1996

Parnaso de Bocage, rei dos brejeiros

por Antonio Alcir Bernárdez Pécora

Resumo

Apreciado como autor libertino de anedotas (Nelson Rodrigues) ou como grande cultor da língua apesar de suas “extravagâncias” (Olavo Bilac), Bocage (1765-1805) é um poeta mal compreendido e difícil de enquadrar. Nele se misturam o satírico baixo e o lírico alto, assim como o rococó, o neoclássico e o pré-romântico. Sua obra obscena convive com o elogio às autoridades do Reino português e ele escreve poemas encomiásticos tanto a Napoleão quanto ao almirante Nelson. Mas o que importa na leitura de Bocage é levar em conta que seus versos obedecem às leis do decoro e à busca de efeitos literários adequados. Nem o alto é imaculado ou retrógrado, nem o baixo é desregrado e subversivo. Na sua temática burlesca, que oscila entre a malícia brejeira e o obsceno explícito, sobressai um gênero propriamente erótico, de estilo epistolar e pedagógico, que valoriza o sexo como conquista da inocência através de um aprendizado da “sinceridade” de narrar. Pois Bocage não fala apenas dos prazeres, mas de um gênero letrado capaz de comover ao falar do prazer. É essa disposição que excita a curiosidade e o gosto do leitor. Não dá para separar o fescenino e o lírico quando ele escreve, por exemplo: “(…) sua língua / Abriu rápida entrada onde engolfadas / Todas as sensações lutavam juntas.” Trata-se de uma libertinagem única que explora de maneira rara as convenções. Segundo o inglês Beckford, que o descreveu como “pálido, esquisito mancebo”, Bocage é “um sol de inverno” que vem quando menos se espera.


Para Hilda Hilst
Este que vês, com olhos macerados,
Não é Bocage, não, rei dos bregeiros.
São apenas seus olhos descarnados:
Fugiu do cemiterio aos companheiros:
Anda agora purgando seus peccados
Glosando aos cagaçaes pelos outeiros
.
Belchior Manuel Curvo Semedo
Amor sempre varia os seus deleites,
Eu mostrei-te o modelo […]
(B.)

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é um caso e tanto em matéria de libertinagem. Mesmo que não se tenha lido jamais qualquer de seus poemas, o seu nome, trombeteado pelas mil bocas da má Fama, está definitivamente inscrito na lista dos sócios cativos desse clube, em geral bem animado. Outro frequentador dos arredores, Nelson Rodrigues, já dizia a propósito que o “Bocage fidedigno”, restrito aos poemas autógrafos ou enfim às suas obras, esse “nunca existiu”: “Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de anedota”.[1]

Que, aliás, pelo que se lê da sua crônica “Bocage no futebol”, de 1956, é sobretudo o mestre dos “rijos e imortais palavrões da língua”: o boca suja, enfim. Daí deduzir muito necessariamente que “está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja bocagiano”.[2]
Pela calçada contrária da mesma rua, entretanto, esse eco que vagabundeia do pitoresco ao devasso e ao debochado, teimando em divulgar-se com Fortuna própria, sem o cotejo dos textos, fez com que Olavo Bilac postulasse a urgência de se depurar, desse emaranhado fantasioso e popularesco, o Bocage que era um dos grandes da língua e ombreava com Camões no esmerilho de todas as formas poéticas elevadas. Sua grande fraqueza fora ter cedido ao gosto da fama fácil que sempre se obtém a custo de “extravagâncias jocosas ou escandalosas e pequeninas infâmias”. Não seria preciso mais para que o vulgo se animasse a, como diz, catar “caramujos neste rosal” e rebaixar a montanha ao pântano.[3]

Assim, nessa mesma conferência, pronunciada em março de 1917 na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, conclama a que
congreguem-se todos os bons amigos da Poesia no piedoso trabalho da rehabilitação de tão alto cantor e adoravel artista! Não fiquem sobre o seu nome tantas crustas de lodo! Esqueçam-se as tristes palavras de amargo rancor e feia licenciosidade, que o descontentamento, a má educação do tempo, a miseria, o desamparo moral inspiraram a Elmano; rasguem-se, queimem-se, com asco e horror, todas essas invenções impressas, com que descarados escrevinhadores procuram, sob a capa da fama do grande poeta, explorar a algibeira e depravar o gosto do povo; leiam-se e releiam-se os perfeitos versos em que ele cantou seus amores e as suas desgraças; e alvoreça para ele a verdadeira e definitiva gloria.[4]

As duas posições ajudam a balizar um pouco a “questão” Bocage. Mas o que é penoso perceber, antes de mais nada, é que Bilac podia falar de exploração comercial em edições vulgares dos poemas de Bocage. Para nós, hoje, é quase um sonho isso. Graças ao fantástico descalabro da educação no Brasil, cultivado com aplicada continuidade desde os governos militares até agora, Bocage, por aqui, nem sequer mais má fama tem. O “gosto do povo”, sem apurar-se, já não parece estar interessado por quaisquer de seus versos, brutalmente satíricos ou não. O futebol e os palavrões parecem resistir um pouco melhor.

A crítica literária também pouco se tem ocupado dele, mas isso não só no Brasil; em boa parte, talvez, devido à dificuldade de lidar com um autor que fica nesse lusco-fusco da produção letrada do último quartel do século XVIII ibérico, em que os valores gongóricos, árcades, neoclássicos, iluministas, rococós e pré-românticos aparecem todos, ao mesmo tempo, diluídos e misturados. Não bastasse isso, a amplitude de sua obra, a variedade dos gêneros que exercitou, os equívocos alicerçados na má fama e nas más edições, seja o que for — conhecemos Bocage cada vez menos. Dar-me-ia por satisfeito, pois, em esboçar uma ou outra baliza relevante para a sua leitura.

Gênero e sistema de decoros

A primeira coisa a fazer, retomando o que dizia a partir das posições de Nelson Rodrigues, que apenas queria saber do chocarreiro, e Olavo Bilac, que desejava um Bocage limpo da lama que o século acumulara sobre o seu gênio, é deixar de lado essa ideia de um autor que cabe recortar ou repartir para servir a gosto. Não temos sequer suficiente conhecimento do todo, para que possamos disputar a sério a respeito da conveniência das partes. Depois, o abandono a priori do satírico baixo, ou inversamente do lírico alto, é procedimento que, na crítica — não em criadores como Bilac ou Nelson —, faz água por todos os lados. É perfeitamente reconhecível o puritanismo dos estudos literários, imbuídos sempre de alguma missão pedagógico-iluminista, cívico-nacional ou revolucionário-popular, que usualmente leva a que lidem bastante mal com os gêneros baixos. Sobretudo, mostram-se incapazes de compreender que, para estes, ao menos na chave aristotélica largamente reposta pelas poéticas dos séculos XVII e XVIII ibéricos, valem critérios de mestria de composição, engenho de invenção e refinamento de gosto e doutrina tão rigorosos quanto para os gêneros elevados.

Assim, por exemplo, o conde Emanuele Tesauro (1592-1675), patritio torinese, em seu célebre Il cannochiale aristotelico (Veneza, 1654), a mais importante e complexa preceptiva do século XVII a propósito da elocução aguda, ao lado daquela do jesuíta espanhol Baltazar Gracián, observa o seguinte no capítulo intitulado “Tratado dos ridículos”:

Ora, não deves ter nojo de filosofar sobre Matérias nojentas para colher quase que da lama as gemas de uma Arte nobre, sendo o raio do Intelecto humano semelhante ao do Sol, que tem o privilégio de fluir sempre limpo por sobre as imundícies. Também a mente humana participa da Divina e com a mesma Divindade habita nos pântanos e nas estrelas: e do mais sórdido lodo, fabricou a mais Divina das Criaturas Corpóreas.[5]

Mesmo admitindo que mais tarde declina o peso das analogias tomistas aí postuladas, é evidente que a sátira, enquanto gênero, com regras perfeitamente definidas, está em alta na produção letrada do século XVIII português, cultivadíssima ainda nas mais sisudas academias de província. Nesse sentido, deveríamos admitir decididamente que para lermos bem a obra de Bocage, mesmo a mais séria, conviria ter presente no espírito a obra satírica a que dedicou enorme atenção, não fora tempo apenas, ao longo de sua grande produção e curta existência.

Mas não basta reconhecer a arte do sórdido, para expurgar o moralismo de vez do reino. Nosso atual Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens é pelo menos tão moralista ao ler o baixo como supérfluo ou secundário quanto em propô-lo como principal e interpretá-lo logo como arauto triunfante da subversão. Moralismo às avessas, muito típico de modernos, pseudos. Já não basta que vejamos uma sátira, e mais ainda as que se fazem com despique e dor, segundo o aristotelismo perverso do barroco,[6] e logo queiramos ver aí a chave da modernidade do autor? (Que, em tudo o mais, mísero, teve a má sina de viver no seu próprio tempo, que julgamos atrasadíssimo, com consciência possível que não chega a meia?) Não desistiremos de encontrar aí algum toque revelador de seu gênio inconformista e libertário?

Pois, verossimilmente, não é o caso: nem geral, para os autores do Antigo Regime ibérico, muito ciosos da unidade do corpo místico da res publica; nem particular, para Bocage. Neste, não há meio de sustentar o seu afã revolucionário ou contestador, mesmo tomando-se a sua obra obscena como primeira de todo o conjunto. A boa sociedade portuguesa, do fim do século XVIII, enfiada no mundo de mediocridade pacífica e segura em que mais ou menos se firmava depois de Pombal — tudo supervisionado muito a miúdo pelo intendente de polícia, o temível sr. Pina Manique[7] —, pois, essa boa sociedade assistiu inúmeras vezes o talento de Bocage desempenhar vivamente o elogio das autoridades do Reino, encabeçadas pelo ministro José de Seabra da Silva e pelo príncipe d. João, regente primeiro, depois sexto rei do nome. Aniversários e natalícios de gente principal, por exemplo, não era ocasião que o bardo deixasse passar em branco. Nos “faustíssimos anos da fidelíssima rainha de Portugal, d. Maria I”, cantava:

Maria, a mãe de heróis, de heróis a filha,
A Jovem mereceu tão novo indulto,
Trouxe tão novo indulto à Natureza.
Seu natal sobressai aos mais fulgentes
Quanto no etéreo cume, alardeando
Torrentes de fulgor, que o pólo inundam,
Vence o planeta majestoso, intenso
Tênue luz, que esmorece em negra estância.
[8]
Comparável grandeza, apenas a do príncipe a que dera luz:
Sim, Rainha imortal, se a bem do mundo
Prenda tão cara, não lhe houvesse dado;
Se, doce fruto de amorosa planta,
Teu mimo, teu penhor, delícias tuas,
João, sangue de heróis, que o Tejo adora,
A nossos corações negado fosse,
Ninguém te igualaria aquém dos numes.
[9]

Não se trata, entretanto, de alguma particular compulsão subalterna e bajuladora, como poderíamos apressadamente imaginar, pouco afeitos a compreender as determinações históricas da cultura. Por um lado, o oferecimento dos poemas em tais ocasiões inscreve-se no domínio tradicional do elogio, em que o encômio do superior podia garantir valimento ao poeta, ou mesmo socorro econômico imediato. Tratava-se de desempenhar um gênero, que não é apenas formal, mas compreendido numa pragmática, e Bocage, como todos os outros de mesmo ofício, desincumbia-se perfeitamente disso. Por outro lado, necessariamente, as qualidades assinaladas pelo poeta postulavam verossímeis de valor, que referiam as virtudes constituídas como obrigação efetiva para os príncipes e senhores:

Sim, Rainha imortal, modelo augusto
De quantas perfeições, quantas virtudes
De Astreia ao lado para o Céu fugiram (…)
[10]

Elogiar, aqui, é igualmente lembrar o dever amoroso do governante para com sua gente, fundamento da legitimidade do exercício do poder. Como recomendações poéticas já não têm peso algum, fizemos bem em retirar qualquer dignidade atual no exercício do gênero; mas então não era o caso:

[…] Agora se embelezam céus, e terra
Na glória, no prazer, nos bens sem conto,
Que do grande João recebe a pátria,
A pátria de que é pai, senhor, e ornato.
[11]

Embora relativizada, vale ainda para Bocage uma afirmação como a que John Beverley vai fazer, de maneira muito apropriada, a propósito da poesia encomiástica de sor Juana, que representava para ela “precísamente la possibilidad de su inserción directa en la estructura de poder virreinal”.[12] Claro que, entretanto, “inserção no poder”, para Bocage, não significava mais que reconhecimento institucional de seu ofício e obtenção de valimento, traduzido em benesses mais ou menos localizadas. Vão longe as exigências radicais de Camões ou de Vieira, que viam na assimilação de suas artes pelo Reino uma verdadeira condição de expansão imperial.

E vale a pena lembrar que Bocage, no que toca ao elogio genérico da autoridade, nem sequer deixou de vibrar a sua lira a favor do “Gênio Lusitano”, muito amigo da “Polícia”, que expulsou das imaculadas terras portuguesas o fantasma falacioso da “Libertinagem”. É esse o argumento de “A virtude laureada”, drama para música num único ato; aí, a persona­gem alegórica do Gênio, passeando só, na praia, percebe que um “ufano baixel retalha o Tejo”:

Eis voa, eis se aproximal… Um quase monstro,
De aspecto feminil, tigrinas garras,
De traje multicor, lhe volve o leme!
Que turba enorme à sua voz mareia,
E o ferro curvo, e negro ao fundo arroja!
Desce a vaso menor a horrível Fúria,
Reconheço-lhe o rosto, os fins lhe alcanço…
Lá vem, lá toca sobre a areia e salta.
Inimiga dos Céus! És tu, profana! .
Sacrílega, falaz, blasfemadora, Peste dos corações, órgão do Averno!
Vens também macular com teus venenos,
Com hálito infernal, e atroz sistema
Campos, que meu bafejo elíseos torna!
Ao que torna, insidiosa, a Libertinagem:
Órgão não sou do Averno, o Averno é sonho
Para mim, para os meus; não sofro o jugo,
Que sobre os corações tão férreo pesa.
Fantásticos deveres não me iludem;
O sensível me atrai, do ideal não curo,
Só de palpáveis bens fecundo a mente;
O bando, que alicio, e que prospero,
Vive em prazeres, em prazeres morre.
[13]

E adianta a sua fala mansa, com o anúncio de uma boa nova para Portugal:

Delícias ao teu seio, ó Lísia, trago,
Não cruas opressões, nem agros males,
Que o fantasma Razão produz, maquina;
Eu sou a Natureza: ela não manda,
Que o gosto oprimas, que os desejos torças
[14]

Não se comove, entretanto, o incorruptível Gênio da nação com o canto de sereia da Libertinagem:

Moral, religião, saudável jugo,
Que pesa aos ímpios, que aos iníquos pesa,
Nunca foi grave a Lísia […]
[15]

Por fim, a Libertinagem confessa inúteis os seus desvelos em face do “grê­mio da Inocência” que é Portugal:

Colheste contra mim triunfo inútil:
Lísia perdi, mas senhoreio o mundo.[16]

E o Gênio triunfante exalta a sua “tropa armada”:

Graças, ó numes, sucumbiu a infame!
Heróis, eu vos bendigo o márcio fogo,
O rápido valor, que num momento
A melhor das nações salvou do estrago…
[17]

Assim como exorta Jove para que abrase com seus raios o baixel da fera em fuga, no que é prontamente atendido. O Gênio lusitano, então, ao lado da Hospitalidade, encaminha-se para o salão majestoso da Polícia, diante do qual manifesta o seu “profundo respeito”:

Eis-me na estância da Polícia augusta,
Cultora da razão, das leis, do sólio.
[18]

Mas que não se leia nisso, tampouco, enganadamente, algum fanatismo ordeiro de Bocage, que não há. Ás tópicas repassadas pela fala da alegoria da Libertinagem são amplamente desenvolvidas, e favoravelmente, em outros poemas seus, como aquele da “Epístola a Marília”, que inicia “Pavorosa ilusão da Eternidade…”, e que, segundo consta do anedótico a seu respeito, seria um dos que lhe teria valido a prisão de 1797, que lhe durou um ano. Trata-se aqui, como antes, de empenhar seu engenho nas tópicas e ocasiões que o solicitavam, nem sempre igualmente toleradas pelo empirismo rijo da autoridade, mas sempre aplicando o decorum das poéticas classicizantes. Vale dizer, aplicando o sistema de conveniências que faz corresponder o estilo à matéria tratada e, assim, incorpora regradamente mesmo a matéria mais vil. O próprio Bocage o afirma, de maneira claríssima, numa passagem da epístola Pena de Talião, escrita contra seu antigo companheiro da Nova Arcádia, frei José Agostinho de Macedo (1761-1831):

Tema, que escolhes, gênero, que abraças,
Não te honra, nem desluz: no desempenho
O lustre, a glória estão. Tem jus à fama
O vate, ou cante heróis, ou cante amores,
Contanto que Febo as leis não torça,
Aos mui vários assuntos ajustadas.
Coa matéria convém casar o estilo:
Levante-se a expressão, se é grande a idéia,
Se a ideia é negra, a locução negreje,
E tênue sendo, se atenue a frase.
[19]

Afirma-se, pois, a pertinência do sistema de decoros e desqualifica-se a hierarquia dos temas em face da qualidade do desempenho. Percebe-se então que seria parcial demais tomar-se exclusivamente a matéria fescenina como afeita a Bocage, ou contrariamente apenas a lírica. E isso ainda por um outro motivo, além dos já referidos, que nos obrigam a recusar moralismos, diretos ou às avessas, e compreender a funcionalidade, formal e pragmática, do decoro. É que, a rigor, se estamos interessados no Bocage libertino, dificilmente poderíamos deixar de considerar alguns de seus poemas rococós, em geral pessimamente lidos pela sua fortuna crítica, nisso muito mais infeliz que afortunada. Eles têm sido frequentemente despachados como sem interesse, sobretudo em nome de seu convencionalismo, de modo a valorizar os poemas que referem as experiências solitárias no cárcere e que permitem entrever os lugares noturnos de turbulência pré-romântica. Como se, nestes, não houvesse construção e o locus horrendus não fosse tão efeito de artifício e retórica[20] quanto o locus amoenus.

Apenas generalizando os critérios posteriores da crítica romântica, que desqualificaram as produções de modelo universal, cuja invenção assentava nos lugares-comuns, vale dizer, no dado de tradição cultural, e não na especificidade local ou na originalidade pessoal, pudemos passar por esses poemas sem reconhecer de imediato o quanto têm de deliciosamente maliciosos e atrevidos. Assim é só surpreender um desses sonetos em que Bocage desenrola a cena galante dos pequeninos Amores, “brandos sequazes” de Cupido, estabanado e cruel, para percebermos que, se o caso é pensar o libertino bocagiano, simplesmente eles não podem ficar de fora. Eis um desses, tomado quase ao acaso:

Mavorte, porque em pérfida cilada
O cruel moço alígero o ferira,
Não faz caso da mãe, que chora e brada,
Quer punir o traidor, que lhe fugira:
Na sinistra o pavês, na dextra a espada,
Nos ígneos olhos fuzilante a ira,
Pula à negra carroça ensanguentada,
Que Belona infernal coas Fúrias tira:
Assim parte, assim voa; eis que vê posto
No colo de Manilla o deus alado,
No colo aonde tem mimoso encosto:
Já Marte arroja as armas, e aplacado
Diz, inclinando o formidável rosto:
“Valha-te, Amor, esse lugar sagrado!”.
[21]

O Amor encolhido como um bichinho de estimação nas elevações do colo de Marília, ou zombando, matreiro, da ferocidade das armas de Marte em face do atavio das suas, é cena de um buliçoso inestimável, que Boucher ou Fragonard apenas saberiam dar à vista com inteiro charme e malícia. O mesmo colo deleitoso de Marília é objeto de um gracioso equívoco em que a fidelidade de seu ânimo amoroso confunde-se com a dureza dos seios:

Reside em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura (…)
[22]

Divulgadas as perfeições da amada nos ornatos delicados do recreio campestre, o lugar do amor, mais que ameno, nunca ingênuo, é mesmo quase perverso, tantas são as inocências e delícias, ajuntadas, ornadas e oferecidas:

Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sente.
Os Zéfiros brincar por entre as flores?
Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira […]
[23]

A cena pastoril, recortada pelos beijos que se dão os Amores a excitar os amantes, tem remate insuperável nesse movimento inquieto das “abelhinhas”, insetos galantes por excelência pela disposição das cores, o pi­cante e o venenoso, que parecem hesitar, mas não, e finalmente já não zumbem: sussurram. O libertino de tipo bocagiano, aqui, assinala a graciosidade falsamente inocente, que dispõe véus apenas para insinuar as perfeições do corpo da amada; e, quando não o faz por desenho e vista, convoca logo o exercício concupiscente da fantasia:

Debalde um véu cioso, oh Nise, encobre
Intactas perfeições ao meu desejo;
Tudo o que escondes, tudo o que não vejo
A mente audaz e alígera descobre:
Por mais e mais que as sentinelas dobre
A sisuda Modéstia, o cauto Pejo,
Teus braços logro, teus encantos beijo,
Por milagre da idéia afoita, e nobre:
Inda que prêmio teu rigor me negue,
Do pensamento a indômita porfia
Ao mais doce prazer me deixa entregue:
Que pode contra Amor a tirania,
Se as delícias, que a vista não consegue,
Consegue a temerária fantasia?
[24]

Enfim, nesses poemas, todo o assustadiço, o grácil ou o mavioso é tudo melindre e indústria maliciosa que, exatamente porque fere de través, com a face mais terna e inocente, parece ainda mais avizinhar-se da licenciosidade. Talvez mais do que em poemas em que o mesmo desejo se confessa às claras:

Em deleitoso e tácito retiro,
Suspensa entre temor, entre o desejo,
Flutua a bela, a cuja posse aspiro.
[25]

Certo é, pois, que não chegaríamos a conhecer bem a libertinagem de Bocage, qualquer que seja, sem nos determos nesses poemas próprios de um tipo de galanteria encantadoramente brejeira e equívoca, típica do rococó, para os quais encontra soluções admiráveis. O libertino, nele, certamente não é privilégio da chalaça ou da poesia burlesca.

Convicção política e retórica do sublime

Exatamente por isso, é fundamental considerarmos as determinações do gênero para entendermos o libertino. Não fora assim, seria preciso retornar à cirurgia que desde o início procuramos evitar e que reteria de Bocage apenas a parte que nos parecesse verdadeira, atribuindo ao fingimento público e à dependência a indiscreta existência das demais. Aliás, não faltariam termos do próprio Bocage a nos autorizar a drástica medida, figurados todos no célebre fecho: “Rasga meus versos, crê na eternidade”.[26]

No interior dessas determinações de gênero, também os sentidos efetuados por elas precisam ser examinados, a fim de que seus conteúdos nem sejam tomados literalmente — o que criaria equívocos impressionantes de interpretação, pois, segundo o caso, Bocage trata-os de maneira oposta entre si —, nem segundo uma hermenêutica romântica, como referentes imediatos da sinceridade pessoal. Sem tais precauções, não seria possível compreender, por exemplo, como alguém que louva desta maneira a liberdade anunciada pela Revolução Francesa e a consolidação da República:

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim)! porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?
Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia:
Oh! Venha… Oh! Venha, e trêmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!
Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo:
Movam nossos grilhões tua piedade;
Noso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do gênio e prazer, oh Liberdade.
[27]

Não seria possível compreender, dizia, como alguém que aguardava ansiosamente a liberdade que viria romper o despotismo vigente em Portugal pela mesmíssima época andasse igualmente chorando a “trágica” morte de Maria Antonieta, ordenada pela “turba feroz de monstros pavorosos”, e maldizendo a geral impiedade desse “século nefando” e “horrendo aos séculos vindouros”. A esperada liberdade, de um momento para outro, já não passava de “funesta” e “insolente”, e a pobre rainha “malfadada vítima inocente” do “infame e sacrílego atentado de que treme a Razão e a Natureza”:

Justos Céus! Que espetáculo tremendo!
Que imagens de terror; que horrível cena
Vou na assombrosa idéia revolvendo!
Que vítima gentil, muda e serena:
Brilha entre espesso, detestável bando,
Nas sombras da calúnia, que a condena.
[28]

O ornato do “gesto brando”, as “graças” dos olhos voltados para o Céu, “aquelas mãos que semearam dádivas” e que brincaram com “cetros auríferos”, nada disso vale à semidéia face, à “raiva dos terríveis assassinos”. E, quando cai a guilhotina, o que soa é o “duro corte” da “tirania” — sim, Bocage agora descobre-a do lado oposto ao do poema anterior, em meio ao “povo alucinado”.

Ora, está bem claro que, em um caso e outro, nunca foram as convicções políticas que inspiraram o entusiasmo ou o gosto desses versos. Neste último, o que evidentemente impressionou a fantasia de Bocage foi o patético da cena condensada no choque entre o porte hierático da rainha, frágil embora, e o tumulto brutal da multidão: o flagrante da paixão vívida, turbulenta, contrastada com a branda majestade feminina. Seria possível falarmos aqui talvez de um galante patético, há nisso uma imagem verossímil de Bocage; a de revolucionário, jamais.

No poema anterior, interessa-o igualmente outro contraste: o que há entre as novidades que pareciam voar seguidamente da França e o mundo miúdo e pasmado do Portugal da virada para o século XIX. Não porque devote-se a romper o provincianismo ou guarde na mente algum plano ilustrado, progressista, para o Reino; nem porque, enfim, tenha aderido verdadeiramente às idéias republicanas; mas porque nada parece ser mais provocativo ou comovente para a modorra da província que as “novidades” vindas da corte ou dos centros de agitação intelectual ou mundana. No século xviii português, claro, a única capital é Paris: de lá vêm as modas, os “sistemas”, as notícias atraentes e temíveis. Daí que, por exemplo, quando Bocage quer desautorizar a ciência de algum desafeto, logo vem a denúncia de afetação franca:

Pilha aqui, pilha ali, vozeia autores,
Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e vários;
Propõe sistema, tira corolários,
E usurpa o tom de enfáticos doutores
[29]

Com efeito, no caso dos poemas anteriores, Bocage, por assim dizer, vozeia igualmente. Nem república, nem liberdade têm substância própria em seus versos: vivem do susto que dão, do frisson que acendem ou congelam. Libertino bocagiano, se algum há aqui, é relativo ao gosto da novi­dade bouleversante, do murmúrio enervante e provocador.

Ademais, o interesse de Bocage pelos temas revolucionários, que não é por convicção filosófica ou política, é-o por gosto dramático e estraté­gia retórica do chamado “pré-romantismo”. Trata-se então de produzir comoção mediante o traçado de cenas que se caracterizam tipicamente como “sublimes”, de acordo com as formulações de seu contemporâneo inglês, Edmund Burke, ou seja, que concentram poder, força e energia e fazem incidir sobre seus espectadores uma ameaça potencial.[30]

Cumpre apenas ressaltar que, quando Kant, em 1764, em seu Observações sobre o sentimento do belo e do sublime[31] — na trilha de Burke, portanto —, distingue este “sublime” (prazer misturado com horror) do “belo” clássico (sentimento plenamente agradável), assinala com clareza as diferenças entre dois “sentimentos”, que, em Bocage, apenas se excluem na aplicação imediata e concomitante, mas que são ambos recursos perfeitamente utilizáveis em situações retóricas diversas. Bocage, com efeito, é um perfeito exemplo das “dos caras del Siglo de Las Luces” , que, para o caso ibérico, vão ser estudadas, entre outros, por Guillermo Carnero.[32]

Esse mesmo raciocínio ajuda a entender por que Bocage escreve poemas encomiásticos a Napoleão, “novo redentor da Natureza”:

Era triste sinônimo do nada
A morta liberdade envolta em danos;
Mas eis que irracionais vão sendo humanos,
Graças, oh Corso excelso, à tua espada
.[33]

E igualmente ao almirante Nelson, “britano herói”, que livra a Europa do jugo napoleônico:

Cum diadema de luz no Elísio entrava
Envolto Nelson em sanguíneo manto;
Lavrou nos manes desusado espanto,
E a turba dos heróis o rodeava:
Grita Alexandre (e nele os olhos crava)
“Quem és, que entre imortais fulguras tanto?”
“Sou (lhe diz) quem remiu de vil quebranto
Europa curva, opressa, e quase escrava.”
[34]

Outra vez, é o sublime atingido pela potência heróica, energética e também ameaçadora, que ressalta Bocage: não as razões de Nelson, mari­nheiro como ele, ou as de Napoleão, este que, de um poema a outro, passa de alegoria da liberdade à da tirania. Aliás, num terceiro poema, a causa que descobre para as beligerâncias entre França e Inglaterra é mesmo ao antigo estilo analógico-providencialista da península:

Mãe de chefes heróis, de heróis soldados,
A Gália herdou de Roma o gênio, a sorte;
Seus filhos no ígneo jogo de Mavorte
Viram márcios leões tremer curvados:
Mas alta lei dos penetrais sagrados
Baixou, que o fatal ímpeto reporte;
Fervendo em raios no oceano a morte
Te obedece, ó Britânia, ao mando, aos fados:
No continente o galo é deus da guerra;
O anglo audaz sobre o pélago iracundo
Da vitória os pendões, troando, aferra:
Ah! Nutram sempre assim rancor profundo!
Um triunfa no mar, outro na terra;
Se as mãos se derem, que será do mundo!
[35]

Por tudo isso, vê-se que uma leitura imediatamente “sincera” dos poemas de Bocage é inconveniente: o termo, quando muito, pode ser utilizado referindo-se a uma determinação particular de gênero, como se vai ver mais adiante. Seus versos obedecem estritamente à lei do decoro, da aplicação ao caso das tópicas adequadas, da busca de efeitos de sentidos particulares, sem chegar à idéia de constituição de uma personalidade subjetiva única ou que tenha adesão íntima aos efeitos persuasivos que fabrica.

Enfim, para seguir Bocage até a construção de sua libertinagem verossímil é de lei que não pretendamos buscar as pistas além do genérico convencional e do temperamento da persona letrada objetiva. Que ele se arrependa aqui, do que jurou ali; que proteste fé, simultaneamente, num valor e no seu contrário; que condene o “blasfemo ateu”, “monstro horrendo”, ou que levante escrúpulos contra as tentações armadas por um Deus que anda “embelezando” vícios, tudo é parte da história fidedigna da sua poética. O baixo satírico, assim, não é mais verdadeiro ou mais sincero que o elevado árcade, e o que há de verossímil no libertino não é, de modo algum, como vimos, exclusividade do gênero mais pedestre, maledicente ou obsceno.

A simetria baixa da poesia burlesca e satírica

Admitida a sombra do libertino no lirismo alto dos poemas rococós e a ausência de aderência política de Bocage às teses ilustradas e revolucionárias referidas em seus versos — muito mais atentos ao que nelas favorecia à constituição de objetos sublimes e à obtenção de efeitos de sentido patéticos e emocionais —, cabe examinar agora a parte de sua produção que se propõe explicitamente como libertina e bandalha, vale dizer, a que se dá no domínio da poesia satírica e burlesca.

Esta repõe em registro baixo objetos que são proporcionais ou aná­logos àqueles empregados no gênero alto, produzindo geralmente um efeito imediato de simetria. Para deixar isso evidente, podemos concentrar-mo-nos no esquema clássico do exórdio, bastante rigoroso sobretudo no registro alto da épica, mas passível de adaptar-se a outras produções elevadas. Assim, por exemplo, à “proposição”, o anúncio da matéria a ser tratada, segue-se a “invocação”, a convocação das musas que devem dotar o poeta da fúria adequada ao perfeito desempenho de seu engenho e arte. Pois bem, de maneira sistemática, Bocage projeta no baixo tudo o que é distintivo do alto, produzindo um tipo de exórdio cuja captatio benevolentiae certamente conta com o reconhecimento dessa transferência imprópria. Ri-se exatamente do efeito cômico do “conceito” gerado pelo contraste do elemento baixo posto em estrita correspondência com a arquitetura retórica do gênero alto.

Assim, se a hierarquia dos deuses olímpicos dá a Jove o primeiro posto, a mesma hierarquia, reposta simetricamente para o baixo, faz com que o lugar da potência primeira seja ocupado por Priapo. Ao cetro e aos raios que Jove empunha corresponde neste, mais ou menos previsivelmente, o disforme falo tríplice que ostenta, infernal. Ao menos é pintado desse modo que surge a um dos “porri-potentes heróis” dessa épica às avessas, o “fodaz Ribeiro, preto na cara, enorme no mangalho”. O “preto priápico” sendo obviamente uma personagem tópica, como o “marido corno e impotente”, “o frade glutão e sodomita”, a “prostituta sifilítica”, o “ju­deu fingido e venal” etc. Tudo naturalmente posto em sonorosa e grandí­loqua oitava-rima camoniana:

Eis de improviso em sonhos lhe apparece
Terrifica visão, que um braço estende,
E pela grossa carne que lhe cresce
Debaixo da barriga ao negro prende:
Acorda, põe-lhe os olhos, e estremece
Como quem ao terror se curva e rende:
Com o medo que tinha, a porra ingente
Se metteu nas encolhas de repente.
Do tremendo phantasma a testa dura
Dois retorcidos cornos enfeitavam;
E debaixo da pança, a matta escura
Tres disformes caralhos occupavam:
O sujo aspecto, a feia catadura,
Os rasgados olhões iluminavam;
E na terrivel dextra o torpe espectro
Empunhava uma porra em vez de sceptro.
Ergue a voz, que as paredes abalava,
E co ‘a força do alento sybilante
Mata a pallida luz, que a um canto estava
Em plumbeo castiçal agonisante:
“Oh tu, rei dos caralhos (exclamava)
Perde o medo, que mostras no semblante:
Que quem hoje te agarra no marsapo
É de Venus o filho, o deus Priapo”.
[36]

É verdade: eis aí a forma que toma, muito embaixo, o Cupido gentil dos sonetos galantes, a mimada prole de Amor.

E a simetria dos decoros extremos, para o exórdio, não fica por aí. Se o poeta de alto coturno invoca a proteção de Apolo, que tem primazia no domínio das artes, e de seu séquito de belas ninfas nuas a banhar-se, segundo sua natureza própria, em fontes ou praias, ou a pastorear nos montes etc., o bardo da baixa não tem o favor senão das Tágides adoentadas dos bordéis mais sórdidos. E se, nos gêneros altos, o poeta apresenta a digna autoridade de sua pena e demonstra ser justiça o influxo da musa, se mostra estar movido de um fundo afeto pátrio ou de um vivo transporte amoroso, que o legitima como pregão de sua gente e de sua amada…, o poeta de gênero baixo documenta-se igualmente a caráter:

Oh! musa gallicada e fedorenta!
Tu, que ás fodas d’Apollo estás sujeita,
Anima a minha voz, pois hoje intenta
Cantar esse mangaz, que a tudo arreita:
D’esse vaso carnal que o membro aguenta,
Onde tanta langonha se aproveita,
Um chorrilho me dá, oh! musa obscena,
Que eu com rijo tezão pego na penna.
[37]

Ou, alternativamente à formidável ereção, Bocage assegura a conformidade do tom à matéria com a revelação da origem vil de sua lira, que soa com gravidade virgiliana, quando celebra, por exemplo, a bela Ana de Montaiguy, esposa do alferes francês Jacques Phillipe de Montaiguy, e amante do vice-rei da Índia:

Canto a belleza, canto a putaria
De um corpo tão gentil, como profano;
Corpo que, a ser preciso, enguliria
Pelo vaso os martellos de Vulcano:
Corpo vil, que trabalha mais n’um dia
Do que Martinho trabalhou n’um anno;
E que atura as chumbadas e pelouros
De cafres, brancos, maratás e mouros.
Vênus, a mais formosa entre as deidades,
Mais lasciva também que todas ellas:
Tu, que vinhas de Troya ás soledades
Dar a Anchises as mammas e as canellas:
Que grammaste do pae das divindades
Mais de seiscentas mil fornicadellas;
E matando um vez da crica a sede,
Foste pilhada na vulcanea rede:
Dirige a minha voz, meu canto inspira,
Que vou cantar de ti, se a Jacques canto;
Tendo um corno na mão em vez de lyra,
Para livrar-me do mortal quebranto:
Tua virtude em Manteigui respira,
Com graça, qual tu tens, motiva encanto;
E bem póde entre vós haver disputa
Sobre qual é mais bella, ou qual mais puta.
[38]

A simetria dos decoros é rigorosa, e não se detém no exórdio. Alcança, por exemplo, a pintura do caráter da amada: aquilo que no gênero alto é “tirania” ou “esquivança”, no baixo é apetite excessivo, incontinência sexual; o que, no alto, é “ingratidão” ou “mudança”, “feminil costume”, no baixo é venalidade, prostituição, crime contranatural, enfim, monstruosidade. Perfeições do corpo da amada que, na matéria alta, podem esconder (e em geral escondem) “refinado veneno em taça de ouro”, na baixa, quando existem e não são apenas ruínas e deformidades (e em geral o são), guardam marcas explícitas de cobiça e bestialidade:

Seus meigos olhos que a foder ensinam,
Té nos dedos dos pés tezões accendem;
As mammas, onde as Graças se reclinam,
Por mais alvas que os véus, os véus offendem:
As doces partes, que os desejos mimam,
Aos olhos poucas vezes se defendem;
E os Amores, de amor por ella ardendo,
As pissas pelas mãos lhe vão mettendo.
Seus cristalinos, deleitosos braços,
Sempre abertos estão, não para amantes,
Mas para aquelles só, que, nada escassos,
Cofres lhe atulham de metaes brilhantes;
As niveas plantas, quando move os passos,
Vão pizando os tezões dos circumstantes;
E quando em ledo som de amores canta,
Faz-lhe a porra o compasso co ‘a garganta.
[39]

A correspondência dos opostos nos gêneros alto e baixo é tão nítida que, interpretada substancialmente, pode ter efeito satírico. Assim é que um soneto anônimo, maldizendo as maledicências de Bocage, comenta num trecho:

Toda a moça, que d’elle se confia,
É virgem no serralho do seu peito;
Janela, que se fecha, é putaria!”
[40]

O poema ajuda a compreender também que a escolha do gênero e a de suas variantes de desempenho, longe de meramente formais, podem inscrever-se numa pragmática, demasiado humana talvez, que, para ser conhecida, teria que levar em conta os usos da poesia previstos nos limites da vida boêmia portuguesa da virada do século XVIII para o XIX. Por ora, entretanto, basta assinalar a simetria dos gêneros como índice ostensivo do sistema de decoros aplicado por Bocage.

Recapitulando, por um momento: se antes éramos obrigados a reconhecer no convencional galante um ponto de parada necessário para a ca­racterização do libertino em Bocage, já que os poemas de fatura rococó mostravam-se substancialmente picantes, de graça essencialmente erótica, agora devemos perceber que a sua obra obscena guarda determinações de gênero tão rigorosamente convencionais quanto as válidas para os poemas elevados, e, mais do que isso, supõem convenções elaboradas em rigorosa consonância ou simetria com aqueles.

Todas as afirmações mais comuns a propósito dessa obra, portanto, mostram-se insuficientes e preconceituosas: nem o alto é imaculado e retrógrado, nem o baixo é desregrado e subversivo.

Guardadas as distâncias exigidas pelos decoros retóricos, em Bocage, pode-se dizer que, em certa medida, eles se espelham mutuamente e tiram partido dessa especularidade. É o que ocorre por exemplo neste poema extraordinário a propósito de uma tópica que se poderia chamar talvez de “bela coprológica”, que já foi atribuído também a um contemporâneo mais velho de Bocage, Antonio Paulino Cabral, o abade de Jazente (1719-89):

Piolhos cria o cabello mais dourado;
Branca remella o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado:
Pella bocca do rosto mais córado
Halito sáe, ás vezes bem ascoroso;
A mais nevada mão sempre é forçoso,
Que de sua dona o cú tenha tocado:
Ao pé d’elle a melhor natura móra,
Que deitando no mez podre gordura,
Fétido mijo lança a qualquer hora:
Caga o cú mais alvo merda pura:
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti, mijo, em ti cago, oh formosura!
[41]

Variante superior àquele outro, também atribuído ao bom abade de Jazente, que começa de maneira promissora:

Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cú de tanta alvura
[42]

A expansão do tom alto à matéria baixa

Mas não só da malícia rococó ou do explícito obsceno que lhe é simétrico vive a temática libertina de Bocage. Talvez haja mesmo um terceiro gênero a ser assinalado aqui, que opera uma espécie de misto, em que a matéria do ato sexual em si, exclusiva do gênero baixo, é retomada com vocabulário e recursos retóricos próprios do gênero elevado. Poder-se-ia dizer que, com Bocage, assiste-se a um esforço extraordinariamente bem-sucedido de expandir o tom alto à matéria mais típica do burlesco. Essas tentativas são visíveis, em particular, nos poemas que poderíamos chamar mais propriamente eróticos, e que apresentam em geral tratamento epistolar, andamento narrativo e um tema que, por excelência, é o da iniciação amorosa. Em qualquer caso, já não há mais neles o vocabulário chulo ou debochado da sátira, ao contrário, tudo aí é sério e solene, por vezes até sentencioso. Certamente têm o sublime no horizonte, que testa novas fronteiras para sua aplicação através da mesma base energética e vertiginosa prevista por Burke.

Alguns aspectos são particularmente notáveis nesses poemas de gênero misto. O primeiro deles é o de constituírem-se como uma “arte de amar”, que sempre afeta um sentido pedagógico ou didático e, ao mesmo tempo, alega a sua utilidade na pragmática das conquistas. Há mesmo umas “regras amatórias para agradar às damas”, escritas à “imitação de Ovídio”, que foram atribuídas por vezes a Bocage, mas que parece mais seguro considerar como sendo de autoria de outro de seus amigos, Sebastião Xavier de Toledo, com eventuais palpites e correções suas.[43]

A cena básica da invenção desses poemas epistolares prevê um confidente ou conselheiro experiente que revela verbalmente a alguém mais jovem e “boçal” — vale dizer, analogamente, ignorante e virgem — os segredos deleitosos guardados pelo amor, que incluem ou mesmo exigem a prática sexual e a entrega aplicada às suas possibilidades de variação, no­vidade e intenso desfrute. Assim nas “Cartas de Olinda e Alzira”, a primeira delas acaba de completar quinze anos e sente vibrar no peito “uma extranha agitação”, um “novo sentimento”, uma “ardência” entranhada de que não pode “attinar a causa” ou a origem, e resolve-se a escrever à sua confidente mais velha, Alzira, “unico archivo” onde vai depositar os seus “segredos mais ocultos”:

Tres lustros conto apenas: tu tres lustros
Antes de te esposar também contavas;
Poz o consorcio a teus lamentos termo,
Limitará os meus? Ah! dize, dize
Tu, que desassocego egual soffreste,
O seu motivo, e como o apaziguaste;
Revela á tua amiga este mysterio
D’onde sinto perder o meu repouso.
Eu não exp’rimentava o que exp’rimento:
Os meus sentidos todos alterados
Uma viva emoção põe em desordem,
Cala-me activo fogo nas entranhas:
O coração no peito turbulento
Pula, bate, com ancia extranhamente:
O sangue, pelas veias abrazado
Parece que me queima as carnes todas:
A taes agitações languidez terna
Succede, que a meus olhos pranto arranca,
E o coração desassombrar parece
Do pezo da voraz melancholia.
[44]

Alzira, não apenas casada, mas ao que parece com vida sexual muito animada, responde-lhe que conhece por experiência própria a “vehemencia” dos seus males, mas que “tem tudo remedio” e o prescreverá à amiga se esta seguir-lhe “o trilho”.

Para conhecer qual seja, é preciso mencionar um segundo aspecto desses poemas de gênero misto: é que jamais deixam seguir o seu fio narrativo sem referir uma “doutrina” ou “filosofia”, que fornece os fundamentos teóricos da “arte”, sempre muito técnica e muito prática, de que se falou anteriormente. Tal é a filosofia do “amor natural”, em que o poeta, em oposição à mentalidade “fanática” e “despótica”, busca livrar a amada das superstições do castigo divino e dos horrores das penas infernais. A “triste educação” e a “política feroz” inventam-nas e divulgam por má-fé e com fim repressivo, como forma de impedir que a jovem virgem, ignorante e crédula, conheça as delícias do amor, livre da hipocrisia costu­meira dos costumes. Assim, Alzira logo demonstra a Olinda que não cabe alimentar culpa alguma por seus desassossegos:

Da inviolavel lei da Natureza
A que sujeita estás, bem como tudo,
Nascem, querida amiga, os teus transportes:
Só provém della, é ella que t’os causa;
Ella os mitigará em tempo breve,
Dando-te próvida um remedio ativo.
[45]

Apenas para afirmar a sua autoridade rude, néscios pais procuram, contra toda razão humana, reprimir o prazeroso. São os “erros da educação” que aponta em certa glosa:

Estes, Manha, estes são
Os males que o Céu nos fez;
São os erros em que crês
Os erros da educação:
Por mais que o meu coração,
E o teu desatem mil gritos,
Os hipócritas malditos,
Os que têm tartárea voz,
(Ai!) armados contra nós
Extraem de amor delitos.
Sobre a humana geração
Têm suprema autoridade,
Contra as tuas leis, Verdade,
Os erros da educação:
Some-se a luz da razão
Em preceitos infinitos;
De mortais negros peritos
Dura voz o amor condena,
Extraem fel d’açucena,
Extraem de amor delitos.[46]

Entretanto, a própria natureza, com suas leis imutáveis e universais, está impregnada dessas “benignas emoções” que o “despotismo” e o “fanatismo” teimam em chamar “flagicios” e costumam castigar acenando com penas infernais. Na célebre “Epístola a Marília”, já citada, Bocage dá a versão mais radical dessa perspectiva, em que a culpa e o inferno são tão-somente ficções políticas:

Pavorosa illusão da Eternidade,
Terror dos vivos, carcere dos mortos;
D’almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Systema da politica oppressora,
Freio, que a mão dos despotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade;
Dogma funesto, que o remorso arraigas
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas:
Dogma funesto, detestavel crença,
Que envenena delicias innocentes!
[47]

O raciocínio, francamente provocador, segue desqualificando como pura farsa o “sempiterno horror” do “horrivel quadro” até trocar as posições de réu e acusação com os juízes da Inquisição, por essa época já inteiramente subordinada ao Estado:

Não, não me assombram tuas negras côres,
Dos homens o pincel, e a mão conheço:
Trema de ouvir sacrilego ameaço
Quem d’um Deus quando quer faz um tyranno:
Trema a superstição; lagrimas, preces,
Votos, suspiros arquejando espalhe,
Coza as faces co ‘a terra, os peitos fira,
Vergonhosa piedade, inutil venia
Espere ás plantas de impostor sagrado,
Que Ora os infernos abre, Ora os ferrolha:
Que ás leis, que ás propensões da natureza
Eternas, immutaveis, necessaria,
Chama espantosos, voluntarios crimes […]
[48]

Não é necessário, entretanto, descobrir categorias decisivamente iluministas no arrazoado; embora repassado aqui e ali de algum rousseauísmo, o seu fundo é nitidamente tomista: o amor é parte da lex naturalis de que a consciência humana está impregnada, por graça divina permanente, a despeito da queda. Assim, esse amor é análogo ao racional, ao juízo orientado para uma reta eleição, e ao providencial, que dispõe a ordem inscrita na natureza em uma perspectiva histórica e finalista. Daí que, para Bocage, a questão não seja jamais negar Deus, ou mesmo confiná-lo a uma região de foro íntimo, que não tenha interferência nas práticas sociais ou mundanas, pois fazê-lo equivaleria a negar justamente a razão natural, e a deificar o Acaso:

Pois quando de negar um Deus não cessas,
De tudo o inerte Acaso autor fazendo,
No Acaso, a teu pesar, um Deus confessas!
[49]

Mas interessa-lhe sobretudo repor certa imagem branda e compreensiva da divindade, oposta tanto à crueza do tribunal quanto ao rigorismo teológico da Contra-Reforma. Nesse sentido, ao contrário do padre alfacinha das Memórias de um sargento de milícias, sob a capa de Sardanápalo, Bocage não deixa de acenar com certo franciscanismo, reposto aparentemente pela nova mentalidade religiosa portuguesa, ditada, a partir de Pombal, pelos padres do Oratório.[50] Afirma, assim, “confiança na misericórdia”, um de seus grandes topoi, não exclusivo do gênero erótico, como no seguinte soneto:

Lá quando a Tua voz deu ser ao nada,
Frágil criaste, oh Deus, a Natureza;
Quiseste que aos encantos da beleza
Amorosa paixão fosse ligada:
Às vezes em seus gostos demandada,
Nos excessos desliza-se a fraqueza;
Fingem-Te então com ímpeto, e braveza
Erguendo contra nós a dextra armada:
Oh almas sem acordo, e sem brandura,
Falsos órgãos do Eterno! Ah!… Profanai-o,
Dando-lhe condição tirana e dura!
Trovejai, que eu não tremo, e não desmaio;
Se um Deus fulmina os erros da ternura,
Uma lágrima só Lhe apaga o raio.
[51]
Na “Pavorosa…”, repõe assim a mesma tópica:
Oh Deus, não oppressor, não vingativo,
Não vibrando com a dextra o raio ardente
Contra o suave instincto que nos déste;
Não carrancudo, ríspido, arrojando
Sobre os mortaes a rigida sentença,
A punição cruél, que excede o crime.
[52]

Esse Deus “duro”, “mau”, é fruto da “peste do implacável fanatis­mo”, que, este sim, é culpado de sacrilégio e ateísmo:

Não profanes, sacrilego, não Manches
Da eterna divindade o nome augusto!
Esse, de quem te ostentas tão valido,
É Deus do teu furor, Deus do teu genio,
Deus criado por ti, Deus necessario
Aos tyrannos da terra, aos que te imitam,
E áquelles, que não crêem que Deus existe.
[53]

A Alzira “filósofa” o diz ainda em versos mais veementes, lançados provocativamente contra os hipócritas que pretendem igualar o prazer ao crime, em nome de Deus ou da religião:

Chamem-me torpe, chamem-me impudica
Taes villipendios valem o que eu góso:
Venha a rançosa, vã theologia
Crimes fingir, crear eternos fogos,
Eu desafio o Deus, que elles trovejam!…
Nos mais puros deleites embebida,
Bem os posso arrostar, posso aterra-los!
Não estremeças, não, amada Olinda;
Longe do Fanatismo a turma odiosa,
Que infames leis, infames prejuízos,
Quaes cabeças fataes d’hydra indomavel
Para o mundo assolar tem rebentado.
[54]

O argumento básico da invenção, nesse ponto, opõe a universalidade de Deus ao variável e particular dos dogmas, e assim nega a estes o estatuto de naturais e os equivale tão-somente a “ilusões” lançadas “desde a infância” na “mente inculta e frouxa”, com o propósito de aí gerar “remorsos vis”:

Não ha para os christãos um Deus differente
Do que os gentios teem, e os musulmanos:
Dogmas de bonzos são condignos filhos
Da fraude vil, da estupida ignorancia,
Da oppressora politica productos.
O que a Razão desnega, não existe:
Se existe um Deus, a Natureza o offerece:
Tudo o que é contra ella, é offendel-o.
A solida moral não necessita
De apoios vãos: seu throno assenta em bases
Que firmam a Razão, e a Natureza.
[55]

Ou, na versão da “Pavorosa…”, que igualmente acentua a substância amável do verdadeiro Deus, que repudia toda violência contra a constituição natural do homem, bem temperada de razão e paixão:

Ha Deus, mas Deus de paz, Deus de piedade,
Deus de amor, pae dos homens, não flagello.
Deus, que ás nossas paixões deu ser, deu fogo,
Que só não leva a bem o abuso d’ellas,
Porque á nossa existencia não se ajusta,
Porque inda encurta mais a curta vida:
Amor é lei do Eterno, é lei suave;
As mais são invenções, são quasi todas
Contrarias à razão, e á natureza:
Proprias ao bem d’alguns, e ao mal de muitos.
Natureza, e razão jámais différem […]
[56]

Num verso:

A bem da tyrannía está o inferno.[57]

Despotismo político, que busca ilusões para “oprimir seus iguais”; fanatismo religioso, que usa cilícios para mitigar exigências naturais do corpo; metafísica inútil, “inconsequente”, que só tem “sutilizado mil coisas extravagantes”, é tudo sacrificado de bom grado à lei da necessidade natural e racional, que não é contudo autônoma ou imune ao influxo divino. Ao contrário, a razão amorosa descobre e obriga à partilha do benéfico e prazeroso da existência gerada por Deus.

A dispositio da sinceridade

Nenhuma contradição deve haver entre o bem percebido como essência e os gostos percebidos pelos sentidos. Assentada exatamente nessa premissa, a poesia de gênero misto quer descobrir o sexo como tópica de elocução alta, e não apenas desempenhá-lo segundo o sistema simétrico, crítico, de gênero baixo. Para isso, a narrativa do ato sexual particular procura regular-se estritamente por uma dispositio bastante minuciosa, que não quer apenas referir o que está fora dela, como factualidade, mas impor-se como verossímil retórico.

E é possível aplicar-se o tom sublime à narrativa de uma penetração, sem buscar o efeito satírico da simetria? Esta é a questão fundamental colocada por esses poemas mistos, à qual o libertino bocagiano responde afirmativamente. Aliás, a partir de um determinado momento dessas narrativas epistolares, a possibilidade de descrição dos prazeres vividos ganha o estatuto de principal instrumento para superação do pejo e da ignorância que impedem a anulação da culpa produzida pelas ilusões despóticas.

Assim, quando a jovem Olinda, seguindo os conselhos de Alzira, entrega-se às delícias do amor, ainda não perfaz inteiramente sua experiência de libertação dos “dogmas funestos”. Falta entregar-se à composição “sincera”, isto é, ao relato exaustivo, que não evita ou suprime nenhum lance de sua aventura sexual — eis o sentido aqui pertinente de “sinceridade”. O despudor da confissão é condição do deleite. Isto é: tratar verbalmente do sexo experimentado, confessar, as suas mais veladas práticas íntimas, é conquistar a inocência ou a alegria de seu prazer. Enquanto Olinda não relata os transes mais diretos de sua aventura sexual, Alzira não deixa de repreendê-la:

A agradável pintura, que bosquejas,
Dos férvidos transportes, que sentiste
Entre os braços do amante afortunado,
Não é, querida Olinda, tão sincera,
Como sincera foi a que traçaste
De ignotas emoções a Amor sujeitas,
Já não te exprimes com igual candura:
Filha da reflexão nova linguagem,
Por artifício mascarada em letras,
Vejo, que annunciar-me antes procura
Apos do que se ha feito o que se pensa,
Do que por gradações d’ação o int’resse
Pouco a pouco esmiuçar, dar-me a vêr todo.
[58]

O decoro desse novo gênero misto expõe-se inteiro aqui: exige-se nele a “sinceridade” de narrar gradualmente a sequência das ações que libertaram a virgem de sua boçalidade, não natural, mas de vício de formação. A linguagem artificial e reflexiva, que procura esconder os passos da ex­periência sexual, equivale à persistência do temor que a impedia de conhecer seus prazeres e, ainda uma vez, à negação da natureza, pois esta não conhece culpa ao cumprir seu destino próprio. Alzira, nesse momento, dá à jovem tímida um verdadeiro sermão libertino, com exigência éti­ca rigorosa:

Rasga o pudico véo, com que debalde
Aos olhos de uma amiga esconder buscas
Voluptuosas traças, que transluzem
Nas tuas expressões; quando innocente
Menos recato n’ellas inculcavas,
Eu lia com prazer dentro em tua alma,
Os sentimentos, que a affectavam todos.
Tenho direito agora a exigir-te
A ingenua confissão d’esses momentos
Preludios do prazer, em que te engolphas.
Quero saber por que impensados lances
D’um amante nos braços te arrojaste;
Como o pudor fugiu, e o que sentiste
Quando abrazada em férvidos desejos
Misturados com dôr indefinivel,
De amor colheste attonita as primicias,
E provaste entre gostos e agonias
O que uma vez, não mais, pode provar-se
[59]

Enfim, as regras do jogo do gênero são claríssimas:

Tens um amante; eu sou tua amiga;
Elle te dá prazer, d’ella o confia:
Gasta os momentos, que gozar não podes,
Do goso em recordar puras delícias:
Nem todo o tempo ao amor pode ser dado.[60]

Para dizê-lo aristotelicamente, trata-se sobretudo de imitar as ações eróticas com começo, meio e fim, em elocução alta, com personagens narradas, que, inspirando simpatia no leitor, excitam simultaneamente no autor o expurgo das últimas barreiras ao gozo próprio dessas emoções sensuais. A recordação narrada à amiga da prática sexual reforça sua disposição de entrega, num circuito em que amor e amizade requerem-se mutuamente para livrarem-se das ilusões infernais e descobrirem o justo prazer natural. Libertinagem? Com protestos de justiça e naturalidade? O termo aplicado a Bocage, nesse sentido que andamos falando, poderia significar talvez a aceitação sem culpa dos prazeres condenados por costumes atrasados e tirânicos. Mas também não é isso exatamente, pois Bocage não está falando sobre os prazeres apenas, mas sobre a doutrina do gênero letrado ca­paz de comover com a elocução da matéria do prazer. É sobretudo a poe­sia que promete, por assim dizer, a passagem do estado de ignorância ou estupidez culpada para o de experiência inocente, ou ingênua, como diz.

Na lida retórica, como se viu, o gênero misto empenha-se em adaptar as tópicas sexuais baixas aos recursos da linguagem elevada, seguindo entretanto uma rigorosa sequência de ações (desde os primeiros afogueamentos até a inteira penetração) que é, em última análise, a base da “sinceridade” reclamada. Isto é, aqui, são sobretudo as exigências da disposição que impedem que o pudor esconda a prática prazerosa e que, ao mesmo tempo, excitam a curiosidade e o gosto do leitor, quando os afetos literários e sensuais já se distinguem mal. O que cabe aqui, portanto, é justamente levantar algumas hipóteses sobre como é aplicada aos poemas essa dispositio, de modo a balizar as suas partes narrativas fundamentais e assegurar a “sinceridade” ao libertino bocagiano.

Tomemos como exemplo principal a epístola escrita por Alzira, a propósito de sua noite de núpcias, para servir de modelo a uma outra, que a aprendiz Olinda deverá produzir, a fim de consumar literariamente os progressos que experimenta na arte do prazer. Assim, após o exórdio centrado em pontos de moral retirados da doutrina do amor natural, há a pintura da alcova, ponteada com as ardências e pasmos das primeiras carícias — sempre de iniciativa masculina, pois a jovem ainda se encontra perplexa graças à rude educação recebida. Retoricamente, os recursos empregados são muito próximos daqueles das cenas pastoris rococós que examinamos, com amplo emprego das analogias tradicionais galantes com o fogo:

Ficamos sós: eu timida, agitada,
Em sossobro cruel (qual branda pomba,
Que ao tiro assustador vôa e revôa,
Aqui, e ali mal pousa, se levanta
Sem guarida encontrar, que ao p’rigo a salve)
Palpitava, tremia, e de meus olhos
Corria em fio inespontaneo pranto.
Eu sentia no rosto, e em todo o corpo
Espalhar-se o rubor, que gera o sangue,
Pelo fogo, que toda me abrazava.

Não sei que meigos termos n’este tempo
Soltava Alcino; eu nada percebia;

Porém vi que a meus pés, banhado em gosto,
Chorando de prazer, supplices votos,
Ardentes expressões balbuciava:
Pelo meio do corpo com seus braços
Cingindo-me ancioso, sobre o leito
Me foi em fim lançar.

Quando eu ardia
Em chammas de pudor, o mesmo incendio
Dava a Alcino soffregos transportes![61]

O segundo momento importante a determinar-se na narrativa sincera é o do desnudamento da jovem, quando o topos clássico das graças naturais é desempenhado de maneira a contrapor-se, de um lado, com os vestidos e panejamentos, de outro, a estender-se até as partes mais veladas e íntimas, jamais expostas ao olhar masculino:

Importunos vestidos, que estorvavam
Seus inflammados beijos de tocarem
Occultos attractivos… longe arroja.
Então aos olhos seus (tu bem o sabes,
Quando outr’ora passavamos unidas
Em innocentes brincos.., feliz tempo!)
Meus peitos, cuja alvura terminavam
Preciosos rubis, patentes foram.
Ao voluptuoso tacto palpitante
Mais, e mais se arrijaram, de maneira
Que os labios não podiam comprimil-os.
Meus braços nús, meu collo, eu toda estava
Coberta de signaes de ardentes beijos.
Os leves trajos, que ainda conservava,
Em vão eu quiz suster
[62]

A terceira baliza narrativa, ainda preambular, refere já o contato genital, com os lábios ou os dedos, ainda por iniciativa masculina, mas sem tentativa de defloramento. Apenas nesse ponto principia a romper-se a pudicícia inculcada pela educação e descobre-se a vocação natural para o prazer. O recurso do discurso direto, entregue ao amante, garante a verossimilhança da inexperiência feminina:

Alzira, eu vejo em ti uma deidade!
Deixa imprimir meus osculos aonde
Entre fios subtis se esconde o nacar!…
Deixa esgotar a fonte das delicias!…
Ah! deixa-me expirar aqui de gosto!…
Não mais rubor, Alzira, não mais pejo!…

Eram brazas, que as carnes me queimavam,
Seus dedos, os seus beiços, sua lingua!
Sim; sua lingua, bem como um corisco,
Abriu rapida entrada, onde engolphadas
Todas as sensaçõs luctavam juntas[63]

A baliza seguinte da disposição, que em geral encerra o primeiro movimento da narrativa, refere o gozo de um deles ou de ambos, ainda sem penetração, mas que funciona sobretudo como anúncio ou figura das possibilidades decisivas do prazer. As imagens do fogo ainda constituem o eixo analógico principal do poema, mas combinam-se agora com as da água, em solução tópica da lírica galante:

Entre incessantes gostos doces gottas
Brotavam sobre os toques impudicos:
Mas quando, ao crebo impulso, extasiada
Cheguei ao cume do prazer celeste,
Ardente emanação de intimos membros,
Que electrisavam fogos insoffriveis,
Inundou o instrumento das delicias,
Como se ao crime seu vibrassem pena,
Ou antes dessem premio: affadigado
Na maior languidez,
quasi em delíquio,
Alcino veio ao meu unir seu rosto.
[64]

A segunda parte da narrativa inicia, especularmente, com o desnudamento masculino e a descoberta das proporções do corpo do amante, incluindo-se obrigatoriamente a do seu sexo; aí, a maneira de Bocage procura ressaltar sobretudo certo equilíbrio existente nele entre força e deli­cadeza. O ponto é importante porque esse equilíbrio inscreve, na forma natural do corpo apropriado ao deleite, tanto, pela força, o ímpeto oposto à ofensa da “frouxidão no amor” como, pela delicadeza, a recusa da volúpia brutal vulgar, desdobramento da mesma educação “errada” que, ao reprimir as artes amorosas, perde para sempre a noção de suas possibilidades infinitas de gozo.

N’um volver d’olhos se despiu Alcino,
E deu-me nú a vêr quão bem talhado
D’hombros, e lados com feições formosas
Seu corpo era gentil: válidos membros
Cobria fina pelle: era robusto,
E delicado a um tempo; esbelto, airoso,
Mediocre estatura, olhos rasgados,
Mimosas faces, rubicundos beiços,
Cheio de carnes, sem que fosse obeso,
Igual nas proporções…
[65]

O clímax da cena, centrada no gosto temeroso do olhar, é dado, como disse, pela visão nítida do sexo masculino; o recurso utilizado para evitar a grosseria e o consequente rebaixamento ao satírico é uma certa visualização geométrica do quadro, alternado sempre com sobressaltos afetivos:

Então lancei curiosa ávidas vistas
Sobre ignotas feições; fiquei pasmada
Ao vêr do sexo as distinctivas formas
Da maior extensão: dobrou meu susto
[66]
Seguem-se as primeiras tentativas de penetração; são agora as analogias bélicas, tradicionais no “campo de batalha” da poesia galante, que comandam as descrições:

[…] Mórmente quando, desviando Alcino
Meus pés unidos, entre meus joelhos
Seus joelhos cravou, e com seus dedos
Procurou dividir da estreita fenda
Pequenos fechos, sobre os quaes, de chofre,
Assestou o canhão, que me assustava.
Ao medo succedeu uma dôr viva,

Como se agudo ferro me cravasse…
Alcino impetuoso ia rompendo
A tênue fenda… Em vão, com mil gemidos
Em pranto debulhada, eu lhe pedia
Que não continuasse a atormentar-me
[67]

As tentativas iniciais, na retórica erótica, são usualmente infrutíferas: não o serem poderia romper o verossímil da virgindade ou da inexperiência dos gestos. Por outro lado, o fracasso do arremesso contribui para as­sinalar a muita impaciência do desejo que, por isso mesmo, atua de maneira inábil.

Nesse transe, porém, a narrativa produz o acontecimento decisivo, que faz às vezes de peripécia e leva a aprendiz dos prazeres a lançar-se destemidamente à batalha. No caso de Alzira, esse acontecimento decorre da “faísca” do gozo do amante, que ultrapassa o sexo invicto e chega-lhe às entranhas, numa retomada algo bizarra das tópicas humorais e dos pro­cessos alquímicos de transformação:

A violenta fricção trahiu Alcino,
E o membro, que tentava traspassar-me,
Da propria sanha aos impetos rendido,
Succumbiu, espumando horrendamente.
Da electrica materia nas entranhas
Caíram-me faiscas derretidas;

Um vulcão se ateou dentro em mim toda,
O insoffrivel ardor, que me infundiu

Liquido tiro, ao centro já chegado
Por onde apenas o expugnado forte
Da inimiga irrupção indefensavel,
Podia receber patente damno,
Taes estragos causou, que mais valêra
A entrada franquear ao sitiante.
Já dôr não conhecia: chammejava
Meu proprio sangue, com violencia tanta
Que lacerar-me as veias parecia.[68]

A química sanguínea, que reforça o mecanismo dos humores e as inclinações da natureza, despoja decididamente a jovem do incômodo pudor e atira-a ao combate, como o guerreiro tomado de fúria paradoxal, pelo calor do corpo-a-corpo e a visão do sangue dos ferimentos. Anseia, então, por perder-se:

Quisera eu já expor-me ao vivos golpes;
Quisera já no meio da carnagem
A batalha suster, ganhar a morte,
Ou a victoria, de triumphos cheia.

Tardava a meus desejos vêr completa
D’Alcino a empreza; eu mesma o provocára,
Se, em fim, refeito da ufanosa esgrima
O não visse ameaçar um novo assalto.[69]

Neste lance decisivo, é ainda a linguagem dos combates que fornece os principais ornatos da elocução, mas, mais particularmente, esta aplica ima­gens da arquitetura bélica do assalto. São elas que postulam, enfim, o êxito retumbante das operações:

Alcino sotopõe uma almofada
Para o alvo nivelar, e separando
Quanto mais pôde nítidas columnas,
O edifício tentou pôr em ruma.

Ao forte insano impulso eu respondendo,
(Ah! que o valor cedeu no transe afflicto!)
O muro se escalou!… Foi tal a força
Da agonia cruél, que esmorecendo
Semiviva fiquei: em quanto Alcino
Dobrando, e redobrando acerbos golpes,
Do reducto de amor o intimo accesso
Penetra entre meus ais e meus gemidos.[70]

Ao “bálsamo” do gozo, a última baliza da narrativa simplesmente propõe o recomeço do jogo, com Amor novamente “chamando ás armas”, para novamente bradar “Victoria!”. Diante desse relato minucioso, que gradua as ações — por isso, “sincero” – só resta à jovem confidente, como diz Alzira, desaprender a fingir e abandonar a “covardia, ignavia rude”; cabe-lhe vencer as traições da “impostura”, respirar enfim “um ar mais puro”, afastando-se da moral hipócrita da “infame turba”. Para isso, necessário ainda é tomar a pena de Alzira e empenhar-se em compor o seu próprio relato erótico. Essa obrigação e gosto da escrita não é crime igualmente na medida em que responde adequadamente aos “instinctos naturaes”:

Se é innocente a acção, a voz não pecca.[71]

Mas, enfim, a frase não é das mais libertinas: fartar-se de pecados não é mais próprio delas? Nem sequer talvez acreditar em pecados, e contentar-se com os crimes simplesmente humanos…? O “Elmano Sadino” da Nova Arcádia, o poeta do Sado de Setúbal, não tem mais que sonoridades afins aos sadistas de França. No gênero “sincero” — como, de resto, em toda sua obra a que se poderia aplicar o termo libertino Bocage crê, como se viu, no Deus da paz e da natureza. Costuma ser mais sacrílego no gênero obsceno, de que igualmente já conhecemos algumas de suas regras básicas. Mas é sobretudo provocador, nunca ateu.

De qualquer modo, no obsceno, pode dar voz à máxima brutalidade; aqui, não, quando quer conquistar para o sublime lugares vertiginosos ain­da sem nome, entregues usualmente às musas vulgares. Quando quer tornar sexo literatura de primeira e devolvê-la, literatura, ao sexo: a questão está perfeitamente clara neste último gênero ensaiado por Bocage.

Outra vez: chamaremos a isso libertinagem? Valeria a pena talvez afirmar que sim, já que em torno de Bocage construiu-se uma imagem, culturalmente irresistível, de libertinagem. Mas seria preciso entendê-la so­bretudo como vocação poética virtuosística que pode desempenhar ad­miravelmente as tópicas sexuais em todos os modos e gêneros: da graça do falsamente ingênuo até o erótico da confissão íntima, passando pelo satírico da volúpia mais grosseira.

O libertino bocagiano por aí equivale à redescoberta intensa e ener­gética das variedades da língua e de suas convenções letradas, numa so­ciedade ostensivamente monolítica, pobre de prazeres intelectuais, talvez mesmo “sem espírito”.[72] Nesse sentido, parece fantasticamente preciso o que escreve Beckford, quando vê diante de si aquele Bocage “pálido, esquisito mancebo”, a “criatura mais extravagante, mas porventura a mais sui generis que Deus ainda formou”, e o percebe como um “sol de Inver­no”, que vinha “quando menos se esperava”.[73] Um inglês há de saber re­conhecer o quanto isso vale.

Notas

[1] Nelson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 17. Agradeço a lembrança da crônica “Bocage no futebol” a Miguel Mollo.

[2] Idem, ibidem.

[3] Olavo Bilac, Últimas conferências e discursos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1927, p. 86.

[4] Idem, ibidem, p. 102.

[5] “Tratado dos ridículos”, Unicamp, Cedae-Referências, 1992, p. 33.

[6] Diferentemente de Aristóteles, que, na Poética, como é largamente sabido, postula a propriedade apenas do cômico que faz rir sem dor, os preceptistas seiscentistas vão tender a admitir que, a despeito de que “um Ânimo bem-educado e gentil não rirá de uma deformidade que cause dor ou desonra a alguém” (“Tratado dos ridículos”, p. 43), “também é claro, por experiência, que muitas vezes se ri às gargalhadas de algumas coisas muito vergonhosas ou dolorosas, acontecidas a alguém. Dificuldade bem conhecida e bem desenvolvida pelo nosso Autor na sua Ética, onde, quase problematicamente duvidando, colocou-nos essa dúvida […]” (Ibidem, p. 41).

[7] A propósito, citaria necessariamente “Bocage: sua vida e época literária”, de Teófilo Braga, republicado na introdução das suas Obras, editadas no Porto, pela Lello & Irmão, em 1968. Também não esqueceria a “Vida de Bocage”, escrita por Vitorino Nemésio para introduzir a sua seleção dos Sonetos, publicada em Lisboa, pela Clássica, em 1943.

[8] Bocage, op. cit., p. 1196.

[9] Idem, ibidem.

[10] Idem, ibidem, p. 1199.

[11] Idem, ibidem, p. 1202.

[12] John Beverley, “Poesia cortesana y festiva: literatura de homenaje”, in América Latina, palavra, literatura e cultura, vol. 1: A situação colonial, São Paulo/Campinas, Memorial/Editora da Unicamp, 1993, p. 269.

[13] Bocage, op. cit., p. 1293.

[14] Idem, ibidem.

[15] Idem, ibidem, p. 1294.

[16] Idem, ibidem, p. 1295.

[17] Idem.

[18] Idem, ibidem, p. 1297.

[19] Idem, Ibidem, p. 915. No que refere a José Agostinho de Macedo e suas ideias poéticas, em boa parte compartilhadas com o próprio Bocage e outros poetas portugueses do final do XVIII, início do XIX, descobri recentemente um livro que já tem vinte anos, que é útil para conhecê-las, ainda mais que o assunto é quase virgem em bibliografia luso-brasileira. Trata-se de As ideias estético-literárias de José Agostinho de Macedo, de Odette Penha Coelho, editado como separata da Revista de História Literária de Portugal, vol. IV, em Coimbra, pela Editora da Universidade, em 1975.

[20] Para não remontar ao Do sublime, de Longino, no primeiro século da era cristã, e a Boileau, que o traduziu no século é obrigatório referir ao menos a codificação proposta em A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful, publicado em 1757 por Edmund Burke (1729-97). O texto repercutiu decididamente nas formulações estéticas de Diderot e Kant, entre outros que se ocuparam do conceito de sublime, aí aplicado a objetos capazes de produzir simultaneamente “terror” e “deleite”.

[21] Bocage, op. cit., p. 134.

[22] Idem, ibidem, p. 138.

[23] Idem, ibidem, p. 152.

[24] Idem, ibidem, p. 202.

[25] Idem, ibidem, p. 246.

[26] Idem, ibidem, p. 439.

[27] Idem, ibidem, p. 334.

[28] Idem, ibidem, pp. 648-9.

[29] Idem, ibidem, p. 298.

[30] Cf. os comentários de Guillermo Carnero a propósito das três formas de obtenção do efeito de “sublimidade” pensadas por Edmund Burke, em seu La cara oscura del siglo de las Luces, Madri, Fundación Juan Marchi/Cátedra, 1983; ver especialmente pp. 32-3.

[31] Kant, Observations sur le sentiment du beau et du sublime, Paris, J. Vrin, 1969.

[32] Guillermo Carnero, op. cit., p. 34.

[33] Bocage, op. cit., p. 336.

[34] Idem, ibidem, p. 443.

[35] Idem, ibidem, p. 445.

[36] Cito a poesia satírica pela edição lisboeta de 1932, intitulada Parnaso bocagiano, poesias eroticas, burlescas e satyricas, dada à luz pelo Centro dos Ingênuos, sem alterar a ortografia portuguesa arcaica que essa edição reproduz. Consultei-a na Coleção Alexandre Eulalio da Biblioteca Central da Unicamp. Também obtive, graças à gentileza da amiga Ana Maria Filizola, a curiosa edição carioca da Codecri, intitulada apenas Bocage e ilustrada por Aldo Victorio Filho, de 1984. Citação às pp. 12-3 da edição portuguesa.

[37] Bocage, Parnaso bocagiano, pp. 8-9.

[38] Idem, ibidem, pp. 22-3.

[39] Idem, ibidem, p. 24.

[40] Incluído na edição citada do Parnaso bocagiano, p. 156.

[41] Idem, ibidem, pp. 172-3.

[42] Idem, ibidem, p. 170.

[43] O poema está incluído no Parnaso bocagiano, pp. 72-87.

[44] Idem, ibidem, pp. 92-3.

[45] Idem, ibidem, p. 95.

[46] Bocage, Obras, p. 1072.

[47] Bocage, Parnaso bocagiano, pp. 39-40.

[48] Idem, ibidem, p. 40.

[49] Bocage, Obras, p. 274.

[50] Cf. a propósito da influência dos religiosos de São Filipe Neri no Portugal pós-Pombal as conhecidas Lições de cultura e literatura portuguesas, segundo volume, de Hernani Cidade (Coimbra, Coimbra Editora, 1959), e o extraordinariamente bem documentado Vernei e a cultura do seu tempo, por Antonio Alberto de Andrade (Coimbra, Editora da Universidade, 1966).

[51] Bocage, op. cit., p. 383.

[52] Bocage, Parnaso bocagiano, p. 41.

[53] Idem, ibidem, p. 43.

[54] Idem, ibidem, p. 108.

[55] Idem, ibidem.

[56] Idem, ibidem, p. 44.

[57] Idem, ibidem, p. 45.

[58] Idem, ibidem, p. 106.

[59] Idem, ibidem, pp. 106-7.

[60] Idem, ibidem, p. 107.

[61] Idem, ibidem, p. 110.

[62] Idem, ibidem, p. 111.

[63] Idem, ibidem, p. 112.

[64] Idem, ibidem, pp. 112-3.

[65] Idem, ibidem, p. 113.

[66] Idem, ibidem, p. 114.

[67] Idem, ibidem, P. 114.

[68] Idem, ibidem, P. 115.

[69] Idem, ibidem, P. 116.

[70] Idem, ibidem.

[71] Idem, ibidem, P. 119.

[72] É o que pensa, por exemplo, Júlio Dantas, em seu pitoresco O amor em Portugal no século XVIII (Porto, Chardron, 1916), quando anota que a sociedade portuguesa dessa época “desconhecia os mais nobres prazeres intelectuais”, “não sabia conversar” e “nem mesmo sabia divertir-se, obscurecida, deformada durante um longo século por uma educação de cavalariça e de oratório” (p. 172).

[73] Apud Teófilo Braga, in Bocage, Obras, p. 26.

    Tags

  • arte de amar e arte de narrar
  • Beckford
  • belo e sublime
  • Bocage
  • Burke
  • confissão
  • curiosidade
  • dispositio
  • especularidade
  • fantasia
  • final do século XVIII português
  • gênero encomiástico
  • gêneros alto e baixo
  • Gracián
  • Kant
  • leis do decoro
  • libertinagem
  • lírica
  • má fama
  • Marques de Sade
  • moralismo
  • Nelson Rodrigues
  • Olavo Bilac
  • poema erótico e pedagógico
  • poesia burlesca
  • razão natural
  • retórica
  • Revolução Francesa
  • rococó
  • Rousseau
  • sátira
  • Tesauro
  • virtuosismo
  • volúpia