina, iniciado em junho de 1981 e possivelmente continuado em setembro de 1981 chama-se Rito de passagem. Por esse rito, que os artistas oficiam em conjunto com produtores culturais de todas as fixas sociais e de todos os pontos geográficos da cidade, o Oficina transformar-se-á em Usina.

A metáfora perfeita e a conclusão ideal para o sonho dessa passagem é a tomada do espaço atravessado pela cidade, por todos os estranhos que o Oficina sonha alcançar desde que rompeu as relações familiares.

A Usina: uma rua onde nada está dado. A cidade atravessa-a com todas as suas diferenças de tal forma que o Oficina se perca nessa multidão e possa enfim confundir-se com ela e ser o que ela é.

***

“Eu vou de outro jeito, quer dizer, eu vou enquanto índio… ” (José Celso Martinez Correa, 1981).

10. E NÃO É SÓ ISSO

para

josé eloi gugelmin

É OUTRA A QUESTÃO

A questão não é o nacional-popular. O nacional-popular é a fala da questão. Seu mito. Sua retórica. Discurso da arrogáncia ou fábrica de fumaça. Essa compulsória assombração.

Um espectro ronda as vidas, no teatro. O espectro do padre Anchieta: eu faço cabeças, porque corto cabeças. O palco recebe o santo. Mas acontece que o santo é santo. O palco não transgride, pois seu demônio é beato. Esse engodo. Trapaça da tragédia das origens.

Há uma ánsia por um teatro independente. Mas o que é isso? E se o palco transgride, é uma gritaria. Pega pra capar.

Mirando no olho da tragédia:

A questão é a questão da vanguarda: o sentido do texto, nessa viagem, uma tentativa de proposta para o debate sobre uma política passível para uma vanguarda teatral em movimento.

O teatro, no Brasil, em crise de opção para aqueles que procuram dotá-lo de um ponto de vista distinto e mesmo antagônico a seu atual caráter de classe.

Há uma dúvida e uma série de experiências. Um teatro que experimenta, pouco se transforma, mais se desgasta, nessa procura, seu tocandar para além dos patos com laranja. Os esforços tecendo redes, fios sob a tensão frouxa por mitos, falsas questões. E o mercado onde tudo cabe, tudo é coisa. A feira de bens simbólicos.

Sem culpa, por favor: “Na prática, todo mundo se confunde” (José Eloi Gugelmin).

E um ausente, visitas breves, gosto longe na estrada. Brecht, em quem ainda não chegou o teatro no Brasil. Nem santo, nem beato. Brecht, por que não Brecht?

E ME MATO DE EXPERIMENTAR

A “ideia” de um teatro experimental. Outro desejo. Representação cênica de gestus e/ou situações subjetivizadas, em que a autonomia relativa da obra de arte se sonha autonomia absoluta, na sua codificação peculiar do real vivido. Sob certa medida anárquica, experiências servindo à apropriação de suas criações pelo teatro estabelecido, onde também o ator desse teatro experimental vai encontrar a estabilidade – equilíbrio delicado – de seu circuito. A sua experimentação, no caso, como um suicídio.

Na substáncia do “conceito”, as limitações desse teatro como conjunto de práticas cênicas voltadas – sua erótica – à transformação histórica da atividade teatral. Sempre um coito interrompido. Outra trapaça. Nem mais, nem menos, reprodução hipertrofiada de determinados momentos da produção de qualquer espetáculo. O teatro é uma arte sempre submetida à experimentação. Sua marca perpassa sempre por alguma fase do processo de criação cênica.

O mais estabelecido dos modelos tem seu momento de experimentação. E em última instáncia com finalidade similar à do dito espetáculo experimental: o fortalecimento das possibilidades de eficiência mercadológica do código teatral estabelecido, como conjunto de expressividades. A renovação da embalagem. O embrulho e a beleza do embrulho.

Penélope. E Ulisses que não chega.

DE UM MODO OU DE OUTRO

A experiência e o livro do ponto, com manifestações de apreço ao senhor diretor para o senhor produtor. De um modo ou de outro, mais ou menos, os atores no palco, dizendo uma fala, fazendo um gesto, estão expressando emoções, e essas emoções, por ser a cena “uma arte autodestrutiva, sempre escrita no vento”,[57] noite após noite, hão de se diversificar um tanto, na composição de emoções sob experimentação. Nos ensaios de uma peça teatral qualquer, atores tentam alguns dos vários modos de inflexionar uma fala ou de construir um gesto: o que fazem, senão experimentações? A observação de duas montagens de um mesmo texto dramático leva o espectador a diferentes sentimentos, a experiências diversas das realidades desse mesmo texto dramático, sejam essas diferenças restritas, no palco, à condição de experimentação de dada interpretação de uma mesma personagem por dois atores, um talvez um tanto mais gordo ou mais alto do que o outro. Isto para não falarmos nos possíveis resultados experimentais, frutos de idiossincrasias de qualquer intérprete, numa temporada. Pode-se dizer assim que não há propriamente um teatro experimental.

PARA ALÉM DO ORNAMENTO

A experiência e o desejo. E alguns homens de teatro tentando, nesse processo, organizar os impulsos, os motivos, os sentidos e as razões dessa ánsia pela inovação. Buscando controlar melhor a apropriação de suas descobertas cênicas, o destino de seus trabalhos, as condições e os resultados de suas atividades artísticas, aprofundando a direção do desenvolvimento da história das artes do espetáculo para além de sua coisificação. O outro lado. E o caráter experimental da cena procurando transcender à sua mera condição especulativa e à subjetivização de seus desempenhos.

A procura de um teatro em que a representação se imponha como um sistema denso de signos sob determinadas relações claras com as ideologias de dominação. Sistema de signos que se exponha como crítica e autocrítica de práticas, condutas, comportamentos e visões de mundo, a começar pela crítica e pela autocrítica do significado de dadas práticas teatrais.

A compreensão e a vivência da questão do chamado teatro experimental: do ponto de vista da condição essencialmente experimentalista da cena e sem que se deixe de lado a consideração histórica que nos assegura uma progressiva organização do objeto de suas experimentações, ou seja, a emergência de uma política não espontaneista como necessidade para uma afirmação da complexidade densa do signo, no espetáculo.

Uma politica não espontaneista para as artes. Isso de costume assusta. Mas por que não? Ou, por que sim?

POR OUTRA LINGUAGEM E ALÉM

A começar pela crítica e pela autocrítica do significado de dadas práticas teatrais.

Um teatro crítico e autocrítico de sua história, não apenas no ámbito da linguagem dramática e cênica, mas também no terreno de suas formas e modos de organização e expressão como movimento cultural, na medida tortuosa de seus comprometimentos com os caminhos de emancipação dos oprimidos e explorados.

A tradição. Os artistas de teatro, no Brasil, mesmo aqueles mais inquietos, pouquíssimas vezes se preocuparam com a organização de um teatro livre e independente dos aparelhos ideológicos do Estado burguês. Muito menos estabeleceram alianças concretas com um público que lhes garantisse a defesa de seus interesses de trabalhadores do código cênico e da história das artes do espetáculo.

É claro, motivos houve pra que fosse assim. Certo. Está limpo. Nem por isso sossegado.

Na imensa maioria das vezes, movimentos levados adiante por um mais completo voluntarismo, desprovidos de uma direção política própria mais organizada e mais definida para as artes. E quando não, raros movimentos organizados de um teatro combativo, mas imensamente incapaz de transformar radicalmente as relações do palco com a plateia, numa perspectiva de mútuas influências. Impasse só passível de se superar sob uma política de crescente socialização do poder do palco sobre o público. Questão complexa, exigindo discussão profunda, para além das questões de linguagem, mas o tempo todo passando por questões de linguagem. E discussão não apenas a respeito das relações do movimento teatral com o Estado, mas também a respeito das relações da organização de um teatro de vanguarda, com os partidos que se propõem vanguarda das classes trabalhadoras. Não dá pra se iludir.

Questões básicas para uma codificação mais consequente das relações e dos compromissos do palco com a plateia, por tentativas de um seu avanço histórico.

Torna-se urgente toda essa discussão e já como vivência, para que se efetivem na prática processos de conquista de autonomia, na organização dos artistas de vanguarda e de uma política artística que se oponha ao sentido cultural dominante, em todas as esferas de dominação e poder.

ESSA AULA DE BARTHES

Devagar com o andor, para se chegar lá:

“A inocência moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico, que ele se insinua nos lugares onde não o ouvíamos de início, nas instituições, nos ensinos, mas em suma ele é sempre uno. E no entanto, se o poder fosse plural, como os demônios? Meu nome é Legião, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda a parte, vozes autorizadas, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogáncia. Advinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercámbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo discurso do poder todo discurso que engendra o erro, e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas.

A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem e não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua”. (Roland Barthes, Aula, Ed. Cultrix, São Paulo, 1978.)

É preciso estar alerta: e o poder neste texto?

A RECUSA E MEU UMBIGO

A questão de um “teatro de vanguarda”. Bernard Dort: “ruptura com o grosso da coluna”, ”recusa da velha disciplina e do comportamento comum”, proposta nova, partindo da recusa do teatro estabelecido. Recusa, hoje, “incondicional das estruturas burguesas para o drama e para o palco”.[58] Recusa de toda coisificação da cena. Recusa de um teatro de novidades – pictórico papel de embrulho de um velho teatro assim empacotado -, que não é, nem pode ser um novo teatro ou um outro teatro. Eis o “modelo”. Um gesto estranho, essa recusa. A questão do ponto de vista da trajetória das muitas propostas do passado entendidas como propostas de vanguarda, na história do teatro: essa recusa do teatro burguês sendo, no seu último ato, mais água levada ao moinho desse teatro burguês que se desejou recusar. A questão tomando dimensão complexa, ambigua, contraditória.

Alguém assistindo a um espetáculo de feição naturalizada e naturalista,[59] apreende de modo crítico e devido às condições históricas do momento, as máscaras dos signos peculiares da representação cênica, e tenta, após essa constatação revolucionária, contribuir para a historicização desse teatro, para o seu desmascaramento. A emergência das muitas “propostas de vanguarda”, no sentido de uma mudança radical na história do palco e da plateia. Propostas que às vezes não foram mais do que pretensões de pequenos grupos. Outras propostas que se fizeram movimentos. O teatro dadaísta, o teatro cubista, construtivista, surrealista, formalista, o trabalho de pequenos teatros marginais e marginalizados. Ou trabalhos encaminhados por um ou outro encenador e seus atores solitários. O desejo de se aprofundar as peculiaridades do discurso cênico. A escritura do espetáculo com um vocabulário todo peculiar, para transformá-lo numa representação dando realce àquilo que a naturalização da cena há de esconder, o próprio teatro, no processo de sua expressividade. Realizações particularizadas compondo o contraditório e complexo quadro da história do chamado “teatro de vanguarda”.

Arrepia-se o nacional-popular: – Mas é disso que você vai falar? Desse modismo estrangeiro! Dessa coisa decadente de pequeno-burgueses!

O nacional-popular “não tem umbigo”. Eu tenho umbigo. E você, tem?

E não é só isso.

E ESSA SANGRIA DE BOTICÁRIOS

Há uma dúvida. Foram propostas por fim catalogadas, classificadas, institucionalizadas e recuperadas pelo discurso de um teatro naturalizado, alimentando a potencialidade do teatro burguês estabelecido. Tentativas de ruptura com o discurso do teatro burguês como execução naturalista da cena. E o teatro burguês, ao escrever a sua história, mostrando ter mais sangue do que se supõe, fazendo, da crítica que se lhe desfecha, mera sangria de boticários que lhe traz força renovada. Essa história contraditória.

Mas por quê? E será que foi sempre assim? Ou será sempre assim, remetendo-se as transformações radicais da história do teatro como questão posterior à transformação radical da sociedade? Será uma fatalidade a recuperação das cenas, técnicas, dos textos, jeitos e modos de representar das “vanguardas teatrais”, em efeitos do teatro burguês, na composição de um novo teatro burguês, novidades desse teatro sob sua linguagem velha?

É triste, mas é assim. E não é assim.

A transformação radical e histórica de cada sociedade (ou de uma dada sociedade) é sempre um processo contraditório com rupturas, também retrocessos, não de modo diverso ocorrendo com as histórias das artes. Mas como evitar os impasses? Essa recuperação permanente dos esforços.

Sabe-se que os artistas e seus públicos devem organizar seus programas de ação/revolução cultural, suas táticas e estratégias particulares, na luta por transformar a história de suas atividades. Esse saber que mais só sabe.

A necessidade do artista de vanguarda. Mas que vanguarda? E como, vanguarda? E enquanto não se responde na prática essa questão, o impasse está sempre ressurgindo.

Ou não. Observando a história do espetáculo, na análise de suas contradições, confronta-se com determinada proposta de qualidade diversa, na ambígua procura por um teatro de vanguarda mais comprometido com a direção do movimento da história. Em dado momento, o processo da história do espetáculo sofre realmente uma ruptura radical e profunda, contrariando determinada lógica aparente de seu desenvolvimento.

PAUSA PARA PROBLEMAS

Pausa para perguntas impertinentes, antes de tocarmos nessa ruptura histórica. Porquês esquecidos.

DE PONTA CABEÇA

Questões de importáncia, no processo de construção de um outro teatro, hoje.

Quanto à experimentação no palco. Experimentar o quê? Experimentar para quê? Experimentar por quê? A prática da experimentação cênica como uma compulsória, numa linha de realizações espontáneas e/ ou anárquicas não fornecendo uma contribuição mais precisa à solução dos problemas suscitados por um novo espetáculo que se contraponha às estruturas do teatro burguês. A arte só se transforma radicalmente na expressão de uma dada política artística que se faça movimento radical. Hoje, mais do que noutros tempos, não serão as “grandes obras” que irão transformar a arte. E mais significativa será a sua transformação na medida em que se clarificarem tanto a direção de organização de seu movimento, como as relações de interesse e poder que definem essa organização. Daí a necessidade de respostas às perguntas acima, na elaboração de qualquer programa que se proponha como interferência, por sua prática experimental, no aprofundamento crítico da densidade semática da cena, dando-lhe um cunho revolucionário.

E revolucionário quer dizer virar de ponta-cabeça.

No sentido da questão mais pertinente, a dos pressupostos de um teatro de vanguarda hoje, emergem perguntas semelhantes, dando melhor contorno às dúvidas: vanguarda em quê? Vanguarda de quem? Vanguarda de quê? Vanguarda por quê?

Perguntas básicas para aqueles que procuram se fortalecer com o seu teatro e com o teatro de seus companheiros – alguns trabalhadores das artes do espetáculo – e superar um teatro meramente e essencialmente veiculador de ideologias de dominação, aparelho ideológico do Estado burguês. Perguntas cujas respostas talvez resolvam o impasse manifestado com temor, certa vez, por Marx, com relação às experimentações, em quaisquer campos: a tendência considerável de se cair numa “mistificação especulativa”. Dai a necessidade de se politizar com um programa de ação/revolução cultural – tático e estratético – o que se experimenta. A necessidade de se historicizar o que se experimenta. Ocorrendo o mesmo na produção em progresso de um teatro de vanguarda, para que não se corra o risco do atoleiro das mistificações vanguardistas. O ai meu sonho de ser vanguarda! Eu quero ser vanguarda na vida, papai, Vai ser vanguarda na vida, meu filho. Essa coisa toda.

É claro que esse conjunto de preocupações não é um problema simples ou de fácil solução. A produção de uma política revolucionária para o teatro. E mais difícil ainda, as relações da arte com a política. Pois o que se tem visto, tem se visto e assusta. Nossa e como! Relações ora fálicas, ora contemplativas, sado-masoquistas. Esse casamento que às vezes a gente até se cansa dele, se infastia e diz não dá ou dá ou desce. E o cerne de toda essa complexidade residindo justamente na necessidade de toda uma definição de uma política revolucionária para o signo – no caso, para o signo teatral – considerada a sua autonomia relativa – esse mistério – frente às condições históricas de cada momento.

Mas sendo isso, o difícil mesmo é saber o que é isso. E fazer? Ai é que a porca torce o rabo.

ME DÁ CÁ OUTRO CIRCUITO

Dados, notas e observações para a produção desse texto, dessa excursão. Contradições e ambiguidades do desenvolvimento da história do teat[60]ro e uma curiosa “palavra de ordem” – pobre arrogáncia das “palavras de ordem” – carregada de indignação, num programa de um espetáculo apresentado por um grupo teatral norte-americano de…vanguarda, no ano de 1900: “Abaixo a Broadway, fora a ditadura dos teatros comerciais, descentralização, experimentação”. Oitenta e um anos se passaram e como tudo isto se parece com certas aspirações e reivindicações dos ditos, chamados ou autonomeados teatros de vanguarda mais contemporáneos.

Mudemos o circuito! Mudemos o circuito! O povo unido muda o circuito! Abaixo a ditadura do velho circuito!

Essa passeata! Esse dualismo: centro e periferia! Pronto, mudemos o circuito e vai estar tudo resolvido!

Essa ilusão geográfica. Pois que se vai por aí, não só vai por aí. E não é só isso.

OS LUGARES DESLOCADOS

Por outro lado, essa “palavra de ordem” já quase centenária parece dizer que pouca coisa se fez para que a hegemonia dos teatros comerciais, hegemonia dos teatros de empresários, teatros nas mãos das companhias capitalistas de produção de bens simbólicos, sofresse um abalo considerável. Aparentemente, a crença nisto. E não só crença. Mas por quê?

As atividades dos “teatros de vanguarda”, predominantemente, ou concentram seus movimentos no ámbito de uma determinada e determinante questão da luta política que os instrumentaliza, ou se atolam num discurso esteticista carente de uma amplitude mais totalizante e antinômica da história, mesmo – o que é mais danoso – da história do teatro.

As reivindicações por um outro teatro, desse modo, ora vão se contendo no lugar da luta política, ora e isolam numa luta ideológica singularíssima, como que “descomprometidas” com o movimento social. Assim, os ámbitos da luta política e da luta ideológica se compartimentam, ou se confundem. A grandeza da luta cultural se restringe. E a questão se torna mais grave, acrescido do modo como de costume ainda até hoje, na imensa maioria das vezes, os trabalhos ditos de vanguarda, no teatro, se relacionam com seus espectadores. Ora, opta-se por uma relação paternalista, fornecendo-se um modelo exemplar e indiscutível de linguagem nivelada, na perspectiva de uma domesticação da plateia. E o que se consegue com isso é uma espécie de cultura de massas bastarda, culposa, envergonhada, ávida de mitos para se justificar.

Ora, opta-se por uma rejeição das condições específicas de linguagem do público, fornecendo-se um modelo enigmático de linguagem nivelada na perspectiva de um teatro mais que tudo que não quer o público.

Em ambos os casos, o palco se sobrepõe à plateia e estruturas de pensamento não se relacionam em mobilização crítica e prazer.

Sem se “saber”, reproduz-se a essência do teatro burguês, palco e plateia não se comunicando, não se comungando, senão pela violência de uma relação de poder. O palco fálico em cima da plateia e esta contemplativa, submissa. Fracassa a relação. Reproduz-se todo um processo histórico de dominação. Toda uma guerra de poder: amor-dor-desamor. E toca angústia no corpo do ator. Possivelmente, prostatite no corpo desse ser sentado, o espectador.

UM TEATRO SEM GOZO

Assim, a história dos chamados teatros de vanguarda se controverte. O voluntarismo idealista ou o desespero por uma nova linguagem cênica perdida em si mesma. As vezes, a utopia por um novo “marco zero” na história do teatro, esperança messiánica de “se começar tudo outra vez”, como se a história do teatro não existisse ou pudesse deixar de existir nalgum instante. Outras vezes, o desejo de um público servindo unicamente às reivindicações defendidas pelo palco. E não se alcança um modo como palco e plateia possam se servir criticamente, por ocasião de uma viável sem-cerimônia-cerimônia de gozo com o teatro. E nesse sentido não se constrói uma política radical de vanguarda para as artes do espetáculo, estagnadas em ideologismos, em análises aparentes da realidade, ignorantes inclusive da própria formação histórica de seu artista, em seu meio social. Vivendo esse teatro por mitos e paixões, onde o sectarismo se impõe, quando não se impõe o oportunismo, alienando-se assim o significado dessas “experiências de vanguarda”, pratos para o teatro burguês, para os meios de comunicação de massa, do CPC ao Carga Pesada; da “expressão corporal” ao fantástico, nesse mundo de plástico pra sua lixeira.

E POR FIM BRECHT

A ruptura histórica – como base conceitual – com esse impasse das vanguardas dá-se, em 1939, início de toda uma sistematização de perspectivas revolucionárias por uma nova linha de atitudes do palco frente o público, uma outra linhagem de prática da cena, da sala. Em Estocolmo, um exilado alemão, vítima da perseguição nazista e diante de uma plateia de pessoas de teatro. Esse homem de teatro, artista-revolucionário, narra então as suas experiências dos anos de ascenso das lutas políticas na Alemanha de Weimar, momento de radicalização da luta de classes em seu país. São experiências desse artista de vanguarda e de seus muitos companheiros que, se não conseguiram evitar o desastre nazista, ao menos deram uma contribuição revolucionária ao desenvolvimento da história das artes do espetáculo. Experiências levadas adiante por centenas de grupos de teatro alemães, grupos de atores, estudantes, operários e populares. E esse exilado, Bertolt Brecht, disserta, para seu público, em sua conferência, sobre os problemas das experimentações teatrais, a questão de um teatro de vanguarda, falando quase sempre por perguntas, conforme o seu método curioso de exposição, ainda que falando do que vivenciara por alguns anos nos palcos e com suas plateias. Palavras que trazem uma nova qualidade ao debate sobre o assunto:

“Como pode o teatro ser ao mesmo tempo fonte de prazer e de conhecimento? Como tirá-lo do comércio de drogas intelectual, da feira de ilusões, e fazer dele o lugar onde se vivem experiências? Como o homem de nosso século, esse homem sem liberdade e sem saber, porém ávido de liberdade e de saber, como o homem torturado e heroico, explorado e engenhoso, o homem transformável que transforma o mundo, o homem deste grande e terrível século, pode obter seu teatro, o teatro que o ajude a se tornar senhor de si mesmo e do mundo?”[61]

O TEATRO NA HISTÓRIA

Como colocar o teatro na história sob uma significação política insubmissa às ideologias de dominação, e – principalmente – se afirmando no feitio de sua expressão artística. E Bertolt Brecht, nessa sua palestra, com uma visão da história apreendida como processo contraditório da luta de classes, de embate de interesses sociais, um movimento de classes em luta, nega as experiências anteriores de teatro de vanguarda, sem negá-las na importáncia mais ampla de suas pretensões transformadoras do teatro historicamente estabelecido.

Reconhece o sentido histórico dessas experiências, na medida em que também revela o quanto o foram insatisfatórias, fundamentalmente porque no em-cima-do-muro de suas manifestações e linguagem, no idealismo de suas expressividades, acabaram por se incorporar ao universo do teatro burguês. A negação brechtiana, por ser dialética, não consiste em jogar na lata do lixo da história todo um trabalho pioneiro de homens de teatro, com quem muitas vezes ele mesmo trabalhara, lado a lado:

“Como se pode ver, as experiências são de valor muito desigual e nem sempre as de maior destaque são as mais interessantes; porém, mesmo as menos interessantes raramente são desprovidas de valor (…) No conjunto, é inegável que as experiências visando aumentar a capacidade de divertir do teatro trouxeram seus frutos. Em particular, levaram a um desenvolvimento da maquinaria. E, é necessário repetir, elas não acabaram”. (Suécia, maio de 1939)

Deixa claro que por toda a história das tentativas de rupturas com a hegemonia burguesa na feição do palco e da sala, de rupturas com o universo de um teatro naturalizado e naturalista, fez-se frequente um resultado cênico que ora privilegiou o político, transformando-se a cena em palanque de comício, sem que se compreendesse o papel da arte, ora privilegiou o artístico, em detrimento das questões políticas. E como se arrancar desse impasse dualista uma nova prática teatral?, parece ser a pergunta cuja resposta nos dá a chave de sua exposição

UM TEATRO SEM CULPA

Narra, àquela plateia de especialistas de teatro, a sua proposta, o que vivenciara na Alemanha antes do exílio e do desastre nazista. Uma proposta por um outro teatro. Fala de todo um trabalho, fruto de experiências práticas, experimentação de todo um grupo de atores combativos, artistas operários, estudantes e populares se defrontando com um público polêmico, na busca por uma nova relação na existência do espaço cênico, a sala.

Propõe a vivência de uma ruptura com qualquer teatro que se diga tribunal da história, esse teatro da culpa, com qualquer palco que se dirija a um público passivo e conformado em sua condição de mera plateia comprometida apenas com a atitude de aplaudir o veredicto final desse palco-juiz, entabulação de artistas. Propõe a recusa de um teatro que instalando a história na cena, “desistoriciza” o público, ainda que fazendo da casa de espetáculos uma espécie de parlamento dessa história instalada no palco.[62]

NO GOZO DA ESTÚRIA

Reivindica, como atitude, a situação do palco e da plateia na história – e no gozo da estória – pela apreensão das contradições dessa história, no vivenciamento dessas contradições pelo prazer e pelo conhecimento – saber com bom sabor – ficando a última palavra com a história – enquanto a gente se diverte – o que não se pode resolver essa última palavra, é claro – numa casa de espetáculos, mas sim nas ruas, nas fábricas, no campo e nos partidos. O que é outra história, dentre tantas.

Eis o marco de partida sistemático e fundamental do grande teatro de Brecht. Sua proposta revolucionária para o palco e a plateia: situá-los na história. O que não é fácil.

Proposta que subverte não só o teatro burguês, indo além disso, à subversão das próprias origens da concepção de teatro no mundo ocidental, já que em síntese, a palestra de Estocolmo, em 1939, nada mais é do que uma sistematização teórica da negação do teatro aristotélico.

“É a totalidade do teatro que é preciso transformarmos e não apenas o texto, ou o ator, ou mesmo o conjunto da representação cênica – o próprio espectador está incluído nestas transformações, é preciso alterar a sua atitude… O espectador não como um consumidor; torna-se necessário que ele produza. O espetáculo, organizado sem contar com o espectador como participante ativo, não passa de um semi-espetáculo.”

Essas coisas de Brecht, esse estrangeiro, esse modismo estrangeiro. Como é que fica? E o nacional-popular?

UMA RELAÇÃO SEM SEDUÇÃO

Brecht tem em vista a negação da identificação, na relação da plateia com o palco, essa relação em que o público é levado “naturalmente” para o centro da representação, vivenciando por emoções definidas a trajetória dos heróis da trama, público assim alienado de si mesmo enquanto tal. Público que não olha pra seu umbigo. Palco iludindo, dizendo que seu umbigo é o do outro. Essa sedução.

Propõe o distanciamento crítico, a historicização do espetáculo e, como consequência, uma relação dessa historicização da cena com um público historicizado.

Distingue bem o efeito de distanciamento que por muitas vezes se fez presente na grande história do teatro, daquilo que chama Verfremdungsefeckt, em seu trabalho: “Distanciar um fato ou caráter é, antes de tudo, simplesmente, tirar desse fato ou desse caráter tudo o que ele tem de natural, conhecido, evidente, e fazer nascer em seu lugar espanto e curiosidade”.

Nesse sentido, distanciar é sobretudo historicizar: “O efeito de distanciamento não é uma medida técnica, mas sim uma medida social”. Toda a diferença entre a qualidade da proposta brechtiana e as possíveis manipulações de seu teatro pelo teatro burguês.

” … para Brecht, o distanciamento tem uma dupla função (o que significa que essa medida tem por objetivo uma revolução estética e uma revolução política): permitir ao espectador emancipar-se do mundo representado (armá-lo sobre e contra o mundo tal como é este representado) e da própria representação; armá-lo no teatro, no próprio espetáculo e evitar-lhe deixar-se prender pela representação teatral” (“A Leitura Transversal”, Richard Demarcy, Semio logia do Teatro, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1978).

UMA QUESTÃO DE VIVÊNCIA

Qualquer teatro, caso aspire uma postura de vanguarda há que, primeiramente, determinar-se e definir-se com seu espectador, numa vivência de propósitos comuns,[63] para que haja condições de se determinar, na sua plenitude em movimento, o diálogo artístico pretendido. Meu umbigo e seu umbigo. Os umbigos dessa sala. Notar bem: vivência e não só desejo. E daí o espetáculo se fazendo festa. Forró.

DO ÉPICO AO DIALÉTICO

1939. Vésperas da II Guerra Mundial. A proposta de Bertolt Brecht é o ponto de vista de um revolucionário exilado, um perseguido do nazismo, além de não ser muito mais do que uma palestra, naquele instante corda-bamba do destino da humanidade. A guerra há de fazer com que se paralise um tanto o desenvolvimento das experiências teatrais.

E da conferência de Estocolmo até hoje. A face da história da humanidade transformada. Aprimoraram-se os modos de dominação social. Mudanças extremamente significativas no balanço das forças políticas, no seio da luta de classes. A existência dos homens adquirindo novas características. A ciência e a técnica se desenvolveram num processo contraditório e acelerado de maneira jamais vista anteriormente. Devassada a fronteira do impossível.

O próprio pensamento de Bertolt Brecht irá transformar-se com a própria história, na negação de seus resquícios humanistas, na clarificação progressiva de certas ambiguidades, no aprofundamento de suas questões, no enriquecimento de suas práticas e de seu método de análise. O Brecht épico da conferência de Estocolmo, em 1939, transmuta-se na composição melhor delineada de um Brecht dialético, nos anos 40/50; a reivindicação por um teatro épico tornando-se reivindicação por um teatro dialético.

A ARTE COMO ANTY-PHYSIS

Roland Barthes, 1956: toda a obra de BB “coloca um problema semiológico declarado. Pois que toda dramaturgia brechtiana postula é que, pelo menos hoje, a arte dramática deve menos exprimir o real do que significá-lo (…) Toda a arte brechtiana protesta contra a confusão jdanovista entre ideologia e semiologia, que levou ao impasse estético que se sabe (…) Para Brecht, ao contrário, a arte hoje, isto é, no seio de um conflito histórico cujo prêmio é a desalienação humana, a arte deve ser uma anty-physis”.

No mesmo artigo (“As tarefas da crítica brechtiana”, Crítica e Verdade, R. Barthes, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1970): “O que Brecht toma ao marxismo, não são palavras de ordem, uma articulação de argumentos, é um método geral de explicação. Disso decorre que no teatro de Brecht os elementos marxistas parecem sempre recriados. No fundo, a grandeza de Brecht, sua solidão também, é que ele inventa constantemente o marxismo”.

UMA OUTRA REALIDADE

A afirmação do teatro como significação de uma representação (complexo denso de signos peculiares que no seu arbítrio dão significados críticos à representação ideológica da vida dos homens) tornase cada vez mais objeto de estudo e experimentação por parte de toda uma série de pessoas preocupadas com as mais diversas questões da linguagem cênica.

Peter Brook, teórico e criador de espetáculos, anos 60, expondo o drama radicalmente, com palavras explícitas: “Neste palco tudo é encenação, não é realidade!” Porque “the play is a play”. Eis o espetáculo e seu lugar, o “teatro e seu espaço”.

A afirmação de Peter Brook, ainda que básica, carece, contudo, de desdobramentos que nos permitam elaborar e avançar naquilo que ele efetiva para os homens de teatro de seu tempo. Se, no palco, “tudo é encenação”, há nessa encenação, sem dúvida, uma dada realidade: a realidade de uma encenação. E sendo sempre o real a emergência de uma relação, para cada realidade peculiar de sua encenação (demarcação de sua autonomia relativa, o seu jogo) há também todo um conjunto de relações emergentes por demais realidades, compondo-se assim o solo em que transita e se dá a realidade da sala, do palco e do público: o que é preciso descobrir e fazer emergir, para que se rompa com a viabilidade de naturalização do espetáculo. O que há de ser o fulcro da feição artística do papel de um teatro de vanguarda em movimento, hoje.

ARTAUD PERTO DE BRECHT

A redescoberta de Antonin Artaud, outro revolucionário do palco e contemporáneo de Bertolt Brecht. A leitura materialista de sua obra, analisada em confronto com as proposições brechtianas. Experiências práticas realizam-se com a utilização de ambas as concepções da cena, constatando seus pressupostos e alcançando resultados surpreendentes. Aquilo que as aparências nos indicam como propostas antagônicas para o teatro, a análise mais complexa nos mostra como todo um conjunto de categorias que se suplementam ou tensões que se tocam, energias que se atravessam, gerando novas qualidades no processo de relação do espetáculo com a plateia. Se Bertolt Brecht propõe o signo teatral e uma política para esse signo teatral, como objeto central de suas preocupações, na transcrição da cena, Antonin Artaud indica, com todas as palavras, considerado o seu discurso de feição poética, o seu modo bonito de expressão por paixões, que “os atores com seus trajes compõem verdadeiros hieróglifos que vivem e se movem. E estes hieróglifos a três dimensões estão por sua vez ornados de um certo número de gestos, de sinais misteriosos correspondentes a uma realidade fabulosa, que nós, homens do Ocidente, recalcamos definitivamente”.

Assim, Brecht e Artaud se encontram. Dão instrumentos mais apropriados para uma melhor compreensão das possibilidades revolucionárias do fenômeno teatral. Em ambos, o pensamento ocidental se afirma, contestando-se.

Do pós-guerra até hoje, qualquer que seja a dimensão dos embates no seio da questão teatral, numa perspectiva de transformação da cena e da sala, há que estar relacionada às formulações e práticas de Bertolt Brecht e ao pensamento e obra de Antonin Artaud.

UMA POLÍTICA DO SIGNO

Em sua palestra de Estocolmo, Brecht organiza os seus primeiros marcos básicos por um outro teatro. Ainda que não sejam os únicos marcos, o que aliás, ele próprio o reconhece. E se a substáncia dessa palestra se diferencia das demais contribuições de outras vanguardas, nos termos do que aponta, é porque nela se demarca uma política explícita do signo, para o teatro, com a proposição do sentido da autonomia relativa da cena, lado a lado às relações de sua função social. Indo à raiz da questão, à ruptura com a concepção aristotélica das artes do espetáculo.

E desde então, nos embates da questão teatral, como questão da luta ideológica no seio da luta de classes, o que se assiste é a consolidação crescente, ainda que desigual, mas combinada, de um entendimento em movimento e de uma definição do espetáculo como uma significação de feição peculiar. O teatro passa a ser experimentado e realizado – no processo contraditório de sua história – de modo diverso da consagração tradicionalista que o entende e o define como um mero reflexo do real, espelho da vida. Começamos a assistir à afirmação da negação da identificação como relação entre o palco e o público. A negação do teatro aristotélico. Processo comprometido com o desenvolvimento de uma nova ciência, ciência cuja categorização emerge praticamente nos primeiros anos do século XX – a Semiologia.

EU TE AMO DE MIL MANEIRAS

Primeiros meses do ano mágico. 1968, Tadeuz Kowzan: “Entre todas as artes, e talvez entre todos os campos da atividade humana, a arte do espetáculo é onde o signo se manifesta com maior riqueza, variedade e densidade. A palavra pronunciada pelo ator tem em primeiro lugar sua significação linguística, ou seja, é o signo dos objetos, das pessoas, dos sentimentos, das ideias ou de suas inter-relações que o autor do texto quis evocar. Mas a entoação da voz do ator, a maneira de pronunciar essa palavra, pode modificar o seu valor. Há muitas maneiras de se pronunciar as palavras eu te amo, que tanto podem significar paixão como indiferença, ironia ou lástima (…) O espetáculo emprega tanto a palavra, como sistemas de significação não linguisticos. Recorre tanto a signos auditivos, quanto a visuais. Aproveita os sistemas de signos destinados à comunicação entre os homens e os criados pela necessidade da atividade artística. Utiliza signos retirados de todas as partes: da natureza, da vida social, dos diferentes ofícios e de todos os terenos da arte (…) Os signos que a arte teatral emprega pertencem todos à categoria de signos arbitrários. São signos artificiais por excelência. São consequência de um processo voluntário, quase sempre são criados com premeditação, têm por objeto comunicar instantaneamente. O que não é de surpreender numa arte que não pode existir sem público (…) O espetáculo transforma os signos naturais em signos artificiais, pois tem o poder de artificializar os signos. Mesmo quando na vida sejam nada mais que reflexos, no teatro se convertem em signos voluntários. Mesmo quando na vida careçam de função comunicativa, necessariamentea adquirem em cena”.[64]

UMA REALIDADE PRÓPRIA

A conclusão mais simples e evidente sobre a cena, ainda que conclusão mascarada e fetichizada por tantos séculos: a descoberta do espetáculo como um multiplicador das artes, nas suas combinatórias, definindo-se, porém, com autonomia criativa, nesse processo. Eis a condição mais íntima e mais ampla do espetáculo, enquanto festa e arte. Nem reflexo da realidade, nem espelho da vida. Realidade própria, artificial, arbitrária, peculiar e densa como representação, como significação, num mundo de realidades que se relacionam interdependentes, na composição da história e das estórias como história da luta de classes. A partir da prtica e da vivência deste ponto de vista é que se pode transformar historicamente o teatro, hoje, transformando se a natureza que a burguesia lhe legou. A tarefa de um teatro de vanguarda será inserir-se nesse processo, para uma delineação em progresso e movimento de uma política do signo teatral que ponha o teatro lado a lado à luta histórica e conjuntural dos oprimidos e explorados em todos os sentidos. Tomando por premissa básica a negação de qualquer compreensão naturalizada e naturalista da atividade teatral. A luta de classes no seio do teatro. No coração da fantasia, da brincadeira, do jogo e do prazer. Por prazer. E por outro prazer.

POR UMA RELAÇÃO VIVA

O esforço do sistema cultural burguês no sentido de manter sob o seu domínio hegemônico e inabalável o discurso do teatro, dirige-se sempre à naturalização de todas as fases da produção teatral. Esforço, é claro, que se dirige com realce para neutralizar o contato do espetáculo com o público como um contato vivo, uma relação de criação. A ruptura com toda essa naturalização do teatro é uma exigência da prática pela afirmação de uma outra concepção de representação pelo teatro. Ou seja, uma outra concepção de teatro, cuja fonte se baseie na clarificação da diferença ou da distância que há entre a representação cênica (a significação cênica) e a totalidade da existência cotidiana “natural”.

E apreender – vivenciar – o sentido lúdico dessa diferença, no âmbito do teatro, será o primeiro passo para podermos construir, entre o palco e a plateia, um universo de referências e relações que, sendo historicizado, nos forneça a expressão cênica surpreendente de um mundo diverso daquele que apreendemos com a cosmogonia dominante.

A concepção naturalizada e naturalista do teatro dominante esconde e luta por esconder do artista e do público essa diferença entre os signos, a significação da cena e o real vivido. E expor essa diferença no palco será a razão de ser da proposta de Bertolt Brecht ao longo do desenvolvimento de seu teatro como um trabalho de vanguarda: a recusa da identificação entre o ator e a personagem e entre o espectador e a personagem, na relação múltipla que é o teatro como expressão de dada linguagem. Proposta de vanguarda que não se despolitiza para ser arte, como não se desesteticiza para viver historicamente sua política. Uma trança necessária.

SEM SABOR DE COERÊNCIA

Brecht e Artaud confrontados: “Segundo Brecht, é necessário romper definitivamente não apenas com o conceito de ator, estrela da peça, mas também com uma psicologia plena e linear, coerente, de acordo com a pseudocoerênda do pensamento mecanicista e idealista que o espectador poderá adotar durante o espetáculo. Pelo contrário, a personagem deverá ser apresentada como contraditória, deve-se moldar a sua própria representação através de arranques e rupturas do espetáculo e do texto. Acaba-se, portanto, com a velha concepção do desempenho verdadeiro ou natural, porque no palco essa naturalidade é tão arbitrária como qualquer outra forma de representação e é precisamente isso que devemos denunciar, ou utilizar. A função do ator será, portanto, a de simultaneamente citar e situar a personagem que está incumbido de encarnar, e isto através da introdução, no desempenho, de uma dimensão crítica elaborada com todo o rigor”. (“Brecht e Artaud”, Guy Scarpetta, Teatro e Vanguarda, Editorial Presença, Lisboa, Portugal, 1970)

POR NOVAS PRÁTICAS

A cena, expressando a sua intensa combinatória de signos, falando por si de alguma coisa, é claro, refere-se à realidade dessa coisa, mas com a sua realidade própria, sua língua própria e arbitrária, enfim com a sua própria linguagem densa. Isto, sob determinada convenção, numa dada situação cultural, também podendo ser trabalhadas.

Se o teatro tem a sua plenitude na relação palco-plateia, exige-se de um teatro de vanguarda, para a exposição e o desvelamento de sua arbitrariedade e de sua situação, não apenas uma nova atitude ativa – uma nova prática – do ator, mas também uma nova atitude – uma nova prática – do espectador. Daí ser esse novo teatro um ávido codificador e decodificador “sem cerimônia” de todo o seu ritual. Processo que a plateia como tal precisa também ter um domínio progressivo, conforme as condições do movimento que se estabelece. Processo, assim, que o ator de vanguarda – caso não se pretenda um mitificador – não deve “esconder” do público, tanto como não deve alienar-se na construção expressiva do espetáculo.

UMA OUTRA RELAÇÃO

Petr Bogatyrev, 1938: “A natureza peculiar dos signos do teatro acarreta uma relação particular do público com esses signos, muito diferente da relação particular de um homem com a coisa real e com o sujeito real. O caminhar e os gestos de um velho, por exemplo, despertam geralmente piedade na vida real. O caminhar e o gesto senil de um ator têm quase sempre um efeito cômico”.

E daí:

“Cada interpretação criadora de um papel, como qualquer cria ção independente proveniente de qualquer arte, luta contra os signos tradicionais e estabelece signos novos em seu lugar” (“Os Signos do Teatro, Petr Bogatyrev, Semiologia do Teatro, Editora Perspectiva, São Paulo, 1970).

QUESTIONANDO A LINGUAGEM

Se o signo que relaciona a expressividade da cena com outras expressões do real é arbitrário, numa situação cultural que se cria, a socialização desse poder de arbítrio, entre o palco e a plateia (socialização que aponte à produção crescente de novos signos e de novas convenções no teatro), é o que fornecerá a dialética do espetáculo, em seu movimento (diálogo que se determina finalmente no instante da representação, no instante do jogo cênico): momento não só de escritura/leitura, mas também de polemização e questionamento de linguagens.

Para que esse processo de socialização do arbítrio da cena se efetive, há que se exibir o espetáculo como ele é e como poderia ser e assim sendo: fruto do trabalho dos atores, mas também realidade transformável e se transformando. Evidenciando-se assim não só a trama da fábula, mas a instância de todo um método de se apreender e vivenciar as coisas como fruto do trabalho e de suas contingências, sob relações passíveis de serem transformadas.

ALÉM DAS PALAVRAS

“Pouco importa que as coisas sejam ditas (elas são ditas em Brecht sob a forma de apólogos ou de songs) ou não: não são as palavras que, em última análise, efetuam a crítica, mas sim as relações e não relações internas de forças entre os elementos da estrutura da peça” (“Notas Sobre um Teatro Materialista”, Luis Althusser, Análise Crítica da Teoria Marxista, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967).

A QUESTÃO TEATRAL

A questão teatral se inscreve dentre as questões superestruturais. Enquanto luta e processo contraditório de pontos de vista e linhas de trabalho, ocupa um espaço no debate cultural, ou seja, no âmbito da luta ideológica.[65] lsto, dando o sentido da existência do artista, no desenvolvimento da história das artes.

Com base nesse pressuposto das controvérsias da questão teatral, na extensão de toda a luta no seu interior, é claro não irá satisfazer aos objetivos últimos de sua vanguarda, uma mera contribuição que apenas transcreva no discurso do palco as questões peculiares de um discurso da luta política. Há características mais sutis, mais complexas e mais particulares, na definição e no traçado de uma atividade de vanguarda no teatro. A vanguarda, no teatro, não será jamais, portanto, uma mera reprodução substitutiva de vanguardas partidárias,- como os frutos da ação de cada uma dessas vanguardas são distintos, ainda que possam se perpassar os seus desempenhos (ora, é claro, tudo é possível! E por que não?), mantidas as suas independências relativas. Essa distinção se clarifica, assim, nas especificidades das funções e dos objetivos de cada aparelho; de um lado, a função e os objetivos do partido, de outro, a função e os objetivos do teatro.

A trança que se permite há que considerar isso. E confundir tais funções e objetivos, nas peculiaridades de cada solo de desempenho, será cair num equívoco substitutivista. Será não apreender as particularidades de cada problemática, submetendo-se mecanicamente a história das artes à história das lutas organizadas para a tomada do poder ou manutenção do poder – essa guerra de espanha e holanda -, aplacando-se assim toda a complexa dialética que as poderia inter-relacionar: luta política & luta ideológica.

GARANTINDO A TRANÇA

Uma vanguarda artística militante, com relação às questões da história das artes, só tem mesmo a ensinar a uma vanguarda políticopartidária. Como esta muito tem a ensinar de política & partido à vanguarda artística.

Há o trânsito possível nos dois âmbitos dessas vanguardas, em uma ação revolucionária. Ambas as vanguardas podem se servir. Mas quantas divisões blindadas tem o papa?

Um primeiro passo: a defesa de certas esferas de organização livre e independente dos artistas, na luta por seus interesses particulares e na definição de uma política peculiar do signo, na produção de bens simbólicos. A consolidação de canais de expressão próprios e organizados com base em toda uma autonomia conquistada pelos artistas e seus públicos, nas suas lutas por revolucionar a história das artes. Não se deve descartar a contribuição relativa de uma direção político-partidária, na elaboração de uma política revolucionária para as artes, mas sobretudo não se deve desconhecer a particularidade de todo o processo especial de elaboração dessa política. As exigências de sua autonomia.

Mas como? Isso é mesmo uma pauleira. Outra pauleira.

MAS QUANTA CULPA

Essa trança das relações da arte com a política. Ou melhor, essa trança das relações de uma política revolucionária para as artes com a política-partidária.

Pausa para recordar de tudo um pouco, que é viver querendo lembrar-esquecer.

No Brasil: O CPC. O movimento, o modelo de organização, os desejos, as consequências.

O CPC/UNE: o filho rebelde não usa black-tie. A semente: Eles Não Usam Black-Tie: Eu te ensino a fazer uma greve, meu peão. E te ensino a se comportar numa greve, meu peão. Não traia a tua classe. Deixa que eu traio a minha.

Essa má consciência, consciência dooutro. E essa visão de si como traidor: daí a culpa. E o sonho das alianças mágicas, dos casamentos perfeitos, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa de minha condição de classe. Tenho de me redimir, redimindo o outro, pobre coitado. Esse povo infeliz, esse outro infeliz.

Eu não entro num forró, porque lá eu vejo o povo feliz. Futebol?

Ópio do povo! Carnaval? Alienação. Povo feliz, é povo bobo.

…Eu te garanto, o povo é infeliz. Por isso é que ele precisa de mim.

Por minha culpa. Minha máxima culpa.

Augusto Boal: – “Brecht cantou: Feliz o povo que não tem heróis. Concordo. Porém, nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes”.

Ai quem me dera ser herói! Ai que me candidato a ser herói. Artista – perdão, desejo de militante, já ia me esquecendo – e herói. Que mais o senhor quer, papai? Tudo por esse povo coitado, pobre coitado, indigente político, massa passiva e inculta. E com o artista unido, pintando a sua arte, essa arte, o meu partido, o povo jamais será vencido.

A educação do povo deseducado, povo infeliz: Você é infeliz! Você é infeliz! Acredite, você é infeliz, meu povo!

E eu? Eu sou culpado!

Tiradentes y zumbis. Desgraça pouca é bobagem. E eu, o seu curinga, nesse jogo, meu povão.

Arena. CPC. Arena. Nessa arena.

E a história sem dialética, óleo & água, a história como uma história de heróis, nas estórias dos que mais querem ser heróis. Também pudera, do jeito que se a massa-povo, quem é que há de querer ser massa-povo. Pernas pra que te quero. Quero ser herói do povo. Que povo eu não quero ser. Mas herói do povo: isso vale a pena. Minha carga pesada.

Vanguarda? De quê?

Se não há como ser povo, vou ser herói do povo.

UMA CULTURA ATRELADA

Movimento organizado. Desejos & programas. Um programa de organização da cultura. Um programa de oposição. Uma vanguarda artística militante. O CPC/UNE. Eis a experiência mais marcante.

No Brasil, a experiência dos Centros Populares de Cultura (CPC/UNE), ainda que considerável tentativa organizada de movimento crítico à arte estabelecida de seu tempo, pretendendo a seu modo um novo teatro em movimento, mas sobrepondo nos lugares específicos da vanguarda teatral a atividade de uma vanguarda política de vivência e formação tipicamente pequeno-burguesa, atolou-se no impasse que se viu, alcançando com suas práticas artísticas nada mais do que um atrelamento da luta ideológica à luta política, desconhecendo quaisquer níveis emergentes de sobre determinação superestrutura!.

Qualificando os artistas brasileiros de conformistas, inconformistas e revolucionários, o cepecismo localiza no seu interior justo – é claro – os intelectuais e artistas “revolucionários”. A estes compete criticar e apontar soluções para os problemas de acordo com a perspectiva da classe revolucionária.

A situação da classe revolucionária, no ideário cepecista, é uma abstração. Já a sua perspectiva é todo um eixo de questões calcadas numa política de inspiração nacionalista e antiimperialista, conforme a compreensão dual do imperialismo, dominante na época.

Essa competência do artista que faz dele uma espécie de missionário da libertação do outro mais parece uma reprodução mitológica do mais arcaico estatuto que a burguesia lega ao artista, uma dada condição de ser privilegiado e inspirado, acima das classes sociais, no desempenho de suas atividades.

Dizendo-se “a serviço do povo e na defesa dos interesses do país”, o cepecismo, por outro lado, na sua parafernália conceituai, também transmite uma imagem do artista como uma espécie de burocrata bem intencionado.

O CPC e a liberdade de criação. Considera-se que o artista, por ter uma origem pequeno-burguesa, “muitos dos seus hábitos arraigados podem influir na sua obra”. Assim, impõe-se um cerceamento à livre atividade criadora, “de modo a não deixar que isso ocorra”.

Mas quem irá impor tal cerceamento? Eis a chave: a liberdade, através do cerceamento. A contradição se faz paradoxo.

Para o cepecismo, não será o CPC quem irá impor tal cerceamento, mas sim “o próprio artista”. E por questões muito simples e não menos evidentes: a) por ter-se dicidido pela arte engajada; b) por ter-se decidido pela arte popular-revolucionária; c) por não ter nada a perder. Crê o cepecismo que o seu artista “troca uma liberdade vazia de conteúdo por uma atividade consciente e orientada para um fim obje tivo”. Como se a dominação cultural burguesa fosse uma produção desorientada, desorganizada esem fins objetivos.

O propósito último do cepecismo, com seu teatro, é “atingir a massa e dar-lhe consciência política”. Essa conscientização política do público, através do teatro, sem dúvida, mais um mito comprometido com a consolidação do poder do palco sobre a plateia, como poder que não aspira à sua socialização. Mito com o que se fornece renovado material a uma manutenção mais contemporánea de toda uma outra teologia da arte.

Constatando que “as manifestações culturais espontâneas do próprio povo só fazem perpetuar a alienação”, para o cepecismo, cultura popular é “uma doação de cima para baixo, uma transferência de valores culturais possuidos e cultivados em setores privilegiados da sociedade”. Por isso, necessário se faz “infundir no povo uma cultura que ele não tem e que lhe faz falta, mas à qual ele não consegue chegar sozinho, pois ela é produzida e cultivada fora do povo: ele encontra-se à margem do processo que produz e cultiva essa cultura”.

Com base em tais concepções, o povo é qualquer coisa, menos e nunca sujeito da cultura popular.

O LEGADO CEPECISTA

A arte do CPC de certo modo expulsa o poeta da pólis e a poesia de sua cidadela. Não conseguindo uma política da poética, apenas instrumentaliza certa política com o verso: sua contribuição ao desenvolvimento do populismo-reformismo.

Sua mitologia nos legou um impasse de considerável monta no domínio da arte e suas relações com a politica. Na verdade, no que se refere às relações da arte com a política, foi e ainda é grande o desserviço histórico e o confusionismo cepecista, como legado.

O cepecismo empaca ao se defrontar com o materialismo dialético. No teatro, o palco cepecista mostra, julga, dá o veredicto, sendo advogado, juiz e jurado. E seu público, uma espécie de vaso onde se depositam as ideias progressistas do espetáculo. Um público passivo, presente apenas para ver, ouvir e então crer religiosamente nos ditames da cena: enquanto público ativo, público ausente. E se havia alguma atividade física ou emocional desse público, dava-se na direção de uma reiteração das ilusões do palco. A prática desse público pouco diferindo da prática consumista da plateia burguesa, ainda que a mercadoria tivesse outros atrativos e um circuito diversificado.

A SALA DE BRECHT

Com Bertolt Brecht, o palco conta, a sala julga. E Roland Barthes se pasma: “Ora, isso é a própria definição de teatro popular”.

A sala: o espaço da comunicação profana que deve ser o espetáculo, como arte do ator e arte do espectador. A sala como o lugar qualquer da relação.

O ponto de apoio para a mobilidade do espetáculo não vai estar sequer no palco, sequer no público. E sim, fundamentalmente, no lugar de interseção do palco com a plateia, promovendo-se daí toda uma medida de comunicação de expressividades. Assim procura se definir, em processo, o teatro brechtiano: como prática na busca de uma outra atitude do artista e dos espectadores. Uma nova prática teatral, no universo das práticas do ator e das práticas do público, diferenciando-se assim qualitativamentedo teatro naturalizado e naturalista.

A SITUAÇÃO DO TEATRO

O esquema: a situação[66] do espetáculo contendo não só uma representação-significação por meios de signos densos e arbitrários, mas também toda uma série de práticas. A situação do teatro advindo também de práticas. Não custa observar o óbvio. Exibir a evidência. E mais complexa será a abordagem de um novo teatro, se para essa abordagem se reivindicam – o que é necessário, pois o teatro só se realiza com o seu público – as práticas de seu público, a partir de seu móvel até à representação do espetáculo, o porquê ir-se ao teatro, ao que se soma o como ir-se ao teatro e o como se portar diante de uma representação cênica: conjunto fundamental de práticas na situação de um teatro.

E O CORAÇÃO DO TEATRO

Bertolt Brecht demarca o início de um teatro que para se pensar e se concretizar, relacionado a uma transformação radical da história, não despreza as origens e as manifestações de todo esse conjunto de práticas. Para tentar resolver esse “mistério” complexo, desloca o ponto de apoio da mobilidade cênica para o lugar de interseção do palco com a plateia, onde se expõe o coração de seu teatro.

Como se representa no palco por meio de todo um conjunto de significações arbitrárias que se relacionam de um modo ou de outro coni a situação de um público definido, não há modo ou forma de se evitar que a ideologia esteja no coração desse teatro. Mas lá está como representação de práticas – a prática do espetáculo e a prática do público – e não como reflexo da vida.

Por premissa a certeza de que qualquer significação cênica por si só, nos termos de uma plenitude particular, será compulsoriamente ideologicizada.[67]

O modelo brechtiano procura condições para enfrentar essa ideologicização, viabilizando seja a produção crítica de um espetáculo (a sua desnaturalização), seja a crítica das relações desse espetáculo com seu público. E trabalhando nesse processo, não só com os signos da cena, mas também com as ideologias, as práticas e os comportamentos expressos no decurso do acontecimento teatral.

A ideologia está no coração do teatro, estando o coração de determinado teatro na interseção das práticas do palco e da plateia. Mas que ideologia? O pressuposto é clássico: a ideologia de uma sociedade é a ideologia de sua classe dominante.

No instante em que se“começa” a realização de um espetáculo, no coração do teatro, antes “lugar vazio”, “começam a penetrar” as ideologias (progressivamente, com o desdobrar das práticas e visões de mundo do palco e da plateia). Ideologias de dominação.

O trabalho que pode caber ao artista de vanguarda: pôr em suspeição e negar, na plenitude da representação – a relação complexa entre o palco e a plateia – esse predominio das ideologias de dominação, das práticas, dos comportamentos e das visões de mundo dominantes. Mas como?

Uns pensam isso, computando essa tarefa ao futuro, na dependência da vitória das vanguardas políticas. É o que dizem e defendem aqueles que, abandonando as particularidades do discurso cênico, o processo peculiar do desenvolvimento da história das artes, fazem do palco, palanque, e de suas atividades artisticas, espaço de uma militância politica mal realizada e naturalizada na representação de seus mitos, minorando-se a força e a importáncia da luta ideológica no “mundo das artes”. Atrelando a luta cultural à luta política. Tudo em vão, pois que se trata de uma proposta “deslocada” de seu lugar. Esse sonho politiquista de arteiros.

FORA DA IDEOLOGIA

Mas como solucionar o impasse, permanece a questão? E outros defendem a criação de um universo de práticas e comportamentos cênicos tão peculiar e tão volátil o bastante para torná-lo infenso às ideologias de dominação, como se isso fosse possível. É o que sonham os defensores de determinadas concepções esteticistas. Artistas pudorentos, envergonhados dessa politicagem suja que há por ai. Pois é, me dá cá minha luva de pelica.

Mas, ora! A ideologia de uma sociedade de classes é a ideologia de sua classe dominante! De todo o esforço em vão desses vanguardistas esteticistas, só restará, assim, o sonho, o mito e a mistificação de uma existência teatral marginal e a-social. Sonho a um passo de sua recuperação (senão massacre) pelo universo da arte burguesa, ainda que como produção excêntrica, “coisas de artistas”.

UM PALCO DE REDUNDÂNCIAS

Para tais “vanguardas”, o fundamental é armar – essa batalha – a cena com práticas outras substitutivas, com o que pensam suprir absolutamente o “lugar” ocupado pelas ideologias de dominação. Com essas práticas “deslocadas” e/ou “alternativas” tentam preencher o coração do teatro que fazem. Criam assim suas línguas e linguagens. Um discurso de desejo que ignora o público, só se fornecendo como reiteração a um público que comunga feito boi de presépio com as peculiaridades semánticas do que se exibe. O teatro não se estende como uma possibilidade de diálogo, em sua plenitude crítica e cultural: toma-se redundante. Têm-se “vanguardas” de si mesmas, no isolamento de um teatro seja de poucos iniciados em seus mitos, seja de conversão da crítica às ideologias de dominação em mitos para os seus já “convertidos”. Pois que estas “vanguardas”, em última instáncia, no isolamento de suas pretensões, “crêem” ser possivel uma prática teatral “infensa e livre” das ideologias dedominação. Como se acreditassem no mito deuma sociedade de classes em que um grupo social qualquer – por sua competência – fosse capaz de produzir ideologias privadas e próprias, à parte da presença, da influência ou da existência material, enfim, das ideologias de dominação. Este éo grande equivoco comum a tais “vanguardas”, medidas as suas diferenças.

E UM LEGADO DE ESTRANHAMENTO

A proposição brechtiana, em seu processo de desenvolvimento contraditório, aponta, numa primeira instância, para o sentido de um trabalho cênico que transforme a relação que é a realidade da representação teatral numa espécie de relação que desencadeie o estranhamento da ideologia dominante (que, “penetrando” nas atitudes do palco e da plateia, aspira a naturalizá-las).

Notar bem: aponta. E em seu processo de desenvolvimento contraditório. Isto é: não se fala aqui só do que Brecht praticou, mas sim do sentido para onde aponta a sua obra.

É dessa maneira que, nas raízes do impasse do teatro como um sistema denso de signos arbitrários e sua ideologicização simultânea, se dispõe como proposta mais consequente e mais profunda, o legado de Bertolt Brecht a um teatro de vanguarda que se comprometa com o desenvolvimento da história da arte. Legado que exige (no seu processo de efetivação) do artista e de seu observador a disposição do palco e da plateia na história, nas suas histórias, sabendo-se qual a história desse palco e de seus públicos (e não-públicos), conforme suas formações e vivências e as possibilidades de transformação dessas vivências em signos da representação postos a nu, à luz surpreendente do estranhamento das ideologias de dominação.

MUITO MAIS UM MÉTODO

A prática do distanciamento crítico será o principal instrumento norteador dessa nova prática teatral. E o distanciamento crítico como efeito – o Verfremdungsefeckt -, no caso, não será mais do que um efeito de estranhamento da presença das ideologias de dominação no coração do teatro, historicizando e desnaturalizando essas ideologias. Por ele, expressa-se, na relação em que o teatro se determina, muito mais um método de observação, análise e vivência de situações da representação, do que se exibe umamera trama ou fábula.

E UM MOVIMENTO NU

Brecht nos propõe um palco em transitoriedade, pondo a nu o seu movimento, na sua descoberta. Um palco que, além disso, não recuse o fato de que a ideologia dominante nele “penetra” e lá está presente (por isso, palco em transitoriedade), como “penetra” e se faz presente em todas as relações culturais.

A proposta brechtiana exige uma instrumentalização do palco com sinais e signos – efeitos – capazes de provocar o estranhamento da dominação ideológica, permitindo à plateia, no diálogo desencadeado pelo palco, observar e mesmo vivenciar a presença estranhada dessa dominação ideológica. Efeitos de estranhamento que também permitam, aos atores, observar e vivenciar seus processos de produção de arte, no decorrer de cada momento da cena e de encontro com o público.

Por meu umbigo, vejo a tua cara. Por teu umbigo, veja a minha. A gente se olha e se encontra e se confere nesse jogo, a nossa brincadeira.

Assim, palco e plateia se relacionam, no estranhamento daquilo que o senso comum consideraria natural. E que acaba sendo natural, mas com outra natureza, a da liberdade. Sendo mais claro: a da liberdade de significação do real.

NA LIBERDADE DO SIGNO

” … Brecht pressentiu a variedade e a relatividade dos sistemas semánticos: o signo teatral não é uma coisa óbvia; aquilo que chamamos de natural num ator ou de verdade num desempenho, é apenas uma linguagem entre outras (uma linguagem realiza sua função, que é de comunicar, por suas validades, não por sua verdade), e essa linguagem é tributária de um certo quadro mental, isto é, de uma certa história, de modo que mudar os signos (e não somente o que eles dizem) é dar à natureza uma nova distribuição (empresa que define precisamente a arte) e fundar essa distribuição não sobre leis ‘naturais’, mas, muito pelo contrário, sobre a liberdade que os homens têm de fazer significar as coisas”. (Roland Barthes, “Literatura e Significação”)

Noutro artigo também de Crítica e Verdade, Barthes dirá acertadamente que a moral do grande teatro brechtiano “nada tem de catequista, ela é na maior parte do tempo estritamente interrogativa (…)

O papel moral de Brecht é o de inserir vivamente uma pergunta no meio de uma evidência”.

ESTRANHANDO O REAL VIVIDO

Produz-se uma múltipla relação de historicização do natural, na prática de um método de observação e vivência de realidades significativas. Os comportamentos usuais se exibem como estranhos e novos comportamentos se possibilitam como usuais, no coração do teatro: palco/plateia.

Discutindo problemas de conduta e comportamento, o teatro brechtiano de certo modo realiza o inverso dos meios de comunicação de massa, em nossa sociedade. Estes reiteram e reafirmam a “naturalidade” do cotidiano, reafirmam comportamentos, condutas e cosmogonias naturalizadas na existência alienada do público. O que BB faz, com a instância dialética de sua arte, é estranhar esse real vivido e suas visões de mundo.

Brecht, entrevista publicada no nº 11 de Théatre Populaire, 1955: “É preciso libertarmo-nos do desprezo que temos pela arte de copiar. Copiar não é assim tão fácil; não é uma atividade desprezíel, mas sim uma verdadeira arte. Quero dizer que é necessário ser-se artista para evitar que a cópia assuma esse caráter rígido e estereotipado (…) Afinal, o que oferecemos no teatro são cópias de comportamentos humanos. É esse osignificado dos agrupamentos de cenas e do modo como atuam (…) É preciso aprender em primeiro lugar a arte da cópia, assim como é preciso aprender a criar modelos. Para poderem ser imitados, os modelos devem ser imitáveis. Não confudamos o inimitável com o exemplar. E se existe uma imitação servil, existe também uma imitação magistral (…) Devemos conseguir uma descrição cada vez mais próxima da realidade, o que, do ponto de vista estético, se traduz numa descrição mais sutil e mais forte. Esse objetivo só pode ser atingido se utilizarmos as aquisições do passado, mas sem ficarmos por aí. As modificações trazidas aos modelos só deveriam intervir para tomar mais precisa, mais detalhada, esteticamente mais construtiva e mais atraente a representação da realidade, com vistas ao domínio dessa realidade; e estas modificações serão tanto mais expressivas quanto mais constituírem uma negação do que existe – isto para os que conhecem a dialética”.

Sendo claro: para BB, o realismo não significa o triunfo do verossímil. Porque não é só isso, mesmo.

POR UMA ATITUDE NOVA

Na raiz das preocupações de Bertolt Brecht: um novo comportamento da cena e do público. Da sala. Uma nova atitude dos que se relacionam, no acontecimento teatral. E isto se projeta à existência social cotidiana, no vivenciamento desse método. Fundamentalmente, não se apreendem com o grande teatro de Brecht as conclusões de uma determinada visão crítica da realidade vivida, mas sim toda uma determinada metodologia crítica desse real.

E uma intimidade sem privilégio, nas relações da arte com a política. As mechas, a trança e o trançado. Uma política para a arte.

Se o fascismo procura estetizar a política, BB procura politizar a arte com qualidade política própria.

O conceito de teatro adquirindo uma nova amplitude: “Teatro consiste em: apresentação de imagens vivas de acontecimentos passados, relatados ou inventados, entre seres humanos, com o objetivo de divertir”.

Nada mais. Nada menos. Até prova em contrário.

DE DIVERSÃO E PRAZER

BB: o dever da arte é “suscitar certas emoções e trazer certas experiências”.

BB: ” … nada necessita menos justificações que a diversão (… ) Exigir ou aceitar mais do teatro, significa que estamos menosprezando seu obejtivo”.

BB: ” … as diversões de diferentes períodos têm sido naturalmente condicionadas aos sistemas das pessoas vivendo em sociedade em sua época”.

BB: ” … se quisermos, pois, entregar-nos à grande paixão de produzir, como serão nossas representações da vida social do homem? Qual a atitude produtiva, face à natureza e à sociedade, que nós, crianças de uma era científica, tomaremos prazerosamente em nosso teatro? Trata-se de uma atitude crítica”.

BB: “O teatro só pode adotar esta atitude livre, se se entregar às correntes mais fortes da sua sociedade e se se associar a todos os que, necessariamente, estão mais impacientes para efetuar grandes modificações nesse domínio”.

NUM MOVIMENTO CONTRADITÓRIO

O objetivo do teatro é a diversão, o prazer, como arte do ator e do espectador, numa relação que se realiza nas suas atividades, transas em que vão se transando.

Relação que não se esgota na sua expressividade imediata, pois que se determina por todo um movimento contraditório, o seu impulso: a representação das ideologias de dominação imbricada à representação surpreendente de seus estranhamentos. Eis a tensão brechtiana.

Instrumentos da ordenação dos signos cênicos: o materialismo histórico eo materialismo dialético.

UM IMPULSO SEM CULPA

BB: “O prazer de aprender está ligado à posição de classe, o gozo artístico à atitude política, que é posta de lado ou aceita”.[68]

O que é um aparente paradoxo.

Do ponto de vista naturalista, pode-se dizer que o prazer de aprender liga-se à atitude política e o gozo artístico à posição de classe. É o que se apreende de modo “natural”. E não é o que observa Brecht, estranhando a “lógica natural das coisas”: o prazer de aprender ligando se à posição de classe, o gozo artístico ligando-se à atitude política. Sobretudo tem-se o impulso da diversão, no saber de uma arte.

Daí o impulso do saber, na diversão dessa arte. Sendo com esse gosto, esse sabor, que há de se construir a política dessa arte.

Não há lugar para a culpa, na arte de Brecht.

BRECHT REVIRA BRECHT

Nos anos de guerra e basicamente no pós-guerra, Brecht revoluciona seus próprios pontos de vista de 1939. Avança de sua proposta por um teatro épico, na busca por um teatro dialético. Introduz novos conceitos teóricos no arcabouço de seu teatro. Aprofunda sua concepção de arte. O seu método de apreensão e expressão do real pelo palco se desenvolve, trazendo novos fundamentos à negação do teatro aristotélico, na afirmação de toda uma procura por um teatro que reproduza, em seu movimento, o movimento contraditório da história e das histórias em suas estórias. Movimento que assim projete sua dialética no coração desse teatro, para que ela seja discutida, debatida, polemizada e apreen dida na vivência dessa discussão, debate, polêmica, pelo palco e pelo público supreendidos e confrontados com a desnaturalização de seus cotidianos.[69]

O real como um movimento contraditório emerge a partir da apreensão-vivência desse método. A história da vida dos homens como história da luta de classes em todos os lugares, nos cantos do palco, nas posturas das plateias, nas travessias das salas. O teatro, uma travessura. A escritura de suas estórias atravessando essa história, nela.

O movimento contraditório da história, no próprio movimento da sala. Da cena e do público. É o que aponta e procura ser o teatro de BB. A contradição, a antinomia – esse jogo de contrários que se identificam e se negam, assim se impulsionando por práticas – como móvel surpreendente do“drama” e das relações que este estabelece com o público.

O jogo cênico não é uma revelação de gestus ora heroicos, ora malditos, conjunto de gestus compartimentados ao sabor do destino manifesto, para a catarsis das “massas” em postura de torcida – eis o bandido, eis o mocinho. Nada disso.

Que interesses estão aí, nesse jogo?

Tem-se um espetáculo historicizado e estranhado, uma representação que assim se relaciona com o público, nos termos da existência historicizada, estranhada e problematizada desse público: uma existênda contraditória que há de se pôr a nu para a polemização de valores cotidianos.

NO INTERIOR DO OBRA

Galileu Galilei, Mãe Coragem, O Círculo de Giz Caucasiano. A direção das transformações no interior do teatro de Brecht. Basta uma comparação dessas três peças entre si e delas com as obras do chamado teatro didático da passagem dos anos 20/30 (estas, um tanto ainda abstratas, na exposição do método brechtiano). Brecht se negando para se afirmar.

Diante das obras por um teatro dialético, algumas perguntas se impõem e alcançam respostas mais claras para uma melhor definição do movimento do teatro de Brecht.

Que tipo de herói é Anna Fierling? Será ela um modelo exemplar de comportamento para a plateia? Que tipo de herói é o juiz Azdak, de O Círculo de Giz? Que tipo de herói é Galileu? São personagens expressando progressivamente e essencialmente as suas contradições ou dadas contradições históricas, e não comportamentos exemplares. E com que vilões eles se defrontam, nos termos da tradição naturalista do drama? O que se têm são situações contraditórias, movidas por interesses concretos que se expõem no desdobrar por saltos, em seus processos cênicos. E o que de resto vamos encontrar, nessas peças que fundamentam a busca por um teatro dialético, é todo um processo de historicização das ideolgias. Ideologias que se expressam nas práticas de Galileu, de Anna Fierling e de Azdak e de outras personagens de cada “drama”; ideologias que se exibem e se desmascaram na narração do comportamento estranhado dessas personagens, o comportamento mercantilista da sra. Fierling, a corrupção do juiz Azdak e o medo “natural” de Galileu ao ver os ferros de tortura, nos calabouços da Inquisição. Não são heróis, nem vilões para o público. E essa condição ou situação de personagens contraditórias emergentes por suas estórias inseridas em dados sistemas sociais, é a primeira referência surpreendente que se fornece com tais peças à apreensão e à vivência da plateia. É o que “passa” de imediato ao público, produzindo-se um novo método de observação de realidades.

Ao espectador, o que resta não é identificar-se com Anna Fierling, nem com Galileu, como o seria sob o modelo de dada representação naturalista. Resta ao espectador a possibilidade de uma nova atitude frente ao que antes tomava por situação óbvia e evidente. Resta ao espectador apreender, na sua atividade, que, estranhando a naturalidade das coisas em sua existência, há que conceber as coisas, as ações, situações e relações sociais como dados transformáveis. Eis o que se vivencia – ou ao menos se pode vivenciar – no espetáculo brechtiano: a não naturalidade do cotidiano, o que deve surpreender o público, levá-lo à polêmica e daí emocioná-lo. O prazer e o conhecimento desse processo, no coração do teatro. E o coração do teatro, no ponto de interseção do palco com a plateia.

E não só por meio da fala das personagens, pura e simplesmente, mas por todas as relações múltiplas e contraditórias que se hão de determinar pelos signos que compõem e relacionam as personagens e suas estórias, com a plateia.

Assim, BB altera o caráter de classe do teatro, afirmando que no âmbito da história do espetáculo e do drama, mudar seu caráter de classe é também sobrepor a arbitrariedade do signo à presença das ideologias.

O CHARUTO E A EMBRIAGUEZ

Um teatro brechtiano, hoje, não é aquele que monta peças de Brecht. É o que percebe-vê-pratica a direção do movimento de suas propostas para hoje, hoje.

Obs.: Brecht & a necessidade de se embriagar. Também. Brecht & o gozo teatral. Também. Brecht & o charuto de Brecht. Também. Brecht & a jaqueta de couro de Brecht, suja, suada e malcheirosa. Também. Brecht & a negação de Brecht como afirmação de Brecht. Também.

Obs.: Como ele costumava dizer: “…isto para os que conhecem a dialética”.

A CENA COMO UM TRABALHO

BB diz com todas as palavras que o que faz não é mais do que colocar no palco comportamentos humanos como sociais e suas contradições: eis o material e o procedimento de seu conceito de gestus. Como artista, organiza esses gestus no trabalho da representação; a crítica no seio desses comportamentos sociais (a partir de suas expressividades entendidas como conjunto denso de signos, sistema semántico complexo), contradições para que tais gestus se tornem estranhos ao observador, que na relação com o palco há de historicizá-los ao modo de sua vivência de interesses definidos. E esse teatro se completa na amplitude das partes queo compõem, num diálogo que exige práticas.

A cena passa a ser um conjunto expressivo que transcende às subjetivas possibilidades do artista espontâneo e “inspirado” que nessa sua “inspiração” é visto como um trabalhador “especial” cuja produção se dá como que desorganizada e anárquica. O palco se faz lugar de toda uma elaboração precisa de signos sob determinada política explícita para esses signos, mostrando à plateia que cada momento da representação é fruto desse trabalho. É claro esse sentido, no teatro de Brecht: “Que o espectador veja bem que vocês (atores) não se entregam a nenhuma espécie de magia, mas que trabalham, pura e simplesmente”. Trabalho baseado no comportamento social, a partir de todo um conjunto de saberes comprometidos com todo um instrumental variado e próprio das conquistas mais contemporáneas e atuais das ciências. É quando passa a ter uma dimensão destacada no teatro a Semiologia,[70] seja como contribuição à prática de estabelecimento de modelos, seja como teoria e/ou crítica dessa prática: semiologia como ciência das ideologias: instrumental básico, em nossos dias, para uma melhor elaboração do texto dramático, da cena e de suas relações com os espectadores, caso se pretenda uma determinação de rupturas com as ideologias de dominação, mesmo que rupturas determinadas pela modéstia dos que se contentam em exibir essas ideologias de dominação de modo estranhado, talvez a missão mais conseqüente de qualquer artista de vanguarda, em nosso tempo: artista empenhado em perverter radicalmente o sentido cultural. Isto, quando sabemos que as ideologias de dominação estão sempre presentes e prontas a se mostrar como “velhas e íntimas conhecidas” nossas, dados “naturais” de nossa existência, só nos restando então estranhá-las, para melhor recusarmos seus propósitos últimos e históricos.

O QUE É PROBLEMATIZAR

O móvel do drama, em BB, é a contradição. Mobilidade que se projeta no ponto de interseção do palco com a plateia, assim se produzindo todo um diálogo de problematizações. E quanto Brecht reivindica de modo desvelado a dialética para o seio do diálogo do espetãculo com seu público, como método que nos sirva à mobilidade da discussão e da polemização do real vivido como um real surpreendente (e não natural), nos dá a dimensão materialista da prática de sua arte.

O que seria discussão, polemização, problematização, no contexto da proposta brechtiana, sendo esta uma proposta de nova relação entre a arte do ator e a arte do espectador? O que seria essa oportunidade de se discutir, de se polemizar ou de se problematizar dialeticamente o real vivido, dado na representação como uma mobilidade contraditória e transformável?

Se Brecht, com o seu teatro, indica o sentido do papel do artista como fruto de um trabalho desvelado, requer também da arte do espectador um esforço, uma atividade. E então, o que seria discutir, nesse contexto que se reivindica para um novo teatro em movimento? Seria, para o artista, uma mera projeção de suas ideias, visões de mundo ou código peculiar, até o público? Ou seria uma mera condução dos sentimentos e das emoções desse público às ideias, concepções, cosmogonias e código peculiar dos artistas, por meio de efeitos ilusionistas? É claro que o palco tem suas técnicas; seus dados, mas como esse diálogo háde se realizar, para que se tenha da plateia uma atividade, um esforço, um desempenho, uma nova atitude?

Reivindica-se a teatralidade como um diálogo, e diálogo polêmico, problematizador do real vivido e naturalizado. Reivindica-se que esse diálogo tenha seu lugar especifico não no palco, nem na plateia, mas na sala, ou seja, no lugar em que o palco e plateia se encontram plenos, lugar de encontro e relação entre o palco e a plateia, onde se debatem as suas contradições. E assim sendo, a discussão que se pretende com esse teatro não há de se satisfazer, nem como uma mera projeção da visão de mundo do artista até o público, nem como uma mera condução ilusio nista do público àvisão de mundo do espetáculo. Isto seria mascarar-se a polemização do real, pelo palco, se tomado esse real como contraditório, como um real surpreendente. Pois isso seria, em quaisquer instáncias, transplantar o coração do teatro para opalco.

Além disso: sob esses dois modos de se empreender uma discussão entre a cena e o público, o artista, sem dúvida, acaba por ter de se remeter à necessidade de uma naturalização de seu poder como tal, para firmar o objeto de sua representação. Tende à naturalização do poder do palco sobre a plateia, relação de poder que deve se tornar estranha, no decorrer do acontecimento teatral, na direção de sua socialização, se quisermos um novo teatro como um teatro dialético.

Aliás, todo o estrangulamento das experimentações teatrais vanguardistas se dá, na imensa maioria das vezes, por estar congelada e estagnada no palco qualquer discussão que se possa mobilizar com a cerimônia cênica. Da mesma maneira que todo o teatro que se pretende “espelho da vida” (ainda que com um discurso aparentemente crítico das condições reais da existência social, mas tornando naturalista a sua discurseira, o seu catequismo) irá fatalmente atolar-se no idealismo de suas pretensões, ao jogar na cabeça do público – como se esta fosse um vaso – as questões que nos diz pretender discutir.

Assim não se torna emergente uma discussão, nos moldes brechtianos, no seio da relação palco-plateia. Ensina-se o público a “seguir o chefe”, com concepções de uma prática teatral, na verdade, que ignoram seus públicos como participes ativos do teatro.

Mas a questão se torna mais complexa quando se sabe que, do ponto de vista que se defende com Brecht, não será esse novo teatro apenas uma terceira solução, nos termos de um crença calcada na proverbial idiotice que diz estar “no meio” a virtude. Pois esse novo teatro não será uma solução mediadora das concepções cênicas citadas.

UM PROCESSO APAIXONADO

Uma nova atitude do palco, uma nova atitude da plateia. Um outro teatro. Um outro artista em formação. Um outro público em formação.

Em BB, o que se indica como sendo a discussão dialética que se reivindica para o teatro é todo um processo apaixonado de comunicação de vivências e atitudes trabalhadas com signos que nos permitam, entre outras coisas, a apreensão de suas desalienações. E processo: daí ser toda uma história desse novo teatro, o que se reivindica. Processo de contato-vivência: o palco e a plateia; o artista e o público. Processo que sendo fruto de uma relação que se determina a seu modo, não pode abrir mão de sua socialização progressiva, através da paixão, do prazer da descoberta e do saber, do surpreendente, no seu desenvolvimento. BB: “Por discussão eu não entendo aqui o exame sem paixão de um assunto qualquer, um processo resultante puramente da razão”.

Daí só ser possível esse processo como uma comunicação que se interage de modo crescente entre o palco e a plateia, na codificação e na decodificação da representação de temas de interesses concretamente comuns. Uma linguagem[71] comum. Uma situação abrangente de problemas comuns. Conhecimentos e vivências se permutando nesse processo. E se expressando nos signos da representação devidamente historicizados; historicização dessas vivências e conhecimentos pelos signos da representação, no decorrer de todas as fases de produção do espetáculo, e conforme sua densidade semântica.

O palco apreendendo tais vivências da plateia e a plateia apreendendo o método desvelado com que o palco há de tratar essas vivências, na representação. Nessa combinação de esforços e desempenhos do palco e da plateia é que se há de construir uma política de vanguarda dos signos no teatro. É que se há de construir um teatro de vanguarda.

A partir de sua prática.

POSSIBILIDADE QUE SE EXPERIMENTA

A significação do espetáculo compondo-se, na descoberta de suas contradições, com a significação das atividades do público, para uma produção em movimento de uma nova realidade de qualidades diversas, no teatro: a representação estranhada como tal e como representação de comportamentos sociais emergentes, nessa comunicação de interesses em discussão, na sala.

Novas realidades, como novas vivências ou novas práticas. E essas práticas, como práticas a mais no cotidiano de todos, artistas e espectadores, só que práticas desnaturalizadas e historicizadas, na existência então desalienada e objeto de fruição: uma possibilidade que se experimenta. Marcada pelo prazer, na aprendizagem; referenciada no conhecimento, pelo prazer.

Nesse sentido, talvez se consiga organizar uma política de vanguarda por um outro teatro, uma outra dramaturgia e uma nova atitude no processo de apresentação do espetáculo, significando as realidades numa perspectiva de transformação e movimento: teatro de vanguarda que mude o caráter de classe do teatro estabelecido, a partir de uma transformação radical do modo de significação do espetáculo e da vivência da sala. E da afirmação do público como uma das fontes da relação que se estabelece no decorrer da encenação. A socialização do poder do palco. Uma nova dimensão para a cena.

A DIREÇÃO DAS PROPOSTAS

A direção do desenvolvimento da revolução brechtiana no teatro: suas propostas como propostas de vanguarda, nos tempos de dada funcionalidade: a exigência do público como um público ativo no processo teatral.

E a reivindicação de certa metateatralidade no desenvolver da cena. A afirmação desvelada da escritura cênica (conjunto denso de signos) e a negação da arte como possível nova teologia, negação da “divindade” do artista, na relação que se propõe com o seu interpretante, pois este assim há de se fazer, também, emissor ativo, em dada polemização de situações.

ESSE PALCO DE VANGUARDA

Um palco de vanguarda, trocando em miúdos: não é e nem pode ser um representante ou porta-voz dos pontos de vista da plateia, se fazendo assim uma espécie de seu “guia infalível”, na expressão da cena. Muito menos é um lugar de mera reprodução das vivências cotidianas do espectador. Ele deve ser cada vez mais, no seu processo, um instrumento desvelado de sua existência e da existência do público, da existência dos que estão na sala. Expressão crítica (estranhada) de suas vivências e comportamentos organizada pelos artistas (nos termos da densidade significativa e semántica do teatro) apoiados em conquistas políticas e teóricas para a cena que lhes permitam apreender a melhor utilização dos signos. Sendo assim, a organização crítica do discurso desse palco de vanguarda tem como uma de suas fontes básicas o modo de ser, a vivência, a situação e as necessidades históricas de seu público. Não só isso, mas basicamente isso.

UM PÚBLICO ATIVO

Em processo, um público determinado e ativo, em relação com um palco que se observa na vigiláncia crítica de seus signos expostos como tais, sem fetiches, descamando, desnaturalizando ou historicizando quaisquer de suas falas mitológicas.

A descoberta do palco como um lugar de exibição de questões que se problematizam pelo estranhamento das ideologias de dominação, a partir do artista exposto como um trabalhador nesse palco, codificando e decodificando a apresentação do espetáculo, numa interação estreita e comprometida com seu público.

A atividade teatral, na sua especificidade, tomando-se acesso tanto à diversão, como à sua política, no caso, na medida em que se estranham e se põem em discussão problemas de conduta e comportamento. É só isso?

A revolução de Bertolt Brecht, na continuidade de seu pensamento e obra.

SEM FALSA POSTURA

Falsa postura: a pretensão de um teatro transformando o mundo e a história do mundo. Artistas e espectadores, na sala, transformando o mundo.

Desses homens já se exige muito, quando se exige a transformação do próprio teatro, da instituição teatral, de suas atitudes na arte do ator e na arte do espectador; quando se exige a perversão do sentido cultural estabelecido: tarefa maior que lhes cabe, nos momentos de expressão do espetáculo, por todo o seu processo de produção. Pois que à história a que os homens de teatro enquanto tal devem contribuir fundamentalmente para dar maior mobilidade e transformar é a história do próprio teatro, que devemos compreender em que estãgio se encontra, para se levar adiante, num virar de ponta-cabeça.

Para que isso se viabilize, uma premissa básica: o teatro, quando muito – como expressão crítica da arte do ator – pela sua capacidade de ensinar, não é mais do que uma significação desvelada de gestus codificados por uma linguagem peculiar, exibição de fatos desse mundo sob dada historicização, exibição, no palco, do cotidiano, como algo, estranho, transformável e em movimento. Daí, uma exibição cênica de novas formas ou modos de ser, nas relações da existência que se expõem à discussão. E em instância de referências dialéticas para a capacidade de pensar. E, em instância de vivência, para o prazer.

Saberes despertados e vivenciados de modo surpreendente e apaixonado, na arte de um espectador mobilizado para uma nova atitude frente ao espetáculo. A prática desse teatro, situada no âmbito de sua capacidade de divertir, de sua potencialidade de prazer, o que nos fornece com a fruição de novas formas ou modos de ser nas relações da existência. Talvez o máximo que o teatro – o seu órgão propulsor de vida, o seu coração situado na interseção do palco cont a plateia – possa dar, hoje, de prazer e saber, diversão e instrução, de um ponto de vista critico, no processo de desenvolvimento de sua história e na perspectiva de um entendimento contraditório das relações materiais entre os homens. Um teatro voltado a uma ruptura com a instituição teatral possivelmente não irá dar mais que isso.

Reivindicar que o teatro vá além disso será não saber reconhecer a sua grandeza. Será fazer de sua grandeza própria, uma grandeza substitutiva de outras práticas distintas da prática teatral. Da prática possível para a sala. Do espetáculo como uma festa.

O MITO DA CONSCIENTIZAÇÃO

Mero engodo idealista a compreensão de que uma das funções fundamentais do teatro – quando voltado a “uma crítica da realidade social” – seja a conscientização política do público. Mais um mito comprometido com a consolidação do poder do palco sobre a plateia, como poder que não aspira à sua socialização. Mito com o que se fornece renovado material a uma manutenção mais contemporánea de toda uma outra teologia, no caso, pela arte. Essa catequese pela arte.

Há, no teatro, a perspectiva de uma conscientização do artista e do espectador… mas com relação às condições de existência, à história do próprio teatro que se faz. E da vida como uma significação: no ámbito de suas referências.

Uma conscientização política mais ampla, transas da guerra de poder, um dotar politicamente o espectador nesse sentido, uma conscientização política que transcenda à própria política do signo teatral (solo de participação, num teatro de feição crítica ao teatro estabelecido) não poderá jamais ser uma conquista da cena ou de uma plateia, na materialidade de seus papéis.

Essa conscientização política da luta pelo poder na sociedade – não se pratica essa política. no teatro – só pode ser fruto de uma dada prática política, prática da luta política, para isso, assim, especificamente organizada.

A prática que se tem no coração do teatro é no máximo uma prática teatral e sua política, uma política da teatralidade.

Além ou aquém disso, não há teatro materialista. Quando muito, há um teatro idealista, tão ao gosto do mercado.

OU EM OUTRAS PALAVRAS

A atividade teatral dá-se como um acesso à diversão, fornecendo acessos às questões da luta política quando muito pelo saber, numa instância de consequências possíveis, o que no sentido de sua materialidade, precisamente, não chega a politizar “politicamente” quem quer que seja para além de sua significação. Eu sei, nem por isso combato ou entro na guerra de Espanha e Holanda.

A politização do artista e do público – vale frisar – o teatro só o fará, materialmente, quando muito com relação a si mesmo, com relação ao próprio teatro e à existência teatral, à prática teatral – o fazer e o ir ao teatro – à teatralidade, isto caso se expresse como um teatro dialético, um teatro determinando rupturas com sua condição de reprodutor das ideologias de dominação. Na recusa de quaisquer concepções de um teatro idealista.

O QUE PODE O PALCO

Com relação às questões políticas mais amplas da existência do indivíduo e da sociedade, às questões políticas transcendentes a uma política do signo teatral, às questões de uma práxis da luta de classes, à luta política em específico, um espetáculo de teatro dialético pode, quando muito, contribuir com a significação cênica (na medida das possibilidades críticas de sua densidade semántica) das contradições sociais e suas viabilidades de transformação; contribuir com a significação cênica contraditória das necessidades de novas práticas sociais e das relações que irão exigir e produzir essas novas práticas. Experimentando isto como material de diversão e discussão, num palco em diálogo com a plateia, com instrumentos próprios e peculiares da teatralidade. O que não é dar uma prática de luta política ao espectador ou ao ator.

FALANDO COM O PÚBLICO

Um teatro em que o palco fale com o público. A possibilidade desse palco residindo na determinação social desse público, determinação da situação desse público: interesses e vivências comuns se definindo. No seu processo de desenvolvimento, se determinando sua linguagem mais própria e suas posturas mais avançadas, conforme cada um de seus instantes de expressividade. Uma determinação objetiva de linguagens: para uma historicização do palco conforme a historicização do público. A relação palco-plateia como um diálogo, uma discussão, uma problematização comum. De acordo com as condições de existência dos que se relacionam, na reprodução concreta de todo um método contraditório de apreensão do real, também método de mobilidade desse teatro.

Nesta direção – na direção de um palco que assim fale com o público – é que talvez os artistas devam hoje apontar as suas preocupações, no traçado de toda uma politica da teatralidade: para um teatro de vanguarda que se promova em movimento como uma ruptura com o “grosso da coluna”, com o teatro institucionalizado e aparelho ideológico do Estado burguês.

COM NOVAS ATITUDES

Um outro teatro fundado numa outra relação do palco com a plateia. Uma nova atitude do palco e da plateia, que no seu processo supere a já folclórica solidão de um teatro de “vanguarda” sem público. As posturas de um teatro de “vanguarda” presunçoso que não sabe em que é vanguarda, pois não sabe sequer por queévanguarda. E nem tem a quem vanguardear, no seu solilóquio acalentado pela bocarra do sistema dominante de produção de bens simbólicos. O desgaste do termo. Nova atitude do palco e da plateia, como negação de todo o teatro missionário, catequista e “redentor dos sofridos, oprimidos e explorados”, o teatro naturalista de denúncia social que faz do palco, no decorrer da representação, oratório, púlpito de demagogia, relegando ao público o dever passivo de todo um consumo de moralidades e tensões, toda uma discurseira de inculpação. Relegando ao público, às vezes, não mais do que a catarsis de sua própria miséria, na reprodução de uma outra opressão, a de um palco totalitário, onisciente, onipresente eonipotente, naturalizado nessa sua condição de existência mitificadora do real, a começar pela mitificação da própria realidade da representação: massacrando o prazer da plateia. Isto, quando não lega a seu público nada mais do que a reprodução naturalizada de seus complexos de culpa diante do que se exibe como condição de vida dos sofridos, oprimidos e explorados: transas e tranças do mercado, a miséria empacotada, empaleada.

Velhas atitudes de velhos teatros de heróis. E – parafraseando Bertolt Brecht – infeliz do teatro que precisa de heróis.[72]

QUERO MEU GOZO

Mas não é só isso. Além disso: uma outra história, com um outro tempo: a história das estórias da arte do povo, bumba-meu-boi, banda de pifano, cordel: um mundo estranho.

E não só isso.

E o que é?: A questão não é o nacional-popular. O nacional popular é a fala da questão. Seu mito. Sua retórica. Discurso da arrogáncia ou fábrica de fumaça. Essa compulsória assombração: em tudo, culpa.

Notas

  1. Arns, D. Paulo Evaristo, “A eternidade começa hoje”, in Extra, nº 1, setembro de 1975.
  2. Anchieta S. P., Joseph de, Teatro de Anchieta, Edições Loyola, são aulo, 1977.
  3. Duvignaud, Jean, Espetáculo y sociedad. Editorial Tempo Nuevo S/ A., Ca racas, 1970.
  4. Anchieta, S. P., Joseph, obra citada.
  5. Idem.
  6. Duvignaud, Jean, obra citada.
  7. Hamelin, Jeanne, Le Théâtre chrétien. Citação de Jacques Copeau, Encyclopédie du Catholique du XXème siècle, Librairie Arthême, Paris, 1957.
  8. Paixão, Múcio da, O Theatro no Brasil. Data do autor: 1917. Brasília Editora., Rio de Janeiro, sem data.
  9. Oficina, publicação especial de novembro de 1968. Rua Jaceguay, 520, Bexiga, São Paulo.
  10. Anchieta S. P., Joseph, obra citada.
  11. Idem.
  12. Arns, D. Paulo Evaristo, obra citada.
  13. Ribeiro, Maria Rosa Moreira, “O teatro como fator educativo”. Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Teatro, Rio de Janeiro, 9 a 13 de julho de 1951.
  14. Idem.
  15. Bittencourt, Feijó, “Teatro do Estudante”. Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Teatro, Rio de Janeiro, 9 a 13 de julho de1951.
  16. Cardoso, Roberval Pompílio Nogueira, “O Ministério da Agricultura e o teatro”. Anais do Segundo Congresso Brasileiro de Teatro, São Paulo, 1953.
  17. Ams, D. Paulo Evaristo, obra citada.
  18. Duvignaud, Jean, obra citada.
  19. Ams, D. Paulo Evaristo, obra citada.
  20. Lima, Jorge de, Invenções de Orfeu.
  21. João Caetano, Lições Dramáticas, Coleção “Teatro”, Ministêrio da Educação e Cultura(Serviço de Docúmentação), 1956.
  22. Idem.
  23. Idem.
  24. Ferreira, Procópio, O Ator Vasques, Coleção Memória, Vol. 1, Ministério da Educação e Cultura, Serviço Nacional deTeatro. Rio de Janeiro, 1979.
  25. Orfeu na Roça, peça de autoria do ator Correa Vasques, publicada no livro O Ator Vasques, obra citada.
  26. Ferreira, Procópio, obra citada.
  27. Depoimento do ator Milton Gonçalves para a revista Dyonisos, editada pelo Serviço Nacional de Teatro, n? 24, outubro de 1978.
  28. Vianna Filho, Oduvaldo, Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial 2, Ed. Civilização Brasileira S/ A., julho de 1968.
  29. Ferreira, Procópio, O ator Vasques, obra citada.
  30. MACÁRIO em “caixa alta” é sempre uma referência à obra de Álvares de Azevedo.
  31. Amor e Medo”, Mário de Andrade, in Aspectos da Literatura Brasileira, Livraria Martins Editora S.A./INL-MEC, São Paulo, 1972.
  32. Neste sentido, todo o diálogo de Macário com Penseroso tem importância fundamental. As duas personagens são partes de um todo que, enquanto totalidade, não encontra viabilização de permanência. Ao se tocarem, se destroem nos seus propósitos a binomia que representam faz-se antinomia. A ambiguidade expressa na obra se transforma deste instante em diante: Penseroso morre; Macário, logo após, há de interromper sua viagem, nos limites insatisfatórios de um voyeurismo estagnado. Disto vamos falar melhor no decorrer deste texto.
  33. Diríamos que, no caso, quanto às suas particularidades, as partes são binômias que passam a ser antinomias antagônicas, se as· entendermos como totalidades expressivas. Ê mais uma referência ambigua que compõe a mobilidade de MACÁRIO.
  34. “Carta sobre a atualidade do teatro entre nós” Álvares de Azevedo, in Textos que interessam à hist6ria do Romantismo, José Aderaldo Castello, Conselho Estadual de Cultura, São Paulo, 1971.
  35. Sem dúvida, na peça, Satã é mais do que uma negação de Deus, sendo mesmo um ensaio de crítico da sociedade. Embora suas questões quando se dão neste sentido fiquem um tanto sem respostas, são questões mobilizadoras do que atormenta. Por ex.:Satã: … Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insipida como uma vila, e pobre como uma aldeia. Se não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen, ou alumiar-te a rolo, não entres lá. E a monotonia do tédio. Até as calçadas!Macário: Que têm?Satã: São intransitáveis. Parecem encastoadas as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado. Admiras-te? Por que abres essa boca espantada? Antigamente o diabo corria atrás dos homens, hoje são eles que rezam pelo diabo. Acredita que faço-te um favor muito grande em preferir-te à moça de um frade que me trocaria pelo seu menino Jesus, e a um cento de padres que dariam a alma, que jã não têm, por uma candidatura. (MACÁRIO, p. 120)
  36. Formação da Literatura Brasileira, Antonio Cândido, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1969, 3 edição.
  37. Vale observar, contudo, que essa “retórica decorada” presente em MACÁRIO traz em si também uma duplicidade de significação. Se denota indicações românticas, no sentido em que nos fala Antônio Cândido, por outro lado, conota o vazio, o discurso oco que a peça tem por objetivo parodiar. O sentido dos diálogos numa paródia-fantástica não pode ter uma apreensão meramente verista, pois esses diálogos se desdobram em significações estranhas e peculiares. É o que se pode falar, por exemplo, do diálogo de Penseroso com sua amada; da cena com o Doutor Lárius. É o que também vamos observar nas falas de Macário. Com a análise dessa “retórica decorada” voltada à observação de sua duplicidade, tiramos das fraquezas da peça, seus elementos de reforço e atualidade, ainda que ambíguos. Diríamos que compondo dois espaços antinômicos de significação – um explícito, outro implícito – MACÁRIO faz, do significado do que explicita, significante do que nos diz implicitamente.
  38. A metalinguagem – e em especial a metaliteratura – se exibe por todos os cantos da peça. O que nos confirma a observação de MACÁRIO como uma exposição de dada crise de consciência da chamada dramaturgia nacional. Uma crise, sob forte carga emocional, é claro.
  39. ln Puff, uma espécie de prefácio da peça.
  40. De fato, MACÁRIO mobiliza emoções naquilo que toca criticamente certas estruturas de pensamento tradicionais. Há uma certa sensibilização que transcende à racionalidade, o que deve ser uma preocupação de qualquer encenador da obra.
  41. Não é novidade a observação que diz terem sido quase todos os escritores do século passado, no Brasil, ou políticos, ou burocratas, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Isto é uma indicação de certos compromissos com o Estado, com ideologias de dominação. O que contudo não chega a alcançar com profundidade os moços do ultraromantismo, menos acomodados em suas revoltas. Vale porém, ressalvar que, se descomprometidos diretamente com o Estado – nem burocratas nem políticos pois afinal quase todos morreram cedo, ainda sustentados pelas famílias – esses moços jamais transcenderam a retórica, nos seus compromissos com as classes oprimidas e exploradas.
  42. História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, Editora Cultrix, São Paulo, 1976.
  43. Há em MACÁRIO certa ânsia transromântica. Passagens da peça nos indicam isso, embora o romantismo seja o solo básico de seu modo de expressividade.
  44. O prof. Alfredo Bosi diz que o nexo entre o EU e a História, para o romantismo, “mantido no pensamento abstrato de um Fichte, logo se desata na práxis de uma sociedade descontinua por excelência”. MACÁRIO, por um lado, é isto. Indo, contudo, além, ao exibir, na medida de suas possibilidades, para o leitor, a paródia dessa cosmogonia.
  45. o Teatro Brasileiro de Comédia foi inaugurado em São Paulo, em 1948.
  46. Morse, Richard M., Formação Histórica de São Paulo.
  47. Entrevista do ator Paulo Autran concedida ao Centro de Informação e Documentação da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, dia 27/3/76.
  48. Título de livro do crítico Décio de Almeida Prado, que acompanhou as produções do TBC da primeira à última apresentação.
  49. Teatro de Brinquedo, Os Comediantes, Teatro do Estudante, Grupo de Teatro Experimental.
  50. Silveira, Miroel, A Outra Crítica, Edições Símbolo, São Paulo, 1976.
  51. Números 23, 24 e 25 da Revista Dyonisos, publicada pelo Serviço Nacional de Teatro.
  52. ln depoimento do ator Juca de Oliveira num encontro promovido pela revista Visão e publicado no dia 9 de junho de 1975.
  53. Depoimento do dramaturgo Paulo Pontes, idem.
  54. Texto.programa do espetâculo Gradas Señor, distribuído ao público em 1972.
  55. Texto-programa do espetáculo Gracias Señor, obra citada.
  56. Correa, José Celso Martinez, “O teatro vai devorar o apocalipse”, Folhetim, nº 204. São Paulo, 14 de dezembro de 1980.
  57. Observação de Peter Brook, in O Teatro e Seu Espaço, Editora Vozes Ltda., Petrópolis, Rio de Janeiro, 1970.
  58. Entre aspas, expressões de Bernard Dort, in “Vanguarda em Suspenso”, artigo publicado no livro Teatro e Vanguarda, Editorial Presença, Lisboa, 1970.
  59. Teatro Naturalista: entendo assim todo e qualquer teatro tomado natural e desistoricizado: a representação, na sua relação com a plateia, velada, coisificada, alienando-se de sua realidade de fruto do trabalho. O teatro naturalista tradicional tipifica essa naturalização da representação ao extremo, mas não tem a primazia da condição naturalizada com o que o teatro se mostra para o público, ao se coisificar, tornando-se mero reprodutor das ideologias de dominação.
  60. Em tempo: Vsevolod Meyerhold, 1936, texto lido diante das pressões do stalinismo e da imprecação contra-revolucionária zdanovista: “A opinião pública dos meios teatrais espera que, da crítica dos outros, eu chegue a uma autocrítica. Ora, todo o meu caminho criador e todas as minhas realizações são uma autocrítica ininterrupta. Não abordo nunca uma nova obra sem que antes faça um reexame da anterior. A biografia de um artista autêntico é a história de seu eterno descontentamento consigo mesmo”.Uma biografia de Meyerhold, hoje, para dela tirarmos lições, não deve deixar de lado as, sem dúvida, possíveis estreitezas de toda a organização do movimento artístico revolucionário em que se inseriu seu trabalho de vanguarda.
  61. O texto da conferência que se usa neste trabalho estã em Teatro Dialético, coletánea de ensaios e escritos de Brecht publicada pela Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. Esta conferência se deu a 4 de maio de 1939, doze dias após a chegada de BB à Suécia. Brecht transmite suas descoberta a grupos de teatro independente daquele pais que o acolhia como exilado. Em seu Diário de Trabalho, anotou: “Conferência num teatro de estudantes. O TEATRO EXPERIMENTAL. Pode ser que seja um trabalho bastante útil. Sem dúvida, não se formulam problemas tão diretos, nem se propõem experiências com uma orientação muito precisa, como talvez se consiga supor do texto. Introduz o elemento épico como “algo já cozido” (…) A conferência (…) dá lugar a que os experimentos correspondam à reflexão, assinalem objetivos, etc.; pode ser uma boa introdução a um ensaio SOBRE UMA NOVA TÉCNICA DE ARTE DRAMÁTICA”. (BB, Diário de Trabajo, I, 1938/1941, Ediciones Nueva Vision, Buenos Aires, Argentina, 1977.)
  62. Nos anos 50, Roman Ingarden, no artigo “As Funções da Linguagem Teatral” (publicado no Brasil em O Signo Teatral, Ed. Globo, Porto Alegre, 1977, e em Semiologia do Teatro, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1978) há de precisar com propriedade esta situação do palco e da plateia que BB recusa: ” … um tal tipo de composição de universo representado e da atuação dos atores não deixa de ser concebido em função do espectador, mas de um espectador considerado ausente”.
  63. Seu movimento, seu circuito, com modos, formas e direção radicalmente diversas das do teatro estabelecido. Sua presença deve surpreender mais, do que se estabelecer. Seu espetáculo, ser mais uma festa, do que um “espetáculo”.
  64. ln “O Signo do Teatro”, artigo de Tadeuz Kowzan, publicado no Brasil, nas coletáneas de ensaios O Signo Teatral (Ed. Globo, Porto Alegre, 1977) e Semiologia do Teatro (Ed. Perspectiva, São Paulo, 1978). Kowzan, em seu artigo, tenta demarcar “os principais sistemas de signos que uma representação teatral faz uso”: a palavra, o tom, a mímica facial, o gesto, o movimento cênico do ator, a maquilagem, o penteado, o vestuário, o acessório, o cenário, a iluminação, a música, o ruído. Registra, entre outras coisas, a importáncia histórica da comunicação de Jan Mukarovsky, em 1934, no Congresso Internacional de Filosofia de Praga, que diz: “( … ) enquanto o caráter semiológico da arte não for suficientemente reconhecido, o estudo da estrutura da obra de arte continuará necessariamente incompleto. Sem uma orientação semiológica, o teórico da arte estará sempre inclinado a ver a obra de arte como construção puramente formal, ou então como reflexo direto seja das aptidões psíquicas ou até fisiológicas do autor, seja da realidade diversa expressada pela obra, seja da situação ideológica, econômica, social ou cultural do meio (…) Só o ponto de vista semiológico permitirá aos teóricos reconhecer a existência autônoma e o dinamismo essencial da estrutura artística, a entender assim a evolução como um movimento imanente, ainda que em relação dialética constante com a evolução dos demais terrenos da cultura”.
  65. “As ideologias não são representações objetivas, científicas do mundo, mas sim representações cheias de elementos imaginários, que, em vez de descobrir a realidade, expressam desejos, esperanças e nostalgias. As ideologias podem conter elementos do saber, mas nelas predominam os elementos que têm uma função de adaptação à realidade. Os homens vivem suas relações com o mundo dentro da ideologia. E ela quem transforma suas consciências e atividades e condutas para adequá-las às suas tarefas e condições de existência. Por exemplo: a ideologia religiosa que fala do sentido do sofrimento e da morte procura dar aos explorados representações que lhes permitam suportar melhor suas condições de existência” (Marta Harnecker, Los Conceptos Elementares dei Materialismo Histórico, Siglo XXI, Argentina). Sem dúvida, qualquer compreensão crítica da questão teatral há de nos remeter ao conceito de ideologia, desdobrado como representações, práticas ou comportamentos que abrem em seu nível específico uma frente na luta de classes. Considera-se, então, que numa soçiedade de classes, a ideologia que domina, que é veiculada pelas instituições sociais, pelos aparatos ideológicos do Estado, é a ideologia das classes dominantes. Ela se expressa, em cada momento histórico, por um complexo de sistemas: sistema do saber, sistema de informações, etc. Porém, se reconhece também que esse domínio é contraditório, tenso, não equilibrado, nem estável, pois que para manter a condição de dominação, necessário se faz toda uma luta de esmagamento das ideologias das classes dominadas, luta essa que se insere inclusive no interior desses sistemas. A luta ideológica que se fala neste texto aponta, é claro, no sentido de um combate sem tréguas que se deve dar às ideologias de dominação.
  66. Situação: E o conjunto de fatos “conhecidos” pelo emissor e receptor, no momento do ato concreto da comunicação, independentemente desse ato. Toda a tentativa de suprimir dada ambiguidade pela linguagem é dada por uma situação, pois a situação impõe que a comunicação se faça de um determinado modo. Assim, a situação não será um conceito particular. É em si todo o ato de emissão e recepção do discurso. A situação define o fenômeno. E embora presumida numa estrutura, a situação traz sempre uma novidade.
  67. Althusser: ” … a obra de arte não pode deixar de exercer um efeito diretamente ideológico, já que ela mantém com a ideologia relações muito mais estreitas do que qualquer outro objeto, e não é possível pensar a obra de arte, na sua existência especificamente estética, sem ter em conta esta relação privilegiada com a ideologia, quer dizer, sem tomar em conta o seu efeito ideológico direto e inevitável”. Sem perder de vista a consideração de Althusser, pode-se dizer, com mais propriedade, com relação às artes do espetáculo, que a ideologia também (mas não só a ideologia) reside no coração do teatro.
  68. Bertolt Brecht, “O Teatro Experimental”, in Teatro Dialético, Ed. Civi lização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967.
  69. Quando determinado elenco se vê desesperado e desesperançoso, na ánsia por insistir junto à plateia com um debate, após a “cena final”, o que se tem é uma prova inconteste de que o espetáculo não foi muito capaz de expressar, numa dimensão polêmica, questões da existência do espectador. De certo modo, isto nos deixa claro, dentre outras coisas, que fracassaram as pretensões criticas do palco e a plateia – conscientemente ou não – respondeu ao fracasso com certa disposição de ir para casa. O artista, mais do que qualquer outra coisa, deve se perguntar em que errou. Se o palco realmente surpreende e problematiza seu público desde a sua primeira cena, animando-o e divertindo-o, este impasse nao ocorre. E claro, caso se pretenda remeter o espectador a uma atitude de problematização diante de seu real vivido.
  70. No Pequeno Organon, Brecht observa que sob um entendimento crítico e revolucionário, “ciência e arte se encontram neste ponto: ambas existem para tornar mais simples a vida dos homens, a primeira preocupada com sua subsistência, a segunda com sua diversão”. Podemos dizer que tanto a semiologia, como o materialismo histórico “alimentam” o texto de Brecht. Ainda com base nesta preocupação científica, não há por que recusarmos a psicanálise como mais uma ciência capaz de prestar seus serviços ao espetáculo. Trata-se de todo um instrumental teórico que tão pouco se usa na criação teatral e que, contudo, tem muitos serviços a lhe prestar.
  71. Linguagens: formas pelas quais se interpretam experiências.
  72. “Andrea (em voz alta): Infeliz a terra que não tem heróisGalileu: Não. Infeliz a terra que precisa de heróis”. (88, in Galileu Galilei).

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