2014

O silêncio que resta

por Pedro Duarte

Resumo

Numa célebre formulação, Ludwig Wittgenstein sentenciou: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Se acreditássemos nessa sua máxima, a existência contemporânea deveria nos calar, visto que ela se define por desarmar o que poderíamos falar dela. Nossa “era nova e desconhecida”, como a descreveu Hannah Arendt, pôs em xeque conceitos tradicionais do entendimento, exigindo o atrevimento filosófico de falar sobre o que não sabemos. Em suma, a prosa do mundo atual, tão distinta daquela de que tratava Hegel no século XIX, tornou-se confusa, desnorteante.

Contudo, a solução não é submeter a linguagem à exigência de precisão técnica. Tampouco é endossar a tagarelice pela qual muito se fala e nada se diz. Barulho demais ensurdece. Outrora, o grande desafio do homem era romper o silêncio. Hoje, seu desafio é fazer silêncio – para que algo possa ser ouvido no burburinho da vida contemporânea. Da sociedade do espetáculo à sociedade excitada, anúncios e posts tornaram o silêncio quase inexistente. Tudo se fala, tudo se mostra. Nenhum pudor persiste. Mas não adianta recusar essa confusão babélica. Interessa, sim, arriscar-se nela, buscando o que daí pode vir. “Não sabendo falar, não querendo falar, tenho que falar”, escreveu Samuel Beckett.

Um dos mais interessantes embates entre o silêncio e a prosa, surge na obra de Alberto Caeiro, um dos diversos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa. Ele tenta se aproximar da natureza e até ser como ela, eliminando sua subjetividade. Entretanto, a natureza é silêncio, enquanto a poesia é fala, linguagem humana. O projeto poético de Caeiro, então, exigiria que ele não escrevesse, que silenciasse. Mas, aí seus versos não existiriam. Essa contradição, e não o que ele anuncia explicitamente, sustenta toda força de sua poesia. Traindo o silêncio que pede a procurada ingenuidade natural, a poesia de Caeiro opõe-se a si mesma, e o seu vigor vem dessa tensão: entre o silêncio como exigência última de seu projeto e a enunciação de tal exigência na linguagem, o que já rompe o silêncio.

No romance As afinidades eletivas escrito por Goethe no século XIX destaca-se o aparecer da linguagem sobre o silêncio na sua dimensão moral. Na narrativa, as personagens não falam e nem agem diante do que sentem, e são carregadas, assim, para o seu malfadado destino. Evitá-lo seria possível… “Menos hesitação teria trazido liberdade, menos silêncio teria trazido clareza, menos complacência, a decisão”, comenta o crítico Walter Benjamin. Sem a fala, o homem deixa-se engolir pela natureza. É levado por ela, como por uma necessidade cega. É o caso emblemático da personagem Otília, em seu “mutismo vegetal”. Ela não é moral e nem imoral, mas amoral, aquém da moralidade humana – um vegetal.

Não sabendo falar, não querendo falar, ainda assim temos que falar, pois o homem é “o animal com linguagem”. “Não se fará ideia do poder da linguagem”, afirma Maurice Merleau-Ponty, “enquanto não se reconhecer a linguagem operante e constituinte que aparece quando a linguagem constituída, subitamente descentrada e privada de equilíbrio, ordena-se de novo para ensinar ao leitor – e ao autor – o que ele não sabia pensar nem dizer”. É o que faz a arte, e também a filosofia, pois ambas sabem que o silêncio não é só o oposto da prosa, como no caso de Otília, mas também seu avesso e sua condição. Eis o silêncio que resta.

Só escutamos, pois, o som que se destaca do fundo do silêncio. Sem silêncio entre as palavras, não as identificaríamos como tais. Sem silêncio entre as notas, não há música. O silêncio é abismo infinito. Por isso mesmo, é manancial de todos os sons. Dele, tudo pode vir. Nele, sempre podemos cair. Shakespeare escreveu: “o resto é silêncio”. Esse silêncio que resta não é apenas a sobra da fala, o dejeto que fica fora dela. O silêncio é o resto que fica dentro da fala, para que ela possa falar. É a ausência que deixa a presença ser. Esse silêncio não é carência, e sim possibilidade da linguagem. Seu resto próprio.


É preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, serei eu, será o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar.

SAMUEL BECKETT

Falar sobre o silêncio parece envolver, desde o começo, a contradição de acabar com ele neste próprio ato. Falando, já mato o silêncio sobre o qual gostaria de falar, posto que as palavras ditas preenchem de som o ambiente. Nesse sentido, o silêncio poderia exigir que adotássemos aquela contenção filosófica que Parmênides, entre os antigos gregos, já aconselhava diante do nada. Para o pensador de Eleia, o nada, por nada ser, interdita todo discurso sobre si, afinal, como falar daquilo que nem sequer é? Sobre o silêncio, de um modo análogo, talvez nada devesse ser dito, e o melhor seria simplesmente silenciar. O nada e o silêncio parecem ser duas negações absolutas. O silêncio possuiria, assim, uma autodefesa, pela qual, para permanecer sendo silêncio, destruir-se-ia no instante mesmo em que a prosa começa a falar. Continuaria sempre fechado em si e inacessível. Procurá-lo na linguagem, portanto, seria uma empreitada fadada ao fracasso.

Quem sabe, então, a experiência despida de linguagem, se é que isso existe, poderia nos dar acesso ao silêncio? Foi o que o compositor John Cage tentou, ao entrar em uma câmara anecoica, na Harvard University, uma sala projetada para ficar acusticamente isolada, eliminar ecos, ser toda silêncio. Lá dentro, porém, ouviu dois sons. E o engenheiro responsável explicou que ele escutara seu próprio sistema nervoso e sua circulação sanguínea[1]. O corpo, condição física de nossa vida, faz barulho, por mais silencioso que seja. Ser silencioso não é o silêncio absoluto, mas um volume baixo de som. Enquanto estamos vivos, jamais há silêncio pleno. Contudo, ao mesmo tempo, não pode haver ausência completa de silêncio: a escuta de qualquer coisa, como dos batimentos do coração, carece de silêncio. Paradoxalmente, nada escutamos num silêncio absoluto, embora sem algum silêncio tampouco escutemos o que quer que seja. O próprio Cage, para explorar essa dimensão do silêncio, compôs 4’33”, peça vanguardista sem nota musical a executar. Em suma, o silêncio não é negativo, anulação de som, é a condição de possibilidade para que o som seja ouvido, uma abertura para a audição da prosa do mundo.

Se é assim, desaparece a contradição que supostamente haveria em se falar do silêncio, como fazemos aqui. O silêncio é relativo à nossa prosa, não um absoluto. Por exemplo, o silêncio que vocês guardam para me ouvir aqui. Sem ele, não existiria esta conferência. Sem a ausência silenciosa do ruído barulhento, não pode haver presença de prosa sonora. Mesmo eu, ao falar aqui, preciso contar com os silêncios entre palavras e frases, ou elas não seriam nem mesmo distinguidas e identificadas por vocês. O contrário da prosa é menos o silêncio do que o barulho, o falatório. Pois a prosa precisa de silêncio. Por isso, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty escreveu que “temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se entremeiam”[2]. Espacialmente, poderíamos dizer que esse silêncio nunca está fora da linguagem por completo, mas é o que fica entre as suas palavras ou no fundo delas. O silêncio absoluto marca o limite exterior da linguagem, e por isso é sempre uma abstração teórica para nós, seres linguísticos. Conforme cantou Arnaldo Antunes, este é o “silêncio que ninguém ouviu”[3]. O silêncio relativo mora, por sua vez, junto à linguagem. Pertence a ela, na pior das hipóteses, como seu avesso, de que ela depende. Somos tão acostumados a pensar que presença e ausência se excluem que, para nós, fica difícil perceber o simples: só entendemos cada som presente porque, entre eles, há a ausência de um silêncio, por breve que seja. Isso vale sobretudo para a linguagem criadora. O pianista Arthur Schnabel, certa vez, admitiu tocar as notas das músicas como qualquer um, mas só porque a arte residiria nas pausas entre elas[4].

São muitos e variados os silêncios, portanto: o silêncio da fé religiosa dos monges, da renúncia de Rimbaud à poesia e da loucura de Hölderlin, o silêncio de Heidegger sobre o nazismo, o silêncio dos amantes que se olham, o silêncio da torcida de futebol diante do gol do time adversário, o silêncio da leitura e das bibliotecas, o silêncio prazeroso do orgasmo e o doloroso do trauma, o silêncio de soldados que voltam das guerras, dos prisioneiros dos campos de concentração, o silêncio imaginado do espaço sideral, o silêncio lacônico do tirano, o silêncio brutal da violência, o silêncio hipócrita em nome do bem-estar social, o silêncio surpreso, o silêncio do pensamento…

Essa profunda curiosidade pelo silêncio vem de épocas antigas. Desde cedo, o silêncio desperta, na civilização ocidental, um misto de fascinação e medo, sedução e angústia. Por um lado, é esperança de paz e tranquilidade, do instante em que o falatório cotidiano cessa, quando não há mais barulho e, modernamente, estamos livres de obras e de britadeiras, buzinas, motores e sirenes. Por outro lado, é o terror metafísico do vazio, do nada, da solidão, do tédio e da morte. Um mundo todo em silêncio não teria espaço para a vida do homem. Os orientais budistas e taoistas – até onde sabemos, e sabemos muito pouco – têm maior intimidade com o silêncio, e confiança nele, do que nós. Partilham do nosso encanto, mas não tanto do nosso horror.

No início do Ocidente, o dom da palavra parecia destinado a romper o silêncio e falar a verdade. Os poetas eram os seus portadores. Depois deles, de Homero e dos trágicos, Platão escreveu sua estonteante obra, desfilando a habilidade literária que quase nenhum filósofo alcançaria dali em diante. O diálogo era sua forma, o que implicava criar personagens e dar às suas falas o movimento não só de uma conversa com argumentos, mas também aquela verossimilhança que seu discípulo, Aristóteles, exigia da poesia. Cada pessoa que ganha vida nos diálogos de Platão deverá enunciar o que faz sentido com quem ela é. E Sócrates, quase sempre protagonista, expõe em geral as teses mais importantes dessa filosofia, sem deixar de fazer parte de um “teatro das ideias”[5] no qual alegorias são criadas, paisagens e ações são apresentadas e relações entre personagens são descritas. A linguagem estava em alta.

Mas não é bem assim. Na sua famosa Carta VII, Platão desfere ataques ferozes às tentativas de falar e, especialmente, de escrever sobre a verdade. “Como um relâmpago brota uma luz que nasce da alma”[6], afirma ele sobre a forma pela qual surge a verdade, ou seja, sem auxílio da linguagem. Primeiro, temos acesso às coisas pelo nome; segundo, pela definição; terceiro, pela sua imagem; e, quarto, pelo saber. Só com o quinto passo, contudo, atingimos a coisa em si mesma, diretamente no seu ser, e aqui “ninguém que tenha juízo ousará expor pela linguagem o seu pensamento”[7]. O brilho da verdade então eclipsa a linguagem, cala o homem, que a contemplará através do espírito, de um pensamento mudo. Platão, mestre da prosa, aconselha que a superemos para alcançar a verdadeira realidade, inefável, em silêncio absoluto.

Em suma, a linguagem seria a intermediária, infelizmente necessária, para se alcançar a verdade transcendental ou a experiência real. Ela estaria entre nós e o ser, entre nós e o mundo. Enquanto tal, seria, ao mesmo tempo, ligação e separação. Ligação, pois seu uso permite entender melhor o real, o ser. Separação, pois sua presença veda o contato direto com este real. É como se a prosa fosse a ponte pela qual atravessamos da ignorância à sabedoria, só que ela acaba antes de chegar aonde interessa. Daí em diante, precisamos saltar e voar (embora o homem não voe) para o outro lado. Lá, há apenas o silêncio e a verdade absoluta, sem mediação linguística.

O silêncio torna-se o sinônimo da perfeição, é o ponto de chegada no qual o homem cessa de falar pois não há mais o que dizer ou por que dizer. O silêncio não é vazio, mas sinal de um preenchimento tão puro e completo da própria experiência que, ali, a linguagem não tem papel algum a exercer, ela é desnecessária. Platão afirmara, afinal, que as palavras enchem o homem de “aporia e obscuridade”. O sonho mais comum entre os filósofos tradicionais foi o da linguagem tão transparente que, por ela, passasse a luz brilhante da verdade até nossa alma, diriam os antigos, ou mente, diriam os modernos. O século XVII, com Descartes, a procurou na matemática. E Spinoza era polidor de lentes, fato com valor metafórico, tratando-se de um filósofo cuja ética foi demonstrada segundo uma polida lente geométrica. Edmund Husserl, bem depois, esboçou uma “eidética da linguagem”, uma “gramática pura”.

Não é de nenhum desses mestres do pensamento, contudo, que surge o mais interessante embate entre o silêncio e a prosa, e sim de um mestre da poesia, um mestre estranho pois, em certo sentido, nem mesmo existiu. Seu nome era Alberto Caeiro, provavelmente nascido em 1889 e morto em 1915. O “pai” do mestre foi Fernando Pessoa, e as aspas, aqui, valem, pois, como se sabe, Caeiro não era filho de Pessoa. Era um de seus diversos heterônimos, daqueles personagens criados pelo gênio português cuja principal ocupação era escrever. Pessoa teve heterônimos, em vez de pseudônimos, já que não pôs no papel versos apenas assinando com um nome distinto do seu, isto é, usando um pseudos, uma mentira. Fez mais. Inventou outros poetas a partir de si, ao se desdobrar, se multiplicar. Cada nome trazia uma personalidade e um estilo formal, cada um correspondia a uma nova poesia surgida.

Pessoa deu a eles – a Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Caeiro, para ficar nos três mais famosos – biografia, profissão, hábitos, mapa astral, datas de nascimento, afirmando que escreviam através de sua despersonalização, como se o eu deixasse outros eus serem: eus inventados, mas reais enquanto criadores de poéticas próprias. Pessoa também fez as cartas trocadas entre eles, tecendo uma ficção de relacionamentos, como se fossem personagens de um drama comparável aos de Shakespeare. Nesse intrigante teatro, Caeiro tem lugar especial. É mestre dos outros, inclusive do próprio Pessoa. E assim o autor empiricamente existente excluía, em golpe de mestre, a si da posição de titeriteiro controlador das marionetes. Ele era um discípulo, ainda que o mestre fosse criação sua. Caeiro é criatura que ensina ao criador. O ortônimo é aluno do heterônimo. E o que este ensina? Que…

O mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência é não pensar…[8]

Caeiro rechaça a filosofia por achar que ela nos distancia do mundo, mundo este no qual basta crer, para o qual basta olhar, diante do qual basta sentir. Nós devemos estar em acordo com o mundo, e pensar inaugura, pelo contrário, um desacordo, pois o interroga. Deve-se ter amor pela natureza, e não refletir sobre ela. O amor é aceitação plena, sem questionamentos, onde a natureza se mostra como ela é, em seu ser, em sua verdade. Esse amor é a junção do homem com o mundo, que deixam de estar em polos opostos, um como sujeito e o outro como objeto. Tal separação era fruto da desconfiança dos filósofos quanto aos sentidos humanos, modernamente manifestada pela dúvida cartesiana. Ficavam a consciência de um lado e a vida de outro. Para voltarmos a estar em acordo com o mundo, seria necessária a inocência de acreditar na sua existência gratuita, em vez de compreendê-lo.

O projeto poético de Caeiro foi abolir a mediação da inteligência para só sentir. O estilo antipredicativo dos seus versos, economizando adjetivos, quer deixar as coisas aparecerem só como são. Busca um ideal de linguagem, secretamente venerado por todos nós, que “nos livraria dela mesma ao nos entregar as coisas”[9], como assinala Merleau-Ponty. Elimina o sentimento e o pensamento subjetivos, para ficar só com o objeto. “Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê”, escreve. Os ventos não evocam saudade. Ventam. Os apelos ao suprassensível cedem lugar à imanência sensível. Por trás das aparências, contrariando cogitações de filósofos desde Platão, nada há. Ser e aparecer coincidem: as coisas são o que parecem. Não há verdade escondida que o pensamento devesse desvendar como um investigador desconfiado.

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,

É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas

E os pensamentos de todos os filósofos,

Que as cousas sejam realmente o que parecem ser

E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:

– As cousas não têm significação: têm existência.

As cousas são o único sentido oculto das cousas[10].

Ver e não se separar desse ver. Metafísica boa, apenas a das árvores, que é “a de serem verdes e copadas e de terem ramos”. O universo não tem mistério para Caeiro, e “o único mistério é haver quem pense no mistério”. Esses seriam os filósofos e, às vezes, os próprios poetas. Descontentes com a realidade, os metafísicos buscam uma outra, por vezes chamada de divina. O sumo ente teológico situa-se fora do aparecer físico do ser. Portanto, é fruto da descrença, segundo Caeiro, não da crença. Só os descrentes na realidade que enxergam poderiam inventar outra realidade além desta. “Não acredito em Deus porque nunca o vi”, escreve.

Descrê de Deus, por crer na natureza.

Mas se Deus é as flores e as árvore

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol[11].

Busca-se uma relação de imanência com o ser, recusando transcender a visibilidade inocente. Isso que Caeiro chama de inocência – a chave da sua poética – é conhecido na história da estética, desde Friedrich Schiller no fim do século XVIII, como ingenuidade. Os poetas ingênuos “nos comovem pela natureza, pela verdade sensível”[12], ao contrário dos poetas sentimentais, que o fazem pelas ideias. O sentimento impede a sensação. Ele distancia homem e mundo, é o obstáculo que atrapalha o elo sensível com a natureza, e assim não alcançamos o objeto, mas apenas o que a subjetividade do poeta fez dele. Caeiro quer evitar isso, quer ser um artista mais instintivo, que acolhe com tranquilidade o mundo. Sua inocência é mais estética que moral. O inocente, aqui, não é o oposto do culpado, e sim do reflexivo. Daí a simpatia de Caeiro pelo paganismo grego, quando uma forma menos autoconsciente do homem governava a relação com o mundo. Inocência é pureza na apreensão do real, e a tal ponto que toda qualificação sua soa supérflua e falsificadora, devendo ser anulada. Mesmo a qualificação lírica de beleza.

Uma flor acaso tem beleza?

Tem beleza acaso um fruto?

Não: têm cor e forma

E existência apenas.

A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe

Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.

Não significa nada.

Então por que digo eu das cousas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,

Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens Perante as cousas,

Perante as cousas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível[13].

Mesmo adjetivar as coisas como belas já é excessivo para a pureza de Caeiro. Coisas não são belas nem feias, só existem. No entanto, o que chama a atenção nesses versos é que o poeta reconhece que, até para ele, a contenção substantiva é dificil. Ele atribui beleza às coisas. Reprime-se, mas atribui. Tal atribuição é má, pois doa significado subjetivo à flor. Mesmo Caeiro, portanto, que supostamente vive só de viver, não está à altura da exigência que faz de inocência eterna. Ele culpa “as mentiras dos homens”, mas ele também é um homem. E assume, portanto, a dificuldade de cumprir sua ética de ver só o visível, sem subjetividade e sem pensamento junto.

Em alguns poemas, exceções decisivas à regra, Caeiro expõe o quanto seu projeto ético de vida, incessantemente anunciado, traz uma contradição interna. Se é para sentir de forma pura, se é para abrir os olhos e ver o sol, em vez de pensar no calor, por que escrever poemas? Escrever é elaboração. na linguagem. da experiência que ele sentira. Com seus versos, Caeiro já está além da sensação imediata à qual pretendia se ater. Se ele fosse inteiramente fiel ao que propõe, teria que abandonar a prosa para respeitar em silêncio a natureza, deixando-se só senti-la. Falando, o poeta atenta contra a busca de pura simplicidade e de contato natural com as coisas. Pois a arte é artifício, e não natureza. Mas Caeiro quer fazer aquela com a espontaneidade desta.

Penso e escrevo como as flores têm cor

Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me

Porque me falta a simplicidade divina

De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,

Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,

E a minha poesia é natural como o levantar-se vento…[14]

Caeiro quer fazer o artifício de seus poemas como se fossem natureza, quer versos que brotem como uma planta que vem da terra. Diz que pensa e escreve como as flores têm cor, mas admite, logo em seguida, que o faz com menos perfeição, ou seja, que o homem, por falar, não pode ser exatamente como a natureza, que é muda. Falta-lhe a simplicidade de ser todo somente o exterior, pois ele tem interioridade, sentimentos e pensamentos, embora os queira evitar. Em suma, surge um paradoxo na poesia de Caeiro: por que se dedicar a produzir o artifício da arte, quando se quer a sensação natural?

Aquela senhora tem um piano

Que é agradável mas não é o correr dos rios

Nem o murmúrio que as árvores fazem…
Para que é preciso ter um piano?

o melhor é ter ouvidos[15]

Do mesmo modo que Caeiro, ao falar da senhora nesses versos, nós poderíamos perguntar: por que é preciso fazer poemas? O melhor não é ter visão? Empregar as mãos com a pena, a caneta e, pior, o computador é trair sua eterna inocência, que as destinaria só a tatear. Os poemas de Caeiro, pelo que ele expõe, poderiam ser agradáveis, porém, não acrescentariam nada ao correr dos rios e à luz do luar. “Escrevo a prosa dos

meus versos”, diz ele. Só que esta prosa o separa das sensações que busca e que, se bastassem de fato, o silenciariam. Prosa é significado, interpretação. Caeiro não quer isto. Quer o mundo, digamos, de antes do homem.

Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;

Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada. Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação[16].

Ver é achar as coisas nuas, despidas da cultura, com menos sentido. O personagem Caeiro vive longe da cidade, no campo, num meio rural pouco tocado pela mão do homem. O ser bruto que ele persegue não é, como pensa o filósofo José Gil, mais do que o sentido, é menos do que o sentido, embora o autor tenha razão em afirmar que “a linguagem não é suficiente para ‘dizê-lo”‘, que “é preciso calar a especulação filosófica, é necessário situar-se num ponto de silêncio”[17]. Mas, contraditoriamente, Caeiro escreve seus poemas, quebra o silêncio. Sua prosa soa alta, como uma ruidosa defesa filosófica da ausência de filosofia. Seus versos são barulhentos argumentos, afinados com uma perspectiva fenomenológica. Caeiro não cessa de falar. Sua obra é mais uma justificação da relevância das sensações do que o simples testemunho destas. Não é suficiente, a ele, a natureza sem Deus, por exemplo. Ele precisa explicar, minuciosamente, por quais razões não faz sentido a ideia de Deus. É filósofo da antifilosofia. O vigor da sua poesia não vem somente do que ela anuncia, mas do paradoxo que ela encerra: uma prosa cujo sentido, se levado às últimas consequências, exigiria o silêncio.

Em outras palavras, eu arrisco dizer que Caeiro quer ser um poeta do tipo ingênuo, mas, só por querê-lo, já não o é. Ele é um poeta reflexivo, e não inocente. Não fosse assim, a ética que propõe, como mestre, jamais deixaria discípulos poetas. Seria uma lição didática da deficiência da linguagem, pois os versos seriam mediação entre homem e natureza, como o conhecimento, a cultura, a filosofia, o pensamento. Logo, já atrapalham. Lido inocentemente em sua ética, Caeiro não teria deixado artistas como discípulos, só viventes. Lido reflexivamente em sua poética, contudo, Caeiro deixa uma questão: em que, afinal, ele difere das coisas às quais queria ser plenamente imanente?

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois […]

Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas…

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…

Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas

E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente

E eu não sabia nada do que de mim faziam…

Mas eu não sou um carro, sou diferente,

Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam[18]

Caeiro admite, mesmo contra sua vontade, a singularidade humana de sua existência, distinta do carro de bois, de uma coisa. Só não sabe onde ela fica, o que o difere, como afirma o seu último verso. Curiosamente, contudo, talvez sua diferença, enquanto homem, esteja justamente em enunciar, pela linguagem, esta pergunta: em que sou diferente do carro de bois? O carro de bois não faz esta pergunta. Só o homem indaga, pela prosa, o seu ser. Nesse sentido, quebrar o silêncio é condição da arte, na medida em que é humana. Caeiro reconhece, “sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos”[19], mas conclui então que não deve dizer nada além de que a pedra é pedra, como se fosse tomado de um ressentimento contra sua própria capacidade humana, demasiadamente humana, de achar beleza na pedra. Parece tomado por uma disposição de ser algo mais natural do que humano.

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um

[homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada[20].

Só sentir a natureza e mais nada deveria excluir escrever. Mas Caeiro escreve, pois, malgrado sua intenção, é homem, e o homem é “o animal com linguagem”[21], como afirma George Steiner. Cabe ao homem, e sobretudo ao poeta, falar para se tornar homem, em vez de amaldiçoar a linguagem como obstáculo à sua felicidade. Isso é o que faz o homem ser, além de artista, um ente moral, visto que, sem a linguagem, ele seria como uma pedra. Por isso, a defesa poética de Caeiro da inocência natural é coerentemente desdobrada por seu discípulo Ricardo Reis em uma ética abstencionista, omissa, de recuo diante do mundo para se preservar puro, aquém de erros e acertos.

Poucas histórias acusam o problema moral do silêncio como aquela do romance As afinidades eletivas, de Goethe. O casal Eduardo e Carlota aceita, em sua casa de campo, os amigos convidados Capitão e Otília. Rapidamente, seus afetos se cruzarão. Eduardo fica atraído por Otília, Capitão e Carlota se desejam. Ninguém consuma sexualmente as afinidades surgidas. Eduardo e Otília nem falam sobre o que sentem. Goethe construiu a personalidade de Eduardo muito ingênua quanto à relevância de falar. “Estou percebendo que no matrimônio, às vezes, é preciso discutir para se poder ficar sabendo algo um do outro”[22], confessa o personagem. Ele ainda está descobrindo o óbvio: seres humanos se comunicam pela conversa, a palavra é fundamental para o casal. Otília também é silenciosa. Quando Eduardo comenta, encantado, que é “uma menina agradável e comunicativa”, a esposa imediatamente indaga, surpresa: comunicativa? E conclui que ela “ainda não abriu a boca”[23].

Mas Otília não precisaria abrir sua boca. Pois é bela. Ela é um “colírio para os olhos”, em especial para os olhos de Eduardo, que desde sua chegada não consegue tirá-los dela. Esteticamente arrebatado por tal beleza, sente-se atraído. Os dois guardam, calados, a paixão. Eduardo, ansioso, caminha sem direção numa noite quente, os jardins parecem estreitos, os campos, vastos. Ele para sob as janelas de Otília. E Goethe descreve que “tudo era silêncio a sua volta, nenhuma brisa se fazia sentir; estava tão silencioso, que se podia perceber sob a terra o trabalho dos vermes ativos escavando”[24]. Pelo silêncio passivo de si, o par se tornará vulnerável ao trabalho ativo da natureza.

O fato de tudo se passar numa casa de campo, ambiente assemelhado àquele em que vivia Alberto Caeiro, é significativo. Essa proximidade com a natureza muda afina os homens com o silêncio. Quando chegam pessoas da cidade, ou, como narra Goethe, “do mundo”, esses novos personagens faziam “contraste com os nossos amigos, com seu comportamento campestre e as suas paixões secretas”[25]. Com afetos nas sombras, fechados em seu silêncio, os personagens, sobretudo Eduardo e Otília, “seguem seu caminho sentindo, porém surdos; enxergando, porém mudos”[26] como observa o filósofo Walter Benjamin. Seguindo assim, porém, vivem uma existência a cargo do destino, que terá o ponto de inflexão na noite de sexo entre Eduardo e Carlota.

Na penumbra, porém, as suas inclinações interiores e as suas fantasias afirmaram os seus direitos sobre a realidade; era Otília quem Eduardo estreitava em seus braços, e na alma de Carlota pairava a imagem do Capitão, ora longe, ora mais perto, e, desse modo bastante singular, o presente e o ausente se entrelaçaram como encanto e voluptuosidade[27]. •

Os direitos da fantasia sobre a realidade serão efetivados na criança nascida. Ela terá feições parecidas com as daqueles imaginados por Eduardo e Carlota durante sua geração. É a cara do Capitão e de Otília! Na contramão dos amantes silenciosos, Carlota busca a linguagem. “Não podemos impedir que esse momento marque uma época em nossa vida; mas que ela seja digna depende de nós”, afirma ao Capitão, completando que, se “pretendia guardar silêncio até que as coisas estivessem arranjadas”, agora deveria “revelar esse segredo”[28]. Ela também procura o marido, e o confronta na linguagem. “Você ama Otília”[29]. Pergunta, ainda, por que eles não exprimem pelas palavras o que cada instante revela. Mas já era tarde para evitar a desgraça por vir.

Otília, certo dia, sai para passear com o bebê e o deixa cair em um lago acidentalmente, causando morte por afogamento. Culpada, ela acabará morrendo também. “Menos hesitação teria trazido liberdade, menos silêncio teria trazido clareza, menos complacência, a decisão”[30], diz Benjamin. Nada disso ocorre. Prezando o casamento como instituição burguesa simbólica do amor, os personagens mantêm uma civilidade vã. Não cometem, assim, falta em relação à moralidade, mas a própria moralidade é que falta. Nada errado é feito, mas é a vida toda que fica errada. Eles se reduzem moralmente.

“Tanto sofrimento, tão pouca luta”, escreve Benjamin, “daí o silêncio de todos os afetos”[31]. O caso emblemático é Otília. Ela parece inocente. Mas é culpada por preservar pura sua beleza inerte. Seu “mutismo vegetal”[32] a faz, pela ausência de fala, um ser mais natural do que humano, um ser que, como um vegetal, não é moral nem imoral. É amoral. Otília está aquém do âmbito moral por sua recusa a se exteriorizar, porque resguarda sua bela perfeição estética, seu comportamento leve e harmônico, sem fissuras, porque abdica de falar e de agir. Quase uma planta, Otília tem somente o esplendor da sua aparência natural para sustentar a sua existência. É pouco.

Para mencionar uma categoria filosófica dessa mesma época, ou seja, do começo do século XIX, Otília é uma espécie de “bela alma”, expressão aliás que Goethe de fato emprega para caracterizá-la[33]. Essa bela alma é aquela dos que preferem seu isolamento solitário e romântico à participação efetiva no mundo, dos que zelam por sua interioridade a tal ponto que a deixam a salvo da exterioridade, dos que preferem sua contemplação à ação. O filósofo Hegel, que deu à expressão o seu sentido conceitual, afirma que falta à bela alma a força de extrusão, ela “vive na angústia de manchar a magnificência de seu interior por meio da ação”[34] e, a fim de preservar o seu coração puro, permanece na impotência. Essa poderia ser, simplesmente, a descrição de Otília. Para não manchar seu belo e divino eu, ela cala. Prefere ser pura do que humana. Fica, por isso, impotente diante do mundo efetivo. Frágil, Otília fecha-se em copas. Não abre a boca, como afirma Carlota.

É que a prosa do mundo sempre soa barulhenta demais para a sua alma silenciosa. Otília é várias vezes chamada, no romance, de “a criança”. Ora, a criança é o infante, etimologicamente, aquele que ainda não tem fala e, sendo assim, não é ainda um homem adulto. Encarnando o tradicional estereótipo da feminilidade, Otília é singela, suave, meiga… E não faz nem fala nada. Seu amor, portanto, não poderia se realizar jamais, uma vez que significaria sair da dimensão espiritual interior, efetivar-se no mundo às custas de profanar sua “santa alma”. É o silêncio que a garante. Goethe descreve, não raro, como Eduardo e Otília não precisavam de palavras, bastando estar um próximo do outro. Qualquer fala ameaçaria a pureza espiritual desse amor.

No fim das contas, entretanto, a bela alma é, conforme assinala Hegel, uma figura da consciência infeliz. Pois ela reconhece a fratura que a separa do mundo exterior, que lhe soa hostil. Porém, em vez de encará-lo e mesmo transformá-lo, ela recua para se defender. Prefere a “vida nua”[35] da natureza, para empregar um conceito do pensador contemporâneo Giorgio Agamben, do que a vida histórica. O casamento desagrada, mas nada se faz contra ele. Todos respeitam a ordem instituída dos costumes daquele mundo moralista, embora pouco moral, da burguesia, mesmo que ela traga a infelicidade. Otília foge para dentro de si. Só que, como apontara o filósofo Georg Lukács, “essa autossuficiência da subjetividade é o seu mais desesperado gesto de defesa, a renúncia de toda a luta por sua realização no mundo exterior – uma luta já encarada a priori como inútil e somente como humilhação”[36].

Nesse sentido, só resta uma opção para a bela alma fugir de sua dor, já que ela não é uma consciência operante no mundo: a mortificação do eu. Otília terá que perecer. Só assim seu dilacerante sofrimento será apaziguado. Contudo, até mesmo para se matar, ela precisaria passar da contemplação à ação. O suicídio é um ato voluntário, demanda atitude, e desse ponto de vista teria a sua dignidade moral para Otília, pois a faria sair do casulo. Friedrich Schlegel escreveu, uma vez, que “nunca é injusto morrer voluntariamente, mas muitas vezes é indecoroso viver por mais tempo”[37]. Mas, este não será, afinal, o caso de Otília. Nem para morrer ela irá agir. Otília não dá um tiro em si mesma e tampouco pega numa corda e se enforca. Ela somente não come mais. Morre de passividade, não de atividade. Carlota estava mais certa do que imaginou: Otília não abre mesmo a boca. Nem para comer.

O fim do enredo, graças à morte inexpressiva de Otília, é malfadado e triste, deplorável mesmo. Mas não é trágico, pois não deriva de palavras e de ações, mas de silêncio e de indolência. Interiorizando subjetivamente os seus sentimentos, os personagens são passivamente carregados pelo destino. Não conseguem dar conta do desafio de achar terra firme – ou prosa firme – num mundo hostil ao amor eclodido: afogam-se em omissão silenciosa. Goethe é o autor, aqui, que revela não mais a formação do homem, como em Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, mas a deformação dele. Do fim arrasador, fica outro ensino: a moralidade humana depende da ação da linguagem.

Por isso, a despeito da confusão e do excesso da prosa do mundo em que vivemos, tão diferente daquela de que Hegel falava originalmente ainda no século XIX, o silêncio omisso não é saída. Citei aqui a dimensão estética em que a prosa precisa abandonar o silêncio, através da análise do projeto poético de Caeiro, o heterônimo de Pessoa. Citei a dimensão moral em que a prosa deve romper o silêncio, interpretando As afinidades eletivas de Goethe. Não vou me deter na dimensão política em que o silêncio também deve ser superado. Caberia, porém, mencionar que a política – em sentido mais amplo do que o das instituições – é discurso, ou seja, mediação entre os homens na esfera pública, de que são exemplos cartazes levantados pelas ruas com uma prosa crítica que quebra o silêncio corriqueiro de uma sociedade injusta.

Escrever um poema, declarar um amor e empunhar um cartaz, todos são gestos de coragem porque arriscam. Pois só quem fala pode errar. Numa célebre formulação que visou, cautelosamente, evitar a geração de confusões além das já conhecidas, o filósofo analítico Ludwig Wittgenstein sentenciou que “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”[38].

Se acreditássemos nesta máxima, a existência contemporânea deveria nos calar, pois ela se define por desarmar o que poderíamos falar dela. Nossa “era nova e desconhecida” pôs em xeque conceitos tradicionais do entendimento, exigindo, entretanto, não silêncio definitivo, mas o atrevimento de falar sobre o que não sabemos. Isso é arriscado, como escrever poemas, declarar amores, empunhar cartazes.

Tacitamente, quem parece ter melhor respondido a Wittgenstein foi o dramaturgo Samuel Beckett. “Não sabendo falar, não querendo falar, tenho que falar”[39], escreveu ele. Sua frase soa como um imperativo da linguagem. Beckett define, implicitamente, a tentação do silêncio, pois, se não sei e nem quero falar, o melhor seria me calar. Mas a força da frase está em que ela, ao contrário da razoabilidade lógica tranquilizadora de Wittgenstein, quebra a sequência previsível que esperávamos: primeiro, não sei falar; segundo, não quero falar; terceiro, não irei falar. Em vez disso, porém, o terceiro momento da frase interrompe a linearidade e instaura uma surpresa. Com isso, as duas observações iniciais perdem o sentido de causa, já que a terceira não é a sua consequência. Não saber falar e não querer falar são problemas, obstáculos, que dão à necessidade imperativa de falar sua gravidade total.

Beckett definia então que – mesmo cognitivamente desarmados, “não sabendo falar”, e voluntariamente refratários, “não querendo falar” – temos que falar. Seu teatro é expressão corajosa dessa tarefa. É desprovido de ação e de diálogos tradicionais. Os personagens falam entre si, mas o que dizem não faz a cena progredir, não constrói um sentido. Mesmo assim, continuam falando. Nem que seja apenas por falar. Esperamos por algum sentido, como inexplicavelmente esperamos por Godot em uma peça, e somos cortados por silêncios. Mas não paramos de perguntar pelo que esperamos.

“Enquanto esperamos, vamos tratar de conversar com calma, já que calados não conseguimos ficar”, afirma Estrangon enquanto espera Godot. E a obra de Beckett talvez seja toda esse “tratar de conversar”. Vladimir, diante do que disse Estragon, responde – “somos inesgotáveis”. Por isso, mesmo na ausência de uma comunicação eficiente, de uma evolução argumentativa, o homem fala. “Há em Beckett uma formidável eloquência inversa”, constatou George Steiner, “as palavras, acumuladas e surradas, dançam para ele”[40]. Sua obra é a dança da prosa, a despeito dos dançarinos estarem já surrados.

ESTRAGON – Todas as vozes mortas.

VLADIMIR – Um rumor de asas.

ESTRAGON – De folhas.

VLADIMIR – De areia.

Silêncio.

VLADIMIR – Falam todas ao mesmo tempo. ESTRAGON – Cada uma consigo própria.

Silêncio.

VLADIMIR – Melhor, cochicham.

ESTRAGON – Murmuram.

VLADIMIR – Sussurram.

ESTRAGON – Murmuram.
Silêncio.

VLADIMIR – E falam do quê?

ESTRAGON – Da vida que viveram.

VLADIMIR – Não foi o bastante terem vivido. ESTRAGON – Precisam falar.

VLADIMIR – Não lhes basta estarem mortas. ESTRAGON – Não é o bastante.

Silêncio.

VLADIMIR – Como o rufiar de plumas.

ESTRAGON – De folhas.

VLADIMIR – De cinzas.

ESTRAGON – De folhas.

Longo silêncio.

VLADIMIR (angustiado)- Diga qualquer coisa![41]

Não é o bastante ter vivido. Precisamos falar. Mesmo Caeiro precisou falar. E Otília devia ter falado. Os personagens de Beckett dizem, ainda que o que eles dizem seja menos importante do que somente insistir em dizer, em manter viva a prosa no meio de tantos silêncios, alguns longos. Importa que se fale, qualquer coisa até. Pois nós somos em meio à linguagem, somos em meio à prosa que falamos e que nos fala. E o resto, “o resto é silêncio”[42].

Conhecemos muito bem essa frase. Ela vem de Hamlet, o personagem mais famoso de Shakespeare. Mas o que significa dizer que resta o silêncio? Imediatamente, como a frase vem à tona na morte de Hamlet, fica-se tentado a explicar que, para além do que aconteceu e foi escrito, não resta nada. Há somente o silêncio. Portanto, o silêncio seria como o nada, e nada restaria a acrescentar após o fim. Esse silêncio sucede a fala e a vida quando estas já se exauriram. Será tudo silencioso após a morte, como era antes da vida, pois o silêncio absoluto só pode estar antes ou depois de nós, nunca junto a nós.

Isso talvez explique os tambores que se sucedem à morte de Hamlet na peça para os que ficam. É o som da vida que segue. O silêncio enunciado pelo protagonista, assim, adquire um outro e menos provável significado, se quisermos. Não é o silêncio do fim, mas, ao contrário, um silêncio com o qual temos que conviver, ainda que talvez estejamos desacostumados a ele. Fiz o elogio da prosa aqui, mas Hamlet pontua o silêncio que resta. O falatório em que vivemos, trocando informações e postando a toda hora, exige aprender o silêncio. Só o homem pode silenciar assim, pois permanece um ser capaz de falar, já um pedaço de madeira nunca pode silenciar[43]. Não se trata de, como Otília, ficar mudo, mas de atentar para a finitude da nossa prosa, pois toda fala deixa algo de fora, faltando. Resta sempre o silêncio. Não o consumimos por completo com palavras. Ele é mais vasto, é o que resta mesmo quando queríamos preencher tudo de sentido. O silêncio assim concebido é também o indício de que outra prosa pode começar. Pois ainda há o que dizer. É o que ocorre agora. Silencio para outras falas virem, somando-se a esta. Silencio por acreditar, como John Cage, que o silêncio está prenhe de sons.

Notas

  1. John Cage, “Experimental music”, em: Silence, Middletown: Wesleyan University Press, 1961, p. 8.
  2. Maurice Merleau-Ponty; ”A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, em: Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 47.
  3. Arnaldo Antunes, “O silêncio”, em: O silêncio, gravadora BMG, 1996, faixa I.
  4. Devo essa citação a meu pai, Edgard Coelho de Andrade, a quem agradeço. Ela pode ser achada em: <http://wwwr.folha.uol.com.br/fsp/ mais/ fsr503200902.htm>. Acesso em 8 jun. 2014.
  5. José Américo Motta Pessanha, “O teatro das ideias”, em: O que nos faz pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia PUC-Rio, n. II, ahril 1997.
  6. Platão, Carta VII, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora PUC-Rio/Loyola, 2008, p. 89.
  7. Idem, ibidem, p. 93.
  8. Fernando Pessoa, Obra poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 139.
  9. Maurice Merleau-Ponty, A prosa do mundo, São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 24.
  10. Fernando Pessoa, op. cit., p. 157.
  11. Idem, ibidem, pp. 141-42.
  12. Friedrich Schiller, Poesia ingênua e sentimental, São Paulo: iluminuras, 1991, p. 88.
  13. Fernando Pessoa, op. cit., p. 152.
  14. Idem, ibidem, p. 148.
  15. Idem, ibidem, p. 147.
  16. Idem, ibidem, p. 167.
  17. José Gil, Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, pp. 25 e 27.
  18. Fernando Pessoa, op. cit., p. 148.
  19. Idem, ibidem, p. 168.
  20. Idem, ibidem, p. 160.
  21. George Steiner, “O animal com linguagem”, em: Extraterritorial, São Paulo: Companhia das Letras,1990.
  22. Johann Wolfgang von Goethe, As afinidades eletivas, São Paulo: Nova Alexandria, 2008, p. 27.
  23. Idem, ibidem, p. 52.
  24. Idem, ibidem, p. 87.
  25. Idem, ibidem, p. 72.
  26. Walter Benjamin, “As afinidades eletivas de Goethe”, em: Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe, São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2009, p. 26.
  27. Johann Wolfgang von Goethe, op. cit., p. 82.
  28. Idem, ibidem, p. 86.
  29. Idem, ibidem, p. 98.
  30. Walter Benjamin, op. cit., p. 22.
  31. Idem, ibidem, p. 97.
  32. Idem, ibidem, p. 84.
  33. Johann Wolfgang von Goethe, op. cit., p. 190.
  34. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Fenomenologia do espírito Parte II, Petrópolis: Vozes, 2001, p. 134.
  35. Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, Belo Horizonte: UFMG, 2002.
  36. Georg Lukács, A teoria do romance, São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000, p. 119.
  37. Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, São Paulo: Iluminuras, 1997, fragmento 15, p. 49.
  38. Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo: Edusp, 2001, p. 131.
  39. Samuel Beckett, O inominável, São Paulo: Globo, 2009, p. 58.
  40. George Steiner, “Da nuance e do escrúpulo”, em: Extraterritorial, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 25.
  41. Samuel Beckett, Esperando Godot, São Paulo: Cosac Naify; 2005, p. 121-122.
  42. William Shakespeare, “Hamlet!”, em: Tragédias: teatro completo, Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 602.
  43. Martin Heidegger, Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 179.

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