2004

O olhar mutilado

por Eugênio Bucci

Resumo

Transmitido ao vivo, reprisado e reeditado inúmeras vezes, o atentado às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 foi mais do que um ato de guerra contra os EUA. Foi uma mutilação no olhar, amputação do sentido que ordenava e codificava o que podia ser olhado.

Plateias, acostumadas a crer nos próprios olhos, foram confrontadas com a sensação de ter de duvidar deles. Locutores de televisão se viram no dever de avisar aos telespectadores de que aquelas cenas não eram filme de ficção mas um registro jornalístico dos fatos. No instante do trauma, a dor no olhar era intensa. O sujeito-telespectador foi obrigado a rearranjar-se internamente para encontrar um novo caminho para se relacionar com a verdade.

Ao vazio aberto pelo atentado, sucedeu-se uma intensa atividade de produção de imagens. Elas teriam, antes de tudo, o sentido de cobrir o vazio. O 11 de setembro inaugura uma nova era na qual a guerra é travada, antes, na dimensão do olhar, onde o olhar assume a centralidade da guerra e do terror.

A intensa atividade de produção de imagem que se seguiu ao ataque é uma intensa atividade de produção industrial. O espetáculo é um modo de produção: da imagem da mercadoria e da imagem como mercadoria. O entretenimento passou a dar o tom da retaliação americana. Shows de música, especialistas em filmes de ação, tecnologias de videogame passaram a confeccionar a identidade, a significação, a coreografia e a indumentária da vingança do império. Relações promíscuas entre magnatas da mídia e o governo se aprofundaram, comprometendo a independência jornalística. A guerra de informações intensificou-se a um tal grau que ficou técnica e eticamente impossível saber em quê ou em quem acreditar.

Mesmo assim, o senso comum acredita que a guerra impõe o sacrifício da verdade e que, sacrificando a verdade, uma potência angaria legitimidade para agredir um outro país.  Nas guerras atuais, a suposta verdade jornalística não é sacrificada após o início das batalhas, mas antes. O estrangulamento do jornalismo não é uma consequência, mas uma premissa das guerras.

Três aspectos dessa forma de verdade no jornalismo devem aqui ser lembrados: ela precisa poder ser comprovada por qualquer um do povo; ela não se pretende eterna mas, ao contrário, tem duração efêmera; e ela tem parte com um nível elementar de racionalidade. É somente com a verdade jornalística que as democracias podem contar quando se trata de estabelecer acordos ou consensos capazes de dar uma unidade aos conflitos entre os discursos que disputam o espaço público. A democracia depende conceitualmente dessa verdade jornalística que é mais um projeto iluminista do que uma possibilidade prática. A verdade jornalística só é concebível à medida que seja gerada na diversidade de fontes, de narradores, de veículos, de públicos e sobretudo de instituições (públicas ou privadas) dedicadas ao negócio de informar o cidadão.

Pois essa verdade não existe mais, nem mesmo como ideal. Hoje, os regimes oligopolistas ou monopolistas, declarados ou não, dominam a mídia. O próprio jornalismo perdeu sua autonomia. O negócio do entretenimento engoliu o negócio da informação noticiosa. Nesse mundo, a verdade — aparentemente jornalística — é processada na indústria global do entretenimento.

 


1

Quem viu as duas torres gêmeas de Nova York vindo abaixo pela televisão, no dia 11 de setembro de 2001, converteu-se em mutilado de guerra. Mutilado no olhar. Considerando que quase todos ou mesmo todos viram a cena, é forçoso concluir que quase todos ou mesmo todos acabaram por se tornar mutilados de guerra. O atentado contra o World Trade Center foi o que se pode chamar de campeão de audiência, transmitido ao vivo e depois reprisado e reeditado em câmera lenta em todo lugar.

As torres gêmeas amarravam, ou melhor, ajudavam a sustentar, como um grande nó, a teia imaginária a que se dava o nome de “nova ordem mundial”. Agora, quando não existe mais — ou, pelo menos, quando já não existe como costumava existir —, a velha “nova ordem mundial” pode ser definida como uma extinta estabilidade construída na ordem do visível. Alvejadas por aviões de carreira, tendo por pano de fundo um resplandecente céu de brigadeiro, as torres deixaram ver, por trás de seu próprio desmoronamento, o que silenciosamente representavam: a inviolabilidade do espaço aéreo americano, a inviolabilidade da supremacia americana. Elas existiram como um duplo cetro, um ícone que, do sul da ilha de Manhattan, centro financeiro do capitalismo, projetava poder e superioridade para dentro das retinas dos habitantes da Terra. Ao derrubá-las, ao incendiá-las, ao fazê-las dissolver-se como velas de má qualidade, como picolés sob o sol, os agressores promoveram mais que um ato de guerra contra os Estados Unidos: promoveram uma incisão nas córneas de cada testemunha ocular para arrancar-lhe (amputar-lhe) o sentido que ordenava e codificava o que podia ser olhado.

No lugar das duas torres, irrompeu o vazio. O ato terrorista de 11 de setembro descosturou a paisagem e, mais ainda, abriu um rasgo na linguagem, esgarçou a ideologia, deixando ver o lado escuro do avesso do cenário. O ato terrorista interferiu na instância do olhar, que conecta a sociedade consigo mesma, e, assim, conseguiu o inacreditável: feriu o corpo de cada um, tanto daqueles a quem pôde matar sob os escombros dos edifícios como daqueles a quem, na forma de um show, alcançou como imagem.

O que não deveria ser surpresa alguma. É na imagem e pela imagem que as verdades do nosso tempo são feitas e desfeitas. Ferir a imagem é, em alguma medida, ferir a verdade. No mínimo, ferir a imagem é fazer-se ouvir nos processos sociais de construção da(s) verdade(s). Quebrar as vitrines das lanchonetes da rede McDonald’s é, antes de agressão física, uma intervenção no plano da imagem. Implantar uma lanchonete McDonald’s numa esquina qualquer é uma intervenção do mesmo tipo, mas de sinal invertido. Alguns dizem, não sem razão, que somos uma sociedade integrada pela imagem, uma sociedade que se define e se reconhece pela imagem, dizem que é por meio da imagem que se negociam os sentidos e que a verdade vai sendo tecida.

Com efeito, vivemos num mundo que estabeleceu um sinal de igualdade entre visível e verdadeiro. No dizer de Régis Debray, esse sinal  de  igualdade   sintetiza   a   “equação da era visual: Visível = Real = Verdadeiro”. Para Debray, “somos a primeira civilização que pode julgar-se autorizada por seus aparelhos a acreditar em seus olhos”.[1] (Faço aqui uma citação recortada, uma citação da qual suprimi alguns trechos. Debray diz mais que isso, como logo veremos. Por ora, fiquemos apenas com isso.)

“Acreditar em seus olhos”, o que significa? Não se trata de uma reedição empolada do “ver para crer” de são Tomé. É algo um pouco menos linear que isso, um pouco mais “ontológico”, por assim dizer. Nessa perspectiva, os olhos não são meramente uma ferramenta de verificação do verdadeiro, mas o único nível em que as verdades podem ser socialmente construídas e consolidadas. Significa dizer que, fora do olhar, não há mais verdade possível — ao menos para o que Debray chama de a nossa “civilização”.

Voltemos ao trauma do 11 de setembro. Naquele dia, as plateias, adestradas para crer nos próprios olhos, foram confrontadas com a sensação exasperante de ter de duvidar deles, nem que fosse por uns poucos segundos. O golpe que desfigurava o horizonte de Nova York desfigurava também o que estava ordenado para ser visto. Por um instante, fugaz mas traumático, ver não foi sinônimo de reconhecer (a reafirmação imaginária opera pela reiteração), mas foi sinônimo de desconhecer. Aquilo que se via pela TV parecia um evento indigno de crédito. Foi sintomático o empenho de inúmeros locutores de televisão, de vários países, em avisar os telespectadores de que aquelas cenas não eram filme de ficção, não eram efeitos especiais, mas um registro jornalístico dos fatos. O incrível era para ser crível. O impossível era o factual. Era preciso advertir o público de que o inconcebível era simplesmente, a partir daquele momento, uma nova conformação do visível e, em consequência, uma nova conformação da verdade. Mesmo assim, os olhos duvidavam.

Aí, os olhos que duvidavam articulavam sua forma peculiar de olhar como uma forma peculiar de conceber a verdade. A nova conformação da verdade não foi propriamente entendida assim, como uma nova conformação da verdade, mas como algo que pode ser entendido — e visto — como uma ferida na verdade posta. Em outras palavras, o que ficou visível e, logo, crível no atentado de 11 de setembro não foi bem que uma nova verdade se estabeleceu, mas que algo produziu uma deformação na verdade estabelecida assim como algo produziu uma deformação no cenário.

Isso nos ajuda a pensar um pouco mais na definição dessa verdade que se constrói no olhar. Ela não é o que se constata no visível com o aparelho ocular. Ela deve ser formulada de um outro móvel: a verdade é que o visível, mais que um suporte em que os signos se deixam olhar, é um sistema que ordena os signos. Enfim, não é porque verificamos a verdade com os olhos que somos uma civilização autorizada a crer nos próprios olhos, mas porque somente no olhar é que a verdade pode adquirir sua dimensão social. O que não couber no olhar jamais será verdadeiro, nem sequer existente. O vazio, por exemplo, jamais será verdadeiro e será imediatamente suprimido.

Ver, então, é subordinar-se ontologicamente ao ordenamento posto pelo olhar. Ver que há uma deformação na verdade posta não significa “enxergar” para além da verdade posta, mas olhá-la, assim deformada, como quem precisa repará-la, restaurá-la, nem que seja sobre seus próprios fragmentos assimilados como monumentos, nem que seja para reinstaurar, enfim, o olhar como reconhecimento sempre recorrente. Eis a verdade da “nossa civilização”: só no olhar é possível o contato com a verdade, ou seja, a única verdade é o tecido do (e pelo) olhar.

No instante do trauma, porém, a dor no olhar era intensa. Foi como se os apresentadores dissessem: “Você está, como sempre esteve e sempre estará, autorizado a crer em seus olhos. Sobretudo agora”. O sujeito-telespectador era desafiado a rearranjar-se internamente para encontrar um novo caminho por meio do qual pudesse se relacionar com a verdade, essa entidade pertencente ao visível, enquanto seus olhos pareciam incapazes de ver qualquer coisa além do vazio aterrorizante. Terror, de fato. Nesse plano, o plano do olhar, o atentado de 11 de setembro foi efetivamente um ato de terror. Em outros termos, foi um atentado que marcou o ingresso da lógica do terror dentro da lógica do espetáculo, em uma plenitude jamais verificada antes. Duvidar dos próprios olhos marcou o contato com o trauma: a exemplo do mutilado de guerra que tenta mover um músculo que já não possui, o mutilado do olhar tenta acionar um ícone, carregado de sentido imaginário, e se dá conta de que esse ícone já não existe — e seu sentido imaginário virou poeira negra, fumaça, carnificina.

O terror, em suma, é o vazio. Para tapar o vazio, o visível se insurge com mais força e mais determinação. Duvidar dos próprios olhos, portanto, é como que esfregá-los com as mãos para em seguida reabri-los com fúria, certificar-se do visível que resta e, então, crer (nos olhos e no visível) com mais intensidade. Com mais intensidade e mais desejo de restaurar a verdade e o império do visível. Desejo é bem a palavra.

O desejo é a força constitutiva — talvez motriz, com o perdão da metáfora mecânica — da civilização da imagem. Aqui vale a pena retomar Régis Debray e transcrever outra vez aquela mesma citação (mas, agora, sem suprimir os trechos que foram omitidos ali atrás.

Vamos ao trecho por inteiro, tal como ele se acha no livro Vida e morte da imagem, de onde o tiramos): “A equação da era visual: Visível = Real = Verdadeiro. Ontologia fantasmática da ordem do desejo inconsciente. No entanto, desejo, doravante, bastante poderoso e bem equipado para alinhar seus sintomas em uma verdadeira nova ordem. Somos a primeira civilização que pode julgar-se autorizada por seus aparelhos a acreditar em seus olhos”. Para Debray, a esfera do desejo não está perdida, mas presente.

Esta seria, pois, a civilização que vê e torna visível o que deseja, e que necessariamente não tem consciência do que deseja.[2] A verdade, nessa civilização, deixa de ser uma descoberta — ou uma construção — da consciência: torna-se prolongamento do desejo na instância do olhar. Ver, nesse sentido, é um processo estritamente imaginário, divorciado de um outro processo, justamente aquele que vem sendo banido da civilização da imagem, que é o processo do pensamento. No olhar, para continuarmos com a terminologia de Debray, é o desejo inconsciente quem ordena o visível e, portanto, é ele quem ordena aquilo que ordena o que é visto. O sujeito vê o que o desejo inconsciente lhe ordena. Ver e desejar — seja desejar como repulsa, seja desejar como atração — constituem pulsões equivalentes nos marcos da civilização da imagem.

A verdade é assim revelada (moldada) pela “ontologia fantasmática do desejo inconsciente”. Não por acaso, o termo fantasmática aparece aqui. Ele se refere ao conceito de fantasma em Lacan, que nada mais é que o complexo formado pela junção inconsciente do sujeito com o pequeno objeto que lhe dá sentido imaginário, junção que é precipitada e cimentada pelo desejo.[3] É como se a civilização da imagem fabricasse, como imagem, o(s) objeto(s) de que se vale para obturar os vazios ou as fissuras que, instauradas no tecido do olhar, deixariam ver (sem querer e sem querer autorizar) a falta mais profunda, mais essencial, mais insuportável.

Aí estaria uma pista de explicação possível para o fato de que, ao vazio aberto pelo atentado de 11 de setembro, sucedeu-se uma intensa atividade de produção de imagens. Elas teriam, antes de tudo, o sentido de cobrir o vazio. E isso não tanto segundo a lógica do poder, que seria uma lógica às vezes política ou às vezes militar, mas segundo a lógica do desejo. O poder, dentro da civilização da imagem, é tanto mais poder quanto mais sabe corresponder e antecipar-se à lógica do desejo.

(A lógica do poder vai deixando ela também de ter parte com a razão e vai mesmo deixando de pretender ter parte com a razão ou, noutros termos, com o pensamento, o que nos remete a um paradoxo crucial do nosso tempo, qual seja, a ilusão de que uma civilização da imagem pode ser uma civilização, por assim dizer, civilizada ou civilizadora. Quando se fala numa civilização da imagem, presidida pela ordem do desejo inconsciente, fala-se de uma civilização que no mínimo negligencia estruturalmente os processos de mediação entre o desejo e a convivência, mediações que tornam possível — civilizada — a convivência; fala-se, noutros termos, numa civilização mais inclinada para atos de barbárie, como a promoção da guerra espetacular, que se põe como fator de gozo, e menos inclinada à superação do que há de selvagem em si mesma.)

A data de 11 de setembro inaugura uma nova era, há quem diga uma nova “nova ordem mundial”, na qual a guerra é travada, antes, na dimensão do olhar. Não que a guerra como espetáculo não aconteça desde sempre. O que distingue o período presente de todos os outros é que, agora, a dimensão do olhar assume a centralidade da guerra e do terror, assim como já havia assumido a centralidade da política, da cultura, da religião e da própria economia. Sim, isto mesmo: da economia ou, mais propriamente, do capitalismo.

A intensa atividade de produção de imagem que se seguiu ao 11 de setembro, que se dá na instância do olhar e que obedece à lógica do desejo inconsciente, é uma intensa atividade de produção industrial. Mais que isso, é uma atividade que se põe como um modo de produção. O espetáculo é um modo de produção. Sem que se leve isso em conta não há como compreender o modo pelo qual o poder, o desejo e o capital se articulam feito uma trança para produzir o que aqui estamos identificando como a instância do olhar.

Não vivemos apenas sob a tirania de relações sociais exclusivamente voltadas à produção e à circulação de mercadorias, não é só isso. Vivemos sob um regime voltado à produção da imagem: da imagem da mercadoria e da imagem como mercadoria. O culto à mercadoria — que já constituía um fator de barbárie e que apenas se intensificou ao longo do século XX — desaguou no culto à imagem da mercadoria, o que permitiu o destravamento do princípio de acumulação e reprodução do capital, lançando ambos a uma escala jamais vista.

A natureza do capitalismo e do capital foi alterada a partir do final da Segunda Guerra. Em 1967, Guy Debord, em seu clássico A sociedade do espetáculo, apontava: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.[4]Ele dizia mais: “O capital já não é o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação o estende até a periferia sob a forma de objetos sensíveis. Toda a extensão da sociedade é o seu retrato”.[5] No imaginário contemporâneo, os signos que se apresentam como objetos-mercadorias para promover a completude imaginária do sujeito tornam visível o próprio capital — e monopolizam o campo do visível. Não há, portanto, uma descontinuidade entre a tirania da mercadoria sobre o sujeito e a tirania da imagem (da mercadoria e como mercadoria) sobre o sujeito. Ao contrário: a imagem é o prolongamento exponenciado do predomínio da mercadoria sobre a vida social. Tanto que, para Debord, “o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo”.[6] Mais ainda: “O consumidor real torna-se consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral”.[7]

Concentrada em imagem, ou renascida na imagem de si mesma, a mercadoria (ou simplesmente a imagem, pois uma e outra se indiferenciam) é a correspondência, no olhar, do sentido que o sujeito procura para si mesmo: ocupa o objeto que fornece a completude imaginária do sujeito. Sendo modo de produção, o espetáculo, no entender de Debord, é o que unifica e dá um patamar ao capitalismo. Aí, ainda que Debord não o diga com todas as letras, o desejo inconsciente flui nas veias da produção e do consumo da imagem; o capitalismo passa a parasitar as teias do desejo. Ambos os processos se tornam mais selvagens do que jamais foram. Repetindo: desejo, capital e poder compõem uma trança compacta, única, e sua existência se materializa no olhar.

2

Agora podemos nos dedicar um pouco à recapitulação da intensa atividade de produção de imagens que se seguiu ao 11 de setembro. Revela-se aí o modo como se articula a trança formada pelo desejo, pelo capital e pelo poder.

Após os ataques, como há de ser lembrado, aconteceu todo tipo de manifestação de autoridades e pessoas comuns. Uma dessas manifestações merece nota. Dez dias após o ataque, numa sexta-feira, dia 21 de setembro, personalidades famosas da indústria fonográfica e da indústria cinematográfica se reuniram num show de TV transmitido por algumas emissoras para diversos países. No Brasil, era possível sintonizar o programa em três ou quatro canais americanos por assinatura.

Foi um evento musical, ao vivo, encenado em três estúdios localizados em três cidades diferentes — Londres, Nova York e Los Angeles. Os endereços não eram divulgados por motivos, segundo os apresentadores, de segurança. Paredes negras, luz de velas, muitas velas, astros em trajes escuros, acordes em luto. A ambientação sugeria um clima de abrigo antiaéreo, de salas subterrâneas, de catacumbas. Foi uma cerimônia fúnebre e também uma celebração cívica, um réquiem pop e um canto de combate, um pranto e um chamamento à ação, à reação. Entre uma canção e outra, atores de cinema atendiam, diante das câmeras, telefonemas que traziam doações em dinheiro aos familiares das vítimas do World Trade Center. Os astros cantavam, declamavam e pediam donativos com os semblantes condoídos e, ao mesmo tempo, resolutos. Foi uma solenidade religiosa, sim, mas, como a religião do “mundo ocidental” é o entretenimento de mercado, a solenidade foi acima de tudo uma solenidade hollywoodiana cuja natureza política era explícita. Heroica: os rostos famosos do entretenimento eram anjos recém-chegados do Olimpo em socorro dos heróis alquebrados. Ali se consumava o início da vingança, no plano do espetáculo, a um ataque sofrido também no plano do espetáculo.

A preparação do primeiro revide que estava por vir, a invasão militar do Afeganistão, começava a ser preparada num consenso global costurado não nos fóruns da política internacional, mas nos cenários do entretenimento. Os tempos, os termos, a dinâmica do espetáculo ditaram a reação. Em outubro de 2001, o site da agência Reuters, em reportagem assinada por Steve Gorman, noticiava uma aliança entre a cúpula do Exército americano e a indústria do entretenimento para projetar cenários e tendências da chamada guerra contra o terrorismo. O Institute for Creative Technologies (www.ict.usc.edu), na University of Southern California, fundado em agosto de 1999 com dinheiro do Exército americano para fornecer softwares de treinamento aos soldados com base em tecnologia de videogames e efeitos  especiais,  acabava  de  ganhar  uma  nova  atribuição.  Cineastas como David Fincher (Clube da luta) e Joseph Zito (Invasão dos Estados Unidos) e roteiristas como Steven E. De Souza (Duro de matar) participavam de encontros com militares para imaginar possíveis ações terroristas.[8] A fusão das operações de guerra (próprias do que se entende comumente como “o mundo real”) com as operações de entretenimento (o mundo da ficção) deu, aí, mais um passo. No dia 11  de setembro, foi preciso que os jornalistas de TV alertassem o público para que ninguém tomasse aquelas cenas espetaculares por peça de ficção, pois aquelas eram cenas “reais”; depois do 11 de setembro, a formulação de políticas públicas e a estratégia de ataque e defesa passaram a contar com a expertise dos estúdios de cinema.

O entretenimento foi absorvido pela estratégia militar — ou vice-versa. A política e a guerra prolongam Hollywood — ou vice-versa. Materialmente. Organicamente.

O entretenimento, indústria de ponta do espetáculo globalizado, passou a dar o tom da retaliação americana. Shows de música, especialistas em filmes de ação, tecnologias de videogame passaram a confeccionar a identidade, a significação, a coreografia e a indumentária da vingança do império. O jornalismo, o discurso supostamente encarregado dos relatos factuais, viria a reboque — ao menos no que dependesse da vontade e das iniciativas de Bush.

Nas semanas que se seguiram aos atentados, foi bastante debatida a tentativa do governo Bush de “enquadrar” as redes de televisão do país na cobertura da guerra do Afeganistão. Havia orientações explícitas de que não fossem transmitidas ao vivo as entrevistas com os líderes do Talibã a milícia que governava o Afeganistão, onde estava refugiado o saudita Osama Bin Laden, acusado de comandar os atentados de 11 de setembro. Em grande parte, Bush foi obedecido. De um modo ou de outro, as redes de TV americanas, privadas, ofereceram uma cobertura de inclinação mais governista do que as redes públicas da BBC de Londres, cujo governo sempre se alinhou aos americanos. O fato merece nota: a utopia liberal da imprensa crítica e independente vinha por terra, pois a ideia liberal de que a imprensa livre é mais eficaz e mais vigilante em relação à máquina do Estado quando organizada em uma empresa privada se mostrou sem validade, deixou de valer, de modo explícito, após o 11 de setembro. Essa constatação, a de que o jornalismo de uma empresa estatal é capaz de um olhar menos oficialista do que o jornalismo realizado por empresas privadas, iria se tornar indiscutível ao menos até o fim da guerra que Estados Unidos e Grã-Bretanha moveram contra o Iraque, em março de 2003.

Alguma  reserva  de  espaço  independente  durante  todo  esse período conseguiu sobreviver na imprensa americana, nos jornais impressos. No dia 19 de fevereiro de 2002, The New York Times informou que o Pentágono tramava disparar saraivadas de mentiras contra a opinião pública mundial. “Pentágono planeja plantar notícias falsas na mídia internacional”, dizia a manchete publicada no “UOL — Mídia Global”. O texto explicava que o objetivo da nova estratégia era combater a propaganda do Talibã e influenciar governos e populações  de  outros  países.[9]  A  ideia,  gerada  no  interior  do  Escritório  de Influência Estratégica (órgão criado pelo Pentágono logo após os atentados), suscitou tantos protestos que logo foi abortada. Sofreu resistência do próprio Departamento de Estado. Donald Rumsfeld, secretário da Defesa dos Estados Unidos, mandaria fechar o escritório ainda em fevereiro. Mesmo assim, o projeto de usar relatos e veículos jornalísticos de forma articulada para, em dueto com o entretenimento, formatar os humores do público jamais seria abandonado.

Ao contrário, as interferências do governo americano sobre a mídia mundial só recrudesceram desde então. Relações promíscuas entre magnatas da mídia e o governo se aprofundaram, comprometendo a independência jornalística. Observadores de alta credibilidade lançaram o alerta. No dia 30 de novembro de 2002, um artigo de Paul Krugman publicado no mesmo The New York Times alertava, logo no título: “Conflitos de interesses podem ameaçar a democracia americana”. Krugman começava citando uma declaração do ex-vice-presidente Al Gore, segundo o qual, “hoje em dia, a mídia está meio estranha no que diz respeito à política, e algumas vozes institucionais importantes se tornaram, falando francamente, parte essencial do Partido Republicano”. A seguir, o articulista acusava a cobertura da Fox News de ambiguidade e relacionava a isso o fato de que o presidente da rede, Roger Ailes, tem assessorado o governo Bush. Ele prosseguia: “Já tivemos alguns casos peculiares de notícias que não foram divulgadas. Por exemplo, a manifestação de 100 mil pessoas contra a guerra (ao Iraque), em Washington, no mês passado — um fato importante, qualquer que seja a sua opinião a respeito —, foi quase ignorada por alguns veículos de peso”.

No dia 17 de fevereiro de 2002, uma reportagem publicada na Folha de S.Paulo dava conta de que os Estados Unidos voltavam à carga na guerra de informações: “Força dos Estados Unidos poderá agir em países aliados — Departamento da Defesa estuda possibilidade de usar militares para influenciar opinião pública estrangeira”.[10] Segundo informava o texto, as forças americanas seriam usadas em “operações secretas de propaganda política em países aliados ou neutros”. Novamente a ideia de impor, mediante recursos de força, dados falsos como se fossem verdadeiros suscitava resistências no interior do próprio Departamento de Estado, mas, com idas e vindas, as ações do governo para controlar a opinião pública se tornavam mais fortes. No dia 6 de março de 2003, uma notícia alarmante — ao menos para aqueles que se preocupam com a credibilidade e a correção das informações veiculadas pelas instituições jornalísticas do mundo dito democrático — chegou ao público brasileiro por meio do diário O Estado de S. Paulo. “Renúncia contra a manipulação” foi o título do artigo, cujos trechos mais importantes são reproduzidos aqui:

Veterano de vinte anos do serviço diplomático dos EUA, John Brady Kiesling — que era conselheiro político das embaixadas americanas — renunciou na semana passada, denunciando as ações de manipulação da opinião pública e a distorção de dados de inteligência, por parte do governo americano, para justificar uma guerra contra o Iraque. A seguir, a íntegra da carta de renúncia de Kiesling enviada ao secretário de Estado, Colin Powell:

“Caro sr. secretário:

“Estou lhe escrevendo para apresentar minha renúncia ao Serviço de Relações Exteriores dos EUA e ao meu cargo de consultor político da embaixada dos EUA em Atenas. Faço isso com dor no coração. Minha criação incluiu a obrigação de fazer algo por meu país. Servir à diplomacia dos EUA era um sonho. Fui pago para aprender idiomas e conhecer culturas estrangeiras, relacionar-me com diplomatas, políticos, acadêmicos e jornalistas e convencê-los de que os interesses deles e dos EUA eram fundamentalmente coincidentes. Minha crença em meu país e seus valores foi a mais poderosa arma de meu arsenal diplomático.

“Foi inevitável que vinte anos a serviço no Departamento de Estado me tornassem menos ingênuo e mais cético em relação aos motivos estreitos e egoístas que às vezes moldaram nossas políticas. A natureza humana é o que é, e fui recompensado e promovido por entendê-la. Mas, até este governo, foi possível acreditar que, defendendo as políticas do meu presidente, eu estava também defendendo os interesses do povo americano e do mundo. Agora não acredito mais nisso. As políticas que agora nos pedem para adotar são incompatíveis não apenas com os valores americanos, mas também com os interesses americanos. Nossa insistência numa guerra contra o Iraque está nos levando a malbaratar a legitimidade internacional que tem sido a mais poderosa arma dos EUA, tanto de ataque como de defesa, desde a época de Woodrow Wilson.

“Desde a guerra do Vietnã, não víamos tal distorção do serviço de informações, tal manipulação sistemática da opinião pública americana. A tragédia de 11 de setembro nos deixou mais fortes do que antes, agregando em torno de nós uma vasta coalizão internacional para cooperar, pela primeira vez de uma forma sistemática, contra a ameaça do terrorismo. Mas, em vez de colher os louros desses sucessos e capitalizar em cima deles, o governo optou por fazer do terrorismo uma ferramenta política doméstica, recrutando uma Al-Qaeda dispersa e em grande parte derrotada como seu aliado burocrático. Nós espalhamos um terror e uma confusão terríveis na mente da população, arbitrariamente ligando ao Iraque problemas de terrorismo com os quais o país não está relacionado.

[…]

“Os fatos de 11 de setembro fizeram menos para danificar o tecido social americano do que parecemos determinados a fazer nós mesmos. Seria a Rússia dos Romanovs nosso verdadeiro modelo, um império egoísta e supersticioso trilhando a trajetória da autodestruição em nome de um status quo condenado? Devíamos perguntar-nos por que não temos conseguido persuadir o mundo de que uma guerra com o Iraque é necessária. Nos últimos dois anos, muito fizemos para convencer nossos parceiros mundiais que os interesses estreitos e mercenários dos EUA suplantam os valores acalentados por nossos parceiros. Mesmo onde nossos objetivos não estavam em questão, nossa congruência era motivo de contenda.

“O modelo do Afeganistão é de pouco conforto para os aliados que estão se perguntando sobre que bases planejamos reconstruir o Oriente Médio.

“Será que ficamos cegos a nossas próprias recomendações — como a Rússia é cega em relação à Tchetchênia, como Israel é cego em relação aos territórios ocupados — de que o poder militar avassalador não é a resposta para o terrorismo? Depois que os frangalhos do Iraque pós-guerra se juntarem aos de Grozny e Ramallah, até na Micronésia será difícil encontrar alguém com coragem para nos seguir.

[…]

“Sr. secretário, tenho um enorme respeito por seu caráter e habilidade. O senhor tem mantido mais credibilidade internacional para nós do que nossa política merece, e resgatado algo positivo dos excessos de um governo ideológico e a serviço de si próprio. Mas sua lealdade para com o presidente vai longe demais. Estamos solapando além do limite um sistema internacional que construímos com empenho, uma rede de leis, tratados, organizações e valores compartilhados que estabelecem limites sobre nossos inimigos, muito mais efetivamente do que restringem a capacidade dos EUA de defender seus interesses.

“Estou renunciando porque tentei conciliar minha consciência com minha capacidade para representar o atual governo dos EUA e fracassei. Tenho confiança em que nosso processo democrático seja, em última análise, autocorretivo, e espero que, de fora, possa contribuir um pouco para a formulação de políticas que melhor sirvam à segurança e à prosperidade do povo americano e do mundo que compartilhamos.”[11]

Iniciada a guerra contra o Iraque, em março, novos ataques vindos da cúpula do Estado norte-americano alvejavam a liberdade de imprensa. Dessa vez, o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, em pessoa, “recomendou que as TVs dos Estados Unidos não mostrassem as imagens de prisioneiros americanos sendo interrogados por iraquianos e de corpos de soldados em unidade militar”. Rumsfeld afirmou que “é ilegal apresentar prisioneiros em situação humilhante”.[12] A guerra de informações intensificou-se a um tal grau que ficou técnica e eticamente impossível, a qualquer um que buscasse informações minimamente verificáveis e confiáveis, saber em quê ou em quem acreditar. No dia 23 de abril de 2003, jornais do mundo todo veicularam uma denúncia de extrema gravidade. Hans Blix, o chefe dos inspetores de armas da ONU, havia questionado, em entrevista à BBC, a veracidade dos relatórios de inteligência usados pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha para justificar a invasão do Iraque. “Acho que um dos fatores perturbadores é que as potências tenham apoiado seus argumentos em informações que hoje parecem frágeis”, disse Blix. “Chama a atenção que nada tenha sido encontrado.”[13] O chefe dos inspetores afirmou que boa parte dos documentos em que Washington e Londres “se basearam para tentar convencer a comunidade internacional de que o conflito era justo não passava de falsificação”.[14]

3

A extensa lista de atentados contra o direito à informação perpetrados pelo governo americano pode induzir a um erro de análise. Erro, aliás, bastante frequente. Ele consiste em atribuir à vontade dos donos do poder o processo de desinformação que teria preparado as bases de apoio às invasões do Afeganistão e, depois, do Iraque. O raciocínio é bastante simples e, provavelmente por isso, muito tentador: para atingir seus objetivos bélicos, econômicos e políticos, o governo Bush lança mão de recursos de manipulação da mídia, tapeia o público e obtém êxito. Um raciocínio deveras simples, tentador e enganoso: uma armadilha da análise. As coisas parecem seguir um curso premeditado pelos poderosos, mas não seguem, por mais que os fatos (da mídia) insistam em querer dizer que seguem. Os poderosos, ao contrário, é que estão a serviço de uma ordem que os inclui, que os subordina — e que eles, do alto de seus gabinetes, não controlam.

Mesmo assim, o senso comum acredita que a guerra impõe o sacrifício da verdade e que, sacrificando a verdade, uma potência angaria legitimidade para agredir um outro país. O senso comum acredita que a manipulação, palavra muito em voga, é não apenas uma arma de guerra como também um recurso indispensável à estratégia de guerra. O senso comum, enfim, acredita que a guerra é uma coisa — e que a comunicação em torno dela é outra, ainda que subordinada àquela primeira. Acontece que a guerra, em nosso tempo, é, ela mesma, um ato de comunicação. Isso é que complica um pouco a visão do senso comum.

Já não vivemos na sociedade que empreendeu a Primeira Guerra Mundial, quando ficou famosa uma frase atribuída ao senador republicano Hiram Warren Johnson (1866-1945): “Quando começa a guerra, a primeira vítima é a verdade”.[15] Na sociedade de hoje, essa declaração seria apenas inocente. A verdade, o jornalismo, nada disso é o que costumava ser. A começar da simples constatação de que, nas guerras atuais, a suposta verdade jornalística não é sacrificada após o início das batalhas, mas antes. O estrangulamento do jornalismo não é uma consequência, mas uma premissa das guerras. A frase correta, hoje, talvez fosse outra. Talvez fosse a seguinte: “A guerra só pode ter início quando a verdade (jornalística) já foi  vitimada”.

Insisto, como se nota, nesse adjetivo, jornalística, para qualificar a verdade de que estamos falando. E por quê? Porque a verdade no jornalismo designa uma modalidade discursiva específica — não se trata da verdade em geral, por assim dizer, mas da verdade possível de ser construída segundo o ferramental metodológico-prático do jornalismo. Três aspectos dessa forma de verdade devem aqui ser lembrados: ela precisa poder ser comprovada por qualquer um do povo; ela não se pretende eterna mas, ao contrário, tem duração efêmera; e ela tem parte com um nível elementar de racionalidade. Quanto ao primeiro aspecto, a verdade no jornalismo é aquela passível de ser enunciada num relato cujos pressupostos factuais e cujos argumentos podem ser empiricamente verificados por qualquer ser humano de cultura mediana dotado de habilidades e faculdades igualmente medianas. Ela se manifesta sempre como um registro — de um acontecimento, ou de uma fala, ou de um acordo entre falantes — que pode ser inspecionado por qualquer um dos integrantes da comunidade abrangida pelo veículo jornalístico em questão; não é privilégio de eleitos, de iluminados, de encastelados ou de seres dotados de aptidões paranormais. Ao contrário das verdades religiosas e mesmo de algumas verdades científicas, a verdade no jornalismo é por definição acessível a todos, podendo ser testada virtualmente por todos. Quanto ao segundo aspecto, a verdade jornalística é transitória; modifica-se de acordo com a periodicidade dos veículos jornalísticos, é renovada a cada nova edição. Ela não dura, ela prescreve, muda de lugar, tem validade mínima. Sua melhor forma, afinal, é a notícia — que envelhece em questão de minutos. Por fim, o terceiro aspecto diz respeito à razão: a verdade jornalística tem parte com um denominador comum que unifica os membros de uma determinada comunidade ou sociedade sobre uma mesma base de atualização compartilhada de significados. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o jornalismo seria o encarregado de promover a adequação da linguagem aos eventos cotidianos e dos eventos cotidianos à linguagem. O jornalismo, enfim, e não por acaso, seria o operador por excelência do senso comum: quando é bom jornalismo, busca ilustrar o senso comum; quando é mau jornalismo, rende-se ao que está posto e sempre rebaixado.

A verdade jornalística é só isso, quase nada, e isso já é muito. É com ela, e praticamente só com ela, que as democracias podem contar quando se trata de estabelecer acordos ou consensos capazes de dar uma unidade aos conflitos entre os muitos discursos que disputam o espaço público. Quando a religião cuida disso, não se tem o Estado laico e, logo, não se tem o estado democrático.[16] Quando é a tecnologia e a ciência que exercem esse papel, tem-se a tecnocracia.[17] A democracia depende conceitualmente dessa construção dialogada de uma verdade cotidiana, aqui chamada de verdade jornalística.

Tudo o que esta pode almejar, na sua melhor forma, na sua mais ambiciosa pretensão, é ser a resultante precária desse conflito permanente que viceja na vida democrática — daí que o discurso jornalístico é conflito, e se não for conflito, será impostura. Tudo com que a atividade jornalística pode sonhar como seu mais sólido suporte é esse mesmo conflito. Ela não pode se “pendurar” no poder, qualquer poder, que tenha acima de si; apenas encontrará sustentação material no conflito que fervilha abaixo de si. A verdade jornalística, que é mais um projeto iluminista do que uma possibilidade prática, só é concebível à medida que seja gerada na diversidade de fontes, de narradores, de veículos, de públicos e sobretudo de instituições (públicas ou privadas) dedicadas ao negócio de informar o cidadão.[18] Como projeto iluminista, projeto gêmeo do projeto democrático, o jornalismo é mais um ideal de oferecer ao público os elementos para o entendimento racional do que o ideal de ser o entendimento propriamente dito — pois ele, jornalismo, não busca o acordo, mas a diferença passível de ser entendida por todos como diferença, o que parece igual, mas é bem diferente. É um ideal que se renova como ideal e que unifica por ser um ideal comum: o ideal de que a verdade, essa, a jornalística, precária e transitória, está logo ali e pode ser tocada pelos nossos instrumentos de aferição do cotidiano.

Voltemos agora à frase de Hiram Johnson. Era a essa verdade, a que aqui chamo de jornalística, que ele se referia. Era essa a verdade que as guerras sacrificariam, no entender daqueles que viram ou viveram a Primeira Guerra Mundial. Pois essa verdade não existe mais, nem mesmo como ideal. Hoje, ela é apenas um embuste, uma fachada que esconde a falência da diversidade e do conflito democrático entre as ideias, entre os discursos, os públicos, os veículos. Hoje, regimes oligopolistas ou monopolistas, declarados ou não, dominam a mídia. O próprio jornalismo perdeu sua autonomia. O negócio do entretenimento engoliu o negócio da informação noticiosa tanto no plano da estrutura de capital como no plano da representação, da linguagem e do repertório.

Atualmente,  falar  na  existência  de  um  veículo  jornalístico  de grande vulto que seja independente em termos empresariais é falar de um cenário fictício. O The New York Times ainda resiste para ser a exceção que confirma a nova regra.[19] O jornalismo vem perdendo sua independência em duas frentes. Progressivamente, vem deixando de ser independente do Estado — vide a maneira como o Pentágono e o Departamento de Estado nos Estados Unidos conseguiram constranger, quando não orientar expressamente, as principais redes de TV, privadas, no país. Ao mesmo tempo, vem deixando de ser independente diante do negócio do entretenimento. Revistas informativas, jornais diários, emissoras de rádio e TV, sites jornalísticos na internet são cada vez menos veículos autônomos e cada vez mais “departamentos” dentro dos grandes conglomerados da indústria do entretenimento. Dificilmente têm condições de prosperar sem incorrer em graves conflitos de interesse.

Nesse mundo, a verdade — aparentemente jornalística — é processada não mais no trabalho nervoso de redações comprometidas com o interesse público, mas na indústria global do entretenimento. A verdade jornalística, nos tempos atuais, tem bem pouco da velha ideia de verdade e tem muito menos de jornalismo independente. Ela se reduziu a um componente do espetáculo e está aí na cena pública a disputar a atenção das plateias com rivais nada comedidos, como a pornografia, a indústria do lazer ou os desenhos animados, rivais que, muito frequentemente, são seus sócios.

A frase célebre do senador republicano do início do século XX fazia sentido numa sociedade em que o negócio do jornalismo era um negócio independente, uma instituição autônoma. Hoje, reverbera como um resquício de resignação demagógica. A verdade não é a primeira vítima da guerra. A guerra, aberta ou surda, é que é um expediente indispensável para a manutenção, acumulação e expansão do império militar e político — ou, em outras palavras, para a manutenção, acumulação e expansão do capital revivido como espetáculo —, cujo sentido mais profundo é o de ter transformado a confecção da verdade numa categoria do espetáculo, que é o negócio dominante. A verdade de que Johnson falava deixou de ser jornalística para se tornar espetacular. A velha, a jornalística, precisa morrer para que a guerra aconteça. A verdade espetacular, esta não: esta ganha cores, emoções, ganha o estatuto de mito quando é, como tem sido, impulsionada pela guerra e pelo desejo de guerra. É esta que veio obturar o vazio aberto no dia 11 de setembro de 2001, não por vontade de governantes, mas por forças ainda mais poderosas. Assim como o modo de produção capitalista não é produto de uma decisão de George W. Bush, nem de seu antecessor, a ordem do espetáculo está acima do alcance de sua vontade. É disso que se trata. A guerra  é uma necessidade do espetáculo. O 11 de setembro é um episódio marcante, pois terá sido traumático na instância do olhar. Quanto às guerras do Afeganistão e do Iraque, essas são apenas detalhes. Dois detalhes.

A despeito do risco de ser por demais repetitivo, é o caso de reafirmar: elas não ocorrem porque a verdade jornalística foi vitimada, mas para reconfeccionar a verdade para o olhar. Os motivos da guerra não são geopolíticos — embora esses existam, não se pode nem se quer negá-los —, não são da ordem da indústria do petróleo — que também contribuem, todos sabem —, mas são motivos da ordem do espetáculo. As guerras existem para pôr, no plano do olhar, novos processos de significação em marcha. Elas existem para dar consequência ao movimento de reerguimento do herói ferido, que iniciou imediatamente após o 11 de setembro. A guerra aconteceu e acontece para gerar as imagens necessárias à recomposição das verdades imaginárias. Confeccionadas na instância do olhar.

Há, apenas para que isso não fique sem ser dito, um caminho possível para que o jornalismo mantenha viva a sua vocação: o de converter-se em discurso crítico do espetáculo. Todos sabem que ao jornalismo cabe apresentar a versão crítica da realidade. Hoje, cumpre saber que a versão crítica da realidade — construção imaginária — passa por arriscar visões críticas do espetáculo. Este, mais que o poder do Estado, é o maior inimigo da vocação jornalística.

A verdade, que se estabelece no olhar, é aquela industrialmente produzida pela mídia — aí entendida em seu conceito amplo, abrangendo manifestações do entretenimento, de veículos noticiosos, da publicidade etc. Não por acaso, Octavio Ianni, num ensaio brilhante, localiza aí, nessa mídia em sentido amplo, o núcleo em que o poder é cultivado e exercido. A função que, em Maquiavel, era exercida pelo Príncipe e que, em Gramsci, era exercida pelo partido, agora, segundo Ianni, está a cargo da mídia.[20] Nessa mídia, nesse “príncipe eletrônico”, os procedimentos jornalísticos já não obedecem às diretrizes liberais de independência e compromisso com a verdade factual que estão no nascimento da atividade jornalística, que definem seus ideais iluministas. Nessa mídia, o desejo, o capital e o poder articulam-se na trança que se alça no olhar. Aí, dentro dessa mídia, a verdade jornalística é apenas uma farsa. Vale apenas a verdade do olhar. Impulsionada, como dizia Régis Debray, pela ontologia fantasmática do desejo inconsciente.

A imagem, antes um catalisador dos negócios do capital, tornou-se o seu principal e maior negócio — e isso no plano material,  infraestrutural, se quiserem pôr as coisas nesses termos. O terror agora rasga o olhar como antes feria o poder — e no olhar se move a vingança. O espetáculo produz a destruição e as cenas de brutalidade viajam como a mercadoria — e são mercadorias porque são  imagem.

O circo da guerra é puro gozo. A civilização da imagem é a barbárie.

Notas

[1] Régis Debray. Vida e morte da imagem. Petrópolis: Vozes, 1993, p.  358.

[2] Por muito menos que isso, a elevação do olhar como critério da verdade é duramente criticada pelo menos desde Platão. Ao crer no que vê, segundo Platão, o homem estaria vivendo sob ilusões e estaria limitando o conhecimento ao contato com a realidade sensível. Essa, a crítica platônica, por assim dizer, persiste até hoje. expressivo o depoimento do escritor José Saramago no documentário Janela da alma (Brasil, 2001), de João Jardim e Walter Carvalho. Ele diz que, passados 2400 anos desde que Platão sintetizou o mito da caverna, a humanidade inteira vive dentro da Caverna de Platão, tomando por verdades as imagens que vê projetadas na parede. Somamos, aqui, a essa crítica platônica, uma outra crítica: a de que, ao crer no que vê, o sujeito crê não no que de fato existe para ser visto, nem mesmo numa representação ou num resíduo objetivo que porventura indique uma verdade externa ao sujeito, mas crê naquilo que o desejo ordena e dispõe para que seja visto e para ser ocultado, sem que a consciência se dê conta. É mais esse — e menos aquele outro, platônico — o problema ontológico da civilização da imagem.

[3] Na chamada teoria psicanalítica, o “fantasma” pode ser entendido como a mediação que recobre a falha no sujeito. A falha, aqui, indica a falta que lhe é essencial. O sujeito (“sujeito dividido” na teoria psicanalítica) projeta-se na unidade imaginária formada pelo acoplamento do sujeito que fala com o seu significado imaginário (ou com o seu objeto, chamado na teoria psicanalítica de “objeto a”). O objeto do desejo não é coisinha banal qualquer, uma marca de cigarro ou um ser supostamente amado, embora se possa manifestar por meio disso também, mas é, sobretudo na perspectiva aqui adotada, aquele objeto (sígnico) que completa imaginariamente o sujeito, porque volta a esconder a trama simbólica, onde a falta se inscreve. Por aí, pelo fantasma,   sujeito   dividido,   barrado,   que   tem   diante   de   si   o   horizonte   do seu desaparecimento iminente, reaparece “mais-além do seu desaparecimento”. Ver Pierre Kaufmann (ed.). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 196.

[4] Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, pág. 25 (grifo do autor).

[5] Ibidem, p. 34.

[6] Ibidem, p. 30 (grifo do autor).

[7] Ibidem, p. 34

[8] “Cineastas ajudam Exército dos EUA  a imaginar atos terroristas”. Reportagem de Steve Gorman publicada no serviço Reuters Focus Portuguese, no dia 10 de outubro de 2001.

[9] Disponível em: <http://uol.com.br/times/nytimnes/ult574u933.shl>. A notícia repercutiu no dia seguinte em jornais brasileiros, como a Folha de S.Paulo, em reportagem de Márcio Aith. “EUA estudam divulgar informações falsas”, dizia o título da reportagem.

[10] Folha de S.Paulo, editoria “Mundo”, 17 dez. 2002, p. A 13.

[11] O Estado de S. Paulo, 6 mar. 2003.

[12] Folha de S.Paulo, 24 mar. 2003, primeira página.

[13] “Blix: relatório contra o Iraque era falso”. O Globo, 23 abr. 2003, primeira página e p. 23.

[14] “Farsas da guerra”, editorial da Folha de S.Paulo, 23 abr. 2003, p. A 2.

[15] Consta que não existe nenhum registro da frase do senador Johnson, que inspirou um livro histórico sobre a cobertura de guerras, A primeira vítima, do jornalista inglês Phillip Knightley, de 1975. A autoria da frase, contudo, não é tão importante. Trata-se de uma ideia bastante comum. Em 1928, Arthur Ponsonby, escreveu, em Falsehood in wartime: “Quando a guerra é declarada, a verdade é a primeira vítima”. Muito antes disso, na revista The Idler (edição de 11 de novembro de 1758), Samuel Johnson escreveu: “Entre as calamidades da guerra, pode-se citar o declínio do amor à verdade”.

[16] Que não passe sem registro: tanto da parte dos talibãs, do Afeganistão, como de Saddam Hussein, do Iraque, o discurso religioso assume o comando do discurso de Estado e, do mesmo modo, o fundamentalismo religioso ganhou uma enorme projeção nos Estados Unidos a partir do discurso assumido por George Bush; essas duas guerras assumiram, em larga medida, os contornos de guerras religiosas, ou santas, e jamais foram guerras de defesa de princípios democráticos.

[17] O predomínio da tecnologia como discurso, quer dizer, o fato de que a tecnologia constitui o discurso dominante, representa uma permanente ameaça à democracia.

[18] Não há de ser coincidência se houver semelhança entre esse projeto utópico, gerado pelas melhores esperanças emancipatórias do Iluminismo, e a formulação da teoria da ação comunicativa de Habermas, cujos aspectos dialógicos — pretendidos ou constatados — são bastante conhecidos. Mas não é disso que trato no presente artigo.

[19] Ele resiste, de fato, num mundo em que as empresas são empresas “de mídia”, não mais de jornalismo. “No ranking das 25 maiores empresas do setor nos Estados Unidos simplesmente não há cadeias puramente jornalísticas. São coisas do passado. As que ainda dependem fortemente de jornalismo, como o The New York Times ou o The Wall Street Journal (pertencente à APDJ), estão hoje entre as empresas com menores índices de crescimento relativo” (Sidnei Basile. Elementos do jornalismo econômico. Rio de Janeiro: Campus, 2002, 237 p., p. 34.). O The New York Times é a maior empresa nos EUA cuja receita decorrente do negócio da notícia supera a receita decorrente do entretenimento — e é a 21a no ranking das 25 maiores empresas de mídia.

[20] Octavio Ianni. O príncipe eletrônico. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, coleção Primeira Versão.

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