O outro, semelhante ou inimigo?
por Eugène Enriquez
Resumo
Com exceção de alguns processos, chamados de “narcísicos” (Freud) e “autísticos” (Bleurer), é possível adiantar que o sujeito psíquico é um sujeito social. O outro ( que pode aparecer na forma de adversário ou de inimigo) entra na construção do sujeito humano de duas formas: na forma imaginária e na forma simbólica. Na forma imaginária, a imagem do semelhante nos adverte da presença de um outro em “si mesmo” que nem sempre é um ser benevolente no qual a pessoa se apoia para construir sua identidade, mas pode ser um falso duplo e nos fornecer os primeiros rascunhos do outro como inimigo potencial.
Na forma simbólica, todo indivíduo vincula-se a um conjunto de instituições (nação, região, classe, família) que o moldam desde seu nascimento. O indivíduo pode aceitar a herança enquanto procede a seu inventário, pode principalmente questioná-la, desprender-se dela, transformá-la ou até recusá-la, mas com uma condição: reconhecer que ela existe. Todo indivíduo tem uma dívida não só para com seus pais, mas também para com sua nação e com a humanidade e é o reconhecimento dessa dívida que faz dele um representante da espécie humana e não um animal predador.
Se o próprio homem descobre um outro, um duplo maléfico dentro de si, ele só pode desconfiar de um outro semelhante a ele, cheio de meandros, impasses, violência contida. Trata-se, em suma, da existência de certo ódio de si mesmo presente em todos os homens, que é alimento essencial da exclusão do outro e da desconfiança.
Nos últimos anos, o indivíduo foi colocado no centro da vida social. A democracia, ao proclamar que todo homem é um ser dotado de razão e desejos, colocou o conflito como fundamento da sociedade. Se o outro, o concidadão, está sujeito à desconfiança e ao desprezo que destino pode estar reservado para o estrangeiro?
Nas sociedades do século XIX e do início do século XX, os estrangeiros, encontram a duras penas um lugar, ou aceitando assumir os trabalhos mais vis, tornando-se no início invisíveis e integrando-se como trabalhadores; ou, ao contrário, conquistando um lugar de destaque graças a seu talento criativo ou à violência. O estrangeiro ou se funde na paisagem ou ocupa um lugar à força.
Em nossas sociedades, agora complexas, os novos imigrantes não se contentam com um trabalho vil ou servil. Têm visibilidade e querem isso. Têm na maneira de vestir, no modo de ser e falar, sinais de distinção positiva. Vivem numa democracia e querem com todo o direito aproveitar a experiência democrática. Assim, eles podem ser objeto fácil de todas as repulsas, alvo ideal para o ódio.
Nem todos nativos reagem desse modo. Alguns são favoráveis ao multiculturalismo, à mestiçagem das etnias e dos grupos, assim como das ideias. Porém, mesmo entre os menos xenófobos é possível perceber alguns elementos de rejeição do outro. Não há homem (e grupo) totalmente aberto.
Como se reconhecer numa sociedade em que os grupos se diversificam ao infinito, mesmo sem necessariamente se tornarem tribos, e em que cada um imita os outros, prega o conformismo e vive na “insignificância”? Diversificação e uniformização alcançam o mesmo objetivo: cada homem se torna cada vez mais parecido com o outro, e cada um, por isso mesmo, vê aumentar a própria angústia diante do duplo que o assalta e, para proteger-se, refugia-se no “narcisismo das pequenas diferenças”.
Fazendo de cada um seu semelhante e irmão, a democracia criou um mundo em que o outro pode se transformar em inimigo. Somente com o debate coletivo e uma ação coletiva é que talvez seja possível considerar o outro, sempre estrangeiro em alguns aspectos, alguém que não quer nem sofrer em demasia nem ser humilhado, com direito à dignidade e à consideração, alguém de quem não se deve ter medo.
Há cerca de vinte anos, filósofos, politicólogos, sociólogos e psicanalistas vêm proclamando seu consenso sobre um ponto que a seus olhos se revela essencial: a necessidade de todo homem de reconhecer no outro um semelhante e, se possível, um irmão, para poder ocupar verdadeiramente a posição de ser humano e ser social. Essa perspectiva comum vem sendo, por outro lado, constantemente escarnecida pelos fatos. O fim da Segunda Guerra Mundial não significou, de modo algum, o fim dos massacres e dos genocídios. Podemos até nos perguntar, como G. Agamben,[1] se todos os homens são passíveis de tornar-se homines sacri, ou seja, indivíduos que se descartam ou até se matam sem se culpar[2] e sem serem punidos, na medida em que “o homem moderno é um animal cuja política põe em questão sua própria vida de ser vivo”.[3] Raramente existiu tal discordância entre pensamento e dados empíricos. Tudo se passa como se quanto mais elevadas as palavras dos homens, mais rebaixada sua experiência cotidiana.
Precisamos, portanto, nos perguntar quais os motivos para esse descompasso, e abordar essa questão central sem preconceitos nem fingimentos.
A EXPERIÊNCIA ORIGINÁRIA
Ela foi resumida com perfeição por Sigmund Freud nestas frases luminosas:
Na vida psíquica do indivíduo considerado isoladamente, o outro intervém regularmente como modelo, objeto, apoio e adversário […] As relações do indíviduo com pais e irmãos, com o objeto de seu amor, com seu professor e com seu médico, todas as relações, portanto, que foram até agora objeto privilegiado da investigação psicanalítica podem reivindicar que sejam tratadas como fenômenos sociais.
E, acrescenta, o homem sempre é “membro de uma linhagem, de um povo, de uma casta, de uma instituição”.[4]
Assim, com exceção de alguns processos, chamados de “narcísicos” por Freud e de “autísticos” por Bleurer, nos quais a satisfação pulsional é predominante e se subtrai à influência do outro, é possível adiantar que a psique do indivíduo é modelada, atravessada, trabalhada pelos outros e que o sujeito psíquico é, simultaneamente, um sujeito social.
Tal emergência, decerto, não é um processo fácil. Mesmo sem aceitar a teorização proposta por Castoriadis,[5] segundo a qual só existe, na origem, uma “mônada psíquica”, que deseja a satisfação imediata e luta contra toda infração, benévola ou maligna, desencadeada pelos primeiros educadores para transformar o infans (que não tem palavra e se comporta como um animal, movido por instintos primários) numa criança (ou seja, um ser social que reconhece os seus pais e toma consciência dos próprios limites), sabe-se que o encontro com o outro, ainda que se apresente de início no modo de objetos parciais (o seio da mãe, objeto privilegiado por excelência), é fonte não apenas de satisfação (Bowlby escreveu belíssimas páginas sobre a pulsão do apego) como também de extrema angústia — sobre a qual insistiu, com razão, Melanie Klein —, que faz com que a criança viva em um clima, muitas vezes aterrador, de criação-destruição. O outro está, portanto, presente, já de início, com suas cargas positivas e negativas, e não é de surpreender que mais tarde, embora seja indispensável para a construção do sujeito como ser humano (o selvagem de Aveyron nunca conseguiu se tornar um verdadeiro representante da espécie humana), o outro possa, ao mesmo tempo, aparecer na forma de adversário, ou mesmo de inimigo que busca a eliminação psíquica ou física do sujeito.
De que modo o outro entra na construção do sujeito humano (sempre sujeito social)? De duas formas: uma forma imaginária e uma forma simbólica.
Forma imaginária: Lacan assinalou a importância da imagem especular em seu famoso texto “O estágio do espelho como formação da função do Eu”.[6] Em artigo anterior,[7] retomávamos, resumindo-as, as ids de Lacan:
Se o eu se constitui a partir da imagem especular, é por uma apreensão global (antecipação do domínio do corpo). Mas essa apreensão do corpo como unidade, que faz surgir o júbilo fora do “estágio do espelho”, só é possível porque a criança é, antes de tudo, constituída como unidade pelo olhar do outro sobre ela […] só podemos nos ver porque o outro nos vê e fala de nós. É, portanto, por uma identificação com a imagem que os outros têm sobre nós que podemos ter uma imagem de nós mesmos. O que significa que o eu é constituído, desde a origem, como instância imaginária e remete diretamente ao conjunto dos modelos imaginários do sujeito.
A imagem especular é, portanto, a imagem do semelhante, mas ela nos adverte da presença de um outro “si mesmo” no espelho, e de um outro real que nos fala, nos designa e nos atribui qualidades e defeitos. Assim, se o outro nos constitui em nossa unidade, também nos constitui em nossa divisão. Pois ele nos lembra que, se pode ajudar a nos construir, pode também nos rejeitar ou provocar nossa ruptura. Surge então, junto com o júbilo ligado à percepção de nossa existência, o retorno do sentimento de fragmentação (vivenciado pela criança, já que, antes do estágio do espelho, ela só percebia a si própria como corpo fragmentado cuja apreensão total ela não alcançava), na modalidade de angústia da fragmentação. Acrescente-se a isso o fato de que reconhecer-se obriga a reconhecer igualmente o outro, que nos fala como outro, e a renunciar, portanto, à onipotência infantil inconsciente e ao recolhimento na “mônada psíquica” ou no “sentimento oceânico” (expressão usada por Romain Rolland para evocar a vivência do ser quando ainda não se sabe distinguir entre o próprio corpo e o mundo). Ao fazer isso, o sujeito depara com a castração. Ainda não se trata da castração simbólica contemporânea do Édipo, mas de uma primeira castração, mais violenta (pois não se abre para o regime do adiado e do diverso: “A mãe é proibida, mas outra mulher, diferente, nos será permitida mais tarde, se soubermos conquistá-la”), que tem como significado: a) o sujeito pode ser fragmentado pela ação dos outros, particularmente por seus próprios pais ou educadores; b) além disso, existem outros, que são semelhantes (“Meu semelhante, meu irmão”, como escrevia Baudelaire), com suas próprias exigências, que podem bloquear os desejos do sujeito e, portanto, lembrá-lo de seus limites e destiná-lo à finitude; c) não só o outro está presente, com todo seu poder real ou fantasiado, como estão presentes outros, com variadas imagens do sujeito, manifestando pressões e injunções (por vezes paradoxais) em relação a ele, devendo ser amados ou seduzidos, ou simplesmente aceitos, obrigando o sujeito, se ele quiser agradar, não ser rejeitado, a diversificar suas atitudes e condutas e, portanto, comportar-se de modo proteiforme. O que o impede de conquistar sua própria diversidade e o obriga a viver apenas na aparência e a contentar-se com desempenhar da melhor forma possível os múltiplos papéis exigidos. Observe-se, aliás, que em nossa época, época da “multidão solitária”[8]em que apenas os “homens radares” (na terminologia de Riesman) têm alguma oportunidade de ser bem-sucedidos, pois sabem sentir os ventos e “navegar” evitando os recifes, adaptar-se, ser flexíveis e ágeis (para retomar uma expressão que causa furor nas empresas) e colocar-se, portanto, no time dos “lutadores”, dos “matadores cool”, dos “vencedores”, cada indivíduo está cada vez mais entregue ao olhar e à palavra do outro. Ele se vê, portanto, forçado (se aceitar — às vezes a contragosto — as normas e obrigações da nova sociedade do capitalismo financeiro triunfante) a ter o comportamento adequado às diferentes situações em que se encontra. Então está arriscado a ver rompida a unidade — decerto sempre imaginária, ilusória, temporária — que conseguiu conquistar, a reforçar os mecanismos de clivagem, sempre atuantes em sua intimidade, ou mesmo a impedir-se, definitivamente, de tornar-se um sujeito dotado de interioridade, que construa sua identidade sabendo que se trata de um trabalho sem fim. Compreende-se então que a importância dessa forma imaginária de intrusão dos outros acarrete, no sujeito, reações de tipo paranoico. Com efeito, ele fica exposto a perseguidores, mais ou menos virulentos, no início perseguidores externos, mas que mais tarde se tornam, devido aos mecanismos de introjeção, perseguidores internos. Não é sem razão que psicanalistas e psiquiatras lidam, cada vez mais, com comportamentos violentos do tipo paranoico (a linguagem corrente é sinal dessa evolução: quantos adolescentes não dizem entre si: “Tá paranoico, é?”?), assim como com distúrbios de identidade. Se o indivíduo isolado sente falta de ar para respirar, o indivíduo constantemente sujeito à vigilância dos outros sente-se perseguido ou presa de uma fragmentação. Assim, o sujeito humano experimenta uma enorme dificuldade para desfazer-se dessa presença dos outros dentro de si, presença que ele muitas vezes sente não como apoio, mas como intrusão. É mais difícil que ele se desaliene (no sentido estrito do termo), apesar da presença de um “eu-pele”[9] que lhe garante alguma proteção, permitindo-lhe estabelecer uma barreira entre ele e os outros, de modo que não está, portanto, totalmente aberto, pelo fato de esses outros estarem instalados dentro dele desde muito antes de seu nascimento. Todos os estudos recentes de psicanálise demonstram a importância da transmissão transgeracional. Os avós e os pais não deixam como herança para seus descendentes apenas suas alegrias e tristezas, sua maneira racional de colocar os problemas, valores ou mesmo ideologia, mas também seus fantasmas não saciados, suas angústias, seus esquecimentos, suas negações, suas repressões de lembranças e de atos passíveis de provocar vergonha ou horror. Como Abraham e Torok[10] demonstraram, existem “criptas” inseridas dentro do ser humano, “efeitos-fantasma”. Estamos expostos àquilo que A. Mijolla chama, com pertinência, de “os visitantes do eu”,[11]que abrem em nossa psique trincheiras tão mais operantes por serem inconscientes, ou mesmo negadas pelo sujeito que é presa deles. Somente por meio da análise ou de uma auto-análise muito profunda é que os indivíduos chegam a desvendar esses “tesouros” (muitas vezes envenenados), enterrados há anos, que os controlam à revelia e fazem deles sujeitos mais “falados” do que falantes.
Assim, o outro em si nem sempre é aquele ser benevolente no qual a pessoa se apóia para construir sua identidade, mas pode ser uma sombra, um falso duplo que suscita uma inquietude da qual o sujeito não sabe “como se livrar”. A forma imaginária pode, assim, nos fornecer os primeiros rascunhos do outro como inimigo potencial dedicado à nossa destruição interna.
Forma simbólica: todo indivíduo vincula-se não a uma “ordem simbólica imutável”, como a que Lacan e seus discípulos tentaram construir,[12]mas a um conjunto de instituições (nação, região, classe, família) que o moldam desde o início, desde seu nascimento. Os antropólogos culturalistas (Ruth Benedict, Abraham Kardiner) enfatizaram a influência predominante dessas instituições nos métodos educacionais (eles às vezes falam, inclusive, em “criação”), que fazem dos indíviduos seres conformes às normas de sua sociedade (Castoriadis falaria em “indivíduos heteronômicos”). Como diz Ruth Benedict, “um dobu jamais poderá se comportar como um kwakiutl”. Os antropólogos, sem dúvida, frequentemente carregaram nas tintas. Não se trata de levar em conta todas as suas hipóteses. Mas o fato é que, embora não seja possível, como pensava Lévi-Strauss em certa época, dividir a humanidade em “sociedade com berço e sociedade sem berço”, ou deduzir o caráter nacional dos russos partindo dos métodos de acobertamento dos recém-nascidos (como acreditava G. Gorer), é incontestável (e Freud, assim como os sociólogos, bem o demonstra) que os indivíduos são marcados desde que nascem para serem os representantes e dignos herdeiros de uma linhagem familiar, nacional etc. E a id de “forma simbólica” acrescenta o essencial dessa relação entre as gerações: a dívida com aqueles que nos precederam e, igualmente, a dívida com as gerações futuras, a quem devemos transmitir uma herança que não seja onerosa. Essa dívida não significa que o herdeiro deva se comportar exatamente de acordo com o esquema prescrito. Ele pode aceitar a herança enquanto procede a seu inventário, pode principalmente [13]questioná-la, desprender-se dela, transformá-la ou até recusá-la, mas com uma condição: reconhecer que ela existe. Somente quando se aceita que se tem um pai (ou mais de um) é que é possível chegar, por sua vez, à função paterna. Em compensação, as pessoas povoadas pelo fantasma da autogênese são todas incapazes de construir uma linhagem, isso quando não caem na paranoia, fonte de todo desejo de destruição. A forma simbólica da presença do outro em nós nos lembra de nossos deveres em relação aos mais velhos que nós. Cuidado, não se trata aqui de algum objetivo moralizador, e sim da enunciação de uma norma que governa a espécie humana: todo indivíduo tem, desde que nasce, uma dívida não só para com seus pais, mas também para com sua nação (e, acrescentemos, para com a humanidade inteira), e é o reconhecimento dessa dívida que faz dele um representante da espécie humana e não um animal predador. Sendo assim, todos os homens reais estão longe de respeitar essa norma. Eles se julgam autônomos sem que tenham “trabalhado” os vínculos da heteronomia necessária para que uma sociedade (ou melhor, a humanidade) exista. É, em parte, por esse motivo que Tanatos os seduz mais do que Eros, mesmo que afirmem o contrário.
O PESO DA MODERNIDADE
O reconhecimento do outro está na ordem do dia, escrevíamos no início deste texto. Por quê, a não ser pelo fato de o outro ser o avesso do “Eu”? Se eu existo, se penso, se tenho deveres, se tenho o direito de tentar cumpri-los, se, portanto, me comporto como o indivíduo típico de nosso mundo individualista (ou seja, que fez do êxito do indivíduo “a medida de todas as coisas”, para retomar os termos de Protágoras), se ninguém (nem o indivíduo concreto, nem o Estado, nem outras instituições) tem o poder de me impedir, desde que eu respeite as leis e as regras vigentes, então devo aceitar que todo homem (ou pelo menos todo cidadão de minha nação) possa dispor das mesmas liberdades e das mesmas prerrogativas. O individualismo não é concebível fora da democracia.
Se essas responsabilidades fossem atribuídas a um só indivíduo, teríamos a tirania ou a monarquia. Se apenas alguns (um grupo, uma casta, uma classe) pudessem se expressar e criar o mundo à sua imagem, viveríamos num regime oligárquico. Tal ideia é tudo, menos original. No entanto, é raro nos darmos conta de suas implicações, e é mais raro ainda que nos livremos dos obstáculos à sua realização.
Reconhecer no outro um semelhante significa, em primeiro lugar, que cada um, como acredita Levinas, recebe do rosto do outro um chamado e se sente responsável por ele. O outro lhe aparece como um fragmento da humanidade inteira, e, consequentemente, se ele se sente e se quer parte da espécie humana, não pode permanecer surdo (ou cego) à sua palavra, ao seu desamparo, quem sabe, ou, de todo modo, à sua existência. Recusar o outro seria cair no narcisismo mais mortífero. Sem o reconhecimento da alteridade, sem a aceitação ou, mesmo, sem a veneração do rosto do outro (Levinas), só podemos nos encerrar em prisões que criamos, tão terríveis como os carcieri d’invenzione esboçados por Piranese.[14] Se todo ser humano deve contribuir para a vida do espírito, como acreditava Freud,[15]sob pena de cair vítima de uma doença esterilizante e mutiladora ou, pior ainda, de tornar-se o arauto do mal radical, deve ver no outro um ser que, embora diferente e único (“Ame o que você nunca verá duas vezes”, escrevia Vigny), é indispensável à sua própria vida. E assim pode sentir em si mesmo todas as dificuldades e infelicidades vividas pelo outro (Tocqueville já havia indicado que essa empatia constituía a base das sociedades democráticas), pois todo homem é, a um só tempo, específico e representante do Universal. Ele terá então o prazer (e não a obrigação) de trabalhar, elaborar valores, preocupar-se com esse outro, em uma palavra, colaborar com ele, permanecendo o mais próximo possível de sua autenticidade.
É legítimo perguntar-se se tal atitude não é, além de possível, a expressão da mensagem cristã: “Amai-vos uns aos outros”. É conhecido o sarcasmo de Freud[16]a respeito desse ideal de amor total sem obrigação de reciprocidade. Freud, ao contrário, evidencia a agressividade que estaria contida no coração de todos:
O homem é, com efeito, tentado a satisfazer sua necessidade de agressão à custa do próximo, a explorar seu trabalho sem compensá-lo, a usá-lo sexualmente sem seu consentimento, a apropriar-se de seus bens, a humilhá-lo, a impor-lhe sofrimentos, a martirizá-lo e a matá-lo.
Homo homini lupus: quem teria coragem, diante de todos os ensinamentos da vida e da história, de contrariar esse adágio?
Se Freud é tão categórico, e se certamente teria dado de ombros ao ler as obras de terapeutas humanistas americanos, de Carl Rogers a Rollo May ou Manuel Rosenberg, que pregam “a aceitação incondicional do outro” e a adoção de uma atitude de compreensão em relação a ele, é porque percebeu, em seu trabalho analítico, os abismos que a psique humana encerra (quando não estava se interrogando sobre o trágico da vida social). Pois o confronto com nós mesmos nos revela paulatinamente os despenhadeiros que nos habitam. Com efeito, todo homem percebe, se for lúcido e não ceder à cegueira e ao contentamento beatífico (como o manifestado por uma senhora da boa e puritana sociedade americana, que, após escutar uma conferência de Freud sobre a análise dos sonhos, não admitia que seus sonhos pudessem não ser “altruístas”, mostrando “todo o amor que ela sentia pela humanidade”), a própria estranheza dentro de si mesmo. Freud deu a esse processo um nome: “a inquietante estranheza” (Das Unheimliche). Ele relaciona essa angústia com um aflorar de medos arcaicos, medo da morte e de ser enterrado vivo, do sexo das mulheres (medo, portanto, tanto do fim como da origem), medo das pulsões primitivas vivenciadas como maléficas, mas medo também do familiar (do heimlich), do conhecido que permaneceu muito tempo escondido “em segredo, na sombra”, mas “que saiu de lá” (para retomar a frase de Schelling). Então, se o próprio homem sabe (ou percebe implícita ou inconscientemente) que “a experiência pelos abismos” (Henri Michaux) faz com que veja “as explosões do grisu da alma” (Victor Hugo) e descubra um outro (“Eu é um outro”, já dizia Rimbaud), um duplo maléfico dentro de si (como o Goliadkine de Dostoievski), ele só pode desconfiar de um outro semelhante a ele, cheio de meandros, impasses, violência contida, que pode, um belo dia, voltar sua violência justamente para aquele que se interessou por ele. Trata-se, em suma, da existência de certo ódio de si mesmo presente em todos os homens (um ódio que pode se evidenciar graças à análise e à auto-análise, ou operar de modo surdo e constante, dentro da psique), que é alimento essencial da exclusão do outro e da desconfiança (quando não se trata de ódio) de suas intenções, conscientes ou inconscientes.
Se lembrarmos que, no primeiro parágrafo deste texto, insistimos na presença em si do outro, que podia acarretar reações paranóicas no sujeito, podemos dizer que o ódio de si mesmo e o ódio (ou simplesmente medo, ou angústia) do outro em si, que ameaça a nossa película protetora, são dois dos processos essenciais que impedem de aceitar o outro tanto quanto desejaria a mensagem evangélica.
Outros obstáculos existem, decorrentes de nossa modernidade. Nos últimos vinte anos, o indivíduo foi incensado, colocado no centro da vida social. Mas esse indivíduo, como observamos anteriormente, só é elogiado, ou mesmo aceito, se manifestar uma força e um “moral” (termo em voga particularmente nos meios esportivos, obcecados pela performance) a toda prova, se adotar os modos e o brilho da modernidade, ou seja, caso se comporte como um vencedor que não tem medo de ferir ou matar o outro (diz-se que um grande jogador de tênis é um “matador”). Essa perspectiva parece, a priori, antidemocrática. No entanto, trata-se apenas de uma perversão da democracia, quer dizer, da excrescência catastrófica de uma característica essencial sua. Pois a democracia, ao proclamar que todo homem é um ser dotado de razão e desejos, colocou o conflito como fundamento da sociedade. Cada um entra em conflito com todos os outros (competição política ou esportiva, concorrência econômica, emulação pedagógica, distinção social…). Tudo acontece como se a democracia se baseasse no conflito generalizado (tendo no mérito e na confiança as regras do jogo, é claro), que tende, no fim das contas, a uma harmonia generalizada (a um equilíbrio geral — não só econômico — de tipo walrasiano), resultado de não se sabe que “mão invisível”, ou que “oficial de justiça”, ou que métodos de regulação rápida (negociações, intervenções do Estado), caso o equilíbrio não se realize ou acarrete consequências sociais que abalem o próprio político.
Assim, a democracia celebra o conflito. Faz parte de sua natureza preferir os jogos de estratégia e os debates à guerra aberta. Mas os jogos e debates podem ser formas disfarçadas de guerra. Quando é preciso triunfar, todos os meios se tornam válidos e a guerra (econômica ou política), mesmo não declarada, se torna o meio derradeiro.
Terão razão não os que se revelem mais lúcidos ou mais acolhedores no debate público, mas os mais fortes. Ser o primeiro, o excelente, o performático, é essa a palavra de ordem, ensinada em todas as escolas de administração (especialmente as americanas) onde os futuros executivos são educados para que se tornem futuros Gengis Khans ou Napoleões. Além disso, é difundida por toda a trama social e interiorizada por grande parte da população. A escolha é simples: ser vencedor ou fazer parte da coorte dos “deserdados sociais” (Robert Castel), dos marginais, dos indivíduos em via de exclusão. Se alguns indivíduos vêm abaixo ou não conseguem fazer frente ao quadro, são rejeitados, humilhados. A culpa será deles (a psicologização dos problemas em seu apogeu). Eles que tentassem ser sempre os mais jovens, arriscar-se, mostrar seu “ego grandioso” (O. Kernberg) em ação, ser “positivos”. Morte aos vencidos ou, pelo menos, falta de consideração[17]ou de deferência com eles, ou apenas o desprezo puro e simples. Nem todo mundo, decerto, se reconhece em Jean-Marie Messier (J2M, que quer se tornar J5M: Jean-Marie Messier, eu mesmo, mestre do mundo) ou em Alain Minc. Mas, não obstante a resistência cada vez maior à marcha forçada dessa ideologia do sucesso, que se manifesta em diversas partes do mundo, o esmagamento dos indivíduos (ou grupos) mais fracos continua na ordem do dia, e o reconhecimento da existência e da dignidade do outro, presente em todos os discursos, desaparece nos atos. Assim, cada um é solicitado não a ser o mais consensual possível (armadilha extrema de nossa democracia moderna), mas a reaprender a lutar. A dignidade e a existência de cada um nunca são resultado da passividade e da aceitação, e sim da luta. Mas é preciso cuidado! Seria bom que os revoltados não chegassem a considerar os outros — os que conseguiram encontrar um lugar ao sol — apenas como inimigos. Com isso, estariam apenas adotando a ideologia dominante que faz de todo outro um adversário, alguém dedicado ao mal, sem que se veja primeiro seu próprio trabalho de destruição.
O ROSTO DO ESTRANGEIRO
Os problemas ligados ao reconhecimento da alteridade têm, portanto, solução mais difícil em nossas conflituosas sociedades modernas. O outro transformou-se, de forma cada vez mais frequente, em um objeto descartável quando não traz mais benefício para aqueles que o fizeram introjetar sua ideologia da competição, que conseguiram manipular seus sentimentos, orientar sua conduta e nele inocular a culpa, em caso de fracasso.
Mas nossas sociedades não são apenas excessivamente conflituosas. Estão se tornando complexas, o que significa que estão admitindo (ou sendo obrigadas a admitir) uma grande variedade de componentes humanos. E se o outro, o nativo, o concidadão, está sujeito à desconfiança e ao desprezo dos que se vêem como elite, justamente por sua alteridade, que lembra a cada um seu próprio aviltamento e sua própria mácula interna (o interior de todo homem talvez contenha tesouros, mas sempre em meio a uma imundície nauseabunda), que destino pode estar reservado para aquele que traz o rosto do estrangeiro, sinônimo de desconhecido angustiante, às vezes até de inimigo?
O estrangeiro, nas sociedades fechadas, relativamente imóveis (já que não há sociedade sem história), ocupa um lugar atribuído pela tradição. Será aceito, adulado ou então morto e devorado. Seja como for, não há como escapar ao seu destino.
Nas sociedades conflituosas do século XIX e do início do século XX, os estrangeiros, embora muitas vezes numerosos, encontram a duras penas um lugar, ou aceitando assumir os trabalhos mais vis, tornando-se no início tão invisíveis quanto possível (caso dos que emigraram para os Estados Unidos durante todo o século XIX, ou para a França no século XX, até por volta de 1960 — com exceção dos judeus, que constituem um grupo com uma história específica) e integrandose essencialmente como trabalhadores de mérito; ou, ao contrário, conquistando um lugar de destaque ao sol graças a seu talento criativo (Hollywood foi “inventada” por imigrantes essencialmente judeus: as grandes companhias — Metro-Goldwin-Mayer, Warner Bros, Fox ou Universal — foram todas fundadas por judeus) ou à violência, burlando as leis (a Máfia siciliana e os gângsteres judeus nos Estados Unidos do início do século XX). Constata-se, não obstante incontáveis problemas, sua progressiva americanização, apesar de reações xenófobas nativas. O estrangeiro ou se funde na paisagem (e agradece-se a eles por isso), ou ocupa um lugar à força, provocando com isso fascinação e estupor. Uma nação (e os indivíduos que a compõem) sempre pode admitir em seu seio um determinado número de “inferiores” que se dedicam às tarefas menos nobres, aos “dejetos”, pois eles não tomam a palavra (a não ser dentro de sua própria comunidade), são pouco visíveis e permitem que as populações nativas despejem sobre eles a abjeção interna da qual querem se livrar. Uma nação (e seus membros) pode também aceitar grupos (sicilianos, judeus) perturbadores, pois eles são veículo para o escândalo, e sabe-se muito bem que a encenação exagerada de seus comportamentos, a visibilidade excessiva, permite que sejam simultaneamente vilipendiados e invejados. Vilipendiados por fazer o que os da terra tiveram medo de fazer, e, principalmente, invejados, pois ousaram se comportar de modo diferente, como nômades em um país sedentário, como alguém que realiza os seus desejos em uma sociedade aprisionada por um superego coletivo, como se falasse a língua das pulsões mais viris e mais espetaculares em um universo civilizado no qual a conveniência é um hábito.
Assim, bem ou mal, tanto os invisíveis como os demasiadamente visíveis acabam encontrando o seu lugar, um lugar, contudo, sempre excentrado. Situam-se, quer pela falta, quer pelo excesso, na periferia da sociedade. Permanecem, no exato sentido da palavra, excêntricos, e são vistos exatamente assim.
Em nossas sociedades, ainda conflituosas mas agora complexas, isto é, sujeitas a fluxos migratórios, oficiais ou clandestinos, extremamente importantes (o que permite que todos os grupos se constituam mais ou menos em comunidades), a questão muda de figura. Os novos imigrantes não se contentam com um trabalho vil ou servil. Muitas vezes estudam, sobem na hierarquia social e competem com as populações locais. Têm visibilidade (já que são numerosos), e querem isso. Têm na maneira de vestir, no modo de ser e falar, sinais de distinção positiva. Não querem ser relegados a bairros abandonados. Já que vivem numa democracia, querem com todo o direito aproveitar a experiência democrática e sentir, no mundo que vivenciam, que dela participam plenamente. Querem (a maioria, pelo menos) integrar-se sem ser assimilados, ou seja, sem ser forçados a adotar exclusivamente os “padrões” da sociedade que os acolhe. Ao contrário, tentam (sem que nem sempre seja um projeto consciente), moldar esses padrões à sua maneira, acrescentar sua criatividade própria e, como dizia Foucault a respeito do pensamento de Nietzsche, “utilizar [essa sociedade], deformá-la, fazê-la gemer e protestar”. Poderiam adotar a perspectiva de Garfinkel,[18] para quem “a realidade social é uma realização contingente e continuada de atores sociais competentes, que constroem continuamente seu mundo social mediante práticas organizadas da vida cotidiana”. A despeito das reticências ou resistências em relação a eles, sabem, mais ou menos lucidamente, que, como dizia Nietzsche, “qualquer coisa decisiva só se constrói com base em um apesar de tudo”.[19]
Pretensão desmedida, pensarão alguns. Assim, eles podem ser objeto fácil de todas as repulsas, receptáculo dos impulsos mais agressivos, alvo ideal para o ódio que todos guardam. Fazem vacilar as certezas. Ora, o homem médio do país que os recebe (assim como as classes médias) precisa de certezas, de respostas prontas. É muito difícil para ele saber, questionar seus próprios preconceitos. Ele gosta de ideias prontas e prefere espontaneamente o que é próximo e conhecido ao que oferece uma “estranheza inquietante” (caso de todos os estrangeiros, principalmente quando parecem exóticos). Ele também tem medo de que os recém-chegados ocupem o seu lugar no trabalho, no comércio intelectual (como R. Camus, ao deplorar o número de judeus na cultura francesa, no programa France Culture), e lhe arranquem a carapaça protetora que os séculos anteriores moldaram para ele. Ele se sente invadido. É acometido de um complexo legítimo, que chamaremos de complexo de intrusão, o qual expressa o temor, e até a angústia, de quem vê seu “eu-pele” perfurado e suas defesas maltratadas. Além disso, nessa sociedade conflituosa complexa marcada pela “luta dos lugares”,[20] ele tende a perder seus parâmetros habituais. A presença dos estrangeiros contribui para tornar nebulosas suas opiniões e para aumentar as névoas em que ele se debate. Políticos hábeis reforçam seus medos, exorcizam todos os seus defeitos, tentam insuflar-lhe novos dogmas. O estrangeiro, o imigrante, torna-se nesse momento o portador de todos os pecados, da sujeira universal, do mal radical (com exceção daqueles, geralmente atletas — mas são raros —, que favorecem a glória nacional).
Nem todos os nascidos no país, naturalmente, reagem desse modo. Alguns são favoráveis ao multiculturalismo, à mestiçagem das etnias e dos grupos, assim como das ids. Estes (ou outros) estão prontos para ajudar os estrangeiros ou para defendê-los. Mas o fato é que a presença, em um território, de muitos estrangeiros que começam a tomar a palavra desperta em cada um algum movimento de medo, de modo que ninguém está a salvo do ódio de si e do ódio do outro.
É indispensável não omitir esse aspecto, sob pena de cairmos vítimas de uma efusão idílica, de aceitação “incondicional” do estrangeiro. O estrangeiro incomoda. E ele não pode deixar de incomodar, mesmo que não seja essa a sua intenção. Pois um estrangeiro é sempre um
“exotista” (alguns mais que outros) e um “exotista” (no sentido que lhe deu Victor Segalen) [21]é aquele que interroga, com sua própria existência, as normas, os usos e costumes da sociedade que o “acolhe”. Assim, mesmo entre os menos xenófobos, entre os antiracistas, é possível perceber alguns elementos — às vezes bastante tênues — de rejeição do outro. Não há homem (e grupo) totalmente aberto. Cada um precisa de seu próprio muro, sob pena de tornar-se uma esponja e perder sua consistência. Cada um deve pensar que, se ele próprio não é isento de defeitos e de pulsão agressiva, o outro é feito da mesma matéria. E mais ainda se vier de um país antes colonial, pois pode ter algum tipo de “ressentimento” em relação aos antigos colonizadores. É impossível tratar aqui[22] a questão do ressentimento. Contentemo-nos em dizer que, em uma sociedade tão conflituosa (ao ponto de podermos perguntar se o termo sociedade pode se aplicar à realidade atual), o ressentimento é a atitude emocional mais facilmente partilhada, pois todo mundo pode se queixar de uma situação em que todos podem ser vencedores, se tornarem ricos e poderosos, e onde também todos podem, certo dia, se verem rejeitados e espezinhados. Assim, é preciso manter a vigilância e não se fazer de santo, sob pena de, quem sabe, despertar a fera que cada um traz dentro de si.
O problema é, aliás, não só complexo como complicado. Pois quem, no nosso mundo, pode não se sentir um tanto “estrangeiro” àquilo que acontece? Tudo, em nossa sociedade (continuemos utilizando esse termo inadequado) é feito para que ninguém participe do conjunto do funcionamento social. O povo se sente distante da nação, os eleitores, dos homens políticos, os executivos, dos dirigentes das grandes empresas, os habitantes de uma região, dos de outra região (pelo fato de levar-se em conta as diferenças culturais), as mulheres, dos homens, os filhos, de seus pais… É desnecessário estender uma lista que logo se tornaria enfadonha. Participamos apenas de alguns segmentos do socius, de alguns grupos, organizações, turmas, confrarias, seitas, escolas de pensamento etc., que se tornam autônomos, desenvolvem seu próprio modo de comunicação e sua própria forma de reconhecimento. Só um doido seria capaz de, como dizia Hegel, “dar alguma unidade à diversidade da sociedade civil”. Ao mesmo tempo, todos começam a tornar-se parecidos com todos: os jovens de todas as categorias sociais desejam os mesmos calçados e as mesmas camisetas, os velhos tentam macaquear os jovens e manter-se em forma, as mulheres querem (e compreendem-se as razões) os mesmos direitos dos homens etc. A lista seria, mais uma vez, extensa. Como se reconhecer numa sociedade em que os grupos se diversificam ao infinito, mesmo sem necessariamente se tornarem tribos, e em que cada um imita os outros, prega o conformismo e vive na “insignificância”, para retomar o termo de Castoriadis?[23] Quais os resultados deste processo paradoxal: o recuo identitário cada vez mais acentuado, a indiferença (ou o desprezo) pelo outro, a desconfiança generalizada, o declínio do pensamento crítico e do pensamento tout court, o medo da introspecção, a acomodação num mundo de aparência. Diversificação e uniformização alcançam o mesmo objetivo: cada homem se torna cada vez mais parecido com o outro, e cada um, por isso mesmo, vê aumentar a própria angústia diante do duplo que o assalta, e cada um, igualmente, para proteger-se, refugia-se no “narcisismo das pequenas diferenças”.[24] É possível que ele passe a ver no outro um inimigo do qual tem de defender-se. Estrangeiro para si mesmo, estrangeiro para os outros, apesar e por causa de sua similitude. Quando esse processo é levado ao ápice, chega então “o tempo dos assassinos” (Rimbaud), a hora dos massacres, do ódio moído e remoído que anseia por exteriorizar-se. Bósnia, Kosovo e Ruanda são exemplos extremos.
Fazendo de cada um seu semelhante e irmão, a democracia (constantemente desviada e pervertida) criou um mundo em que o outro pode se transformar em inimigo (o que já acontecia com a psique em seus primórdios, quando o bom seio podia se tornar um mau seio).
RUMO A UM TRIUNFO DE TANATOS?
O quadro esboçado pode parecer um tanto sinistro. Mas é preciso ir além, pois sabemos, como dizia Mallarmé, que “uma descrição inteligente faz do mundo um pleonasmo”, e somente isso. Assim, temos de pensar que essa variedade (e essa uniformidade) do mundo é um desafio que precisamos aceitar. A humanidade, em sua marcha caótica, soube até o momento resolver — mais ou menos bem — os problemas que eram apresentados a ela. Não há nenhum motivo para desânimo, mesmo que saibamos que temos de lutar “na contraencosta”,[25] lutar contra nós mesmos (contra a nossa parte mortífera), lutar contra o conformismo, restaurar o trabalho de um pensamento livre, desembaraçado de toda autoridade tutelar, rumar em direção à autonomia, pôr em obra os processos de sublimação que nos permitem partilhar com outrem o pensamento e as emoções.
É impossível esboçar aqui um programa. Seria necessário outro texto. De todo modo, seria prepotência que um intelectual o formulasse sozinho. Somente com o debate coletivo com os vários sujeitos (termo que preferimos a atores) sociais, e uma ação coletiva refletida e continuamente analisada, é que talvez seja possível fazer com que Eros sobrepuje Tanatos para então considerar o outro, sempre estrangeiro em alguns aspectos, alguém que não quer nem sofrer em demasia (mas o sofrimento nunca pode estar totalmente ausente) nem ser humilhado, que tem direito à dignidade e à consideração, que luta para ser reconhecido, alguém de quem não se deve ter medo. Se, apesar dos esforços despendidos, demonstrar-se que o outro é de fato um inimigo que só deseja a nossa destruição, então teremos de aceitar o combate, embora sabendo que essa é sempre a pior solução. Não existe guerra justa, mesmo que algumas guerras sejam mais aceitáveis que outras. Mas é indispensável manter essa possibilidade. Em 1939, as democracias por pouco não pereceram devido a seu imobilismo e a seus comprometimentos. Como sugeria Bergson, elas já não tinham “vontade de viver”. A luta contra a morte não pode ser excluída de nossas preocupações, pois o outro pode, tanto quanto nós, ser apenas o representante da pulsão de morte. Mas é melhor se assegurar, e mais de uma vez, tentar mudar a si mesmo (condição de qualquer mudança possível, como Wittgenstein sugeriu várias vezes), ser compreensivo, estabelecer o diálogo, sem ignorar discordâncias ou antagonismos. A boa surpresa talvez aconteça. O leão perigoso se transformará em “leão risonho” (Nietzsche), e o amor suplantará o ódio. Trabalhemos nesse sentido. Mas não se pode pedir o impossível.
Tradução de Dorothée de Bruchard
[1] G. Agamben. Homo sacer. Paris: Seuil, 1997.
[2] Eugène Enriquez. “Tuer sans culpabilité”. L’Inactuel, n0 2, Circé, 1999.
[3] Michel Foucault. La volonté du savoir, vol. I: Histoire de la sexualité. Paris – Gallimard, 1976.
[4] Sigmund Freud, “Psychologie des foules et analyse du moi” (1921). In: Essais de psychanalyse. Trad. francesa. Paris: Payot, 1981.
[5] Cornelius Castoriadis. L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil,1975.
[6] Jacques Lacan. “Le stade du miroir comme formation de la fonction du Je”. In Écrits. Paris: Seuil, 1965. Na verdade, Lacan apresentou suas ids oralmente já em 1936, no Congresso Internacional de Psicanálise de Marienbad, e as mencionara em seu estudo de 1938 sobre “os complexos familiares”, publicado na Encyclopédie française, vol. VIII, “La vie mentale” [A vida mental].
[7] Eugène Enriquez. “Imaginaire social, refoulement et répression dans les organisations” (1972), reeditado em Les jeux du pouvoir et du désir (Paris: Desclée de Brouwer, 1997).
[8] David Riesman. La foule solitaire (1950). Trad. francesa. Paris: Artaud, 1960.
[9] Didier Anzieu. Le moi-peau. Paris, Seuil, 1985.
[10] Nicolas Abraham e Maria Torok. L’écorce et le noyau. Paris: Aubier-Flam-
marion, 1978.
[11] Alain de Mijolla. Les visiteurs du moi. Paris: Les Belles Lettres, 1982.
[12] É evidente (mas é melhor deixar bem claro) que o autor dessas linhas não é discípulo de Lacan. Encontra-se em Lacan o melhor e o menos bom. Esperamos nos inspirar apenas no melhor
[13] É o sentido essencial do momento edipiano, que, em decorrência da castração simbólica, marca o indivíduo com seu sinete e permite que se inscreva na diferença das gerações e aceite a diferença dos sexos.
[14] Nathalie Zaltzman. De la guérison psychanalitique. Paris: PUF, 1999.
[15] Sigmund Freud. Moïse et le monothéisme (1939). Trad. francesa. Paris:
Gallimard, 1967
[16] Sigmund Freud. Malaise dans la culture (1939). Trad. francesa. Paris: PUF,
1998.
[17] Eugène Enriquez. “La déconsidération généralisée”. In: Claudine Haroche
e Patrick Vatin (org.). La considération. Desclée de Brouwer, 2000
[18] Harold Garfinkel. Studies in Ethnometholology. Englewood Cliffs: Prenti-
ce Hall, 1967.
[19] Friedrich Nietzsche, Ecce homo (1888). Trad. francesa. Paris: Gallimard,
1974.
[20] Vincent de Gaulejac & Isabel Taboada-Léonetti. La lutte des places. Paris:
Desclée de Brouwer, 1994
[21] Eugène Enriquez et al. La formation psychosociologique dans les organisations. Paris: PUF, 1971
[22] Planejamos fazer isso em outro texto: “Vers une société de la plainte”. In: Pierre Ansart (org.). Le ressentiment. Bruxelles: Bruylant.
[23] Cornelius Castoriadis. La montée de l’insignifiance. Paris: Seuil, 1996
[24] Sigmund Freud. Malaise dans la culture, op. cit.
[25] Cornelius Castoriadis. Figures du pensable. Paris: Seuil, 1999.