1992

O retorno do bom governo

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

De origem tomista, a ideia de “bom governo” sintetizava a concepção de política medieval, estruturada por noções religiosas e morais. Era segundo ela, por exemplo, que o rei estava acima não só da lei, como do certo e do errado. Ainda que partidário do “bom governo”, Thomas Morus lutou contra a tirania, fosse ela perpetrada através da usurpação da coroa ou da crueldade. Tanto que são de sua autoria as seguintes metáforas, caras ao atribulado século XVI: a do rei como cabeça de um corpo cujos braços são incontáveis e a do rei como pai de uma gigantesca família.

A modernidade consolida-se à medida que o “bom governo” vai-se mostrando ineficaz, o que decorreria, segundo Maquiavel, da necessidade do rei sanguinário ou, segundo Hobbes, de um governo realmente virtuoso resultar em guerras contínuas. Comum aos fundadores da modernidade política é a certeza de que só o reconhecimento da autoridade mantém a sociedade coesa.

Apresentado o contraste entre esses dois momentos históricos, cabe descobrir se hoje se vive de fato a modernidade política.

Intelectualmente, sim. Em meio ao povo, não. Afinal, este ainda pensa em termos morais e religiosos. Decorreria isso de ecos da ideia do “bom governo” ou de uma visão distorcida do povo por parte dos intelectuais? A hipótese é de que ambos os segmentos sociais não falam a mesma língua, sobretudo no que se refere às buscas e experiências populares. Nesse sentido, é a cultura de um povo uma forte variante na prática democrática.


Sabemos que a modernidade principia em política com o fim das categorias medievais — melhor dizendo, da epistéme medieval — que se organizavam, no pensamento tomista, em torno da ideia de buon governo, admiravelmente descrita por Kantorowicz a propósito dos afrescos de Lorenzetti em Siena.[1] Sabemos igualmente que ninguém, como Maquiavel e Hobbes, tão bem abriu este novo mundo em que a política se liberta da moral e da religião. Repassemos, porém, essas batalhas que se travam nos séculos XVI e XVII, para depois chegar à nossa questão: será que realmente faleceu o “bom governo”? Será que a forma pela qual a maior parte de nossos concidadãos pensam o poder não é, justamente, por essas categorias que nós, teóricos do político, tão celeremente descartamos como sendo superadas, medievais?

Um bom começo pode estar na Inglaterra da Reforma. Reginald Pole, em sua Apologia a Carlos V, atribui a Thomas Cromwell, principal arquiteto da Reforma anglicana, a tese de que o rei está acima da lei, assim como da distinção entre certo e errado. O conselheiro deveria então estudar “quo tendit voluntas principis”, a que tende a vontade do príncipe, captando até seus desejos ocultos, em vez de procurar moderá-lo. E acrescenta o severo Pole — primo do rei, que só conseguiu salvar a cabeça por ter fugido a tempo da Inglaterra, e que se tornou cardeal e presidiu o concílio de Trento: Cromwell era discípulo de Maquiavel, tendo recomendado a leitura de seu Príncipe ao próprio Pole. Como demonstrou o comentador Van Dyke, isso seria difícil, porque o Príncipe só foi impresso em 1532 e a conversa de Cromwell e Pole dataria de 1528. Mas é interessante ver como se constitui a imagem católica desse primeiro Cromwell (de quem Oliver era sobrinho-bisneto). Stephen Gardiner, bispo de Winchester, anglicano moderado e que quando da restauração do catolicismo sob a rainha Maria cooperará com o cardeal Pole na repressão — sanguinária — aos protestantes, conta (em 1547) que Cromwell lhe teria perguntado: “Dizei-me, monsenhor bispo de Winchester… a lei não é o que apraz ao rei? Em vosso direito civil não se diz quod principi placuit etc.?… Não me lembro bem agora”.[2] Finalmente, Thomas Morus, ao demitir-se da chancelaria, aconselhara Cromwell, seu sucessor: “Senhor Cromwell, se quiserdes seguir minha humilde opinião, em vossos conselhos a Sua Alteza o rei sempre lhe direis o que deve fazer porém, nunca, o que está em seu poder. Pois, se o leão conhecesse a sua força, muita dificuldade sentiria qualquer homem em governá-lo”.[3]

Assim, Cromwell não seguiu os conselhos de Morus por ler Maquiavel — segundo pelo menos os dois primeiros dos três católicos que citamos; na verdade, Van Dyke pensa que Cromwell se referia mais a O cortesão de Castiglione[4] que a O príncipe, e é certo que o ministro mandou traduzir em inglês, adaptando-o, o Defensor pacis de Marsílio de Pádua. A alusão a Maquiavel talvez seja equivocada mas, justamente por isso, é significativa do papel demoníaco que se atribuía, tanto ao pensador florentino quanto ao ministro reformador.[5]

Até porque por essa época Thomas Morus já escreveu não só a Utopia, mas também alguns poemas latinos que, se não engrandecem sua reputação literária, nos interessam aqui. São rigorosamente conformes à tradição moral e católica da política. Opõem o bom rei ao tirano; aquele governa pelo amor que troca com seus súditos; por isso também pode ser comparado à cabeça, e eles aos membros. São as duas imagens tradicionais do corpo político, uma que o faz justamente corpo, com todas as implicações orgânicas que disso decorrem, outra que o faz família, e acentua o amor entre suas partes (amor este que já estava presente na própria articulação corpórea, porque liga os membros à cabeça e entre si).

Já o tirano, sabemos, pode sê-lo por defeito de título (o usurpador) ou de exercício (aquele que, mesmo sendo legítimo por herança, ou aceito por eleição, governa cruelmente), mas essas duas categorias tendem a se opor menos do que à primeira vista pareceria. O usurpador tem de ser cruel, porque não há afeto entre ele e aqueles cujo mando ele adquiriu pela via da força; o governante cruel, ainda que legítimo ou eleito, perde sua legitimidade porque governar é um mandato que implica deveres, e não os respeitando ele se desqualifica. Nos dois casos falta o afeto, sobra a força bruta. Daí que o tirano mande pelo medo, e morra ele próprio de medo.[6] Isso fica claro na questão do sono.

Em outro lugar[7] sugeri que as formas de governo se hierarquizam, em Hobbes, conforme lidam, melhor ou menos bem, com o sono do soberano. Diz Hobbes que o intervalo entre as sessões do órgão soberano, numa democracia ou aristocracia, é como, na monarquia, o sono do rei: o poder permanece, seu exercício está porém suspenso.[8] A vantagem da realeza está em que nela o sono da persona ficta coincide com o da pessoa física, ao passo que nos demais regimes a pessoa artificial dorme muito mais que as pessoas naturais que a compõem. Ora, Morus também fala do sono, no caso, do tirano. Este precisa de pretorianos para protegê-lo, e quando dorme é como uma tora, um cadáver; então é fácil matá-lo. Daí que não durma duas noites seguidas na mesma cama.[9] Ou seja, seu sono é conturbado, não só pelos pesadelos que o acometem, como pela ameaça tão efetiva de ser morto por aqueles em quem manda como se fossem escravos ou animais, e não cidadãos, isto é, filhos.

Em suma, a questão do sono diz respeito aos limites naturais do governar — ou aos limites que o suporte natural, físico, coloca à persona ficta, aqui o corpo místico do governante. Por mais eficaz que seja o rei hobbesiano, ou forte o tirano de Morus, ele se defronta com limitações que são as de sua natureza enquanto homem. O poder jamais é o mero exercício da vontade de um, de uma vontade de potência que se vai difundindo e agarrando os outros; é preciso que esses colaborem, ou pelo menos reconheçam, consintam, aceitem. O tirano de Morus ignora por completo esse reconhecimento, e por isso morre, em mãos dos rebeldes, ou de seus próprios guardas. A solução que Hobbes dá ao problema parece, ao leitor apressado, seguir a eficácia (ele descarta o tema do bom governo), razão por que prefere o rei, porque este dorme menos que uma assembleia; mas Hobbes deixa claro que não é esta a questão essencial, porque uma assembleia também pode governar, ainda que não tão bem. O cerne da questão é que ele, rei, ou ela, assembleia, obtenha o reconhecimento de seus súditos, sem o qual não conseguiria governar. (Por essa razão, ao contrário do que pensa uma tradição que faz do soberano de Hobbes um governante despótico, é fora de propósito identificá-lo com o tirano de Morus, porque aquele precisa, até mais que o “bom rei” de Morus, do reconhecimento, do consent, ainda que apenas inicial.)

O quadro que Morus nos permitiu descrever é basicamente tomista, e remete, como tantos outros textos daquela época, ao De regimine principum de santo Tomás. Qual a ruptura que Maquiavel traz a isso, no Príncipe? Ela é conhecida demais para precisarmos insistir nela. Sua crítica incide sobre a ineficiência da boa monarquia. Reis bons, que vertem pouco sangue, correm o risco de perecer, e com eles seus reinos. Reduzindo o pensamento de Maquiavel nesse texto a seu cerne, diríamos que, num principado novo, e que foi conquistado pelas armas de outrem (porque é desse tipo de Estado, e não de outro, que o florentino fala no Príncipe), o príncipe só adquirirá legitimidade, e com ela a possibilidade de governar sem oposições devastadoras, se souber valer-se bem da maldade nos inícios de seu poder. Não é, o Príncipe, uma apologia descarada do governo tirânico; é uma reflexão, por vezes quase uma receita, de como usar de procedimentos cruéis no que seria uma espécie de rito de passagem, de ingresso numa nova fase, que é a da formação de um novo governo — sua legitimação, seu tornar-se rotina. Em outras palavras, de que modo pode o tirano sem armas próprias ser aceito como rei? Isso alcançado, ele depois até poderá ter com os súditos relações de amor; de início, precisa conquistar seu respeito.

Ora, se os contemporâneos não leram dessa forma Maquiavel (que, assim entendido, soa singularmente moderado), exagerando suas más intenções ou dando-lhe fama péssima, foi com boa razão: ele rompia o modelo tomista do amor e do corpo. Da mesma forma, um século depois, Hobbes — menos radical que o florentino em suas fórmulas, até porque o problema hobbesiano está em assegurar a obediência, e não em aconselhar o governar (Hobbes escreve para o súdito, e não para o rei) — quebrou porém radicalmente a estrutura medieval, ao introduzir-nos no mundo da soberania.

Pois uma característica essencial da modernidade é exatamente a da substituição da iustitia — a qual Maquiavel já havia desqualificado — pela jurisdição. Em tempos medievais, é difícil se determinar qual a última instância para qualquer decisão que seja; cabem recursos ininterruptos do rei a seu parlamento, deste ao rei, do papa ao concílio ou ao imperador, e destes àquele; opõem-se assembleias ao Um, inferiores a superiores, e inversamente, etc. Ou seja, o importante não é quem decide, mas que o valor principal, o da justiça, triunfe, e para tanto tanto faz quem o aplique. Se isso não leva a uma guerra de todos, à desagregação dos Estados e da Igreja, é apenas porque também faz parte da justiça dar ao rei e ao papa legítimos o lugar que é seu.

A novidade hobbesiana, e nesse sentido moderna, estará em negar sentido a esse juízo de conteúdos sobre a ação governamental, e centrar a atenção na pura forma. Quem tem poder para legislar legisla. Hobbes dirá que é justo o que vem do soberano. Maquiavel diria que pouco importa se é justo ou não segundo a moral. Nos dois casos, o sentido crítico é o mesmo: se cada qual puder impugnar, por injustos, os atos do governante, a governação se mostrará impossível.

Para se chegar a isso, foi preciso um longo trajeto, que certamente passou pelos adiaphora, ou coisas indiferentes, termo que Erasmo e certos reformados, Melanchthon à testa, devem aos estoicos. O cerne dessa teoria é que na religião existem questões prioritárias, essenciais, mas que se reduzem a bem pouca coisa, e outras que são de mera organização interna, de polícia como então se dizia; ou seja: há o que Deus mesmo ordenou — basicamente, matéria teológica —, e há o que é da pólis, deste mundo, e por isso não tem a mesma essencialidade — em linhas gerais, mas não só, a liturgia. Na religião temos assim o que é de Deus, e o que diz respeito à sua encarnação nas cidades deste mundo. Variarão as fronteiras entre os dois domínios, mas o importante é o princípio da divisão, porque, primeiro, reduz o alcance do dogma, tornando a religião mais palatável ao humanista (Erasmo), que aceita os ritos como necessários à organização social dos fiéis, mas relutaria em reconhecer que tal cor de paramento ou tal arquitetura das igrejas ou mesmo o celibato clerical se fundamente na palavra mesma de Deus, e que por uma divergência daquelas de que Voltaire zomba no Candide uma pessoa fosse condenada ao inferno por um Deus que, dizem, é bom; segundo, permite a obediência dos fiéis mesmo àquilo que vige apenas de um lado dos Pireneus — porque se obedece à autoridade, não à verdade. Aqui já está prefigurada a frase que Hobbes tornará famosa — auctoritas, non veritas, facit legem. O que Hobbes fará é expandir o espaço dos adiaphora para quase todo o horizonte do político.[10]

Dificilmente conceberíamos hoje, nós que o teorizamos, o político sem ser nessas bases. É claro que a elas acrescentaríamos uma ideia mais positiva e ativa de cidadania, exercendo seu controle, ou o da sociedade civil, sobre o Estado assim constituído; acrescentaríamos a democracia, e em sua dimensão não apenas política, mas social. Porém, conservaríamos como fundamental a ideia de que a soberania reside na vontade do governante, e de que esta não pode estar atada a conteúdos prévios, ou ser ela mesma medida quanto a sua validade. E a provar esse caráter fundamental temos o próprio sentido que hoje conferimos à democracia. Porque, quando os clássicos falam em democracia, é raro que deem a esta o duplo sentido que lhe atribuímos: 1) regime em que as diferenças são resolvidas pelo voto universal, estando este para além da moral e dos conteúdos, porque qualquer resultado (desde que dentro das formas da lei) tem de ser respeitado; 2) regime em que certos direitos fundamentais são assegurados, a começar pelos que garantem a forma da decisão a tomar pelo voto, como portanto os de expressão, de associação, de reunião. Esses elementos centrais do conceito de democracia mais corrente hoje, e que se fortaleceu à medida que a chamada “democracia material” do Leste europeu se desfez, e sua crítica à democracia formal se desqualificou, são quase que apenas formais. Seguem esse mundo que foi aberto por Maquiavel e Hobbes.

E no entanto o povo não nos segue. Por mais vago que seja esse termo “povo” no presente caso — falo à maneira antiga e atual, menos me referindo ao soberano da res publica e antes à maioria dos que em outros tempos seriam chamados os pobres, ou simples —, o fato, que inicio tratando intuitivamente, é que a grande maioria da população, pelo menos brasileira, não compartilha esta nossa caracterização do político. Querendo sintetizar: temos, de modo geral, uma ideia do espaço político como leigo, o que significa, primeiro, independente da esfera religiosa, a qual passa a ser questão de foro íntimo, portanto da vida privada; segundo, portador de diversas alternativas, entre as quais a opção é livre; embora haja possibilidades cujo sucesso representaria o fim do regime democrático (na vitória de um agrupamento fascista, por exemplo), estas não têm estado entre as mais viáveis nas sociedades em que vivemos, e o grau de consolidação democrática de um país pode medir-se até mesmo graças à exclusão de tais possibilidades: assim, os países europeus, onde parece difícil se impor a opção racista, têm maior solidez na democracia do que alguns países de maioria muçulmana, como a Argélia, onde a abertura eleitoral tem resultado na vitória do obscurantismo. Daí que definamos um espaço, que geralmente abrange perto de 80% ou 90% dos votos, que embora varado por vários partidos é por todos eles reconhecido como tendo legitimidade: qualquer um deles que ganhe leva.

Ora, o problema é que essa caracterização não é muito feliz aqui. Acabamos nos queixando, implícita ou explicitamente, de que o povo brasileiro não responde à representação que dele fazemos; um dos melhores exemplos desse descompasso entre a teoria do político e a sua prática tivemos nas eleições de 1985 para a prefeitura de São Paulo, quando o fato de Fernando Henrique Cardoso (não por acaso, o modelo do cientista político que passou da teoria à prática, da universidade às eleições) não afirmar que acreditasse em Deus foi decisivo em sua derrota.[11] Se simplesmente censuramos esta mentalidade, corremos o risco de repetir as declarações dos governos militares (povo despreparado para votar etc.) ou da velha udn (a falta de educação faz com que o povo escolha os piores líderes). Há portanto, pelo menos, que entender essa concepção.

Ela pode definir-se, primeiro, pela ligação que tem com o religioso, segundo, porque atribui ao político um conteúdo determinado, o da justiça. Esses dois traços convergem; com efeito, a ideia de religião aqui implícita tem muito de tomista, e sabemos que em Aquino se abeberam vertentes da moral religiosa católica atual bem distintas, porque os conservadores podem apreciar nele o gosto da ordem hierarquizada,[12] ao passo que os progressistas podem ler nele a defesa de uma justiça que inegavelmente tem uma dimensão social (onde Aquino não tem espaço é entre os liberais). Ora, essas ideias religiosas da política implicam uma afirmação de conteúdo que é incompatível com o formalismo acima descrito, e que traz, além de tudo, ao espaço dos conflitos regulados um elemento de pólemos que, tanto quanto sabemos, se choca com a essência do que entendemos por pólis. Dizendo de outro modo, a confrontação religiosa faz da tensão uma guerra entre inimigos, um dos quais — pelo menos — tem de ser destruído, ao passo que toda a laboriosa empresa de constituição do espaço democrático se mostrou ser a cautelosa definição de valores comuns (aparentemente formais) a partir dos quais é possível controlar o nível de diferença e de tensão que se resolve por essa loteria que é o voto. Será bom insistir nesse aspecto lotérico do voto.

Quando os filósofos do século XVII se empenham em negar o mérito enquanto razão para um exercer o poder, e não outro, eles estão negando o buon governo. Mas não é só. Estão negando uma política moralizada porque esta corre o risco de gerar guerras sem fim: nada mais arbitrário e parcial do que perguntar quem é melhor moralmente, ou mais capaz, para o ofício de governante. É por isso que Hobbes, no capítulo 10 do Leviathan,[13] nega que alguém, por seu mérito, tenha direito a mandar. E é o que entende Pascal quando fala no direito de nascença: a primogenitura é um critério evidente para que um reine e outro não. Não quer dizer que o filho mais velho seja superior ao mais novo — apenas, exclui-se de vez qualquer pretensão deste.[14] Poderíamos ver, na primogenitura, uma escolha de Deus; o famoso dito medieval que os juristas ingleses repetem, desde Bracton (“não o homem, mas Deus, faz o herdeiro”), significando que a vontade humana não tem liberdade para alterar a ordem de nascimento, subentende que na primogenitura esteja embutida uma eleição por Deus. O aparente acaso é, na verdade, emissário de uma missão superior: a Providência se manifesta, por suas vias insondáveis, a cada herança, porque a cada nascimento. Mas, com Pascal, com a modernidade, já não é assim. A tese do Deus escondido até poderia permitir uma medievalização (em cada nascimento estariam presentes os desígnios de Deus, ainda que ocultos de nós), mas o que Pascal afirma é o caráter lotérico da ordem de nascimento. Importa, só, que o resultado seja visível, e que as regras que o produzem também o sejam. Quer-se o sistema em que regras e resultado sejam o mais visíveis que se puder, incontestes portanto. Não se pede, porque seria pedir demais, que essas regras e resultado expressem uma moralidade superior. Ora, o mesmo vale para a democracia entendida como um procedimento eleitoral. Até pelo número, trata-se de uma loteria — e esta, aliás, é a crítica que tantos conservadores lhe farão: por que o número decidiria, e não a qualidade?

Claro que o pressuposto, para ser essa loteria e não a do nascimento, é o da igualdade entre os eleitores. Mas isso, acrescentemos, é rigorosamente hobbesiano: primeiro, pela tese já citada, segundo a qual ninguém tem mérito a governar, ou a prevalecer (por inteligência, beleza, riqueza) sobre os outros; segundo, pelo capítulo 13 do Leviathan, no qual todos têm igual direito a viver, e o direito de nenhum serve como ponto de vista decisivo para relativizar o de outro (nenhum direito configura um absoluto). Contudo, se tivermos uma visão religiosa do político (na qual se embutem outros traços de nossa política, como o salvacionismo, que uns atribuem à espera de d. Sebastião), a loteria democrática merece desdém: não será por acaso que Fernando Pessoa, sebastianista convicto, tem tamanha aversão aos democratas; por que 10 mil prevaleceriam sobre um, se for esse o melhor? Ou como aceitar os pressupostos do conflito amenizado democraticamente, se o oponente for descrito com as cores do mal? Ou, se o combate é entre bem e mal, ou ainda entre justiça e injustiça (inclusive social), por que admitir que tais valores sejam deportados para a vida privada, em vez de aprimorar o social? Como aceitar que valores se equivalham?

Mas não é apenas o pensamento implícito nessa boa parte despolitizada do povo brasileiro que permite contestar nossa modernidade de filósofos e cientistas do político. Afinal, por aí estaríamos remetendo apenas a uma atualidade do antigo, a um conservantismo, e mesmo conservadorismo, das classes justamente mais pobres. Uma tal representação não é nova; é em linhas gerais a de certo romantismo, o de Alexandre Herculano por exemplo (relembre-se sua novela “Arras por foro de Espanha”, em que — poucos anos antes da vitoriosa revolução dos anos 1380 — o povo abandona os líderes que se expuseram para o seu bem), ou melhor dizendo e com maior frequência de um jacobinismo, em que a liderança, mais avançada que a massa, por esta é largada. Será preciso ver se outra perspectiva não é possível, em que as representações populares do político não apareçam necessariamente comprometidas com o passado. Jacques Rancière, na leitura que fez dos operários do século XIX, chega a conclusões que apontam nessa direção.

Rancière partiu do trabalho de Althusser, que trouxe à política e ao marxismo o recorte que Gaston Bachelard propusera para a história das ciências, segundo o qual uma “cesura epistemológica” inaugurava cada ciência: uma ruptura radical. No plano das ciências humanas Althusser estabeleceu corte de mesma natureza entre a ideologia e a ciência, sendo esta o marxismo, e podendo-se encontrar o momento da cesura no interior da própria obra de Marx: ele foi humanista quando dos Manuscritos de 1844, usando termos vagos, imprecisos — e ideológicos — como homem, justiça etc., e tornou científica sua obra ao romper com esse quadro mental e utilizar, em seu lugar, conceitos, como os de modo e relações de produção etc.

Ora, o ponto no qual incidiu a crítica de Rancière, maoísta àquela época, foi sobre a hierarquia que assim se estabelecia entre o trabalho intelectual e o manual. Mais até, entre o intelectual e os trabalhadores mobilizados. Que luta operária já se travou tendo como estandarte as relações ou modos de produção? Geralmente se clama por justiça, direitos do homem e outros valores só humanistas, isto é, ideológicos. Aqui está o problema de Althusser: desqualificar as lutas, a densidade do vivido, em favor do estudo universitário; desqualificar a consciência comum dos homens em favor daquela do cientista da política.

Assim, o estratégico na ação de Rancière foi mostrar uma classe operária que não corresponde à imagem que lhe é designada — por autores tão distintos entre si como Marx e Victor Hugo —, imagem afinal de contas bem-comportada; e que a excede e contesta não por ser mais conservadora, como querem tantos antimarxistas, e sim por definir outros anseios, outras direções de luta. A pedagogia de um operário ou o gosto de outro pela poesia são formas de luta revolucionária, só não fazem parte daquela que os clássicos definiram como sendo a correta.

Caberia então discutir em que medida vale o modelo que antes descrevemos do político moderno. Não será ele constantemente excedido em várias direções — umas tomistas, outras mais diferenciadas, como as da fantasia e da criação —, e o problema do partido que dele faz seu emblema — nosso partido mais sensato, mais de ciência política, mais europeu, o psdb — não estará justamente aí, isto é, numa dificuldade de entender essa multiplicidade do social e do político?

Tentemos delimitar essa multiplicidade. Se formos modernos, ela consistirá no atraso brasileiro. Nosso povo não se teria preparado ainda para a política democrática. O mundo desenvolvido servir-nos-ia de modelo, no qual dificilmente nos encaixamos. Mas se, assim como Rancière, colocarmos a pergunta sobre a pertinência do modelo? Não para postular uma nossa differentia specifica, porque não se trata de retomar o discurso da brasilidade versus a civilização europeia, e de contra as Luzes defender sinhás e senzalas; mas de questionar a própria ideia de modelo.

Voltemos então à religião, e mesmo ao salvacionismo. Podem, certamente, ser incompatíveis com o que é moderno (como hoje se diz) em política. Mas será o moderno um valor adequado? Desde pelo menos um século nossa história, e a de tantos outros países do mundo pobre, passa por essa tentativa de se modernizar. Ora, sem entrar na questão econômica (que considero muitas vezes sobredimensionada e além disso malposta), o fato é que esses países têm uma cultura que lhes é própria, na qual, a par do autoritarismo, há também uma densidade de vida que raras vezes é tematizada na discussão de teoria política, mas que é de primeira importância. Recordo assim um curto texto de Stendhal, que ele rabiscou no manuscrito de Rome, Naples et Florence en 1817 — o diário de uma viagem aos Estados italianos, despóticos porém de alta qualidade de vida, ao contrário da Europa mais ao norte, em que havia uma constituição (Inglaterra) ou pelo menos uma opinião pública (França), porém inexistia o calor dos sentimentos, o ardor de viver; ora, Stendhal está terminando de escrever esse diário um tanto ficcionado, quando a 1o de junho de 1817 rabisca:

A admirável insurreição do Brasil, talvez a maior coisa que possa acontecer, me sugere as seguintes ideias:

1) A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último pestífero, nada ainda está feito.

2) O único remédio contra a liberdade está nas concessões. Mas é preciso empregar esse remédio enquanto é tempo: veja-se o caso de Luís XVIII.

Não há lordes, nem brumas, no Brasil.[15]

Estas frases (a liberdade é como a peste: ela, que parece exterminada pela Santa Aliança, de repente reaparece lá onde menos se esperava, num país de que mal se ouve falar) são todas entusiasmo, alegria. Penso que foi lembrando a insurreição pernambucana que Stendhal, em 1830, faz o seu conde Altamira, naquele grande momento do Vermelho e o negro que é o baile no qual Julien Sorel impressiona decisivamente Mathilde de la Mole, largar a moça mais sedutora da festa para correr atrás de um general peruano:

Sem ter mais esperanças na Europa, o pobre Altamira se via reduzido a pensar que, quando os Estados da América do Sul forem fortes e poderosos, poderão devolver à Europa a liberdade que Mirabeau lhes enviou.[16]

Sabemos que para Stendhal a felicidade era italiana (milanesa, em especial), e nas Crônicas italianas ele exalta esse estilo de vida em que as paixões são desmedidas, com muita crueldade — é certo —, mas também com uma energia que não mais se encontra na França, salvo num Danton ou num Julien Sorel, ou ainda, como escreve ele em 1811, naquelas classes que se defrontam com as verdadeiras necessidades — os pobres;[17] é por isso, porque a energia se dá na Itália em estado puro, que esse país pode conhecer a felicidade (o caso da princesa italiana tomando sorvete num dia de calor tórrido, no século XVIII, e dizendo: “É pena que isto não seja um pecado”). Ora, o Brasil de 1817, assim como o Peru e o conde Altamira d’O vermelho e o negro, são desdobramentos dessa Itália que Stendhal conheceu. Se nas Crônicas ele celebra uma energia italiana, em outras obras, como as duas que citamos, trata da contradição que ocorre entre esse prazer da vida social e a repressão na vida política. Essa energia, que na Europa enervada já não existe, é que poderá trazer algo novo, que consistiria na possível fusão entre liberdade política e felicidade pessoal. A Itália era para Stendhal promessa de felicidade, terra na qual o amor se vivia sem os preconceitos que o vitimavam na França e mais ao norte; o que atrapalhava era o despotismo. Já a França, e Paris em especial, davam — ao amor e à vida — uma sofisticação, a de uma opinião pública que, em 1830, acabou por reconquistar a liberdade política; mas com isso negavam o prazer que no Sul residia, na terra em que o sentimento é tão quente como o clima. Assim, enquanto as possibilidades do calor não se realizam, e o presente opõe a felicidade do despotismo à mesquinharia de um regime constitucional, a indagação se formula em termos de um dilema áspero: será o preço da felicidade a ignorância, o despotismo? Será que a liberdade política fará os homens mesquinhos?

Essa questão assim ingenuamente resumida conserva pertinência. Tem que ser mais bem definida, mas deve constituir, pelo menos, um alerta contra uma esquizofrenia que está no fundo de nosso trabalho de quem discute política. Por um lado, celebramos, enquanto teóricos e mesmo como cidadãos, os países em que a liberdade e a modernidade vingaram. Por outro, sentimos, sobretudo em férias, maior felicidade quando frequentamos aqueles lugares em que não há liberdade, cidadania ou modernidade. Ora, será esta cisão casual, ou nela pulsará uma antítese de essência entre civilização e felicidade? Pelo menos merece ser pensada a questão; a felicidade não deve ser um tema externo a nossa reflexão política.

Notas

[1] Cf. The King’s two bodies, pp. 112-3.

[2] Letters of Stephen Gardiner (ed. J. A. Muller, 1933), p. 399, cit. em G. R. Elton, “The political creed of Thomas Cromwell”, p. 198 de Fryde and Miller (orgs.), Historical studies of the English Parliament, t. II, Cambridge University Press, 1970. Devo a Elton as informações acima. No original, respeitando-se a grafia bastante livre da época: “Come on, my Lord of Winchester… is not that that pleaseth the King, a lawe? Have ye not ther in the Civill Lawe… quod principi placuit, and so fourth?… I have somwhat forgotten it now”.

Sobre quod principi placuit habet vigorem legis: esse adágio romano é retomado na Baixa Idade Média com o significado de que “a lei é o que apraz ao príncipe”. Constituíra, a longo prazo, uma justificativa para o absolutismo. O “direito civil” de que fala Thomas Cromwell é, como se sabe, o nome pelo qual ainda no século XVI se designava o direito romano. Falando ao bispo em “vosso direito civil”, Cromwell refere-se ao fato de que o direito canônico se inspira no romano, razão por que, aliás, considera-se que canonistas e civilistas pertencem ao mesmo horizonte teórico.

[3] William Roper (genro de Morus), Life of Sir Thomas More, p. 228 da ed. Yale de 1962. No original (grafia atualizada): “Master Cromwell,… if you will follow my poor advice, you shall, in your counsel-giving unto his grace [= o rei], ever tell him what he ought to do but never what he is able to do. For if a lion knew his own strength, hard were it for any man to rule him”.

[4] Em Elton, op. cit., p. 199. Se for verdade, é engraçado; porque Carlos v, junto a quem Pole tenta intrigar Cromwell fazendo deste um maquiavélico, tinha a maior estima por Baldessare Castiglione, tendo pronunciado um elogio espontâneo ao saber que este morrera.

[5] Lefort analisa bem, no capítulo “Le concept de machiavélisme”, de seu Machiavel, um caso similar, porém de sinais invertidos: aqui, são os católicos que maquiavelizam o reformado; na França, segundo Lefort, são os huguenotes que dão à rainha florentina, Catarina de Médicis, a fama de seu compatriota

[6] Ver Selections from the English and Latin poems, pp. 140-2 e 154-5, Yale University Press, 1976

[7] A marca do Leviatã, São Paulo, Ática, 1978, cap. 3.vv

[8] “[…] os espaços que separam as datas de reunião dos súditos podem ser adequadamente comparados àquele tempo em que o monarca dorme: pois em ambos os casos cessam os atos de mando, mas o poder permanece.” De cive, viii, parágrafo 16, p. 97 da ed. Lamprecht; Do cidadão, trad. Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Martins Fontes, 1992.

[9] A vida imita a arte: conta-se isso de Stalin.

[10] Cf. meu Ao leitor sem medo, São Paulo, Brasiliense, 1984, cap. 7, em que se trata das coisas indiferentes.

[11] Há fatores a ponderar no caso: 1) as pesquisas indicavam uma pequena diferença de intenção de voto entre ele e Jânio Quadros, de modo que o “ateísmo” de Cardoso deve ter sido decisivo apenas para poucos cidadãos; mas ainda assim é provável que boa parte dos que já tinham optado por Jânio tenha reforçado sua decisão com o argumento de que, afinal, o adversário era ateu; 2) Fernando Henrique não chegou a responder à pergunta, o que pode haver transmitido a impressão de indecisão e insegurança; negou que a questão fosse pertinente. O problema é que, para parte significativa do eleitorado, ela o era.

[12] O que podemos ver por exemplo em Arlindo Veiga do Santos, que traduziu o De regimine principum e publicou-o sob o título de Filosofia política de santo Tomás de Aquino: cf. suas divertidas notas, passim.

[13] In fine.

[14] Quando Pollock e Maitland estudam a gavelkind, isto é, a regra de herança aos bens fundiários que vigorava no condado inglês de Kent, onde — ao contrário do resto da Inglaterra e talvez do mundo — quem herdava a terra não era o primogênito, mas o mais novo dentre os filhos varões, a razão que dão é, no fundo, esta: pouco importa qual seja o critério, o importante é que haja um, e que este seja absolutamente visível, inconteste. Cf. The history of English law before the time of Edward I, v. 2, p. 271, da ed. Cambridge University Press de 1978 (1a ed., 1895).

[15] “Débris du manuscrit”, in Voyages en Italie (reunião de vários textos), Pléiade, p. 175. No original:

“L’insurrection admirable du Brésil, presque la plus grande chose qui pût arriver, me donne les idées suivantes:

“1. La liberté est comme la peste. Tant qu’on n’a pas jeté à la mer le dernier pestiféré, l’on n’a rien fait.

“2. Le seul remède contre la liberté, c’est les concessions. Mais il faut employer le remède à temps: voyez Louis XVIII.

“Il n’y a ni lords, ni brouillards, au Brésil.”

[16] Le rouge et le noir, segunda parte, cap. 8, p. 223 da ed. Les intégrales (Seuil). No original: “Désespérant de l’Europe, le pauvre Altamira en était réduit à penser que, quand les Etats de l’Amérique méridionale seront forts et puissants, ils pourront rendre à l’Europe la liberté que Mirabeau leur a envoyée”.

Obviamente, no general peruano d’O vermelho e o negro há uma referência, até quem sabe mais forte do que aos pernambucanos de 1817, ao libertador Simón Bolívar. Mas esse fato não deve obscurecer outro: o que despertou Stendhal para as possibilidades da América do Sul como território da liberdade foi a rebelião brasileira de 1817.

Imediatamente após a parte que cito, há uma “nota do editor”, mas que tudo indica ser de Stendhal: “Esta folha, composta a 25 de julho de 1830, foi impressa no dia 4 de agosto”. Sabe-se que O vermelho estava na gráfica quando ocorreu a Revolução de 1830, que varreu a última tentativa séria de retorno ao Antigo Regime; sabe-se que Stendhal acrescentou, então, algumas passagens a seu romance: entre elas, esta.

[17] É só do quarto andar (onde moram as empregadas) que ainda há mulheres que se lançam da janela por amor — diz ele. Apenas os pobres têm paixões, vigor: energia.

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