2007

Políticas do medo

por Adauto Novaes

No prefácio às Cartas persas, o poeta e ensaísta Paul Valéry relata que, no fundo de sua fantasia, o texto de Montesquieu nos leva menos ao sonho e mais ao pensamento, e promete divagar de maneira séria sobre ele. Valéry começa definindo a vida social como a passagem da brutalidade à ordem. Como a barbárie é a era dos fatos, diz ele, é necessário, portanto, que a era da ordem seja o império das ficções: “não existe potência capaz de fundar a ordem apenas sobre a violência dos corpos sobre os corpos”, escreve Valéry. “Forças fictícias são necessárias. A ordem exige a ação de presença de coisas ausentes; ela resulta de um equilíbrio dos instintos pelos ideais”. Em outro ensaio — “Pequena carta sobre os mitos” —Valéry pergunta:

O que seríamos nós sem o recurso daquilo que não existe? Pouca coisa. Nossos espíritos desocupados se enfraqueceriam pouco a pouco se as fábulas, as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não ocupassem nossas profundezas e nossas trevas naturais com seres e imagens sem objetos.[1]

Tais ficções são portanto obstáculos imaginários e necessários à vida do espírito com efeitos reais e essenciais à sociedade. Conclui-se, pois, que a zona de sombra criada pelo medo é parte da vida social e política. Mas, como em toda ficção, devemos descobrir no medo razões inimigas que criam novas e diversas significações. Como observa o filósofo Jacques Rancière, o medo é cúmplice da razão. Sabemos, por exemplo, desde Hobbes, que o medo é o princípio natural das sociedades, hábil e grosseiramente usado pelo poder em busca da obediência civil. Mas com Hobbes aprendemos também, como lemos no ensaio de Maria Isabel Limongi, que se pode fazer outro uso do medo e

[…] retirar dele outros efeitos que não a obediência civil fundada sobre a ignorância e o medo do invisível. O homem pode conhecer e tornar visíveis as causas próximas do medo que lhe é peculiar e, em consequência deste esforço cognitivo, instituir uma nova política, na qual ele é artificialmente racionalizado.[2]

Ou, como nos lembra ainda outro ensaísta deste livro, o historiador Marcelo Jasmin: diferentemente das interpretações tradicionais da teoria política, que opõem o medo à virtude cardeal da coragem, “em Hobbes o medo aparece como um operador positivo, criador da ordem, propulsor da civilidade”. Mas ao analisar o tema do medo em Alexis de Tocqueville, Jasmin aponta em outra direção:

Não é o medo do escravo em relação ao poder despótico do senhor, mas é o medo burguês da revolução e da alteração do usufruto regular e satisfeito de bem-estar no âmbito da vida privada. Para Tocqueville, a nova forma da necessidade da segurança intrínseca às sociedades democráticas modernas traz consigo o risco de inverter as tendências até então consideradas naturais pela tradição: o silêncio das cidades se oferece em troca da segurança; e o despotismo pode, então, florescer no Ocidente.[3]

O pensamento clássico nos ensina, portanto, que o medo é um sentimento natural, uma vez que ele é sempre a tomada de consciência de um perigo. Por ser um sentimento natural, a grande maioria tende a pensar que é uma paixão imutável. Quando o espírito e o corpo observam ou sofrem algum mal ou quando se especula sobre a origem de um perigo, a tendência é recorrer aos clássicos na esperança de encontrar neles todas as respostas. É certo que os medos podem ter pelo menos duas origens permanentes, a imaginação e a crença, que dão sentido e consistência ao próprio medo. Mas admitamos também que nada há de mais diferente e mais oscilante no tempo e no espaço que as formas do medo. Se, no passado, o medo vinha sobretudo da natureza e do sobrenatural, hoje o principal perigo para a humanidade vem do próprio homem e das incertezas produzidas pela tecnociência. O ensaio de Jean Delumeau aqui publicado procura responder às questões: Entramos em uma “nova era do medo”? De que, neste momento, temos medo acima de tudo? Passamos hoje por mutações profundas em todas as áreas da atividade humana — da economia às afetividades — as quais acabam por afetar as formas das paixões alegres e tristes, frutos de uma nova “economia psíquica” e da própria dinâmica social, como afirmam alguns pensadores contemporâneos. Apesar das mutações, as sociedades convivem com duas formas de medo: a tradição nos diz que os deuses mais temíveis jamais aparecem e que o invisível dirige nossas vidas. Assim, velhos medos — teológicos e metafísicos —, que guardam ainda algum prestígio, são feitos no silêncio da imaginação. Eles nos convidam a pensar e agir com prudência porque, ainda que invisíveis, há sempre um sujeito determinado que nos vê: Deus e sua onipresença, o tirano e seus “mil olhos”, a morte e o inferno, a condenação. São medos absolutos. A segunda forma são os pequenos medos, que antes existiam em menor intensidade, mas que hoje são anunciados a cada momento: eles nem sempre se manifestam propriamente em silêncio e segredo e muitos deles são visíveis. Convivemos com a fala e as imagens desses pequenos medos espalhados para todos e sobre tudo — como se eles estivessem presentes em cada gesto que fazemos — medos do outro, das balas perdidas, do sangue contaminado a possíveis repetições de Chernobyl ou de um 11 de setembro. O medo do outro é consciente, como nos lembra Hobbes:

Que se pergunte qual a opinião dos compatriotas quando alguém viaja armado; de seus concidadãos, quando ele põe tranca nas portas; de suas crianças e domésticos, quando fecha os cofres à chave. Não estaria assim incriminando a humanidade através de seus atos, tanto quanto o faço por minhas palavras?[4]

Nesse sentido, o medo é um denominador comum. Entre o medo originário das crenças religiosas e o medo político do poder não há hoje grande diferença, como nos lembra Max Weber na sua célebre conferência sobre “A política como vocação”:

Acontece que, na realidade, motivos extremamente poderosos, comandados pelo medo ou pela esperança, condicionam a obediência dos sujeitos — seja o medo de uma vingança das potências mágicas ou dos detentores do poder, seja a recompensa aqui na Terra ou no outro mundo.[5]

Duas espécies de medo rondam, pois, os homens da sociedade contemporânea dominada pelo materialismo vulgar: o poder e a ameaça da perda dos bens não naturais e não necessários. Assim, o medo se refugiou nas ideias de interesse e consumo e, portanto, no mais puro egoísmo. O mundo profano e o desejado declínio das superstições, decorrentes em grande parte do prestígio da razão, não aboliram o medo. Paradoxalmente, ao deixar de ser teológico apenas, o medo perdeu corpo. Ele se torna duplamente temido porque, além de imaginário, como o medo tradicional, nem mesmo tem nome. Muitas vezes não se sabe do que se tem medo. Mais: o medo é uma paixão irredutível, que jamais pode ser suprimida pela razão. É pelo menos assim que vêem os pensadores da Escola de Frankfurt. Lemos por exemplo, na abertura da Dialética do iluminismo, de Adorno e Horkheimer, que “a Aufklärung, no sentido mais amplo do pensamento em progresso, teve por meta libertar os homens do medo e torná-los soberanos. Mas a Terra, inteiramente ‘esclarecida’, resplandece sob o signo das calamidades triunfando em todos os lugares”.[6] Isso porque, “inquietude sem objeto”, muitas vezes sem nome, o medo alimenta-se de si mesmo, alimenta todas as outras paixões tristes, nasce e renasce de si mesmo. Assim, os homens, esse “sistema de desejos temperados por um sistema de temores”,[7] como escreveu o poeta Paul Valéry, são conduzidos de forma permanente por suas paixões e, no medo, tornam-se inimigos uns dos outros. A arte política consiste, pois, em saber lidar com o medo: se a política consegue nos afastar de alguns males imaginários e combater as superstições que geram servidão, já é um bom caminho, não para exorcizar o medo por inteiro como desejava o iluminismo, porque isso não é possível, mas para torná-lo menos penoso. Quando uma sociedade é governada pelo medo, sem a mediação da política, como diz Espinosa no Tratado político, deixa de ser sociedade para se tornar solidão e barbárie —”cidade de escravos”, onde os cidadãos são bons e honestos na medida em que sentem medo e se tornam tristes.

Ensaios sobre o medo busca dar conta desses diversos medos. Alguns ensaístas retomam neste livro o tema clássico da política do medo. Se para uns é, no mínimo, um contra-senso falar de “política do medo”, isto é, associar duas ideias inconciliáveis, uma vez que a política tem por vocação “dissipar as paixões tristes que são o medo e a esperança”, para outros a política, mais precisamente o poder político, desde Hobbes, concentra nela mesma e no seu exercício o mal radical, o medo máximo. O medo é o resultado da sensação permanente da fragilidade do homem (medo da morte) diante de um perigo difuso. Pode-se compreender porque Hobbes se tornou o teórico preferido de todos os partisans da política do medo, que se emancipam das regras elementares protegendo as liberdades públicas com o lema de “aterrorizar os terroristas”. Esse lema pode ser aplicado facilmente a toda a política posta em prática no Ocidente. A política de “segurança” criada pelos americanos a partir dos acontecimentos do 11 de setembro é um bom exemplo. Na era da mundialização, o medo passou a participar do espetáculo diário, nos jornais e na televisão, nas ruas de Bagdá e nas favelas do Rio de Janeiro. Passamos do “equilibrio do terror entre Estados ao desequilibrio do terror terrorista”, da Guerra Fria ao Pânico Frio, como escreveu Paul Vinho em seu livro Ville panique. Nunca o terrorismo de Estado chegou a um grau tão elevado: em nome do pânico, a hiperpotência americana alimenta um “delírio absolutamente defasado da realidade da ameaça” e cria uma nova condição trágica do mundo. O que vemos hoje é a passagem do medo, paixão que a filosofia se propunha a dissipar, penetrando em suas causas, ao terror, que rompe toda a possível mediação entre medo e razão. O terror, escreve Jacques Rancière, torna indiscerníveis da angústia de cada um os perigos do mundo. Mais: ele “institui governos protetores, onipresentes e impotentes, com uma segurança que ameaça tudo e nada”.[8] Até mesmo as definições clássicas do medo passam por revisão. Tomemos, por exemplo, a rigorosa definição de Hobbes: o medo é um sentimento que nos inspira a possibilidade real de sermos afetados por um mal real, por um mal que conhecemos pela experiência. Por mais precisa que seja essa definição e ainda que o mal seja conhecido pela experiência, o medo traz em si a incerteza, a vulnerabilidade e o desconhecido, elementos sem os quais o medo hoje não seria medo. Jacques Rancière vai além em sua análise e aponta para uma mutação em essência da própria ideia de medo quando passamos à era do terror. O terror, diz Rancière, mais do que o novo nome do medo e de seu objeto, é outra coisa:

Ele é uma nova configuração da clássica relação entre paixão e razão. O medo era para a razão uma paixão cúmplice. A filosofia propôs-se a fazê-lo desaparecer penetrando em suas causas. A política queria transformar sua irracionalidade em inteligência positiva dos perigos e dos obstáculos. O terror é a paixão que rompe essa cumplicidade, substitui o encadeamento das causas e dos efeitos pela ameaça invisível e o presente em toda parte.[9]

Ora, mais que barbárie, o que define nossa situação hoje é a ausência de um sentido para a civilização. É certo que a civilização ocidental sempre viveu em crise, guerras, momentos de barbárie (é comum ver pensadores evocarem a “crise da civilização” em meio às grandes guerras), massacres, política do medo, mas havia sempre um caminho que indicava o futuro. O que há de novo, no estado presente, é ausência de futuro. Imaginar o futuro tornou-se impossível. Sabe-se que nenhuma civilização se estabelece apenas em um presente eterno, confuso e, principalmente, cercado de um medo difuso. Assim, a crise deixa de ser apenas um “acontecimento”, mediado pela razão, para traduzir-se em advento inteiramente estranho às antigas formas de organização do pensamento e da própria história. Falar da “morte da civilização” não é novo: o tema é analisado em pelo menos três célebres textos de Paul Valéry (“A crise do espírito”, “A política do espírito, nosso soberano bem” e “O balanço da inteligência”), que constituem “prova da seriedade e da inquietude sobre o destino do Ocidente”, segundo comentário de Heidegger, para quem o declínio espiritual da Terra é tão avançado que os povos estão ameaçados de perder a derradeira força espiritual que lhes permitiria ao menos ver e estimar como tal essa decadência. O maior medo surge, portanto, da própria impossibilidade de ver a crise — o medo do obscuro — ou melhor, o medo provocado por “grandes maquinações”, que jogam o homem “para fora do ser sem o saber”.

Ora, sabemos pela experiência de vários momentos da história que toda vez que o medo foi usado como instrumento político, o primeiro e o mais terrível efeito foi o de diminuir a capacidade de autonomia do sujeito, de reduzir os homens à desnaturação; se o homem é um ser-para-a-liberdade, quando dominado politicamente pelo medo ele perde sua natureza humana, muda de natureza, caindo no estado de decadência e alienação, como escreveu Pierre Clastres em seu comentário ao Discurso da servidão voluntária, de Etienne La Boétie:

O homem desnaturado existe na decadência porque perdeu a liberdade, existe na alienação porque deve obedecer […]. Os homens obedecem não forçados e constrangidos, não sob o efeito do terror, não por medo da morte, mas voluntariamente. Obedecem porque têm vontade de obedecer, encontram-se na servidão porque a desejam. O que quer dizer isso? O homem desnaturado seria ainda um homem, porque escolhe não ser mais homem, quer dizer, um ser livre? Essa é, no entanto, a nova maneira como o homem se apresenta: desnaturado mas ainda livre, pois escolhe a alienação. Estranha síntese, impensável conjunção, inominável realidade.[10]

Medo e obediência — que sempre andam juntos — em nome do interesse constroem a tirania. Medo e obediência dão tudo ao tirano, não só a vida como a própria morte:

Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo e não tem outra coisa que não possua o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão com a vantagem que lhe dais para destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço deles? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades de onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós senão por vós?[11]

As novas aventuras da tecnociência são também tema de Ensaios sobre o medo. A partir da grande revolução tecnocientífica, novas questões estão postas em torno da ideia de medo: como observa Virilio — mais o progresso técnico se desenvolveu, mais a catástrofe tornou-se desmesurada. É nesse sentido que devemos ler as teses de Hans Jonas, filósofo alemão que escreveu O princípio responsabilidade, livro polêmico que começa e termina com uma evocação ao medo. Para Jonas, o maior problema trazido pela tecnologia hoje é o do perigo não patente para nós, essencialmente imperceptível: não se trata de uma má utilização da potência tecnológica, mas de sua boa utilização — é isso que torna o perigo cada vez mais ameaçado. Mas, à diferença dos filósofos clássicos, Hans Jonas pensa que uma ameaça real e o próprio medo podem trazer certa positividade e possibilidade de instrução. Sem nenhuma analogia às nossas experiências reais — e é isso que diferencia o livro de Jonas dos de outros pensadores do medo —, devemos criar uma espécie de “ética” da responsabilidade em relação ao futuro da humanidade. Chernobyl, por exemplo, é apenas uma pálida referência do que pode vir a acontecer com o destino — ou o fim — do homem se não se pensar seriamente no desenvolvimento desmesurado da técnica. O leitor de Ensaios sobre o medo tem no texto de Bernard Sève não apenas os fundamentos do medo que tem como origem o fato científico, mas também uma análise rigorosa daquilo que é negativo na aposta de Hans Jonas, isto é, a tentativa de fundar uma “visão do mundo a vir” sobre um grande medo apocalíptico.

A difusão da tecnologia deu ainda ao terror nova dimensão e novas armas. Até bem pouco tempo, a “política do medo” foi determinante a ponto de se falar, sem grandes interrogações, de um “equilíbrio do terror”. Hoje sabemos que, tendo em vista razões de mercado e em virtude da própria dinâmica dos objetos técnicos, o terrorismo tem fácil acesso ao que existe de mais avançado no plano tecnológico. O terror não tem condições de desenvolver uma ciência que produza armas e engenhos sofisticados, mas pode dominar a técnica e utiliza-se dela com facilidade.

Por fim, lembremos que nossa sociedade tende a transformar cada indivíduo em suspeito, criando uma paranoia coletiva e a angústia da culpa. É certo que existe uma secreta e profunda razão no medo de nossas vidas em sociedade, mas retomemos o sonho da filosofia de penetrar nas suas causas para tentar fazê-lo desaparecer. O primeiro passo consiste em desfazer-nos do próprio tipo de sociedade que cultiva o medo e o terror. Ensaios sobre o medo é parte deste projeto.

Notas

[1] Paul Valéry, Œeuvres, I (Paris: Gallimard, 1957), pp. 507-508 10

[2] Maria Isabel Limongi, Programa do Ciclo de Conferência Congresso Internacional do Medo (Rio de Janeiro: Artepensamento, 2004)

[3] Marcelo Jasmin, Programa do Ciclo de Conferências Congresso Internacional do Medo, cit.

[4] Thomas Hobbes, Leviathan (Paris: Sirey, 1983), p. 125.

[5] Max Weber, Le savant et le politique, Coleção 10/18 (Paris: UGE, 1959), p. 102.

[6] Max Horkheimer & Theodor Adorno, La dialectique de la raison (Paris: Gallimard, 1974), p. 22.

[7] Paul Valéry, Cahiers, II (Paris: Gallimard, 1974), p. 1439.

[8] Jacques Rancière, Programa do Ciclo de Conferências Congresso Internacional do Medo, cit.

[9] Ibidem.

[10] Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária (São Paulo: Brasiliense, 1982).

[11] Ibidem.