2005

O teatro e o poder

por Tania Pacheco

Resumo

A década de 1960 foi uma das mais ricas para o teatro brasileiro. O aparecimento de grupos que realizavam uma efetiva pesquisa de linguagem — concorde-se ou não com os seus pressupostos ideológicos — determinou, pela primeira vez, uma ebulição criadora, uma busca de caminhos (em alguns casos, iniciada já na segunda metade da década de 1950) como jamais tinha acontecido no Brasil. Quando houve o golpe militar, o Arena voltava de uma excursão ao interior, com a peça “O filho do cão”, e o Oficina encenava “Os pequenos burgueses” – até 10 de abril.

Depois do desnorteamento inicial, o teatro brasileiro buscou ressituar-se, até porque ainda havia espaço, ocupado, boa parte das vezes, anarquicamente. Mesmo durante o Estado Novo, os artistas haviam gozado de relativa liberdade. E, vendo na imprensa burguesa uma aliada em potencial, o teatro ingenuamente considerou possível resistir. Os primeiros golpes viriam logo em seguida.

Na atmosfera de medo inicial, os profissionais do teatro que continuaram trabalhando viram, por exemplo, “A megera domada”, de Shakespeare, ser parcialmente censurada no Rio de Janeiro. Segundo o censor, a razão disso era “cultural”, já que a imortalidade do escritor havia sido, em tal espetáculo, conspurcada por palavrões (traduzidos diretamente do original). Numa época de mando caótico, não era apenas a censura a inimiga oficial, já que a classe média — que “marchara com Deus e pela família em defesa de nossas tradições” — julgava ter igual direito ao seu quinhão de poder arbitrário. Assim, em Minas Gerais, uma montagem de “A invasão”, de Dias Gomes, foi proibida por “pessoas influentes da sociedade de Leopoldina”. Acusação? Pornografia.

A verdade é que 1968 foi muito mais do que um simples ano em que se prometia a liberdade de expressão para o teatro e, paralelamente, usava-se de forma indiscriminada a censura. Logo no final de março, o assassinato de Edson Luís, no Calabouço, deu força ao movimento estudantil, sobretudo às passeatas quase diárias do Rio de Janeiro. A Igreja passou a uma posição mais ostensiva, contra o arbítrio; o Congresso pareceu voltar à discussão e ao debate dos grandes temas nacionais; a imprensa burguesa se dividiu entre a condenação à agitação popular e o repúdio à ação da extrema-direita, agora claramente organizada em grupos terroristas; as denúncias de tortura continuavam, e as ruas, aparentemente reconquistadas, viram surgir um aparato militar ostensivo.

O golpe final veio com o AI-5 e, consequentemente, com o fechamento do Congresso e as cassações que condenariam o Poder Legislativo à inação, à omissão, ao medo.

O ano de 1970 começa com o discurso de posse do novo chefe da censura, Wilson Aguiar, que no dia 14/1 afirma “acreditar no diálogo como processo de interação, como estrada livre ao entendimento, à unidade de esforços, à comunhão de idéias e de propósitos”. Sete dias mais tarde, o governo baixaria o Decreto-Lei 1.077, instituindo a censura prévia a livros e periódicos (inclusive peças teatrais), sob a justificativa de que “o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”.

Em 1971, as contradições dos censores locais aumentam ainda mais, enquanto a repressão se institucionaliza no país. Logo em janeiro, a censura carioca proibe “Les girls” (de Meira Guimarães e Roberto Kelly, já há dois meses em cartaz) e “A vida escrachada”, de Joana Martini, e “Baby Stompanato” (de Bráulio Pedroso, há 25 dias em cartaz). Em fevereiro, Renato Borghi e Ivan Setta são intimados a depor no Departamento de Polícia Federal de São Paulo, devido a uma denúncia segundo a qual os atores teriam ficado nus durante uma apresentação de Galileu Galilei, de Brecht.

A falta de clareza ideológica leva o empresariado teatral a sugerir ao poder um pacto, em pleno ano de 1973, no auge da ação repressiva dos órgãos de segurança. Assim, a censura desloca-se de seu eixo real — o político — para o eixo secundário e conseqüente — o econômico. A própria colocação da Acet (“ação excessivamente rigorosa”) pressupõe a aceitação de outra censura, mais branda, menos rígida. E as sugestões apresentadas novamente sublinham esse pacto, legitimando mecanismos que o poder vinha usando contra a população brasileira, como a Aerp e a Voz do Brasil.

Em 1974, enquanto Orlando Miranda é encaminhado, por vontade da maioria dos grupos profissionais, à direção do SNT, pondo fim à gestão pusilânime de Felinto Rodrigues Neto, criam-se, em Teresópolis, a Federação Nacional de Teatro Amador, e, no Rio, a Associação Carioca de Críticos Teatrais. Marginalmente, buscando um caminho que agora mais ainda se estreitava, o chamado “teatro não-empresarial” viria a transformar-se, nos anos vindouros, na quase única opção para os artistas mais inquietos e ainda preocupados com a discussão da realidade brasileira e da revolução do conteúdo e da forma na arte cênica.

Mais uma vez, 1975 começaria com uma palavra de esperança. Durante a inauguração do Teatro Amazonas, em Manaus, para a qual diversos artistas haviam sido convidados, o general Geisel prometeria melhorar as relações do teatro com a censura. Dias depois, são proibidas as peças “Eles não usam black-tie”, de Guarnieri, “Chapetuba Futebol Clube”, de Vianinha, “Revolução na América do Sul”, de Boal, e “A invasão”, de Dias Gomes. Em abril, “Um elefante no caos”, de Millôr Fernandes, sofre cortes tão drásticos que impossibilitam a sua montagem, por Fernando Torres.

Segundo declaração oficial do chefe do Departamento de Censura, Rogério Nunes, foram proibidos 29 textos no decorrer de 1976, além dos que foram cortados, mutilados, suspensos. Entre eles, estão “Mockinpott”,de Peter Weiss, “Dependências de empregada”, de João Carlos Motta, “Alqui CabálaSilva”, de ClovisLevie Tania Pacheco, e “O aprendiz de feiticeiro”, de Maria Clara Machado.

Em janeiro de 1977, artistas e intelectuais enviam ao ministro da Justiça um memorial com 1.046 assinaturas, exigindo o fim da censura. O documento é encaminhado por Armando Falcão ao Departamento de Polícia Federal, “para exame”. Em 28 de julho, começa em São Paulo o “Ciclo de leituras de Peças Proibidas”, organizado por Ruth Escobar, cujo passaporte, na mesma semana, seria apreendido no aeroporto, ao tentar embarcar para a Europa em viagem coordenada pelo Ministério da Educação, com passagem paga pelo do Banco do Brasil. Agosto traz uma promessa do ministro da Justiça de “verificar imediatamente por que não foi implantado o Conselho Superior de Censura”. No mês seguinte, descobre-se que a Lei da Censura, que deveria ter entrado em vigor em janeiro de 1969, está na gaveta de um funcionário do Ministério da Justiça, que “fora liberado para tratamento de saúde no Rio”.

Em 1978, o ministro Armando Falcão nega-se a rever a proibição de “Cordélia Brasil”, de Antônio Bivar. Em março e abril são proibidas as seguintes peças: “O belo burguês”, de Pedro Porfírio, “A ópera do malandro”, de Chico Buarque, “América, América”, de Márcio Sgreccia, e “Canteiro de obras”, também de Pedro Porfírio.

Em 1979, muda-se o governo e o AI-5 é extinto. Assim, é possível que a chamada classe teatral brasileira se reúna, em Arcozelo, para a realização do Primeiro Seminário Nacional de Artes Cênicas, promovido pelo sindicato do Rio, agora sob a presidência de Vanda Lacerda. Timidamente, esboça-se, em Arcozelo, uma retomada, pelo teatro, de seu destino, até então entregue à (má) vontade do poder.


Nosso objetivo é ajudar a arte no Brasil, (…) dando aos artistas maior liberdade de criação e facilidades de entendimento com as autoridades, evitando que um sargento de polícia, por exemplo, censure obras que é incapaz de julgar. 1968 será um ano de tranquilidade para todos nós, podendo o povo confiar na ação serena do presidente Costa e Silva.

A declaração do ministro da Justiça, Gama e Silva, foi feita precisamente no dia 4 de janeiro de 1968, paralela à notícia da constituição de um grupo de trabalho para elaboração de uma reforma na legislação de Censura em vigor, datada de 1946. Assim começava um ano que seria decisivo para a sociedade brasileira e que — na área específica do teatro — viria a determinar um recuo de uma década ao nível da mobilização de artistas e técnicos, principalmente, além de trazer danos irreparáveis para a cultura nacional.

Mais que isso, entretanto, o discurso do ministro da Justiça prenunciava uma nova postura, por parte do Poder, em relação a artistas e intelectuais. Nova postura que teria seu estabelecimento adiado, na medida em que um novo golpe viria a ocorrer no país, com o predomínio das facções que então defendiam um endurecimento nas forças de coação e arbítrio. Os setores mais inteligentes da ditadura, que buscavam outros meios para “domar” a intelectualidade brasileira, teriam de esperar ainda alguns anos para poder colocar em prática suas teses. E, nesse meio tempo, o embrião de tentativa de articulação por parte das pessoas mais conscientes do meio teatral seria dissolvido à custa da intimidação, da prisão, da humilhação, da tortura, do exílio ou, simplesmente, do medo.

Voltemos um pouquinho atrás, para entendermos melhor o que acontecia neste começo de 1968. 0 início da década de 60 havia sido dos mais ricos para o teatro brasileiro. O aparecimento de grupos que realizavam uma efetiva pesquisa de linguagem — concordemos ou não com os seus pressupostos ideológicos — determinara, pela primeira vez, uma ebulição criadora, uma busca de caminhos (em alguns casos iniciada já na segunda metade da década de 50) como jamais antes acontecera na história do nosso teatro. Quando o golpe aconteceu, o Arena voltava de uma excursão ao interior, terminada na noite de 31 de março, com a peça O filho do cão. O Oficina estava apresentando Os pequenos burgueses, que teve sua carreira paralisada a 1º de abril.

Após o desnorteamento inicial, o teatro brasileiro buscou ressituar-se. Havia, ainda, brechas utilizáveis. E, na maioria dos casos anarquicamente, em outros poucos de forma mais consequente, procurou-se ocupá-las. Mesmo durante o Estado Novo, os artistas haviam gozado de relativa liberdade. E, com a imprensa burguesa ainda com liberdade de atuação e sendo considerada uma aliada em potencial, o teatro ingenuamente considerou plausível uma possibilidade de resistência. Os primeiros golpes viriam logo em seguida, entretanto.

Na atmosfera de medo inicial, os que permaneceram trabalhando viram, entre outras coisas, A megera domada, de Shakespeare (montagem oficial do Teatro de Comédia do Paraná, comemorando os 400 anos do autor inglês), ter diversas frases cortadas no Rio de Janeiro. Segundo o censor, entretanto, a razão era “cultural”: ele defendia a imortalidade do escritor, conspurcada por palavrões (traduzidos diretamente do original) no espetáculo. No caos inicial em que todos mandavam, não era apenas a Censura a inimiga oficial, entretanto. A classe média — que “marchara, afinal, com Deus e pela família em defesa de nossas tradições” — julgava ter igual direito ao seu quinhão de poder arbitrário. Assim, em Minas Gerais, uma montagem de A invasão, de Dias Gomes, foi proibida por “pessoas influentes da sociedade de Leopoldina”. Acusação: pornografia.

Não permitirei a apresentação de peças anti-revolucionárias, como Opinião ou Liberdade, liberdade. Não tolerarei propaganda subversiva ou comunista em espetáculos.

Com essas palavras, Jônatas Cárdia assumiu a chefia do Departamento de Censura, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1965. Dias mais tarde, O vigário, de Rolf Hochhuth, dava início à escalada de proibições e interdições que varreriam a dramaturgia brasileira e mundial mais consequente dos nossos palcos. Feydeau (Paris, 1900), Gorki (Os inimigos), Brecht(Tempo de guerra), João Cabral de Melo Neto (Morte e vida severina) e Dias Gomes (O berço do herói) foram apenas alguns dentre os autores vetados no decorrer do ano. No caso de Feydeau, a proibição foi feita pelo secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, coronel Washington Bermudes, que afirmou: “O teatro vem sendo utilizado como veículo de desmoralização e se caracteriza pela péssima e decrescente qualidade artística e pela destacada pornografia e sensualização das cenas!” E o elenco foi sumariamente intimado a depor no Dops, por tal afronta.

Dias Gomes teve a honra de ser censurado pelo próprio governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, poucas horas antes da estreia. Escrevera uma peça “ofensiva às Forças Armadas, subversiva e imoral”. O despacho do coronel Gustavo Borges, oficializando a decisão do governador, foi ainda mais claro: acusava os responsáveis pelo texto e pelo espetáculo de “estarem engajados na implantação de uma ditadura cultural, através do abuso de liberdades democráticas e em estrita obediência à recente diretriz do PCB”.

Os jornais publicaram ainda a ação da Censura sobre as seguintes peças, em 1965: No país do benguelê, de Alfredo Ribeiro e Nestor Cavalcanti (proibida após liberação), Voz do povo, de Otávio Terceiro (proibida), Os sinceros, de Id Almeida (proibida), Arena conta Bahia, de Augusto Boal (cortada), Deitado em berço esplêndido, de Álvaro Guimarães (proibida), Brasil pede passagem, de diversos autores (proibida dias antes da estreia no Teatro Opinião, no Rio), Opinião e Arena conta Zumbi (cortada).

Quase no final de 1965, em outubro, Liberdade, liberdade iniciaria, ainda, seu processo de brigas nacionais com a Censura. Após o grande sucesso no Teatro Opinião, sua estreia em São Paulo foi inicialmente ameaçada de interdição total. Quase um mês de negociações possibilitaram, afinal, a apresentação com mais de 20 cortes, inclusive de músicas de Chico Buarque que integravam a montagem original.

Enquanto a Censura agia, o teatro abandonava a perplexidade inicial e tentava esboçar algum tipo de reação. A prisão de Isolda Cresta, em maio, no Rio, por ter lido um manifesto contra a intervenção na República Dominicana antes da apresentação de Electra, gerou uma série de protestos, manifestações e declarações públicas. Dias mais tarde, no início de junho e corroborando o discurso de posse de Jônatas Cárdia, o diretor-geral do Departamento de Polícia Federal, general Riograndino Kruel, mandava tirar de cartaz Opinião e Liberdade, liberdade, ao mesmo tempo em que uma nova legislação centralizava em Brasília a ação da Censura, dando início a uma série de idas e vindas e leis e portarias que passariam a reger, através do total arbítrio, a vida do teatro.

A “classe teatral” reagiu: reunidos no Teatro Santa Rosa, artistas e intelectuais redigiram telegrama de protesto, enviado ao presidente Castelo Branco. A resposta foi imediata e pode ser encarada como sintomática da época que então atravessávamos: Castelo telefonou à atriz Tônia Carrero, negando ter determinado medidas restritivas à liberdade de expressão e prometendo apurar as interdições das duas peças. No mesmo dia, Riograndino Kruel desmentia a proibição de Opinião e Liberdade, liberdade. Mas, no dia 27 de junho, aos 81 anos, Viriato Corrêa alertava, através dos jornais:

Acautele-se o povo, porque acabou a liberdade no Brasil. Só no choque das ideias é que ela pode ser testada; quando ninguém é contra, a liberdade é operária sem serviço, é vazia e completamente inútil.

A mudança da Censura da área do Ministério da Justiça para o da Educação, assunto discutido desde 1954, voltava à pauta, e, em agosto de 1965, 1.500 artistas e intelectuais enviaram carta aberta ao presidente Castelo Branco, perguntando como poderiam exercer sua profissão e ser coerentes com a responsabilidade de criadores, “se o direito de opinião e a divergência democrática passam a ser encarados como delito, e a criação artística como ameaça ao regime”. Desta vez, não houve resposta.

Mas, afinal, redigir telegramas, cartas abertas e manifestos não é coisa tão difícil, e, assim, eles continuaram a ser escritos e enviados à imprensa, ao Governo e, até, à Comissão de Direitos Humanos da ONU (no final de outubro), protestando contra “as arbitrariedades dos órgãos de censura e a coação policial no Brasil”. Dois dias mais tarde, a Censura paulista vetava, em Liberdade, liberdade, o Discurso de Gettysburg, de Lincoln, e trechos de Sófocles, entre outros.

Em 1966, Liberdade, liberdade sofreria novos cortes, durante excursão em Belo Horizonte e em Alagoas, onde recebeu uma proibição inédita: “não poderia ser apresentada em teatros oficiais”. Sorte mais drástica tiveram S.A. Século XX Responsabilidade Ltda., criação coletiva do Grupo Contato, no Rio de Janeiro, e Joana em flor, de Reinaldo Jardim. Neste último caso, a inquisição foi reeditada pelo secretário de Segurança de Sergipe, que, afirmando que “quem entende de teatro é a polícia”, mandou queimar os livros com o texto editado e prendeu por 54 horas os atores da montagem. Era um cavalheiro, entretanto: deixou em liberdade a única moça do elenco, explicando que “mulher jovem e bonita não merece grossura”.

Acabaram liberadas – com cortes Relatório Kinsey, Ciranda, Terror e miséria no Terceiro Reich (de Brecht), Meu refrão, O triciclo (de Arrabal), O senhor Puntila e seu criado Matti(de Brecht) e O homem do princípio ao fim, de Millôr Fernandes, que após meses em cartaz foi exorcizada, entre outros, de dois textos sem dúvida perigosos à segurança nacional: uma oração de Santa Teresa d’Ávila e a carta-testamento de Getúlio Vargas.

Em resposta aos manifestos e cartas abertas, que continuavam a ser escritos, o general Edgar Façanha assumiu a chefia do Departamento de Censura, no início de agosto de 1966, prometendo uma brecha para o teatro brasileiro: convidaria críticos e dramaturgos para participarem de um exame prévio de liberação dos espetáculos. Seis dias mais tarde, agentes do Dops invadiam o Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, impedindo a realização de um debate sobre a obra de Bertolt Brecht, o qual, aliás, estavam incumbidos de prender. Receberam a explicação de que o sr. Bertolt Brecht estava morto havia dez anos.

No mês seguinte, em setembro, a Censura mutilava O triciclo alegando que frases como “os tanques são necessários para nivelar o solo”; “no céu não se faz xixi”; e “como ele tem dinheiro em casa pode fazer o que quiser” eram, respectivamente, “subversiva”, “anti-religiosa” e “comunista”. A palavra “happening” foi cortada por “parecer palavra esquerdista”.

O pequeno ato inquisitorial do secretário de Segurança de Sergipe, no final de setembro, e a mutilação de O homem do princípio ao fim, em novembro, levaram a chamada classe teatral brasileira a uma nova postura. Deixando de lado a máquina de escrever e a caneta, 300 pessoas abriram o ano de 1967 num ato público, na ABI, de lançamento da Semana de Protesto contra a Censura. Claro que, na ocasião, foi lançado mais um manifesto dos intelectuais.

No mesmo dia – 9 de janeiro – os jornais anunciavam que um inquérito instaurado no Departamento de Polícia Federal, para apurar acusações de corrupção, levava à suspensão de diversos censores. E, em Brasília, Romero Lago, diretor do Departamento de Censura, afirmava que baixaria “nova regulamentação” para a matéria, de forma a “evitar que esses espetáculos (as montagens teatrais) induzam ao desprestígio das Forças Armadas ou provoquem atos contrários ao regime vigente ou às autoridades constituídas”. A regulamentação viria em março, estabelecendo uma amplitude e uma rigidez ainda maiores para a censura teatral e englobando nela os ranchos e estandartes carnavalescos.

Os erros crassos da Censura policialesca dos anos anteriores precisavam, entretanto, ser evitados, segundo algumas facções do Governo. Assim, coube ao Serviço Nacional de Teatro a honrosa atribuição de, ainda em março, promover um curso de teatro para 30 censores, o que não impediu que, em novembro, Sófocles (Antígona) fosse considerado perigoso para a segurança nacional: em Belém, só conseguiu estrear após severos cortes, perdendo ainda o cenário criado para o espetáculo. E o jornal A Província do Pará sofreu inquérito policial por publicar fotos do cenário subversivo.

Liberdade, liberdade voltou a ser censurada em 1967, agora no Ceará e pelo governador em pessoa, e Navalha na carne, de Plínio Marcos, iniciou em junho seu pequeno processo kafkiano: primeiro, foi proibida, com o Teatro Opinião sendo cercado pela polícia no dia da estreia para convidados; depois, liberada, em outubro, pelo ministro da Justiça, num início de proibições/liberações que se prolongariam pelos anos seguintes.

Ainda em junho, Volta ao lar, de Harold Pinter, sofreu 52 cortes depois de estreada, e, em agosto, 17 deputados paulistas foram contagiados de forma inversa pela capacidade do teatro de escrever manifestos: enviaram documento ao ministro da Justiça solicitando “mais rigor por parte da Censura”. Em setembro, Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos, é proibida em Niterói. O censor alega que “o povo da cidade não está preparado para assistir a uma peça como esta” e aconselha o grupo a escolher um repertório mais leve, citando como exemplo de uma dramaturgia ideal A moral do adultério. Na mesma época, 16 atores da Associação de Teatro Amador do Cabo, Pernambuco, são presos por 16 horas e fichados como “comunistas” por terem lido nota contra a Censura.

Enquanto, na Câmara Federal, Márcio Moreira Alves e Dias Menezes tentavam acabar com a censura prévia, através de projetos de leis, em outubro o Teatro Oficina seria invadido, em São Paulo, por quatro agentes policiais — dois da Censura, dois do Dops. Sua tarefa: apreender um canhão de madeira e um sorvete de plástico, usados em O rei da vela e considerados material “subversivo”, e intimar o diretor José Celso Martinez Correa a depor.

Os jornais do dia 5 de outubro de 1967 noticiam a liberação, pelo ministro da Justiça, de Navalha na carne, acompanhada de grandes elogios do sr. Gama e Silva à atriz Tônia Carrero. Os do dia 23 trazem declaração do general Façanha, diretor do Departamento de Polícia Federal, chamando Tônia Carrero de “vagabunda” e afirmando ainda: “A classe teatral só tem intelectualoides, pés-sujos, desvairados e vagabundas que entendem de tudo, menos de teatro.”

Novos protestos e manifestos viriam, enquanto outros textos eram proibidos ou liberados com cortes, e, em novembro, portaria do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal centralizava toda a censura à dramaturgia em Brasília. A proibição de O poder negro, de Le Roy Jones, que o Oficina estava ensaiando, marcou o início de uma mobilização nacional contra a Censura, a partir do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nova carta foi escrita ao presidente da República, enquanto, no Rio, artistas e intelectuais se reuniam no Teatro Santa Rosa, no dia 20 de dezembro, para planejar uma ofensiva contra a Censura.

Embora, como sempre, a reboque dos acontecimentos, o teatro brasileiro tentava timidamente organizar uma reação — na maioria dos casos, nitidamente emocional e sem qualquer aprofundamento crítico — contra o arbítrio, sentido de forma particular através da ação da Censura. Isso acontecia, entretanto, sem que o artista tivesse chegado a compreender, sequer, sua condição de trabalhador em teatro; ao contrário, a pequena-burguesia teatral continua alimentando seus mitos; continuava almejando, em termos de carreira, uma ascensão à burguesia; continuava sem jamais ter compreendido e assumido sua função na sociedade brasileira.

Em toda a história do nosso teatro, os grupos se limitaram sempre a, no máximo, levar o povo ao palco, para o consumo de uma classe média que se permitia pagar os preços dos ingressos e sabia lidar com porteiros, bilheteiras e poltronas de veludo. Passada — e negada — a fase tebeciana, buscou-se um teatro brasileiro que continuou entretanto a obedecer a modelos colonizadores. Sintomático que, num país como o nosso, raros atores sejam capazes de cantar, de sambar, de “batucar”, no palco. Mesmo nas escolas de Teatro, o ensino é pautado por enfoques que pouco têm a ver com a nossa realidade. E nem mesmo movimentos como o CPC conseguiram ir além de um populismo inócuo, de uma visão elitista e paternalista de um teatro que se pretendia político e “democratizante”.

Num quadro como este, num país como o nosso, não é de espantar que a chamada classe teatral tenha chegado a 1968 inteiramente despreparada para a agitação — principalmente em nível de movimento estudantil — que explodiria em todo o mundo e até no Brasil. Nem é de espantar que tenha sido incapaz de apreender — como o foi, de resto, toda a chamada “inteligência” brasileira, e até mesmo as lideranças políticas ainda no país —, através dos conflitos que os diferentes setores e facções do governo mostravam mesmo nas decisões e redecisões da questão censória, que um “golpe dentro do golpe” era iminente.

A falta de clareza, a falta de consciência e de consistência ideológicas, as cisões e divisões que impediam uma real aglutinação de forças contra a ditadura encontravam, no teatro, um campo onde eram potencializadas pelas próprias contradições, individualismos e voluntarismos de uma profissão ao mesmo tempo marginalizada e mitificada, incensada e humilhada, à qual o Poder recusava até reconhecimento legal. Em meio a tudo isso – e apesar de tudo isso – o teatro brasileiro começava também a sua mobilização; era necessário aquietá-lo.

Assim chegamos ao dia 4 de janeiro de 1968 e à apaziguadora declaração do ministro da Justiça, num momento em que o sr. Felinto Rodrigues Neto entrava no seu segundo ano à frente do Serviço Nacional de Teatro (onde ficaria até 1974), com o ator Juca de Oliveira sendo eleito para a presidência do Sindicato dos Artistas e Técnicos de São Paulo (para uma gestão que seria de dez anos, com duas reeleições) e com o ator Osvaldo Loureiro desde 1965 na presidência do sindicato do Rio (onde ficaria até maio de 1972). Mas 1968 merece um tratamento cronológico. Vamos aos jornais da época, obedecendo às datas de publicação das notícias:

4/1 – Censura proíbe O sonho americano, de Albee, em São Paulo;

4/1 – Censura proíbe a colagem O homem, a mulher e os poetas, de Walmor Chagas, que Cacilda Becker vinha apresentando;

7/1 – Intelectuais se manifestam contra a possível criação de um Conselho Superior de Censura, dizendo que jamais participarão de atividades policiais;

9/1 – No Rio, na ABI, é lançada nova Semana de Protesto contra a Censura, com divulgação de manifesto assinado por 500 artistas e intelectuais;

9/1 – Romero Lago, chefe do Departamento de Censura Federal, é afastado do cargo, no prosseguimento das investigações sobre corrupção entre os censores;

9/1 – Gama e Silva anuncia constituição de grupo de trabalho para estudar nova lei de censura, dando sequência às suas promessas;

21/1 – Artistas exigem retratação do general Façanha por ofensas a Tônia Carrero e à categoria em geral;

25/1 – Censura determina cortes para Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams;

31/1 – General Façanha determina que censores ajam com rigor contra os espetáculos O apartamento, Navalha na carne, O rei da vela e Roda viva;

5/2 – Censura eleva proibição de Roda viva de 14 para 18 anos;

11/2 – Censura proíbe, no Rio, Senhora na boca do lixo, de Jorge Andrade;

11/2 – Censura proíbe Um bonde chamado desejo e suspende, por 30 dias, a atriz Maria Fernanda e o produtor Oscar Araripe;

14/2 – Gama e Silva recebe comissão de artistas e promete total liberdade para o teatro, dependendo de portaria a ser assinada “nos próximos dias”;

15/2 — A ação da Censura contra Um bonde chamado desejo e seus integrantes leva os artistas do Rio e de São Paulo a se declarar em greve de três dias. As vigílias cívicas realizadas nas escadarias dos Teatros Municipais das duas cidades acabam em conflitos com a polícia, e Tônia Carrero chega a ser presa;

18/2 — Gama e Silva promete levar a Costa e Silva decreto solucionando a questão da Censura; 28/2 — Comissão de artistas volta a procurar Gama e Silva, exigindo medidas imediatas;

7/3 — Censura proíbe Barrela (Plínio Marcos), Santidade (José Vicente), O capeta de Caruaru (Aldomar Conrado), Dr. Getúlio, sua vida e sua obra (Dias Gomes e Ferreira Gullar), Um uísque para o rei Saul (César Vieira) e Cordélia Brasil (Antônio Bivar). Destas, O capeta e Um uísque seriam posteriormente liberadas. No caso de Santidade, o presidente Costa e Silva comenta, na televisão, sua “imoralidade” e distribui exemplares da peça aos donos dos principais jornais do país, para que possam verificar o conteúdo danoso do texto;

8/3 — Ministro da Justiça instala grupo de trabalho que vai redigir nova lei de Censura, sob a presidência do jurista Clóvis Ramalhete e com representantes das diversas entidades de classe. Na ocasião, fala aos artistas: “O teatro é livre; a Censura não incomodará mais.”

20/3 — Novo protesto dos artistas, nas escadarias do Municipal, é disperso pela polícia;

20/3 — Censura proíbe João da Silva, de Emanuel Morais, no Rio;

28/3 — Departamento de Polícia Federal anuncia que o ex-chefe do Departamento de Censura, Romero Lago, afastado do cargo dois meses antes, chamava-se na realidade Ermelindo Godoy e era procurado pela polícia por crime de assassinato; ao mesmo tempo, dezenas de censores são afastados e processados em consequência do inquérito da corrupção;

31/3 — Grupo de trabalho aprova descentralização da Censura e fixação de prazos para recursos contra as decisões dos censores;

2/4 — Censura faz cortes em Oh! Oh! Minas Gerais, de J. D’Ângelo e Jonas Bloch, que depois será proibida. Motivo: referências ao ex-presidente Juscelino Kubitschek;

10/4 — Grupo de trabalho aprova censura etária e criação do Conselho Superior de Censura;

?/4 — Censura proíbe Maria Minhoca, de Maria Clara Machado, no Recife, por conter “intenções subliminares”;

10/5 — Censura proíbe Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, já montada em 1965 e apresentada em São Paulo e em Porto Alegre, sob a alegação de que “desmoraliza a família”;

10/5 — Gama e Silva recebe anteprojeto da nova legislação de Censura, acompanhados de Carta de Princípios, estipulando censura exclusivamente etária para o teatro;

22/5 — Censura proíbe Relações naturais, de Qorpo Santo, após seis dias em cartaz no Rio;

28/5 — Censura proíbe Jeremias, Jeremias, de Aghy Camargo, e Um santo homem, de Otto Prado; 31/5 — Censura proíbe Andorra, de Max Frisch, em montagem do Teatro Popular do Nordeste. A peça, montada pelo Oficina em 1964, será depois liberada com cortes;

4/6 – Artistas decidem não acatar Censura, a partir dessa data; organizam passeatas e escrevem carta de protesto ao general Orlando Geisel, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, contra a prisão do diretor Flávio Rangel, que teve a cabeça raspada no Rio de Janeiro;

?/6 – Censura proíbe Arena conta Tiradentes, de Boal e Guarnieri, que mais tarde será liberada;

12/6 – Censura determina, horas antes da estreia, 71 cortes em Primeira Feira Paulista de Opinião. Cacilda Becker sobe ao palco e garante a estreia do espetáculo na íntegra, classificando sua própria atitude como “um ato de desobediência civil legítimo e honroso”;

15/6 – Censura libera Homens de papel, de Plínio Marcos, depois de diversos cortes;

21/6 – Em repúdio à Censura e às ameaças terroristas contra teatros e elencos, a “classe teatral” paulista devolve ao jornal O Estado de S. Paulo os Sacis – prêmios por ele distribuídos;

15/7 – Censura proíbe montagem de O rei da vela, de Oswald de Andrade, acusando de “incitamento contra o regime” o espetáculo, que já fizera carreira de total sucesso no Rio e em São Paulo e que iria representar o Brasil em Nancy;

?/7 – Após diversas ameaças por telefone, a organização terrorista Comando de Caça aos Comunistas invade o Teatro Ruth Escobar e ataca o elenco de Roda viva, agora em cartaz em São Paulo. Armados de revólveres e socos-ingleses, distribuindo pontapés e golpes de cassetete, cerca de 30 terroristas atiram o contra-regra José Luís do palco contra as cadeiras da plateia, fraturando-lhe a bacia, e agridem, entre outros, os atores Marília Pêra, Margot Baird, Jura Otero, Eudóxia, Valquíria Mamberti, Rodrigo Santiago, Antônio Pedro, Zelão e a camareira Isa. Do CCC, dois terroristas foram detidos e levados pelo elenco à delegacia próxima: Flávio Ettori, carteira de identidade 56.203, do Ministério do Exército, chegou a ser identificado; o outro mostrou ao delegado documento provando ser oficial da Aeronáutica e foi imediatamente liberado. Dias depois, o jornal O Estado de S. Paulo recebia carta dos terroristas afirmando que continuariam a agir e que a “operação quadro-negro” – nome que deram ao ataque ao espetáculo – era apenas uma “amostra”;

?/8 – Censura proíbe O clube da fossa (Abílio Pereira da Silva – depois liberada), A prostituição de Temis (Francisco César Palma) e Banana, Opus 69 (Laís Costa Velho);

?/8 – Em todo o país, há protesto contra a ação do CCC; em São Paulo, ocorrem novos casos de terrorismo: bombas de gás lacrimogêneo são jogadas no Teatro Gil Vicente, enquanto o elenco de Navalha na carne recebe ameaças de espancamento;

9/9 – Censura proíbe Senhoritas, de Alcir Ribeiro Costa, e os atores são presos em Salvador;

10/9 – Censura proíbe Um dia na vida de Brasilino (J.G. de Araújo Jorge) e Os 50 anos que abalaram o mundo (Maria Inês Barros de Almeida);

11/9 – Censura proíbe Xadrez especial (Alfredo Gerhardt), Qual foi a última vez que você andou com a minha mãe? (Dalmo Jenuon) e Na onda da perereca (Luís Felipe Guimarães);

20/9 — Censura proíbe O vermelho e o branco, de Waldemar Solha;

25/9 — Cacilda Becker é demitida da TV Bandeirantes, em São Paulo, por ordem da Censura; 26/9 — Polícia Militar dispersa concentração de artistas e intelectuais, nas escadarias do Teatro Municipal;

?/10 — Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho, vence o Concurso de Peças do SNT. É proibida e, em consequência, o sr. Felinto Rodrigues decide acabar com o concurso, para “evitar problemas”. Somente seis anos mais tarde, na gestão de Orlando Miranda, o concurso será reativado;

3/10 — Gama e Silva entrega ao presidente Costa e Silva o anteprojeto da nova lei de censura; 7/10 — Descobre-se que o anteprojeto encaminhado não é o mesmo elaborado pelo grupo de trabalho e mantém a censura política; Gama e Silva explica alegando “razões de Estado”;

7/10 — Agora em cartaz em Porto Alegre, Roda viva é novamente atacada. O CCC age novamente com 30 homens bem armados, que tentam raptar dois dos atores. Os jornais locais relatam que, ao final do ataque, “o hall do hotel onde se hospedava a companhia teatral ficou coberto de sangue”. Elizabeth Gasper teve de ser hospitalizada; o resto do elenco fugiu da cidade. A montagem foi proibida no Rio Grande do Sul; dez dias mais tarde, o Departamento de Censura ratificava sua interdição para todo o território nacional;

10/10 — Costa e Silva encaminha ao Congresso o anteprojeto da nova lei de censura;

?/10 — Novos protestos da “classe teatral” contra os terroristas e a omissão das autoridades;

3/11 — Censura proíbe O misterioso roubo do sabão limpa-limpa contra a parafernália da democracia (Mauro Braga), O quarto (Marcos Granato) e Prova de fogo (Consuelo de Castro);

?/11 — Teatro Ipanema desiste de montar A mãe, de Brecht, após meses esperando resposta da Censura;

21/11 — O Congresso aprova a Lei 5.536 — a nova legislação de censura —, determinando ao Executivo um prazo de 60 dias para a sua regulamentação e entrada em vigor. A regulamentação não foi feita até hoje, e sua aplicação pelos censores se faz apenas quando a legislação de 1946 não se mostra suficientemente arbitrária. A primeira reunião do Conselho Superior de Censura, por ela criado, foi no dia 25 de outubro de 1979;

29/11 — Censura proíbe Análise do homem (Carlos Eduardo Ferri), Não há vagas (Joaquim Ribeiro Filho), e, em Porto Alegre, a apresentação de Quando as máquinas param, de Plínio Marcos, é interditada;

14/12 — Os jornais noticiam a decretação, na véspera, dia 13, do Ato Institucional n° 5.

A verdade é que 1968 havia sido muito mais que um simples ano em que se prometia a liberdade de expressão para o teatro e, paralelamente, usava-se de forma indiscriminada a censura. Logo no final de março, o assassinato de Edson Luís, no Calabouço, abrira as comportas do movimento estudantil, no Brasil ainda tímido. As passeatas quase diárias ganharam o Centro do Rio de Janeiro, principalmente. A Igreja passou a uma posição mais ostensiva, contra o arbítrio; o Congresso pareceu voltar à discussão e ao debate dos grandes temas nacionais; a imprensa burguesa se dividiu entre a condenação à agitação popular e o repúdio à ação da extrema-direita, agora claramente organizada em grupos terroristas; as denúncias de tortura continuavam, e as ruas, aparentemente reconquistadas, viram surgir um aparato militar ostensivo.

Bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, lança-líquidos, brucutus e tiros respondiam a bolas de gude atiradas pelos estudantes para fazer a cavalaria perder o equilíbrio. Do alto dos edifícios, papel picado, espelhos, objetos variados que incluíram até máquinas de escrever eram atirados contra os policiais. Nesse crescendo de violência, chegou-se ao segundo semestre e ao último passo de um jogo que o Poder ainda tentava camuflar como democrático.

À solicitação para processar o deputado Márcio Moreira Alves — acusado de ofender, no Plenário da Câmara, as Forças Armadas —, o Congresso teve um de seus últimos gestos dignos: negou-a. Na crise urdida pela extrema-direita, todas as peças estavam agora colocadas, enquanto uma ação eufórica e quase anárquica da esquerda impedia qualquer análise clara do que se passava. O golpe final veio com o AI-5 e, consequentemente, com o fechamento do Congresso e as cassações que condenariam o Poder Legislativo à inação, à omissão, ao medo.

As prisões, desaparecimentos, torturas e exílios que se seguiram apenas ampliaram a desarticulação da oposição brasileira. Na década seguinte, os resultados dessa situação perdurariam durante toda a primeira metade. E a modificação da conjuntura brasileira seria determinada, inicialmente, muito menos pela articulação dos movimentos de oposição que pela própria necessidade do sistema de conseguir novos meios de dominação, capazes de serem utilizados em longo prazo.

O teatro foi, ao mesmo tempo, participante e espectador passivo de tudo isso. O ano de 1968 serviu para acirrar as contradições do artista brasileiro, levando-as à exaustão antes que servissem como caminho de transformação. Os equívocos cometidos tiveram, entre outros, o poder decisivo de afastar o próprio público teatral, na medida em que os grupos mais consequentes no período anterior e nos primeiros anos do golpe tomaram caminhos extremos.

Para alguns, a opção foi por um teatro de agressão, determinado por uma visão colonizada e errônea da chamada vanguarda mundial, que afastou a pequena-burguesia da sala de espetáculos, enquanto os artistas enveredavam por um caminho anárquico-lsdiano. Já para os politicamente mais consequentes, a busca envolveu de alguma forma assumir o papel de vanguarda política, também sem muito sucesso. A classe média se retrairia, de um lado perturbada por discursos que, na realidade, não estava em condições de (ou não desejava) acompanhar; de outro, amedrontada, à medida que a ação da extrema direita se fazia sentir de diferentes maneiras. Resultado: entre mortos e feridos, salvou-se, como seria de se esperar, o velho teatro digestivo e assumidamente comercial, sempre pronto a responder camaleonescamente às arremetidas do sistema. E a mobilização emocional que a “classe” conseguira esboçar, afinal, foi condenada à inação e ao desaparecimento, na década que se seguiu.

Acompanhar a evolução dos acontecimentos (ou seria involução a palavra correta?), nos anos seguintes, apresenta um problema sério: a rigidez da Censura imposta à imprensa, a partir do AI-5, não levou apenas jornais como O Estado de S. Paulo a publicar sonetos de Camões e receitas culinárias. Serviu, igualmente, para “limpar” da memória nacional, da história da imprensa brasileira (e, por conseguinte, da própria História do Brasil, até certo ponto) os principais acontecimentos políticos. E, junto com eles, foram igualmente varridos dos noticiários os poucos atos de contestação do teatro ao Poder.

Em 1969, no nível da organização interna da “classe teatral”, dois fatos aconteceram: o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de São Paulo surgiu, substituindo, juridicamente, o Sindicato dos Atores Teatrais, Cenógrafos e Cenotécnicos, criado em 9/3/1942. E, no Rio de Janeiro, foi criada a Associação Carioca de Empresários Teatrais, tendo como primeiro presidente Paulo Nolding. Um novo tipo de relações de produção seria agora de fato assumido, no teatro, sob as benesses do sistema. A figura do empresário – antes relegada a um segundo plano muito mais jurídico – viria determinar, nos próximos anos e durante quase toda a década de 70, uma nova postura para artistas e técnicos.

No campo da Censura, foram proibidas: Rogério, de Orris Soares; Quando o fim é o princípio, de Jefferson Bacelar; Até o fim do Reino da Cascata, de Carlos Campanella; Na sombra do girassol, de Hélia Terezinha Giácomo e José Antônio Pinto Arantes; e A invasão, de Dias Gomes (em janeiro). Em abril, a vez foi de Matakiteram, de Dalton Sala Jr.; e Um cadáver almoça flores, de Vitor Hugo Recondo. Maio trouxe a proibição de Tio Patinhas e a pílula, de Augusto Boal (acusada de subversão e de erotismo), e de A cara preta do fidalgo agitador, de Carlos Mero.

Em junho, apesar da atmosfera de medo que imperava no país, o Poder Judiciário tentou reagir à Censura, em São Paulo. Dois mandados de segurança foram concedidos pelo juiz da Primeira Vara Federal, Luiz Rondon Teixeira Guimarães. O primeiro assegurava ao Oficina o direito de manter em cartaz O rei da vela. O segundo garantia a Fernando Torres o exame, pela Censura, do texto de John Ford Pena que ela seja uma…. No seu parecer, dizia o juiz:

A Censura Federal não tem competência para apreciar textos teatrais. A competência da União (Constituição, art. 8°, n° VI, ‘d’) é para censurar diversões públicas: teatro não é diversão e, sim, arte; e as artes são livres.

Apesar disso, em julho foram proibidas Vamos brincar de amor, de Leda Sylvia; Toda rotina se manteve, de Milton Lautenschlager; O raciocínio de Tutóia, de Gabriel Álvaro Novaes; e Otelo 69, de Ell Soy, adaptação de Paulo Bernhardt; em agosto, foi a vez de Adúlteras honestas, de Roberto Mara, cuja estreia foi impedida no Rio Grande do Sul; e, em setembro, a Censura proibiu As pílulas da imoralidade, de Ítalo Cúrcio, e O poder jovem, de Fernando Pinto.

Em outubro, Arena conta Tiradentes, de Boal e Guarnieri, já proibida e depois liberada, é novamente interditada, agora no Rio Grande do Sul. O produtor Jairo de Andrade tenta recurso para estrear, com base ern que o texto está “apenas interditado; não proibido”, mas nada consegue. Enquanto isso, no Rio, a Censura impede a apresentação de Loucos ou quem sabe Santos (Marcos Jacob), Matheus e Matheusa (Qorpo Santo) e O louco dr. Ricardo (Reginaldo Cipolatti), durante o VI Festival de Teatro Amador, organizado pelo Serviço Nacional de Teatro. Após muita discussão, autoriza-se a cena do nu em Hair,desde que apresentada na penumbra; e em novembro é proibida O vestibular, de Carlos Queiroz Telles.

O ano de 1970 começaria com o discurso de posse do novo chefe da Censura, Wilson Aguiar, que no dia 14/1 afirmava “acreditar no diálogo como processo de interação, como estrada livre ao entendimento, à unidade de esforços, à comunhão de ideias e de propósitos”. Sete dias mais tarde, o governo baixava o Decreto-Lei 1.077, instituindo a censura prévia a livros e periódicos (inclusive peças teatrais), sob a justificativa de que “o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”.

E o que acontecia com o teatro? Um bom depoimento é o de Fernando Peixoto à Funarte, feito em 1978:

…Dia 13 de dezembro de 68, enquanto nós estávamos fazendo o ensaio geral de Galileu Galilei, ouvimos no rádio, nos bastidores, a decretação do AI-5. Comunicamos ao censor ao fim do espetáculo, e ele foi muito simpático: disse que ia assinar logo a liberação da peça, antes que fosse tarde. (…) A partir desse ano, o teatro foi perdendo aquela força de reflexão, força mais transformadora. O Oficina chegou ao anarquismo quase absoluto, uma tentativa de envolvimento da plateia a ponto de tirar a plateia da plateia e botar a plateia no palco. Foi uma loucura total. Veio Na selva da cidade, e as divergências internas do grupo se tornaram mais claras; surgiram as primeiras cisões; as brigas; e tudo aparecia no espetáculo, onde chegou a acontecer de alguém ficar horas em cena esperando um texto que não vinha, porque o outro ator estava brigado e aí ficava olhando e rindo, sacaneando. (…) Era a companhia mais importante do país, e nós estávamos sendo consumidos fora da nossa proposta; a gente agredia; os caras compravam a nossa agressão; aceitavam; achavam ótimo. A gente começou a desconfiar, a ter medo de ficar institucionalizado justamente por um esquema oficial contra o qual nós estávamos nos colocando. (…) Aí começou o êxodo. Saiu Ítala; eu fui trabalhar com o Arena. Mas tanto o Oficina quanto o Arena já estavam em processo de morte. O Arena foi assassinado, foi estrangulado pouco a pouco; o Oficina se suicidou. Mas não houve mortes naturais. São dois caminhos provocados por uma violência repressiva de fora. O suicídio do Oficina para mim é nítido; é um desespero que vai.., começa a bater com a cabeça na parede até morrer. E o Arena é realmente estrangulado pouco a pouco. As últimas contorções do Arena eu acompanhei porque eu estava lá dentro. (…) A partir de 68 o teatro começou a caminhar lentamente para o que é hoje, quer dizer, para o comércio mesmo, para a mercadoria…

A análise — precisa — não envolve apenas os dois mais importantes grupos paulistas do início da década. Vai mais longe, na medida em que, se eles eram a “nata”, a partir do que lhes aconteceu fica ainda mais fácil — e trágico — entender o que sucedeu às gentes do teatro como um todo. Voltemos a Fernando Peixoto:

As pessoas foram se afastando, foram desistindo, foram enlouquecendo. Houve de tudo: desde gente que pirou no nível místico, pirou no nível irracionalista total, pirou no nível ideológico total, a ponto de passar para o avesso. Gente que largou tudo, gente que pouco a pouco revelou que estava afim de outras coisas mesmo, gente que abandonou, gente que foi embora, gente que morreu, gente que foi presa, gente…

No Rio de Janeiro, o quadro, inicialmente diferente, acabaria coberto pela mesma pátina. O Grupo Opinião, que nascera literalmente das cinzas da UNE, pelas mãos de Oduvaldo Vianna Filho, João das Neves, Armando Costa, Denoy de Oliveira, Paulo Pontes e Pichin Plá, seria, nos primeiros anos pós-golpe, o grande ponto de encontro da resistência carioca. Opinião, Liberdade, liberdade não se limitaram a marcar uma geração; abriram espaço para todo um movimento cultural que se desdobraria em noitadas de samba, na revalorização de artistas populares, em cinema de arte, seminários de dramaturgia, cursos, debates, conferências, exposições… Mas a censura, as dificuldades financeiras e o terrorismo de direita, jogando bombas e afastando o público inseguro, serviriam de fermento para as eternas dissensões…

Em meio a tudo isso, a televisão apareceria como a grande proprietária de bordel, prostituindo o mercado de trabalho, incentivando, nos vacilantes, a ambição a um “status” de piscinas e fotos em capas de revista, apontando o caminho fácil do alto salário, do “sucesso” e da acomodação para muitos que até então vinham se arriscando nas concentrações e assembleias, vinham assinando os manifestos, vinham, enfim, tentando uma reação ainda que apenas emocional à ação do Poder. Das frustrações e do medo nasceriam as relações entre o teatro e o sistema, na década de 70.

Mas a ação da Censura também continuava. Já no dia 3 de janeiro de 1970, os jornais anunciavam que mais uma vez fora impedida a estreia de A falecida, de Nelson Rodrigues. Em fevereiro, portaria da Censura determinava o reexame de grande número de textos teatrais anteriormente liberados; e, em março, o Decreto-Lei 1.077 era acionado pela primeira vez, em relação ao teatro, contra Quantos olhos tinha o teu último casinho? , de Fernando Melo.

No início de abril, Paulo Autran é obrigado a depor no Departamento de Polícia Federal, enquanto a colagem Brasil & Cia., que vinha apresentando, é temporariamente proibida pela Censura. Em maio, a Censura proíbe Durante o voo dos pássaros, de Otani di Carlo; e, ao mesmo tempo, Os rapazes da banda, de Mart Crowley, inicia sua carreira de proibições e liberações, no Rio, após meses de sucesso em São Paulo. Enquanto isso, o Departamento de Polícia Federal queixa-se de suas carências, publicamente, afirmando aos jornais precisar “de mais censores”.

Em julho, a revista Capixaba é apreendida, em Vitória, por publicar fotos de Oh, Calcutta!,em cartaz em Nova York; e em agosto a Censura impede, em São Paulo, a estreia de Neurose, de Carlos Iafelice. Setembro traz novas “normas doutrinárias” a serem seguidas pelos censores e, em outubro, Vitória proíbe a peça infantil Chapeuzinho Vermelho, enquanto Minas interdita uma montagem de Os fuzis da senhora Carrar, de Brecht, embora — interessa lembrar — a Censura continue centralizada em Brasília. Finalmente, em dezembro, Porto Alegre proíbe a estreia de Não sai da faixa de segurança, de Carlos Carvalho, e, em São Paulo, Cemitério de automóveis é retirada de cartaz, após três meses de sucesso.

Em 1971, as contradições dos censores locais aumentariam ainda mais, enquanto a repressão se institucionalizava no país. Logo em janeiro, a Censura carioca proibiria Les girls (de Meira Guimarães e Roberto Kelly, já há dois meses em cartaz) e A vida escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato (de Bráulio Pedroso, há 25 dias em cartaz). Em fevereiro, Renato Borghi e Ivan Setta são intimados a depor no Departamento de Polícia Federal, em São Paulo. Motivo: o DPF teria recebido denúncia de espectadores de que ambos teriam ficado nus durante uma apresentação de Galileu Galilei, de Brecht.

Em março a Censura veta, de uma só vez, 14 peças: Girândola S.A. (Guilherme Kohler),Ilusão (Haroldo Félix), Família pirada não fica parada (Ricardo Silva), A passagem da rainha (Antônio Bivar), Liturgia (Márcio Sgreccia), Assim vive a sociedade (Arenir Ângelo Rosa Filho), A falência das artes (Alberto Luiz Barreto), Um dedo na garganta (Manuel Alves Palmeira), O mictório (Alcyr Costa), Os espantalhos (Eunice Machado), Duelo de carne(Eunice Machado), Na República do Leme (Ari Soares e Carlos Couto), O aborto (Sebastião Marques de Brito) e Golias em circuito fechado (Marcos César, Mièle e Bôscoli).

Mas ainda em março um fato chocará a “classe teatral”, aumentando ainda mais a atmosfera de medo. Em São Paulo, enquanto sua peça O comportamento sexual do homem, da mulher e do etc. é proibida, Augusto Boal é preso. No pau-de-arara, sob tortura, é acusado de afirmar que “existe tortura no Brasil”. A indignação do torturador é séria, embora a cena resvale para o tragicômico. Processado, Boal será absolvido pela 2ª Auditoria Militar, de São Paulo, mas deixará o Brasil, num exílio que se prolongaria até novembro de 1979. A morte do Arena está consumada, nesse início de 1971.

Em abril, a Censura impede a estreia, no Rio, de O corpo, de Serge Rezvani, tradução de Millôr Fernandes, e proíbe, ainda, Piperis in cucas ou Nem a favor…, de César Moreira, e Feira Latino-Americana, de diversos autores. Ambas são acusadas de “incitamento contra o regime e as Forças Armadas”. Em maio, a proibição é para Esse deus miserável e A mulher despida, de Augusto Almeida Oliveira; A pensão, de Eurípedes Thomas; A pequena tragédia de Vera Maria de Jesus, de Fernando Mello (Prêmio Coroa — 1969); As hienas, de Bráulio Pedroso; Uma certa filosofia, de Alvim Alves; O brasão, de Marcos Lana; e Os entendidos, de Adamar Abreu. A revista Tô na donga dela, de Silva Filho, é suspensa, e seu diretor é intimado a depor no Dops.

Ainda em maio, começa um episódio que duraria até quase o final do ano: há algum tempo trabalhando no Brasil, para onde veio a convite do Oficina, o elenco do Living Theatre foi preso em Ouro Preto. A polícia deu uma batida na casa que o grupo ocupava, encontrou maconha enterrada e prendeu Julian Beck, Judith Malina e outros 15 atores. Enquanto o Dops de Belo Horizonte pedia ao do Rio os “antecedentes criminais do grupo”, Julian e Judith conseguiram ser postos em liberdade. Quatro dias mais tarde, a polícia invadia novamente a casa e, seguindo uma seta onde estava escrito “Look” (olhe!), encontrava um quilo e meio de maconha, além de descobrir que o grupo “estaria ligado ao movimento subversivo nacional”. O casal foi novamente preso e, antes que o processo tivesse qualquer conclusão, expulso do país por decreto do presidente da República. Um ano mais tarde, em setembro de 1972, todos os integrantes do Living Theatre seriam absolvidos da acusação, ficando claro, na decisão da justiça, que a maconha havia sido “plantada” pelos próprios policiais.

Em agosto, um protesto dos moradores faz com que a Censura obrigue Paulo Pontes a mudar o título de Barata Ribeiro, 200 para Um edifício chamado 200; e, em outubro, são proibidas A forca (Mário Kupperman), Uma senhora quase decente (Eliseu Alvarenga Duarte) e A urna (Walter George Durst).

1971 fora um ano trágico, batendo todos os recordes de proibições e levando mesmo às prisões nomes internacionalmente conhecidos, como Augusto Boal e os integrantes do Living. Os danos ao teatro brasileiro aumentavam: a autocensura dominava a maioria dos autores, agora pressionados também por outro tipo de intimidação, a dos empresários, que começaram a temer enviar textos “problemáticos” para a Censura, alegando “não poder correr o risco de ficarem marcados”. O espaço proibido a uma dramaturgia mais consequente foi ocupado, de forma crescente, pelos espetáculos de apelo comercial, bem dentro dos padrões do interesse do sistema.

Paralelamente, a televisão ganhava terreno e testava sua capacidade para determinar não só um mercado de trabalho humilhado, como a própria “colonização” da cultura nacional. Sintomaticamente, o número de textos proibidos pela Censura iria diminuir, a partir deste final de 1971. Não porque os censores ficassem menos exigentes, e sim porque já não se mandavam mais os textos claramente “censuráveis”. Na realidade, eles já nem eram mais escritos, de um modo geral.

Em 1972, Osvaldo Loureiro deixou a presidência do Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio, substituído por Luís Olimecha. E os jornais noticiaram a proibição de um número relativamente pequeno de peças: A saga da liberdade, de Carlos Alberto Campos e Adelmo dos Santos (em janeiro); Teatro-jornal, 2ª edição, de Ana Maria Taborda e Carlos Magno; A fraude, de Mário Kupperman; Retrosexo, de Aghy Camargo; O Cristo nu, de Carlos Alberto Sofredini; e Auto das várias gentes no dia de Natal, de Ivo Bender (em fevereiro); Antecedentes de nossa Independência, de Rubens Carneiro, foi acusada de subversão e de incitamento contra o regime, ern abril.

Em maio, a Censura impediu a estreia, em Salvador, de Quero fazer blup-blup com você, de Nonato Freire; e, em São Paulo, Gracias, señor, do Oficina, foi suspensa por 20 dias e sujeita a reexame. Mais tarde, a Censura proibiria a peça em definitivo. A razão para a suspensão, apresentada pelos censores, foi “risco à integridade física dos espectadores”. Em junho, Navalha na carne, de Plínio Marcos, voltou a ser proibida “para todo o território nacional”. Em março, Plínio afirmava, em entrevista ao Jornal do Brasil: “A falta de dignidade dos artistas é que permite o endurecimento da Censura.”

Encerrando o ano, a Censura proibiu ainda Topografia de um desnudo, de Jorge Diaz, e Babete, o rebotalho de uma sociedade decadente, de Roberto de Brito (que há seis meses esperava a decisão dos censores), em agosto; e A bolsinha mágica de Manly Emboaba, de Carlos Queiroz Telles, em dezembro.

1973 foi um ano de poucas proibições, o que equivale a dizer: um ano criativamente anêmico. Uma delas, entretanto, iria determinar uma reviravolta nas relações Teatro/Poder:Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Em janeiro, foi proibida A heroica pancada, de Carlos Queiroz Telles; em março, foi a vez de Amanhã, Amélia, de manhã, de Leilah Assumpção, mais tarde liberada com uma centena de cortes; em julho, a Censura proibiu de forma grandiosa, impedindo a apresentação, no Rio, de Pilato sempre, de Giorgio Albertazzi, trazida ao Brasil pelo Governo da Itália em excursão oficial; em outubro, foram proibidos Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde (que depois voltaria a cartaz, com cortes), Mamãe, papai está ficando roxo e o show República do Peru, escrito por Chico Buarque para o MPB-4; em novembro, a peça Madre Joana dos Anjos, de Clovis Levi e Tania Pacheco, foi suspensa por 20 dias e depois proibida.

Mas o episódio do ano seria Calabar: liberada em abril, a peça estava sendo ensaiada quando começaram os rumores de que seria proibida. Os ensaios continuaram, e às perguntas do grupo a Censura respondia evasivamente. O impasse durou sete meses, e o espetáculo ficou pronto. Era a mais cara produção até então montada no país, chegando aos Cr$ 400 mil. Finalmente, marcada a data de estreia e convocada para o ensaio geral, a Censura informou que não compareceria porque “o texto havia sido avocado por instâncias superiores para reexame”.

Tudo é tentado, inutilmente, chegando Bibi Ferreira a ir a Brasília, no início de dezembro, solicitar a liberação ao general Médici, que chega a prometer “um reestudo da Censura”. Finalmente, o elenco é dissolvido, e os produtores assumem o prejuízo. A imprensa foi proibida de noticiar o fato e, até, de publicar o título da peça, enquanto o elepê com as músicas de Chico Buarque era recolhido, também para mudança do nome da capa. Enquanto isso, o Museu da Imagem e do Som toma a iniciativa, também em dezembro, de suspender sem explicações a atribuição dos prêmios Estácio de Sá e Golfinho de Ouro, só retomada em 1977.

O episódio Calabar teria, entretanto, outro tipo de consequências. A Associação Carioca de Empresários Teatrais mudara de presidência, sendo Paulo Nolding substituído por Orlando Miranda. E o novo secretário-geral da Acet, Paulo Pontes, redigiu um documento de reivindicações ao ministro da Educação e Cultura, colocando o ponto de vista dos empresários ante a Censura:

Não nos cabe analisar neste documento os efeitos do excessivo rigor da Censura sobre a permanente e legítima aspiração de liberdade de expressão, para que os artistas e intelectuais formulem, de maneira cada vez mais íntegra, sua visão pessoal da temática que abordam em seu trabalho. Neste documento, o problema da Censura está sendo ventilado porque sua ação excessivamente rigorosa é um dos fatores conjunturais que mais prejudicam a sobrevivência econômica da empresa teatral.

Dentre as medidas que a Acet propunha ao ministro Jarbas Passarinho, citemos duas: “manter entendimentos com as emissoras de TV para a veiculação de jingles, spots e slides de teatro, possivelmente utilizando para a sua confecção o know-how da Aerp”, e “dedicar espaço a teatro no noticiário da Voz do Brasil”. Basicamente, o que o Relatório da Acet propunha era uma coisa só: o auxílio financeiro ao teatro, por parte do Governo Federal. Mas, na realidade, sua essência ultrapassava em muito esse pedido. A falta de clareza e de consistência ideológica levava o empresariado teatral a sugerir ao Poder um pacto, em pleno ano de 1973, no auge da ação repressiva dos órgãos de segurança: o assunto censura era deslocado do seu eixo real — o político — para o eixo secundário e consequente — o econômico. A própria colocação da Acet (“ação excessivamente rigorosa”) pressupunha a aceitação de uma outra censura, mais branda, menos rígida. E as sugestões apresentadas novamente sublinhavam esse pacto, legitimando mecanismo que o Poder vinha usando contra a população brasileira, como a Aerp e a Voz do Brasil.

Mas uma nova tendência se sobrepunha ao poder da extrema-direita, na área federal. E, na mudança de governo, buscava-se a retomada de uma filosofia de institucionalização do golpe, abandonada em meados de 1968. Novamente, o Poder decidia abrir mão da força bruta e encontrar em mecanismos mais persuasivos a fórmula correta para domar artistas e intelectuais. E o teatro, desatento, buscando desesperadamente um meio de reerguer-se e adotando, para isso, a postura equivocada do documento da Acet, iria fatalmente dividir-se.

Enquanto Orlando Miranda era encaminhado, por vontade da maioria dos grupos profissionais, à direção do SNT, em 1974, pondo fim à gestão pusilânime de Felinto Rodrigues Neto, criavam-se, em Teresópolis, a Federação Nacional de Teatro Amador, e, no Rio, a Associação Carioca de Críticos Teatrais. Marginalmente, buscando um caminho que agora mais ainda se estreitava, o chamado “teatro não-empresarial” viria a transformar-se, nos anos vindouros, na quase única opção para os artistas mais inquietos e ainda preocupados com a discussão da realidade brasileira e da revolução do conteúdo e da forma, para a arte cênica.

À medida que o empresariado assumia uma atitude “bem-comportada”, os problemas com a Censura diminuíam: agora, bem antes de chegar às dependências do Departamento de Polícia Federal, os textos teatrais já haviam sido “depurados” de conteúdos que pudessem vir a causar atritos com o sistema. E, aos poucos, os próprios autores foram ou desenvolvendo a linguagem cifrada da metáfora, para continuar a falar alguma coisa, ou simplesmente abrindo mão de seus discursos.

Assim, 1974 mostra um número pequeno de peças proibidas. Em janeiro, Basta, de Guarnieri, é proibida; em julho, uma suspensão, de 20 dias, para Somma ou Os melhores anos de nossas vidas, colagem de Amir Haddad; em setembro é proibida Roda cor de roda, de Leilah Assumpção; em outubro, a Censura determina que a revista Elas querem é poder… tenha seu título modificado para Elas querem…, e em novembro, Descasque o abacaxi, de Marcos Nanini, é finalmente liberada, com cortes.

Enquanto isso, em julho, o Oficina voltava a sofrer a violência policial. O teatro foi invadido e o diretor José Celso Martinez Correa foi preso e incurso na Lei de Segurança Nacional “por possuir livros subversivos”. Libertado em agosto, após o arquivamento do inquérito, Zé Celso parte para o exílio, de onde só regressará quase no final da década, em 1978.

Mais uma vez, 1975 começaria com uma palavra de esperança. Durante a inauguração do Teatro Amazonas, em Manaus, para a qual diversos artistas haviam sido convidados, o general Geisel prometeria melhorar as relações do teatro com a Censura. Dias depois, são proibidas Eles não usam black-tie, de Guarnieri; Chapetuba Futebol Clube, de Vianinha; Revolução na América do Sul, de Boal; e A invasão, de Dias Gomes. Em abril, Um elefante no caos, de Millôr Fernandes, sofre cortes tão drásticos que impossibilitam a sua montagem, por Fernando Torres.

Paralelamente, o ressuscitado Concurso de Peças do Serviço Nacional de Teatro era vencido por Oduvaldo Vianna Pilho, com Rasga coração (1° lugar), e Consuelo de Castro, com A invasão dos bárbaros (2° lugar). Rasga coração iniciaria, aí, um longo período de cassações brancas e engavetamentos, até ter sua proibição oficializada, em maio de 1977, “ao nível de texto, montagem, publicação, ou, até mesmo, leitura”. Somente em 1979 viria a ser liberada e, finalmente, montada.

Nos primeiros dias de maio, o ministro Armando Falcão (que engavetara pessoalmente Rasga coração) determina a proibição da estreia, em São Paulo, de Abajur lilás, de Plínio Marcos. A imprensa – agora com razoável liberdade – se manifesta. O autor vai a Brasília, tentar a liberação junto a Falcão; dá entrada em recurso no TFR (Tribunal Federal de Recursos) e afirma, em entrevista à imprensa, ser esta a sua 18ª peça proibida. Os teatros paulistas fazem greve de um dia, em solidariedade a Plínio; Jarbas Passarinho sugere, mais uma vez, a passagem da Censura para a área do MEC; e, revoltado, Paulo Autran afirma:

Se forem julgar a Bíblia apenas pelo pedaço que fala do Salomão, vão concluir que se trata de um livro pornográfico.

Os críticos de teatro enviam apelo a Geisel, pela liberação da peça, enquanto Armando Falcão distribuía o texto para diversos jornalistas, solicitando suas opiniões. No início de junho, Plínio Marcos foi chamado a prestar depoimento na Comissão de Comunicação da Câmara sobre a Censura e o Teatro: seu depoimento foi requisitado pela polícia. Finalmente, ainda em junho, tentou-se lançar nacionalmente a campanha Mais vale uma leitura badalada que uma peça engavetada.

Enquanto o ministro Armando Falcão ignorava, em agosto, convocação para prestar esclarecimentos à Câmara dos Deputados, outros textos e shows (entre eles, República de Uganda, do MPB-4) eram proibidos e mutilados. E o ano chegaria ao fim com notícias díspares: no Rio Grande do Sul, o Concurso Anual de Dramaturgia seria “anulado”, depois de vencido por Eid Ribeiro (Delito carnal) e Mauro Chaves, que seriam obrigados a recorrer à justiça para receber seus prêmios. Enquanto o DPF descentralizava novamente a Censura, delegando poderes ao Rio e a São Paulo para examinar textos e espetáculos locais, o Serviço Nacional de Teatro ampliava a Campanha das Kombis (criada em 1973, pela Acet), no Rio e em São Paulo. Também para os dois estados e de acordo com o documento enviado ao Governo Federal pelos empresários em 1973, era estabelecido o patrocínio público para montagens teatrais.

Na área sindical, Luís Olimecha era substituído por Otávio Augusto, no Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio, enquanto era criada uma entidade arrecadadora – ASA -, sob a presidência de Jorge Ramos. A mobilização de artistas e técnicos iria recomeçar, tendo por objetivo, agora, a regulamentação da profissão – uma luta infrutífera de anos. Mas a própria forma como seria reiniciada – mais uma vez esquecendo a luta real pelo mercado de trabalho e pelo piso salarial, em função de uma ambição centrada no recolhimento dos direitos autorais e conexos, pela ASA – determinaria sua fragilidade perante o poder econômico e os atrasos que fatalmente decorreriam da divisão ditada por uma postura elitista e pela incapacidade de apreensão da função maior de artistas e técnicos enquanto trabalhadores.

Segundo declaração oficial do chefe do Departamento de Censura, Rogério Nunes, foram proibidos 29 textos, no decorrer de 1976, além dos cortados, mutilados, suspensos. Entre eles, citamos Mockinpott, de Peter Weiss (proibida em fevereiro, em excursão a São Paulo, após meses em cartaz no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, e posteriormente liberada); Dependências de empregada, de João Carlos Motta (proibida no Rio, horas antes da estreia, posteriormente reescrita e liberada), em março; Alqui Cabá la Silva, de Clovis Levi e Tania Pacheco (proibida após vencer a edição única do Concurso Nacional de Dramaturgia de Curitiba, que incluía a montagem do texto vencedor) e O aprendiz de feiticeiro, de Maria Clara Machado (proibida em Porto Alegre, após ter sido liberada por Brasília), em agosto.

Em outubro, três peças seriam proibidas, sendo que duas delas também horas antes da estreia: Gran Circo Raito de Sol, do Grupo Amador Amadeu, em Salvador, e, no Rio, Quarteto, de Antônio Bivar, prevista para ser a despedida de Ziembinski dos palcos e depois liberada com cortes. A terceira foi A cidade impossível de Pedro Santana, de Consuelo de Castro. Trivial simples, de Nelson Xavier, seria proibida após dois meses em cartaz, em novembro.

Ainda em 1976, a Censura proibira, em março, a apresentação de uma gravação do balé Bolshoi, pela televisão, enquanto, em maio, Wilson Garcia prometia uma reformulação na Censura; e, em junho, era lançado o livro A censura autodefinida, do censor Coriolano Fagundes. Em maio, um Festival Internacional de Teatro, organizado por Ruth Escobar, acabou com o cancelamento da vinda de diversos grupos convidados e dos debates programados. Um manifesto do teatro paulista, protestando contra as pressões da Censura, ficou sem resposta do ministro Ney Braga, da Educação.

Em novembro, a Fundação dos Teatros do Estado do Rio de Janeiro — Funterj — inclui o atestado de ideologia entre os documentos necessários às solicitações de auxílio ao teatro. Protestos gerais determinam o fim da medida. E, no mesmo mês, enquanto Consuelo de Castro declara que não receberá mais prêmios nem concorrerá a eles (A cidade impossível de Pedro Santana havia sido premiada pelo SNT), Sartre anuncia que não permitirá a montagem de suas obras no Brasil, enquanto “perdurar a ditadura”.

Dezembro acaba com uma piada: um incêndio no Teatro Arcádia, em Nova Iguaçu, no Rio, permite a “descoberta de material de guerrilha”. Eram os mosquetões, capacetes e botas que a Brigada Pára-Quedista local havia emprestado para a montagem de Pic-nic no front, de Arrabal, em cartaz no teatro.

Em janeiro de 1977, artistas e intelectuais enviaram ao ministro da Justiça um memorial com 1.046 assinaturas, exigindo o fim da Censura. O documento foi encaminhado por Armando Falcão ao Departamento de Polícia Federal, “para exame”. Em julho, no dia 28, inicia-se em São Paulo o Ciclo de Leituras de Peças Proibidas, organizado por Ruth Escobar. Na mesma semana, a atriz tem seu passaporte apreendido no aeroporto, ao tentar embarcar para a Europa em viagem pelo Ministério da Educação, com passagem do Banco do Brasil. Agosto traz uma promessa do ministro da Justiça de “verificar imediatamente por que não foi implantado o Conselho Superior de Censura”. No mês seguinte, descobre-se que a Lei da Censura, que deveria ter entrado em vigor em janeiro de 1969, estava na gaveta de um funcionário do Ministério da Justiça, que “fora liberado para tratamento de saúde no Rio”.

(A Censura) é exercida com fundamento na Constituição e nas leis, de maneira até parcimoniosa e em defesa da sociedade contra fatores de dissolução e de degenerescência sócio-cultural.

A frase, de Armando Falcão, foi sua resposta à ida a Brasília de Ruth Escobar, para solicitar a Ney Braga a liberação de Rasga coração, O homem e o cavalo (Oswald de Andrade), Sinal de vida (Lauro César Muniz), Enquanto se vai morrer (Renata Pallottin) e A heroica pancada (Carlos Queiroz Telles), no início de fevereiro. Três meses mais tarde Falcão tiraria Rasga coração da gaveta: para proibi-la. Também em maio, César Vieira fundamentaria legalmente sua ação judicial pela liberação de O rei morreu, viva o rei, proibida em março após meses aguardando a decisão da Censura. Afirmava ele: “O autor não se dedica à ficção científica, nem se adorna com dotes adivinhatórios. Sem pertencer à escola de Júlio Verne, não poderia ainda desvendar o futuro e escrever sobre a morte de Herzog seis anos antes de ela ocorrer.”

O texto, escrito, lido publicamente e editado em 1969, falava do assassinato do deputado italiano Matteotti, ocorrido no início do século. Mas o governo brasileiro, um ano e meio depois de Vladimir Herzog ter sido assassinado no DOI-Codi de São Paulo, buscava evitar qualquer assunto que de longe pudesse “espicaçar” a extrema-direita. Assim, apesar de recorrer a todas as instâncias da Justiça, César Vieira teve sempre referendada a proibição inicial, onde a Censura alegava que a peça tratava de “matéria subversiva, além de conter insinuações inaceitáveis à morte do jornalista Vladimir Herzog”.

O mesmo assunto delicado, aliás, causaria o escândalo teatral do ano: vencedora do Concurso de Peças do SNT, Patética, de João Ribeiro Chaves Netto, esperou meses até que Brasília permitisse a Orlando Miranda realizar a reunião final do júri, embora a imprensa desde julho viesse exigindo uma solução para o impasse. Afinal, marcada a data para a reunião do júri, o Serviço Nacional de Teatro foi invadido por agentes dos órgãos de segurança do governo, que “confiscaram” o texto que – já se sabia, a esta altura – venceria o concurso, bem como o envelope de identificação de seu autor.

Pressionado para avisar ao júri, antes de abrir a reunião, que a peça que recebera o número máximo de pontos de todos não estava mais concorrendo (e dessa forma evitar o escândalo), Orlando Miranda manteve-se calado. E, assim, o “confisco” tornou-se público, com o resultado sendo divulgado, no caso da vencedora, apenas em termos de número de inscrição. Mais uma vez, a morte de Vlado – aqui verdadeiramente assunto de uma peça, com a farsa do suicídio sendo desmascarada pelo cunhado do jornalista assassinado – era considerada assunto “intocável”.

No decorrer do ano, diversas peças foram proibidas. Entre elas, destacamos: A longa noite de cristal, de Oduvaldo Vianna Filho (suspensa, em janeiro); Olhando para ontem, de Luiz Carlos Guaraldi (cortada de 80 para 17 laudas, em março); Belos e malditos, de Álvaro Guimarães, em abril (apresentada em Natal, a peça é tirada de cartaz à força: atores são espancados, e o elenco, que vinha de Salvador, recebe prazo de quatro horas para deixar a cidade). Trate-me, leão, Lição de anatomia e Exercício — todas em cartaz no Rio — são proibidas e 24 horas depois liberadas, “com instruções especiais de iluminação para as cenas dos nus”, em junho.

Em julho, a proibição é para O homem que não dorme há 30 anos com medo de ser assassinado, de Marcos Borges. Em agosto, a Censura proíbe Moço em estado de sítio, peça inédita de Oduvaldo Vianna Filho; A ilha do quintal, de João Carlos Morta e Geraldo Rosa (ambas no Rio), e Milagre na cela, de Jorge Andrade, em São Paulo. Em setembro, no Rio Grande do Sul, o elenco de Trate-me, leão, agora em excursão, será preso e processado, em Santa Maria, sob a alegação de posse de drogas. A estreia da peça na cidade é assim impedida. No Rio, Van Gogh e o ciclo da carne, de Jesus Chediak, é proibida (depois será liberada), e Sodoma e Gomorra: o último a sair apague a luz, de João Bethencourt, é suspensa por 15 dias. E, em novembro, são proibidas Caixa de cimento, de Carlos Henrique Escobar (2° lugar no Concurso do SNT), e Carne e osso, de Eid Ribeiro (nova versão de Delito carnal, premiada e proibida no Rio Grande do Sul), enquanto Viva Olegário, de Luís Carlos Cardoso, é suspensa por 15 dias, em Belo Horizonte.

Ainda em 1977, o patrocínio aos empresários teatrais seria estendido a todo o Brasil. Em São Luís do Maranhão, a Fenata seria transformada em Confederação Nacional do Teatro Amador, sob a presidência de Tácito Borralho. No Rio, era criada a Federação de Teatro Independente, Fetierj, sob a presidência de Almério Belém, enquanto a Acet mudava de presidente: saía Fernando Torres e era eleito Jorge Ayer.

1978 começou com a negativa, do ministro Armando Falcão, de rever a proibição de Cordélia Brasil, de Antônio Bivar. Em dois meses, março e abril, foram proibidas quatro peças: O belo burguês, de Pedro Porfírio (no dia da estreia); A ópera do malandro, de Chico Buarque (liberada depois de reescrita); América, América, de Márcio Sgreccia (mutilada a ponto de ser impossível montar o que sobrou do texto); e Canteiro de obras, também de Pedro Porfírio (que seria liberada um ano mais tarde).

A primeira reação veio através dos júris dos prêmios Mambembe (do Ministério da Educação, via SNT) e Molière. Na reunião do Mambembe, em 6 de abril, os jurados premiaram todos os finalistas a Melhor Autor, especificando: “Consideramos Aldo Leite, Chico Buarque e Paulo Pontes, Guarnieri, Plínio Marcos e João das Neves símbolos de uma dramaturgia de resistência.” Uma semana mais tarde, na indicação do Molière, os críticos se recusaram a conferir o prêmio Melhor Autor, reafirmando: “Consideramos prejudicada qualquer tentativa para indicar o melhor autor de 1977, uma vez que o acesso à dramaturgia brasileira foi cerceado, quer pela proibição de obras já antigas, como Rasga coração, quer pelo confisco e interdição de obras novas, como Patética e Caixa de cimento, vencedoras do Concurso do SNT nesse ano.” Embora tardia, alguma reação se esboçava.

Ainda em abril, no dia 25, na ABI, diversas entidades ligadas a diferentes setores — Música, Teatro, Artes Plásticas, Cinema e Imprensa — fundavam, em ato público, a Comissão Permanente de Luta pela Liberdade de Expressão, CPLLE, que em poucos meses teria a adesão de todas as entidades ligadas ao teatro no país — exceto a Associação Carioca de Empresários Teatrais.

No final do mês, uma manifestação contra a censura reuniu cerca de 800 pessoas, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. E, no início de maio, Renato Consorte declarava aos jornais que “não mais pisaria no palco, até que a censura tivesse terminado”. Dias mais tarde, atendendo a convite do SNT para integrar o júri de seu Concurso de Peças, Ilka Zanotto, Jairo de Andrade, B. de Paiva, Luís Carlos Ripper e Tania Pacheco aceitavam através de carta aberta aos jornais, exigindo garantias de que sua escolha seria respeitada e de que o episódio Patética não mais se repetiria.

Em junho, a proibição dos textos de João das Neves, Lauro César Muniz e Guarnieri — além de cortes em diversos outros —, tornavam impossível, em São Paulo, a montagem da Feira Brasileira de Opinião; e, em julho, novamente em São Paulo, a polícia apreendia a segunda edição de Abajur lilás, de Plínio Marcos, enquanto, em Volta Redonda, era proibida a realização da Segunda Mostra de Teatro Independente, organizada pela Fetierj.

No início de agosto, a realização do I Encontro Nacional de Artistas e Técnicos, no Circo Garcia, Rio de Janeiro, abriria pela primeira vez um espaço especial para a discussão da censura. Como consequência, dentre as diversas resoluções tiradas, o Dia do Ator — 17 de agosto — foi transformado em Dia Nacional pela Liberdade de Expressão, com manifestações públicas e enterros simbólicos da censura sendo realizados nos diferentes estados. E em Belo Horizonte, também seguindo as diretrizes tiradas no Circo Garcia, começava no dia 30 a Semana do Proibido, com leituras e apresentações de peças, filmes, músicas e poemas interditados, num ato assumido de desobediência civil.

O exemplo seria seguido a partir de 18 de setembro pela Escola de Teatro da Fetierj, do Rio, que com o auxílio da Comissão Permanente de Luta pela Liberdade de Expressão e do Comitê Brasileiro pela Anistia, CBA, promoveria, todas as segundas-feiras, até o final do ano, a leitura e o debate dos principais textos proibidos nesses 15 anos, começando por Patética, que aliás voltaria a ser proibida em novembro, agora com nome modificado para Sangra picadeiro. Coincidentemente, também em novembro, o SNT foi autorizado, finalmente, a homologar e pagar o prêmio conquistado pelo autor de Patética, João Ribeiro Chaves Netto.

Entre as peças proibidas, em 1978, destacamos ainda: Dentro da noite veloz, coletânea de poemas de Ferreira Gullar, posteriormente liberada com cortes, no Rio; Beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, proibida em maio, no Recife; e O reino da luminura ou A maldição da besta-fera, de Oswald Barroso, proibida em agosto, no Ceará, após meses em cartaz. Em dezembro, encerrando o ano, o chefe do Departamento de Censura, Rogério Nunes, afirmava: “A legislação em vigor impõe restrições de tal forma incoerentes com a moral vigente na moderna sociedade, que o trabalho dos censores acaba se transformando numa constante batalha contra a realidade.”

Ainda em 1978, a Campanha das Kombis foi ampliada, do Rio de Janeiro e São Paulo, para Curitiba, Porto Alegre, Salvador e Belo Horizonte, enquanto os patrocínios às montagens teatrais continuavam a ser oferecidos a todo o país. No Sindicato dos Artistas e Técnicos de São Paulo, a chapa Urdimento, de oposição, era eleita, com uma plataforma que pela primeira vez englobava um capítulo dedicado à luta “Pelas Liberdades Democráticas”, assim definidas:

Pela liberdade de reunião, organização, expressão e manifestação; Pelo direito de greve; Pelo restabelecimento do habeas-corpus; Contra a censura; Pela formação de um organismo nacional de trabalhadores em espetáculos, eleito democraticamente; Pela volta de todos os trabalhadores em espetáculos, exilados e cassados, com o restabelecimento de seus plenos direitos profissionais e de cidadãos.

A saída de Juca de Oliveira e a nova postura do sindicato paulista, agora sob a presidência de Lélia Abramo, num ano decisivo para a luta pela mobilização da categoria em função da regulamentação da profissão, só poderiam entrar em choque com o tipo de filosofia assistencialista predominante no sindicato carioca. Em nome de uma “unidade” inteiramente falsa e apesar de cientes de que a categoria, como um todo, mantinha-se em total descompasso com o aprofundamento ideológico que a mobilização pressupunha, o sindicato de São Paulo aceitou a liderança do carioca, nos acordos para a aprovação da lei. Aproveitando a brecha clara, o Governo Federal foi hábil o suficiente para garantir, através da utilização dos grandes nomes da categoria, uma propaganda eleitoral gratuita, lançada através de todos os meios de comunicação.

Na aprovação da lei, em maio, e na de sua regulamentação, em outubro, caravanas de artistas especialmente convidados foram a Brasília. E fotógrafos e cinegrafistas puderam documentar a falta de clareza de uma categoria, para suplementos especiais de revistas de baixo nível jornalístico e programas carregados de euforia na televisão. Enquanto isso — dado sintomático — o Ciclo de Leituras de Peças Proibidas acontecia semanalmente, na Escola de Teatro do Rio, com a “classe teatral” omissa e ausente, não participando sequer dos debates e negando-se a fazer parte dos elencos. O verdadeiro escândalo que foi a chamada Festa de Regulamentação, em Brasília, levaria à queda de Otávio Augusto, reeleito em maio para a presidência do sindicato do Rio e demissionário já em setembro.

Abrimos este trabalho em 1968, ano do Ato Institucional n°5. E o fechamos em 1979, ano de mudança de governo, no qual o AI-5 foi extinto. No mesmo mês, janeiro, a chamada classe teatral brasileira se reunia, em Arcozelo, para a realização do Primeiro Seminário Nacional de Arte Cênica, promovido pelo sindicato do Rio, agora sob a presidência de Vanda Lacerda. Timidamente, esboçava-se, em Arcozelo, uma retomada, pelo teatro, de seu destino, até então entregue à (má) vontade do Poder.

Se nas assembleias de artistas e técnicos continuaria ainda a predominar a cobrança de uma função meramente assistencialista pelos sindicatos, se os direitos do autor e conexos ainda permaneceriam como o grande assunto obrigatório de qualquer reunião de artistas, por outro lado sentia-se, pela primeira vez, não só em São Paulo e no Rio, como ainda à frente da maioria das Associações Profissionais de Artistas e Técnicos, uma maior consciência. Uma vanguarda, de certa forma, mas uma vanguarda buscando acordar a categoria, dar-lhe clareza e coragem, fazê-la vislumbrar a natureza real de suas lutas e seu significado político e ideológico.

Enquanto os movimentos populares levavam o novo governo a “declarar a abertura”, e as gavetas da Censura começavam a vomitar textos omitidos durante uma década e meia, artistas e técnicos criaram, em julho, em Salvador, sua Intersindical. A unidade da categoria e sua ligação às demais lutas dos trabalhadores afinal começava a ser compreendida. De forma emocional, em muitos casos, mas pela primeira vez buscando um efetivo posicionamento dentro da sociedade brasileira.

No primeiro número de seu jornal — Cena Aberta —, publicado em outubro de 1979, Vanda Lacerda afirmava, em editorial assinado:

(Temos) trabalho mais árduo: o de conquistar colegas para a nossa causa. Trazer para o nosso lado aqueles que ainda permanecem acuados diante da empresa ou da eterna espera pela capa de revista. O poder econômico acena sempre com esta perspectiva e, desta forma, cala, acua e afasta das assembleias e do sindicato aqueles que, inebriados com a possibilidade da fama ou apavorados diante da ideia do desemprego, acabam esmagados exatamente por este poder. Enganam-se os que acreditam terminar aí esta encruzilhada. Isto é o que o poder quer fazer crer para afastar a categoria da discussão à procura de novos caminhos e soluções. Estes caminhos existem, sim. Encontrá-los depende, unicamente, do interesse e, sobretudo, da coragem de nos unirmos para encarar e analisar, coletivamente, os nossos problemas.

O que será a década de 80? Como saber?! Os debates sobre modos de produção, a formação de cooperativas de artistas e técnicos, tudo parece conduzir-nos a crer que o Teatro brasileiro esteja em vias de acordar de sua longa anestesia. A leitura de livros como Milagre no Brasil, de Augusto Boal, só agora publicado entre nós, leva cada integrante desta equipe heterogênea que é o nosso Teatro da vergonha à esperança. No caso dos empresários, a questão é mais complexa. Seria necessário, talvez, que antes de mais nada separássemos o empresariado carioca (muito mais omisso e bajulador) do paulista, que vem dando guarida às propostas mais avançadas de pesquisa teatral e oferecendo seu apoio (até mesmo em nível de plataformas de diretorias) a algumas das lutas do povo brasileiro.

Para todos nós, entretanto, talvez valha recordar alguns trechos do estudo de Rudolf Rach, publicado na revista Kulturbrief n° 12, de 1976:

Só se pode compreender o que é hoje designado de “cultura teatral alemã” considerando dois aspectos: o desenvolvimento dos novos meios de comunicação (rádio, filme, televisão) e as pavorosas consequências do domínio nazi. Depois de os meios de comunicação de massa, dotados de uma autêntica superioridade técnica, iniciarem a sua marcha vitoriosa nos anos vinte, a situação financeira dos teatros como empresas particulares tornou-se cada vez mais

Reconheceu-se a necessidade de prestar auxílio aos teatros e, por curioso que pareça, mas dentro de certos critérios de coerência, os nazis desenvolveram o sistema dos teatros subvencionados pelo erário público. Ao mesmo tempo, eliminaram os autores mais importantes, uma boa parte dos diretores artísticos, artistas e diretores técnicos. E aqueles que se mantiveram nos seus postos tiveram de subordinar o seu trabalho aos objetivos propagandísticos do regime. (…) Gozava-se o sentimento de ter uma cultura teatral sem precedentes, sem correr o risco de surgirem protestos e reivindicações. E os homens de teatro viam-se na perspectiva sedutora de poderem dispor de recursos cada vez maiores para as suas sempre mais aparatosas produções. Poderá alguém negar a sério que, após mais de 25 anos de política de subvenções, o teatro alemão foi cunhado decisivamente por este sistema de subvenções municipais e estaduais?

A comparação não é exagerada, uma vez que, como já demonstramos, também aqui alguns dos autores e diretores mais importantes, dos pontos de vista artístico e ideológico, foram pelo menos temporariamente “eliminados”. Não nos campos de concentração, mas no exílio, alguns, ou no cerceamento, na humilhação, no desespero e, até, na acomodação, outros.

O papel exercido pelo Serviço Nacional de Teatro em tudo isso é, entretanto, relativo. Honra seja feita a Orlando Miranda: alegando sua condição de “liberal”, manteve sempre íntegras suas relações com o teatro do qual faz parte. Jamais, de 1974 para cá, o SNT aprovou ou reprovou qualquer montagem pela ideologia expressa em seu contexto. Assim, a omissão e a opção por um teatro falsamente apolítico e na realidade subserviente ao sistema couberam apenas àqueles que consideraram mais fácil aceitar o pacto com o Poder. Tenham eles assim decididos por ignorância, por irresponsabilidade, por má-fé, por confusão mental ou por reles ganância.

25 anos depois:

Não sei como se sentiram os demais autores, ao reencontrar seus textos desta coleção Anos 70. Apesar do ambicioso título (O teatro e o poder), o fato de eu ter lidado na verdade com uma pesquisa sobre a ação da Censura ao longo dos primeiros 16 anos de ditadura deveria propiciar a chance de errar menos, já que não exigia análises e prognósticos brumarianos. Mas não pude deixar de sorrir ao me reler, quase ao final, afirmando: “O que será a década de 80? Como saber?! Os debates sobre modos de produção, a formação de cooperativas de artistas e técnicos, tudo parece conduzir-nos a crer que o teatro brasileiro esteja em vias de acordar de sua longa anestesia”. Nada mais equivocado!

Na verdade, iríamos caminhar em total contramão com a ascensão do novo sindicalismo, dos movimentos sociais, com a criação da CUT e com o surgimento do PT e do MST, que se avizinhavam. A sociedade civil se organizava e construía as bases para a derrocada da ditadura, enquanto o teatro dos grandes centros (um dos sustentáculos da resistência imediata ao golpe e ao AI-5) se apequenaria, nos anos que viriam. Falo principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas o mesmo poderia ser dito com relação às principais capitais, onde a chamada “classe artística” antes se reunia em praças para protestar; transformava o palco em palanque quando necessário; e mostrava sua solidariedade a outras categorias, às quais a luz dos holofotes e a consequente proteção pública por eles até certo ponto oferecida eram negadas.

Por outro lado, importante e justo lembrar os grandes batalhadores do nosso teatro que, como outros tantos artistas/intelectuais de outras áreas, permaneceram “remando contra a corrente”, mesmo quando tratados por alguns de seus pares como loucos que brigavam com a realidade. Relembro aqui, como um símbolo fora dos palcos, a presença de Lelía Abramo, apoiando as primeiras greves do ABC e cobrando de Lula a criação de um partido político, que fosse ao mesmo tempo uma alternativa ao MDB e uma resposta ao novo momento que o movimento sindical vivia. Em cena, recordo João das Neves, transformando o palco do Teatro Opinião e, mais tarde, a Bienal de São Paulo numa estação de trem para nos instigar, numa metáfora brilhante e comovente, a levar o Brasil para seus trilhos.

A Intersindical de Artistas e Técnicos teria vida curta. A Comissão Permanente de Luta pela Liberdade de Expressão perderia sua razão de ser pouco tempo depois, decretado o fim da censura. As gavetas finalmente abertas mostrariam, entretanto, que a autocensura acostumara mal os autores…

Para artistas e técnicos, as lutas da década seguinte teriam um mote predominantemente corporativo; seus alvos maiores seriam conquistas de espaços na esfera governamental. Assim, o Serviço Nacional de Teatro ganharia também a responsabilidade por dança, circo e ópera, e viraria Instituto Nacional de Artes Cênicas, Inacen, mantendo-se a gestão de Orlando Miranda até o fim do Governo Militar e a posse de Sarney. Antes de partir, ao fim de uma década na presidência do órgão, Orlando faria seu sucessor: Carlos Miranda, até então seu braço direito na condução das políticas federais para o teatro. Uma nova luta, e o Inacen seria transformado em Fundação Nacional de Artes Cênicas, primeiro órgão público brasileiro a ser gerido por um conselho executivo paritário, representantes de entidades de classe dividindo as cadeiras com seus diretores e impulsionando uma real tentativa de descentralização, regionalização e democratização da política cultural. Até que Fernando Collor e Ipojuca Pontes assumiram e decidiram brincar de se vingar da cultura brasileira…

Mas tudo isso já é outra história, que sem dúvida mereceria bem ser contada! E pelo que ela teve de utopia, de sonho e de trabalho árduo, do qual me orgulho de ter participado, gostaria de dedicar a republicação deste trabalho à memória de quem a “comandou” e que foi, ao mesmo tempo, um dos seres humanos mais belos, generosos e íntegros que conheci: Carlos Pereira de Miranda.

/ comentário de Tania Pacheco /

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