1992

O tempo mítico hoje

por Laymert Garcia dos Santos

Resumo

No auge da invasão garimpeira, em 1990, o jovem pajé Davi Yanomami disse a um antropólogo que, quando os brancos tiram o minério da terra, uma epidemia-fumaça (xawara wakêxi) se alastra pela floresta e todos, índios e brancos, acabam morrendo. Seu depoimento, uma espécie de Apocalipse indígena (contemporâneo da descoberta científica do buraco na camada de ozônio), é acompanhado do espanto de que os homens não estão dispostos a ouvi-lo. Elias Canetti relata o caso análogo de um poeta que, pouco antes da eclosão da 2ª Guerra Mundial, lamentava não ter podido impedi-la. Em sua pretensão irracional de responsabilidade, o poeta percebia, como o pajé, a iminência de um desastre sem conseguir fazer-se ouvir. Essas duas situações trágicas ilustram o parentesco originário entre xamãs e poetas. O mito de Orfeu, por exemplo, pode ser lido como a viagem de um xamã ao reino dos espíritos para recuperar a alma de Eurídice. A ciência moderna tornou obsoletas as crenças míticas. Hoje os arqueólogos apenas constatam um passado perdido. Mas a experiência do tempo mítico ainda é forte em poetas como Holderlin que, antes de enlouquecer, escreveu sua tragédia A morte de Empédocles, ou em filósofos como Nietzsche, que concebeu a ideia de eterno retorno. Xamãs e poetas sempre souberam que o eterno se aloja em cada momento que passa. A circularidade do tempo torna relativa a noção de progresso. Na fluidez das metamorfoses e na velocidade do movimento, o que se revela é apenas a totalidade do tempo e do mito.


No dia 9 de março de 1990, no auge da invasão garimpeira, o jovem pajé Davi Kopenawa Yanomami deu ao antropólogo Bruce Albert o seguinte depoimento a respeito dos males que se abatiam sobre o território de seu povo:

Vou te dizer o que nós pensamos. Nós chamamos estas epidemias de xawara. [É] a xawara que mata os yanomami. É assim que nós chamamos epidemia. Agora sabemos da origem da xawara. No começo, nós pensávamos que ela se propagava sozinha, sem causa. Agora ela está crescendo muito e se alastrando em toda parte. O que chamamos de xawara, há muito tempo nossos antepassados mantinham isso escondido. Omanê [o criador da humanidade yanomami e de suas regras culturais] mantinha a xawara escondida. Ele a mantinha escondida e não queria que os yanomami mexessem com isto. Ele dizia: “Não! Não toquem nisso!”. Por isso ele a escondeu bem nas profundezas da terra. Ele dizia também: “Se isso fica na superfície da terra todos yanomami vão começar a morrer à toa!”. Tendo falado isso, ele a enterrou bem profundo. Mas hoje os nabebe, os brancos, depois de terem descoberto nossa floresta, foram tomados por um desejo frenético de tirar essa xawara do fundo da terra onde Omanê a tinha guardado. Xawara é também o nome do que chamamos boosbikê, a substância do metal, que vocês chamam “minério”. Disso temos medo. A xawara do minério é inimiga dos yanomami, de vocês também. Ela quer nos matar. Assim, se você começa a ficar doente, depois ela mata você. Por causa disso nós yanomami estamos muito inquietos.

Quando o ouro fica no frio das profundezas da terra, aí tudo está bem. Tudo está realmente bem. Ele não é perigoso. Quando os brancos tiram o ouro da terra, eles o queimam, mexem com ele em cima do fogo como se fosse farinha. Isto faz sair fumaça dele. Assim se cria a xawara, que é esta fumaça do ouro. Depois esta xawara wakêxi, esta “epidemia-fumaça”, vai se alastrando na floresta, lá onde moram os yanomami, mas também na terra dos brancos, em todo lugar. É por isto que estamos morrendo. Por causa desta fumaça. Ela se torna fumaça de sarampo. Ela se torna muito agressiva e quando isso acontece ela acaba com os yanomami…

Quando os brancos guardam o ouro dentro de latas, ele também deixa escapar um tipo de fumaça. É o que dizem os mais velhos, os verdadeiros anciãos que são grandes pajés. Quando os brancos secam o ouro dentro de latas com tampas bem fechadas e deixam estas latas expostas à quentura do sol, começa sair uma fumaça, uma fumaça que não se vê e que se alastra e começa a matar os yanomami. Ela faz também morrer os brancos, da mesma maneira. Não é só o yanomami que morre. Os brancos podem ser muito numerosos, [mas] eles acabarão morrendo todos também. É isto que os yanomami falam entre eles…

Quando esta fumaça chega no peito do céu, ele começa também a ficar muito doente, ele começa também a ser atingido pela xawara. A terra também fica doente. E mesmo os hekurabê, os espíritos auxiliares dos pajés, ficam muito doentes. Mesmo Omanê está atingido. Deosimê [Deus] também. É por isso que estamos agora muito preocupados.

Tem também a fumaça das fábricas. Vocês pensam que Deosimê pode afugentar esta xawara, mas ele não pode repelir esta fumaça. Ele também vai ficar morrendo disso. Mesmo sendo um ser sobrenatural, ele vai ficar muito doente. Nós sabemos que as coisas andam assim, por isso estamos passando estas palavras para vocês. Mas os brancos não dão atenção. Eles não entendem isso e pensam simplesmente: “Esta gente está mentindo!”. Não há pajés entre os brancos, é por isso. Nós yanomami temos pajés que inalam o pó de yakõana, que é muito potente, e assim sabemos da xawara e ficamos muito inquietos. Não queremos morrer. Nós queremos ficar numerosos. Mas agora que os garimpeiros nos viram e se aproximaram de nós, apesar do fato de Omanê ter guardado o ouro embaixo da terra, eles estão retirando grandes quantidades dele, cavando o chão da floresta. Por isso, agora a xawara cresceu muito. Ela está muito alta no céu, se alastrou muito longe. Não é só o yanomami que morre. Todos vamos morrer juntos. Quando a fumaça encher o peito do céu ele vai ficar também morrendo, como um yanomami. Por isso, quando ficar doente o trovão vai se fazer ouvir sem parar. O trovão vai ficar doente também e vai gritar de raiva, sem parar, sob o efeito do calor…

Assim o céu vai acabar rachando. Os pajés yanomami que morreram já são muitos, e vão querer se vingar… Quando os pajés morrem, os seus hekurabê, seus espíritos auxiliares, ficam muito zangados. Eles vêem que os brancos fazem morrer os pajés, seus “pais”. Os hekurabê vão querer se vingar, vão querer cortar o céu em pedaços para que ele desabe em cima da terra: também vão fazer cair o sol, e quando o sol cair, tudo vai escurecer. Quando as estrelas e a lua também caírem, o céu vai ficar escuro. Nós queremos contar tudo isso para os brancos, mas eles não escutam. Eles são outra gente, e não entendem. Eu acho que eles não querem prestar atenção. Eles pensam: “Esta gente está simplesmente mentindo”. É assim que eles pensam. Mas nós não mentimos. Eles não sabem destas coisas. É por isso que eles pensam assim…[1]

Não faltou quem visse no testemunho de Davi as palavras de um profeta anunciando uma espécie de Apocalipse indígena, à maneira daquele anunciado pelos índios hopis da América do Norte, assim como foi grande a tentação de nele ver uma versão mítica da descoberta científica do buraco na camada de ozônio. Entretanto, não é para o conteúdo, terrível, e riquíssimo, desse pronunciamento, que eu gostaria de chamar a atenção de vocês, mas para o espanto, o assombro mesmo, que perpassa pelas palavras do pajé, conferindo a elas uma dimensão propriamente trágica.

Como pajé, Davi recebe uma revelação capital para o destino de seu povo e dos homens civilizados. Mas, quando vai transmiti-la a estes, descobre que eles não estão dispostos a ouvi-la, e que não estão disponíveis porque não têm ouvidos para ouvi-la. Incapacidade que, em seu entender, se deve precisamente ao fato de os pajés não existirem no mundo civilizado.

Cria-se, portanto, uma situação paradoxal: de nada adianta o pajé revelar a sua revelação porque esta se revela incompreensível e inaudível para aquele que mais precisa ouvi-la — o homem predador. Entre o pajé e seus interlocutores abre-se então um abismo — como se eles vivessem em planos de realidade diferentes e, principalmente, em tempos diferentes que não pudessem se encontrar, se cruzar, sintonizar. Entre o pajé e seus interlocutores abre-se o abismo que separa o tempo do mito do tempo da história.

Esta incompreensão fundamental, esta impossibilidade absoluta de comunicação que se declara espantosamente na fala de Davi Yanomami me faz lembrar uma outra situação igualmente trágica, na qual também está em jogo o destino da humanidade. Aqui também o homem civilizado não sabe que caminha para a destruição e, quando encontra alguém que sabe, e que pode adverti-lo, fazê-lo despertar, permanece impermeável a essa sabedoria e a essa advertência, permanece inatingível.

Trata-se do caso brilhantemente compreendido e formulado por Elias Ca-netti numa conferência que realizou em 1976, publicada sob o título “O ofício do poeta”, em seu livro A consciência das palavras.[2]

Canetti começa seu discurso por uma indagação sobre o desgaste da palavra poeta e o que ela poderia, hoje, expressar. E, para ilustrar o seu tema, evoca uma experiência que teve:

Há pouco tempo, deparei por acaso com um escrito de um autor anônimo, cujo nome não posso dizer justamente pelo fato de que ninguém o conhece. Esse escrito data de 23 de agosto de 1939, ou seja, uma semana antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, e diz: “Tudo, porém, já passou. Fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra”.

Canetti lê e anota a frase com irritação, pensando ter encontrado ali o que mais lhe repugna na palavra poeta: a pretensão. Mas, com o passar dos dias descobre-se tomado pela frase, como se lhe coubesse encontrar seu sentido, e começa a perscrutá-la. Diz ele:

Era já estranha pelo modo como se iniciava — “Tudo, porém, já passou” —, expressão de uma derrota completa e desesperadora numa época em que as vitórias deveriam começar. Porquanto tudo estivesse voltado para essas vitórias, a frase já exprime o desconsolo do fim, e de modo como se este fosse inevitável. Porém, examinada mais de perto, a frase propriamente dita — “Fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra” — contém o oposto da jactância, vale dizer, a confissão do completo fracasso. Mais ainda, exprime a confissão de uma responsabilidade, e, aliás, ali onde — e isso é o mais admirável nela —, ali onde menos se poderia falar de responsabilidade, no sentido usual do termo.

Canetti continua:

Nesse ponto, ele — que manifestamente pensa o que disse, pois o fez em sua intimidade — se volta contra si mesmo. Não afirma sua pretensão, mas desiste dela. Em seu desespero em relação àquilo que necessariamente está por vir, acusa a si próprio, não aos verdadeiros responsáveis, os quais certamente conhece muito bem — pois, se não os conhecesse, pensaria de modo diferente sobre os dias vindouros. Assim, resta uma única coisa como fonte da irritação sentida a princípio: a idéia que ele faz do que deveria ser um poeta, e o fato de que se considere como tal até o instante no qual, com a eclosão da guerra, tudo desmorona para ele.

Na frase, o que seduz Canetti, o que o faz pensar é essa pretensão irracional à responsabilidade. E é, também, o fato de descobrir que foi por meio de palavras que os homens chegaram a uma situação em que a guerra tornou-se inevitável. Ora, pergunta ele, se as palavras podem tanto, por que não se haveria de poder impedir a guerra por meio delas?

No escrito — “Tudo, porém, já passou. Fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra” —, Canetti descobre que o poeta seria alguém que tem vontade de responsabilizar-se por tudo o que é apreensível em palavras mas que expia o fracasso dessa empreitada. E, num certo sentido, seu poeta aproxima-se de nosso pajé. Pois, como o pajé, o poeta da frase capta o perigo, revela a iminência do fim e não consegue se fazer ouvir. Como o pajé, o poeta é o homem que assume a responsabilidade de dizer. Mas aqui, em vez da perplexidade de Davi Yanomami ao constatar a impossibilidade de escuta, o que aflora no poeta é o sentimento de seu próprio fracasso — ele, que tem as palavras em alta consideração, vê-se obrigado a reconhecer o processo de esvaziamento do verbo, o processo de despotencialização e desvalorização das palavras. Se antes a ênfase recaía na incapacidade de ouvir, agora a ênfase recai na incapacidade de falar.

A evocação dessas duas situações trágicas parece nos indicar um parentesco entre o pajé e o xamã, e o poeta, e o modo como ambos se tornam deslocados, sem lugar, descartáveis mesmo, no mundo moderno. Como o xamã, não é o poeta, o verdadeiro poeta, um ser de outro mundo, e de outro tempo?

Os especialistas sabem que em muitas das culturas dos cinco continentes as figuras do profeta, do poeta e do sábio estavam originariamente reunidas numa figura só — a do xamã. Na Sibéria e entre os sioux, na Austrália e na Índia, na China e na Grécia antiga, entre os gauleses e os celtas, entre os yanomamis e os kaiapós, lá está ele, o xamã — profeta, poeta, sacerdote, médico e cantor, o guardião do mito, o intermediário, o veículo entre os seus companheiros de tribo e o mundo do espírito. Em Poetry and prophecy, escreve N. Kershaw Chadwick:

Os elementos fundamentais da função profética parecem ter sido os mesmos em toda parte. Em toda parte, o dom da poesia é inseparável da inspiração divina. Em toda parte, esta inspiração traz consigo o conhecimento — quer do passado, sob a forma de história e genealogia, quer do presente oculto, geralmente sob a forma de informações de caráter científico, quer ainda do futuro, sob a forma de profecias no sentido mais estrito. Este conhecimento é sempre acompanhado de música, quer através de instrumentos, quer sob a forma de canto. A música é, em toda parte, o meio de comunicação com os espíritos. Descobrimos invariavelmente que o poeta e vidente atribui a sua inspiração ao contato com forças sobrenaturais, e que o seu estado de espírito enquanto profere as profecias é exaltado e diferente do habitual. [… As altas pretensões do poeta e vidente são universalmente aceitas e ele próprio desfruta de um grande prestígio onde quer que apareça. Além de tudo isto, encontramos um vocabulário comum de termos técnicos que remonta aos tempos mais recuados.[3]

O comentário de Chadwick é precioso porque condensa, para nós, diversos aspectos que nos interessam: a relação natural-sobrenatural; o elo entre inspiração e conhecimento; a sabedoria como saber dos tempos passado, presente e futuro; a importância da música, do canto; as pretensões do xamã por todos compreendidas e reconhecidas; a presença constante dos mesmos traços, das mesmas marcas, tanto em povos de tempos remotos como entre as populações primitivas ainda existentes.

Que a poesia é antes de tudo canto, e canto xamânico, é o que nos mostra Charles Bowra ao longo de todo o seu livro Poesia y canto primitivo.[4] Por sua vez, em Apolion sonore, Georges Dumézil,[5] num estudo de mitologia comparada, estabelece a correspondência entre Vão, a deusa indiana da Voz e da Fala, e Apolo, mostrando que a prece, o hino, o canto, o oráculo, mas também o clamor de guerra e a comunicação de todos os momentos da vida são empregos sagrados de poderes divinos. Por isso, são vozes religiosas tanto a do sacerdote, mestre das fórmulas, como a do poeta inspirado, tanto a do adivinho quanto a do aedo.

Mas a relação entre poesia e xamanismo não pára aí. Os helenistas reconhecem o caráter xamânico do mito e da figura do próprio Orfeu, caráter, aliás, bastante explorado por Mircea Eliade em seu clássico livro Lechamanismeet les techniques archaïques de l’extase.[6] Adorador de Apolo e companheiro do deus, Orfeu é ao mesmo tempo poeta, mágico, mestre religioso e oráculo; sua música encanta os pássaros e os animais, as florestas e os rochedos, a natureza; e o que é sua descida aos infernos em busca de Eurídice se não a viagem do xamã ao reino dos espíritos para recuperar uma alma roubada?

Por outro lado, não faltam os estudiosos que encontram os xamãs nas origens da filosofia grega. Assim, para E. R. Dodds — Les grecs et l’irrationnel[7] Pitágoras foi um grande xamã e o pré-socrático Empédocles foi o último xamã da Grécia. F. M. Cornford, em seu Principium sapientiae, sobre as origens do pensamento filosófico grego, escreve:

[…] o homem sábio, quer lhe dêem o título mais antigo de sofista, ou o mais modesto de “amigo da sabedoria”, ainda era visto nos séculos V e IV como um dos tipos diferenciados que tinham emergido do complexo profeta-poeta-sábio […]. As suas afinidades têm sido menosprezadas pelos historiadores modernos da filosofia, obsedados pelo “conflito entre religião e ciência” do século XIX. Têm partido do princípio de que o racionalismo esclarecido está necessariamente em oposição às crenças e práticas supersticiosas de uma religião hoje obsoleta, ou de que um filósofo cujas preocupações religiosas não podem ser negadas tinha forçosamente de ter a sua religião e a sua ciência em compartimentos tão estanques que elas nunca se misturassem nem entrassem em conflito. Mas, vistos contra o pano de fundo que tentamos esboçar, pelo menos alguns dos primeiros filósofos mostram bem claramente a consciência que tinham da sua posição como herdeiros do tipo compósito do xamã.[8]

Há um parentesco muito profundo entre os pajés e os poetas — ambos vivem numa outra dimensão, num outro tempo: o tempo do mito. E é muito interessante observar como os especialistas — helenistas, antropólogos, historiadores das religiões — se posicionam com relação a essa dimensão, a esse tempo.

Os especialistas conhecem tudo — os cacos dos vasos antigos, os textos que sobreviveram e os fragmentos de textos, os artefatos das mais diferentes culturas, os mitos, as línguas, os comentários dos antigos, e os comentários dos comentários. Mas seu conhecimento se configura na mais absoluta exterioridade com relação ao que deve ser conhecido. O seu objeto de estudo. É que o especialista se encontra num outro tempo e considera o tempo mítico como um tempo irremediavelmente perdido. Tome-se, por exemplo, o excelente livro de Marcel Detienne, Dyonisos à ciel ouvert.[9] Tudo sobre o deus grego está lá… menos a sua presença. E porque ela não se declara, muitas vezes a nostalgia de um outro tempo é marca destes textos. Quando o estudioso se dispõe a reencontrar o tempo perdido, o tempo mítico, deixa de ser especialista — e tem sua existência transformada absolutamente.

Para o poeta moderno a própria experiência do tempo mítico tornou-se uma crise violentíssima, não só porque os outros não têm ouvidos para ouvir mas porque se instaura um enorme descompasso que dilacera o homem entre o tempo linear da história e o tempo cíclico do mito e da natureza. Que se pense em Holderlin, por exemplo, tentando, na aurora da era industrial, conciliar o tempo do passado, tempo dos deuses da Antiguidade clássica e tempo bíblico, com o tempo do presente, de uma Alemanha já em acelerado processo de dessacralização. Holderlin vai enlouquecer, vai passar a falar uma língua que mistura o grego arcaico, o latim e o alemão — língua que denuncia o confronto dos tempos. Mas, antes disso, Holderlin vai escrever a tragédia A morte de Empédocles, na qual se consuma a ruptura do homem com a natureza, a perda da força do xamã, a queda. E é preciso lembrar ainda que Nietzsche, o filósofo-poeta, também escreve o esboço de uma peça sobre Empédocles, projeto que mais tarde se transformará no Zaratustra. É preciso lembrar enfim que Nietzsche, operando uma regressão fantástica, vai reencontrar o tempo mítico na revelação do Eterno Retorno.

Nietzsche-Holderlin-Empédocles desenham uma linha invisível que remonta ao tempo do xamã, ao tempo mítico, tempo do cosmo, da natureza e da vida, tempo cíclico que eternamente retorna. Um fragmento do filósofo budista japonês Kenji Nishitani, Religion and notbingness,[10] esclarece bastante bem o caráter cíclico do tempo mítico:

Com relação à assim chamada natureza cíclica do tempo, todas as religiões que podem ser caracterizadas em termos de mythos compartilham a visão de que o tempo é recorrente e a-histórico. Até mesmo dentro da própria filosofia, onde a libertação dos modos míticos de viver e de pensar supostamente representa um feito notável […], há muitas instâncias em que o tempo é considerado como cíclico. Tal noção do tempo torna-se bastante adequada quando olhamos para o universo ou para todas as coisas no universo do ponto de vista da natureza. No mundo da natureza, as quatro estações se sucedem uma à outra periodicamente, e os blocos de tempo a que chamamos meses e anos continuam recorrentes. O “tempo” da natureza, inclusive o tempo astronômico, retorna sem falha para seu ponto de partida, tempo após tempo, seguindo o mesmo circuito.

Segundo Nishitani, a vida do homem também seria modelada de modo semelhante por esse tempo recorrente. No Japão antigo, por exemplo, no tempo da safra do arroz, o saquê feito da nova colheita era oferecido no Palácio Real para as divindades do céu e da terra. Então o imperador e os súditos bebiam juntos o saquê, em celebração. Parece que tal cerimônia ocorria todos os anos e provavelmente era realizada porque se acreditava que o saquê possuía qualidades sagradas. Quando um homem bebia o saquê do arroz novo, a força espiritual inerente ao arroz lhe fornecia novas garantias de vida e uma nova certeza para sua existência. Por outro lado, o arroz prende-se à força geradora da terra, que sustenta a existência humana. Quando o imperador e seus súditos o bebem, as relações entre governantes e governados são renovadas.

Mais ainda, tudo isso se baseia numa relação entre o homem e os deuses, em outras palavras: as relações entre o homem e os deuses, os deuses e a terra, o homem e a terra, e o homem e o homem formam enquanto totalidade um nexo unificado social e politicamente, cuja inteireza é renovada uma vez por ano. Para tanto realiza-se um rito anual que, se não acontecer, pode desestabilizar a continuidade da vida. Como tudo envelhece passado o ano, tudo precisa ser regenerado no final de cada ciclo anual. O nexo total deve ser recolocado e consolidado por meio da mesma força vital, assegurada pelo mesmo rito. E Nishitani conclui: “Esse é o sentido, quando se diz que a vida é cíclica.”

O tempo do xamã, tempo mítico, é o tempo da natureza. Ele não se sente separado dela, diante dela, independente dela, vivendo num outro tempo, no sentido musical do termo, num outro compasso. Isso ficou muito claro quando, há poucos dias, o xavante José Luís Tseretê tomou a palavra numa reunião da Comissão Índios no Brasil sobre o tema “Índios e modernidade”. José Luís não é pajé, mas sua simples dicção bastava para presentificar, no salão nobre do Teatro Municipal, a natureza, os rios, as matas, os pássaros. A sintonia com o mundo era tão grande, tão intensa, que as palavras não soavam abstratas, descarnadas, como as nossas, mas antes enchiam de vibração o espaço, colorindo-o. As palavras compartilhavam dessa força vital, dessa virtude de que fala Nishitani, as palavras provinham dessa força, eram a sua manifestação.

O tempo mítico do xamã e do poeta é o tempo da natureza mas, ao mesmo tempo, do sobrenatural. Porque o poeta e o xamã vivem nesse tempo, “a poesia é o misticismo da humanidade”, diz Henry David Thoreau, num texto intitulado “A natureza, a poesia e o poeta” — reencontrando assim Claudel, que considerava Rimbaud “um místico em estado selvagem”.

O tempo mítico é o tempo do sobrenatural porque o tempo está eternamente começando, está sempre no início da divina criação. Como afirma Lévy-Bruhl,[11] estudando tribos da Austrália e da Nova Guiné, os mitos se situam, num período original antes do qual não havia nada, um período que, por assim dizer, plana acima e fora do tempo. Nele, os seres e os objetos se encontram em perpétuo estado de mobilidade e de fluidez. No tempo do mito o mundo flui, encontra-se em transformação. Escreve Lévy-Bruhl:

Sem dúvida, para a mentalidade primitiva, o mundo mítico é uma “sobrenatureza”. Mas nenhum hiato, nenhuma barreira se interpõe entre ele e o mundo atual. Sobre-natureza e natureza não se opõem uma à outra como duas realidades distintas ou antagônicas. É verdade que os seres do mundo mítico diferem muito dos seres correspondentes do nosso — entendem que eles possuíam numerosos poderes mágicos que estes não têm, e que gozavam no mais alto grau de faculdades das quais os seres de hoje possuem alguns restos. Entretanto, a diferença é apenas de mais para menos. Os seres da natureza atual são em pequeno, no diminutivo, o que os da so-brenatureza eram no superlativo, em grande. […] Do mesmo modo, se a “fluidez” do mundo mítico é incomparavelmente maior do que a do mundo atual, no entanto ambas são da mesma ordem. As transformações que se produzem ainda hoje devem ser compreendidas a partir daquelas que constantemente ocorriam no mundo mítico.

Os xamãs e os poetas são os guardiões das metamorfoses. Não só porque vivem num tempo mítico, tempo fluido, gerador de mudança, de criação, mas também porque existem como manifestação desse tempo, são a própria expressão do tempo mítico em ação. Os xamãs e os poetas sabem que sua força é a própria força do tempo, que apenas acolhem e favorecem os sinais dos tempos. Eles sabem que o eterno se aloja em cada momento que passa; e que, se o eterno permanece, é porque ele é o próprio dinamismo que faz o tempo passar, o dinamismo produtor de metamorfose. Nesse sentido, o tempo e a eternidade, a impermanência e o permanente, a irreversibilidade e o que sempre retorna não são mais contraditórios e incompatíveis. Como dizia Kierkegaard, há uma transcendência no momento, “um átomo de eternidade” na temporalidade. Nesse sentido, ainda, o próprio tempo linear da história não se opõe mais ao tempo cíclico do mito. O tempo é circular porque sempre retorna, sempre se recoloca como tempo que se realiza, e é linear, porque essa realização é uma sucessão de instantes únicos. O que, para dizer o mínimo, confere relatividade absoluta à noção de “progresso”.

A respeito de progresso, vale a pena lembrar um episódio que ocorreu há. poucos anos, quando Davi Yanomami foi a Atenas receber um prêmio. Ao término de uma visita à Acrópole, o embaixador brasileiro perguntou ao pajé: “O que você achou?”. Davi voltou-se para os representantes da Fundação Onassis que o acompanhavam e perguntou: “Onde estão as matas daqui? Antes havia matas aqui?”. Os gregos responderam-lhe que na Grécia quase já não havia mais florestas, e então Davi observou: “Agora entendo: aqui é a casa do avô do garimpeiro. Vocês são construtores de ruínas”.

Os xamãs e os poetas sabem que todo o tempo entra em cada momento do tempo que passa, sabem que viver no tempo e viver como tempo é abrir-se para o presente — este presentifica todos os tempos, atualiza o que foi no que é e faz do ser, um vir-a-ser. Os xamãs e os poetas sabem que sua atividade consiste, fundamentalmente, em praticar essa abertura, em trilhar a metade do caminho, como faz o xabore yanomami, esperando que os espíritos da floresta, os bekurabê, trilhem a outra metade e venham ao seu encontro. Ou como faz Rilke, abrindo-se para o Aberto, na oitava Elegia de Duíno.

Para reencontrar o tempo do mito, não é preciso partir em busca do passado, porque o tempo mítico não é algo que já se foi. Para reencontrar o tempo mítico, é preciso exercitar-se na abertura para o presente, para a atualidade real e completa, e uma das melhores maneiras de fazê-lo é aprendendo a ouvir os xamãs e os poetas. No Brasil, aliás, nem é muito difícil ouvir os primeiros, visto termos o privilégio de abrigarmos a riqueza inigualável de mais de 180 povos indígenas com seus mitos vivos em mais de 150 línguas.

Precisamos aprender a ouvir as profecias do xamã e do poeta. As de Davi, e também as de Kafka, que profetizou os horrores do nazismo e do stalinismo que estavam por vir. Num de seus textos de juventude, encontramos uma das mais vertiginosas entradas no tempo de que tenho notícia. O escrito, intitulado Desejo de se tornar índio,[12] diz o seguinte:

Se realmente se fosse um índio, desde logo alerta e, em cima do cavalo na corrida, enviesado no ar, se estremecesse sempre por um átimo sobre o chão trepidante, até que se largou as esporas, pois não havia esporas, até que se jogou fora as rédeas, pois não havia rédeas, e diante de si mal se viu o campo como pradaria ceifada rente, já sem pescoço de cavalo nem cabeça de cavalo.

Kafka começa manifestando um desejo que, na verdade, é a aspiração de um vir-a-ser: “Se realmente se fosse um índio […] em cima do cavalo […] se se estremecesse sempre por um átimo sobre o chão trepidante”… Mas eis que de repente, aquilo que despontava como remota eventualidade no campo do possível, torna-se realidade — e tão rapidamente que já não há como expressá-la no presente, mas como algo que já se consumou. Por isso, na mesma frase, sem Um único ponto, tendo apenas a respiração como marcador da transição que se opera, Kafka encadeia: “[…] até que se largou as esporas, pois não havia esporas, até que se jogou fora as rédeas, pois não havia rédeas”. A metamorfose é tão súbita, tão imediata, que ao tornar-se índio o Kafka que escreve nem teve tempo de desvencilhar-se das esporas e das rédeas, apetrechos civilizados, e agora se vê obrigado a fazê-lo no passado, a registrar o gesto como algo que aconteceu. E então o campo abriu-se para o índio e o animal que galopava, como “pradaria ceifada rente”. Mas já nem há mais cavalo, cavaleiro e paisagem. Na fluidez da metamorfose, na velocidade do movimento, há apenas a totalidade do tempo. O presente das palavras revela-se simultaneamente como futuro, como projeto de vir-a-ser, mas também revela-se simultaneamente como passado da ação e como presente da percepção. Na fluidez da metamorfose, na velocidade do movimento reverbera apenas o tempo do mito.

Notas

[1] Davi Kopenawa Yanomami, “Xawara: o ouro canibal e a queda do céu” (depoimento), in Yanomami: A todos os povos da terra, São Paulo, CCPY-Cedi-Cimi-NDI, Ação pela Cidadania, jul. 1990, pp. 11-2.

[2] Elias Canetti, A consciência das palavras, trad. Márcio Suzuki, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 275-78.

[3] N. Kershaw Chadwick, Poetry and prophecy, p. 12, apud F. M. Cornford, Principium sapientiae — As origens do pensamento filosófico grego, 31 ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

[4] Charles M. Bowra, Poesia y canto primitivo, trad. Carlos Agustin, Barcelona, Antoni Bosch, 1984.

[5] Georges Dumézil, Apollon sonore et autres essais, Paris, Gallimard, 1982.

[6] Mircea Eliade, Le chamanisme et les techniques archaiques de l’extase, 21 ed., Paris, Payot, 1968.

[7] E. R. Dodds, Les grecs et l’irrationnel, trad. Michael Gibson, Paris, Flammarion, 1977, particularmente o cap. V, “Les chamans grecs et les origines du puritanisme”, pp. 140-60.

[8] F. M. Cornford, Principium sapientiae — As origens do pensamento filosófico grego, 31 ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

[9] Marcel Detienne, Dyonisos à ciel ouvert, col.- Textes du xxe siècle, Paris, Hachette, 1986.

[10] Kenji Nishitani, Religion and nothingness, trad. Jan van Bragt, Berkeley, University of California Press, 1982.

[11] Lévy-Bruhl, La mythologie primitive, col. Bibliothèque de Philosophie Contemporaine, Paris, Presses Universitaires de France, 1963.

[12] Franz Kafka, “Desejo de se tornar índio”, in Franz Kafka, Contemplação e O foguista, trad. Modesto Carone, São Paulo, Brasiliense, 1991.

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