2005

Qual é a história?

por Jean-Claude Bernardet

Resumo

Trata-se do filme histórico brasileiro, gênero que até a década de 1970 só foi praticado pontualmente, voltado sobretudo para a temática portuguesa.

Ele que não só não resume as formas de intervenção estatal na produção cultural nacional, como não é característico da atuação do Ministério da Educação e Cultura na área artística, já que a Embrafilme só deu orientações temática e estética (e pouco patrocínio) a filmes que derivaram de adaptações de obras literárias. Deles, destaca-se “Anchieta, José do Brasil” de Paulo César Saraceni. Produções mais independentes foram “Independência ou morte” e “Xica da Silva”, de Carlos Diegues. Então, se a filmografia não é rica, a crítica é, e ela oscila entre o que se pode chamar de “naturalismo” e “artificialismo”, o que se explica. É a adequação do filme à verossimilhança, no que nele há de histórico. Trajes, atitudes, dicção, sotaque etc. Em resumo: o olhar do crítico é o de quem quer acreditar e, para isso, ele não pode dispensar a familiaridade com a história, ainda mais em filmes que queiram cria-las, o que requer pesquisa. Mas para isso não concorre, por parte da crítica, neutralidade. Tanto que “Como é gostoso o meu francês”, de Nelson Pereira dos Santos, é aclamado, apesar de ele incorrer em tantos anacronismos quanto os filmes oficiais. O problema é, pois, ideológico. Em que pese o juízo da classe dominante sobre a obra de ficção histórica como forma de dominação social.


O filme histórico tem sido uma vedete cinematográfica da década. Gostaria de fazer algumas reflexões a respeito, não dos filmes, mas de um mecanismo de pressão ideológica e estética. Muito se tem falado sobre a intervenção estatal e o dirigismo cultural na década, em particular no cinema. O caso do filme histórico não só não resume as formas de intervenção estatal na produção cultural, nem é tão característico da atuação do Ministério da Educação e Cultura na área artística, visto que só no tocante à adaptação de obras literárias e do filme histórico a Embrafilme deu uma orientação temática e estética à produção cinematográfica. São, portanto, exceções, mas que não ferem o sistema geral. Resta que a máquina burocrática, o sistema de financiamento e co-produção, os mecanismos de distribuição etc. têm mais poderes. No entanto, uma reflexão sobre o sistema que envolve o filme histórico pode sugerir como funciona um mecanismo de pressão acionado pela classe dominante, ou um segmento dela, no sentido de promover a produção de obras que sirvam diretamente a seus interesses ideológicos e estéticos.

A questão do filme histórico coloca-se realmente na década de 70, embora o gênero já existisse muito antes no cinema brasileiro. A diferença é que, até então, ele vinha sendo esporádica e espontaneamente praticado, enquanto nestes últimos anos ele resulta de determinadas pressões políticas e administrativas. O que, aliás, não altera necessariamente a ideologia e estética das obras.

É sabido que no Brasil o gênero histórico é quase tão antigo como o próprio cinema de ficção. Só que, nesses anos a que se convencionou chamar de “Bela Época do Cinema Brasileiro”, a temática histórica era exclusivamente portuguesa. Só a partir do surto paulista dos anos 10 é que aparecem filmes históricos de temas brasileiros. Nenhum desses filmes, com exceção de O caçador de diamantes (Vittorio Capellaro, 1933), chegou até nós. Mas os títulos, anúncios e comentários na imprensa são sugestivos. Encontramos O grito do Ipiranga ou Independência ou morte (Lambertini, 1917), Heróis brasileiros na Guerra do Paraguai (Lambertini, 1917), Tiradentes ou O mártir da liberdade (Paulo Aliano, 1917), Anchieta entre o amor e a religião (Arturo Carrari, 1931), entre outros. Os títulos indicam uma visão heróica da história, baseada em grandes feitos e grandes personagens. Como se verifica pelos nomes dos diretores, foram principalmente os cineastas italianos que se responsabilizaram pelo gênero. Pode-se fazer a hipótese de que estes imigrantes, num esforço de aculturação, estavam se voltando para uma temática nacional, assimilando e assumindo os valores considerados nobres da nacionalidade e, assim, reproduzindo uma imagem da história construída pela classe dominante.

Entre os anos 10 e 70, o cinema brasileiro não teve nenhum outro momento de intensa produção de filmes históricos, embora o gênero se manifestasse esporadicamente. E sempre dentro de um leque temático restrito, sempre baseando a história em atos e figuras “heróicas”, sempre apresentando uma história feita pela classe dominante, entrando o povo com fins ornamentais ou para provar como a classe dominante sempre foi bondosa e voltada para os interesses populares. Os temas da Inconfidência, da Independência ou do abolicionismo serviram para isto. Por exemplo, Inconfidência Mineira, de Carmem Santos (1948), ou Sinhá moça, da Vera Cruz (1953). O Cinema Novo não se voltou para a temática histórica, mas pelo menos um filme foi feito na primeira fase, cujo enfoque e estética se opunham ao que vinha até então sendo feito: Ganga Zumba, de Carlos Diegues (1963). Diegues opõe à história da classe dominante uma história de lutas populares.

A partir do governo Médici, não se deixa mais à espontaneidade dos cineastas a produção dos filmes históricos. É verdade que não era a primeira vez que o governo manifestava interesse pelo assunto. Em 1953, Getúlio Vargas solicita uma exibição especial, no Palácio do Catete, de Sinhá moça e, em diversos jornais, aparece frase atribuída a Alzira Vargas: “Finalmente, agora, já se pode assistir aos filmes nacionais” (conforme tese de Maria Rita Galvão sobre a Vera Cruz). A partir de 1970, a coisa mudou de figura: o ministro da Educação toma a iniciativa e exorta os cineastas a se voltarem para o filme histórico. Isto é fato novo, o governo manifesta explicitamente o seu desejo. E vai mais longe: o ministro sugere temas que, conforme a revista Filme Cultura, da Embrafilme, são os seguintes: FEB, CAN, Borba Gato, Anhanguera, Paes Leme, Oswaldo Cruz, Santos Dumont, Delmiro Gouveia, Duque de Caxias, Marechal Rondon. A justificativa deste último item merece citação: permitiria que se traçasse um paralelo histórico com outras nações que, ao contrário do Brasil, dizimaram os seus índios durante a campanha de conquista. As exortações ministeriais não surtem efeito: o filme histórico é dispendioso, não tem mercado assegurado. Difícil os produtores se lançarem em grandes orçamentos só para agradar ao ministro. Além disso, parece que o ministro desconfia de todo e qualquer cineasta, de forma que nem os contatos que Oswaldo Massaini, conforme suas declarações, fez em alto nível surtiram efeito: Independência ou morte não recebeu ajuda. Pronto, o filme agradou e do material publicitário consta o seguinte telegrama: “Acabo de ver o filme Independência ou morte e desejo registrar a excelente impressão que me causou PT Está de parabéns toda a equipe diretor VG atores VG produtores e técnicos pelo trabalho realizado que mostra o quanto pode fazer o cinema brasileiro inspirado nos caminhos de nossa história PT Este filme abre amplo e claro horizonte para o tratamento cinematográfico de temas que emocionam e educam comovem e informam as nossas plateias PT Adequado na interpretação VG cuidadoso na técnica VG sério na linguagem VG digno nas intenções e sobretudo muito brasileiro Independência ou morte responde à nossa confiança no cinema nacional PT Emílio G. Médici Presidente da República”. O governo encampa o filme, tomando posição ideológica e estética na matéria, ajudando a vender.

Uma segunda fase abre-se com as normas da Embrafilme de 1975. A simples exortação não basta, o governo entra na produção. Para os filmes históricos, e somente para eles, cria-se uma verba especial; a Embrafilme, que, pelos valores de 1975, participa de co-produção em até Cr$ 270.000, pode investir até Cr$ 1.500.000 num filme histórico, sendo que a sua participação será considerada como de apenas Cr$ 750.000, isto é, os outros Cr$ 750.000 são subvenção. Instala-se uma comissão a nível ministerial, cuja tarefa é receber e avaliar roteiros, e indicá-los ou não para produção; a comissão atua em dois pontos: avaliar projetos de diretores estreantes e de filmes históricos. A instituição da comissão e sua composição não deixam dúvida de que é a burocracia cultural que seleciona e promove o que lhe interessa, e rejeita o resto. A comissão reuniu-se sob a presidência de um representante do Departamento de Assuntos Culturais (DAC) do MEC, com representantes do Conselho Federal de Cultura, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Embrafilme, do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica e outras. O filme histórico torna-se cada vez mais assunto de Estado, mas, mais uma vez, os resultados não foram brilhantes para a burocracia e o tiro saiu pela culatra. Primeiro porque a comissão recebeu apenas dois projetos (contra mais de vinte na categoria diretor estreante — há quem pergunte: onde estão os novos diretores do cinema brasileiro?), aprovou um: Anchieta, José do Brasil, de Paulo César Saraceni. Mas, após uma conturbada produção, o filme não agradou: nem sucesso de público, nem de crítica, nem institucional, nem a história como se queria: a burocracia não tem como manipular este filme.

O governo não desiste: uma terceira tentativa será feita, serão dadas melhores condições econômicas, e o novo ministro da Educação afirmará que temos um bom modelo a seguir, assumindo explicitamente posição ideológica e estética: Independência ou morte, em entrevista ou press-release, é reafirmado como conveniente ao governo. Mais uma vez o governo solicita projetos, só que não pede roteiros, apenas argumentos, e os projetos escolhidos terão seus roteiros financiados pela Embrafilme (Cr$ 300.000 em 1977), após o que a Embrafilme fará nova escolha para a co-produção, cuja decisão final caberá ao ministro. Dessa vez, em função das condições econômicas, a resposta foi bem melhor: 74 argumentos encaminhados à Embrafilme. A primeira parte do mecanismo foi cumprida, a segunda está em suspenso: mudança de direção da empresa, precária situação financeira, eventual modificação na orientação ideológica do ministério.

Os resultados dessa máquina por enquanto não são nada brilhantes. Na década, apenas um filme de indiscutível repercussão cívica, Independência ou morte, que não resulta dos esforços governamentais. O filme em que o governo mais se empenhou, Anchieta, José do Brasil, é inaproveitável por ele. Outro filme de sucesso, Xíca da Silva, de Carlos Diegues (1977), nada deve em especial ao projeto governamental.

Mesmo que tivessem surgido os filmes almejados, o mecanismo, por mais que envolva dinheiro e burocracia, não tem a sua vitória assegurada. A maioria dos cineastas que mandaram projetos históricos não o fez necessariamente por simpatia pelo governo, nem por afinidades ideológicas, nem por comungar com uma visão da história, embora o simples fato de mandar projeto indique que não há incompatibilidade completa. É, para os cineastas, uma possibilidade de produzirem filmes — históricos ou não —, ainda mais podendo se beneficiar de subvenção, além de co-produção, e de ter financiamento para roteiro, o que é excepcional na história do cinema brasileiro. Se o projeto lançado pelo governo fosse sobre zoologia ou esportes, grande parte dos produtores atenderia igualmente à solicitação. E nem o fato de lançar o projeto histórico, até mesmo com dois crivos, no argumento e no roteiro, assegura que os filmes sairão conforme a expectativa governamental. Anchieta que o diga.

Deve-se dizer que o governo não toma uma atitude radical, que consistiria em assumir a produção, coisa essa que os governos brasileiros nunca fizeram, com exceção dos filmes curtos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, Agência Nacional, ARP e esporadicamente um ou outro ministério. O que diferencia este sistema de outros, por exemplo do dos governos socialistas, em que entidades cinematográficas estatais produziram e determinaram tema, estilo, enfoque da história etc. de filmes históricos. Por mais que os ministros tenham exortado os cineastas a fazer filmes históricos, por mais que tenham sugerido temas ou citado modelos, o governo nunca produziu uma definição de história nem traçou uma perspectiva ideológica precisa a que os filmes teriam que obedecer. Isto, oficialmente. Porque esta situação está de fato grávida de subentendidos. Tanto sabe o governo que ele não está pedindo qualquer coisa, como sabem os cineastas que não terão qualquer projeto aceito. Mas não é indiferente que as determinações não se explicitem, que muitas “transas” fiquem nos bastidores, podendo chegar ao ponto de funcionários do MEC telefonarem a produtores questionando a veracidade histórica de tal ou qual sequência. Mas o fato de o governo não assumir diretamente a produção nem oficializar suas expectativas dá ao sistema uma margem de elasticidade em que tanto o governo como os cineastas defendem os seus interesses. Essa forma de procedimento não é evidentemente um grande risco para o governo. A elasticidade tem cartas marcadas, visto que o diálogo não se dá de igual para igual. O governo sabe que os cineastas precisam fazer filmes e implicitamente, na média, acabaram respeitando as determinações. Para qualquer excesso, o mecanismo cinematográfico dispõe de controles e o governo, de meios de repressão. E também porque, em matéria de filmes históricos, o governo não está pedindo nada demais. Tudo o que ele pede já se encontra no corpo social, e em particular no meio cinematográfico. A concepção heroica e pomposa da história, os grandes vultos, a história pacífica é o que se encontra na maior parte do filmes históricos brasileiros, independentemente de qualquer pressão governamental. Basta lembrar que muitos dos temas tratados nesta década já tinham sido espontaneamente abordados pelo cinema; que todos os temas dos filmes anteriores ao Cinema Novo que citei acima voltaram na década de 70, inclusive a Guerra do Paraguai, que não foi objeto de filmes mas de diversas propostas encaminhadas à Embrafilme. (Não só os temas, como o enfoque histórico e estético.) Respeitadas a evolução técnica e as modas, não há provavelmente grande diferença entre o Mártir da liberdade, de Aliano (1917), e O mártir da Independência, de Vietri (1977). “… um grande luxo de encenação… O autor (do filme) fez muito bem em não subordinar absolutamente a sua elaboração ao fato histórico. Deste aproveitou a feição acentuadamente característica, entremeando-a de episódios românticos… o juramento de D. Pedro na colina do Ipiranga. O espectador fica contente em passear os olhos por uma paisagem do seu velho conhecimento: a cavalaria a um lado, de espada erguida, o carro de bois caipira suspenso ante o insólito espetáculo…” Estas frases não seriam descabidas se aplicadas ao Independência ou morte de 1972, mas referem-se a O grito do Ipiranga de 1917. Não se pode dizer que os governos da década de 70 tenham procurado inovar na matéria, nem criar, nem impor alguma coisa que já não estivesse aí. Procuraram é sustentar, dar melhores meios de expressão e divulgação a esta visão da história que já estava aí, incentivá-la, privilegiá-la em relação a outras. Ao reforçar o filme histórico, ao reforçar determinada abordagem da história, mesmo que subentendidamente, o governo, com pressão moderada, exerce um autêntico dirigismo cultural, porque reforça uma tendência e este reforço entrava outras possibilidades.

A FORMULAÇÃO DA ESTÉTICA

O governo não formula a visão da história e a estética do filme histórico, mas uma parte do corpo social encarrega-se dessa tarefa: é a crítica. Se examinarmos grande parte das críticas jornalísticas referentes a filmes históricos, verificaremos que os críticos não costumam formular explicitamente as suas posições ideológicas e estéticas, mas estas podem ser deduzidas com facilidade dos textos, elas vêm à tona. Chamarei de “naturalismo” o princípio básico que perpassa pela maior parte das críticas e sustenta os juízos sobre os filmes. Encontram-se formulações do tipo: “Os atores se sentem tão à vontade nas roupas de época quanto um escafandrista na passarela do viaduto” — “Não evitou o que acontece em quase todo filme histórico-lendário: que os atores, influenciados pelo traje inusitado… tomassem atitudes intencionalmente solenes, que, na prática, roçam pelo ridículo e ficassem encabulados pela exigência de fingir pertencer a um tempo diverso” — “… as coisas soam falso. Tudo é artificial” — “O filme sofre de um mal crônico…: falta de credibilidade. Tudo soa falso, parece artificial…” — “… esforço em compor uma Iracema com o mínimo de credibilidade.., o desprazer de mais uma vez constatar que a caracterização de atores e atrizes nacionais, principalmente quando têm de fazer papéis de índios, é uma aberração em falsidade” — “… uma assombrosa sucessão de desacertos sem um único momento de verossimilhança” — “Falhas marcantes acontecem na dicção e no sotaque dos aventureiros portugueses… começam a falar com sotaque luso, mas logo em seguida descambam para o carioquês corrente” — “figurantes que volta e meia desviam o olhar para a câmara… Petroleiro no tempo de Anchieta?… Algo que parece realmente ser um desses grandes barcos transportadores de combustível” — “os atores dentro (das roupas) têm sempre o ar de bonecos de cera guardados num museu”. O que desaprovam estas frases ao comentar figurinos e atores, ou um petroleiro que se veria no fundo de um plano geral de um filme ambientado no século XVI? Reclamam que o que é julgado defeito deixa perceber que se trata de um filme, revela que se trata de uma composição, queixam-se de que tais “defeitos” não permitem ao espectador aceitar estas imagens como se fossem a própria história. O crítico pretende poder acreditar nas imagens, que elas lhe dêem a impressão de que estaria vendo verdadeiramente um verdadeiro momento da história. Ele quer acreditar. Ele quer que o filme lhe possibilite uma relação de familiaridade com a história, ainda mais em filmes que querem criar esta familiaridade. O que perturba essa relação — a história como se eu a estivesse vendo — é defeito.

Mas essa relação não pode ser gratuita, ela tem que estar enraizada solidamente em alguma coisa séria, senão ela não passaria de um jogo, não seria uma verdade. O que autentifica a impressão de familiaridade e verdade só pode ser a ciência. Portanto, o naturalismo requerido apóia-se na pesquisa. “Um certo cuidado na recriação dos usos e costumes indígenas, em grande parte referenciados pelo próprio Alencar, mas também resultando de pesquisas mais recentes” — “Ótima também a reconstituição da vida indígena, feita através de cuidadosas pesquisas e consulta a antropólogos” — Pesquisa “com investida inclusive a bibliotecas italianas” — “E a produção pesquisou para que as reconstituições se aproximassem o máximo possível do espírito da época” — “As famílias mais tradicionais da região estão emprestando móveis da época, objetos antigos, jóias de família para reconstituir os ambientes do século XVIII” — “Cuidado na procura de lugares que servissem de autêntico pano de fundo. Até a cena do grito imita o quadro de Pedro Américo, e é igual o número de pessoas — trezentas — colocadas numa e noutro” — “Uma série de pesquisas para que o filme tivesse a autenticidade desejada” — “O Instituto do Patrimônio Histórico está remodelando a Casa de Xica da Silva para as filmagens”. A pesquisa histórica possibilita a reconstituição (palavra por demais usada no vocabulário crítico) e a reconstituição “autêntica” possibilita a impressão de naturalismo.

A respeito de Como era gostoso o meu francês, lemos: “Uma produção meticulosamente cuidada… que fez os artistas falarem em tupi, português e francês”. Ora, qual o conhecimento do crítico que lhe permita avaliar o cuidado meticuloso a respeito das línguas faladas no filme? É especialista em linguística? Pouco provável. Eu achei o francês bastante mal falado, provavelmente incorreto em se tratando do século XVI. Nelson Pereira dos Santos não esconde que o tupi falado no filme é altamente problemático (a palavra “fajuto” foi usada por ele mesmo a esse respeito), visto que a gramática não foi inteiramente reconstituída. De forma que se pode afirmar tranquilamente que a exigência de pesquisa não se reveste de caráter científico, mas é simplesmente um índice ideológico. Uma impressão de cientificidade para legitimar o naturalismo. Não é à toa que este princípio ideológico é expressamente formulado nas normas da Embrafilme: “cujos roteiros sejam apoiados em pesquisas criteriosamente elaboradas”.

A esse complexo naturalismo/pesquisa associa-se, não raro, a ideia de nobreza. A história é nobre, pelo menos os temas e figuras escolhidos para assuntos de filmes. “Em seu sesquicentenário de nascimento, José de Alencar não merecia um filme como este. Não é uma homenagem ao escritor” — Anchieta “é apresentado muito mais como um ingênuo missionário.., do que como um verdadeiro apóstolo” — A posição é oposta, mas o conceito é o mesmo: “Ney (Latorraca) consegue emprestar ao personagem de Anchieta uma surpreendente dignidade” — “Não se preocupou em mostrar aspectos novos dessa figura extraordinária, dessa personalidade forte e marcante que foi certamente D. Pedro de Alcântara”. Essa nobreza vai longe: quem pecado tiver, digno não estará do filme histórico, ou pelo menos de certos papéis: a história poderia ficar maculada. De Helena Ramos, atriz paulista conhecida por ter trabalhado em pornochanchadas, diz-se: “H.R. é o tipo vistoso. Uma ‘boa’ mulher, por que não? Naturalmente uma boa moça. Mas… a atriz está como que maculada pela aparição em tantas pornochanchada” — Coimbra “é o único culpado por entregar a uma atriz de pornochanchada o papel da virgem” — “… acabou escolhendo uma veterana de mais de vinte filmes da Boca do Lixo, H.R., uma atriz até bonita (e com belo corpo) mas muito distante da inocência…” — “a gritante inadequação de H.R. (intérprete de pelo menos uma dezena de pornochanchadas e pornoaventuras) ao papel-título”. Tudo isto a pretexto de que o personagem interpretado por Helena Ramos é uma virgem. Medieval!

Essa nobreza relaciona-se com a nobreza do próprio cinema, entendida aí como superprodução. Massaini realiza Independência ou morte para festejar um quarto de século de atividades cinematográficas. E naturalmente ligam-se os grandes vultos da história aos grandes vultos do espetáculo. É uma velha história, já se conjugava grandeza cinematográfica com grandeza histórica em 1917. A publicidade de Tiradentes anuncia: “A indústria nacional de fitas cinematográficas tem tomado um grande impulso ultimamente… acaba de aparecer a empresa Aliano Filme, com um trabalho histórico… Esse filme, que reproduz com muita felicidade uma das páginas mais belas da história pátria, é de uma grande concepção (entenda-se: grande produção) artística…” E, como a grandeza cinematográfica é uma mercadoria, ela não existe sem dinheiro. “Procurou reproduzir com grande empenho (na medida dos recursos materiais disponíveis) o Brasil quinhentista… Em termos de cinema brasileiro, estamos ante uma superprodução. Em princípio, pela importância do tema, mereceria até orçamento maior” — “poucas vezes, dentro do cinema nacional, encontrei alguma coisa tão supérflua, exceção lógica às costumeiras banalidades das realizações pobres. Não se admite numa obra que recebeu o carimbo da Embrafilme e, inclusive, um gordo financiamento do Banco do Estado de São Paulo um tamanho rolo de descuidos…” Estas frases são explícitas o suficiente.

Por que essa busca do naturalismo? Chegando a se criticar pelas falhas do naturalismo, da reconstituição, da reprodução um filme como Anchieta, José do Brasil, rompido com o naturalismo e afastado de qualquer intenção de reconstituição. Ou elogiando esse mesmo filme pelas qualidades da reconstituição: “Ótima também a reconstituição da vida indígena, feita através de cuidadosa pesquisa”, quando a vida indígena do filme nada tem a ver com reconstituição, tendo Sarraceni entregue papéis de índios a brancos e pretos. E que uma complexa questão está em jogo. O naturalismo — no sentido em que estou usando a palavra — dá uma impressão de veracidade, de autenticidade, e elimina, ou deve eliminar, as marcas do trabalho, as marcas da fala. Não se deve perceber que alguém fez o filme, que o filme é um trabalho sobre a história, que é uma interpretação, que poderia haver outras. Se pode haver outras interpretações, a que está na tela não é necessariamente a verdadeira, ou as outras podem ser igualmente verdadeiras. É necessário eliminar essa dúvida para que não se questione a verdade da tela. E essa verdade é indispensável à ideologia dominante, pois, para dominar, ela não pode apresentar-se nem como ideologia, nem como uma visão da história entre outras. A luta estética pelo naturalismo é uma luta ideológica; a estética não pode abrir brecha na interpretação dominante, sob pena de ameaçá-la como verdade. E é somente enquanto ela se apresenta como verdade inconteste e sem falha que ela pode ser transmitida e aceita como a verdade, como a História. A História é assim. O trunfo não é pequeno. Para a dominação ideológica é indispensável dominar a história, já que a história é sempre uma interpretação do presente. Impor uma visão da história é impor uma maneira de a sociedade se pensar no presente. Por isso é um campo de intensa luta ideológica. Por isso o mecanismo crítico que delineei acima fecha-se com esta outra posição: “um filme digno, muito bonito, além de informativo” — Anchieta, José do Brasil, “tão importante, ‘como projeto’, para a informação do público” — “E, se o que se sabe sobre o padre (Anchieta) é pouco, fica-se sabendo ainda menos através do filme” — “… vai divulgar a nossa história…” — “filme bem cuidado e bem produzido, destinado a penetrar em todas as camadas populares” — “uma divertida e movimentada aula de História do Brasil” — “É feito para a massa ignorante e está um filme bonito. Os erros não são apreciáveis pela maioria” — “o filme de Nelson Pereira dos Santos é interessante apenas como uma aula de história ilustrada com slides” (grifos meus). A Embrafilme é consciente dessa função do filme histórico: divertida aula de história para as massas, e a primeira afirmação das normas de 1975: “A co-produção de filmes históricos pela Embrafilme visa a incentivar a realização de películas que concorram para a ampla divulgação dos temas da História do Brasil.” Ao lutar ferrenhamente para a afirmação naturalista, valorizar ou desvalorizar obras em função de sua “verdade” e de sua “credibilidade”, esta crítica se insere no sistema de confirmação e reprodução da ideologia dominante. É de se notar que Anchieta, José do Brasil provocou ira em críticos, numa intensidade que, a meu ver, vai além dos “defeitos” apontados; estes mesmos críticos podem apontar “deficiências” em Iracema, e rejeitar o filme, decepcionados, porém sem ira. É que, para eles, Iracema é um filme ruim, porém dentro da estética que eles defendem. Anchieta fere esta estética. E mais uma vez nada de novo. A classe dominante sempre viu a obra de ficção histórica como forma de dominação. Escrevia, em estudo sobre o romance brasileiro, A.F. Dutra e Mello: “E contudo o romance histórico pode achar voga entre nós; tem uma atualidade que não se deve desprezar… pode tornar-se de envolta moralizadora e poética…” (1844 — citado por T. Pires Vara em A cicatriz de origem) (grifos do autor).

* * *

Este texto é injusto com os críticos, pois há evidentemente um achatamento das posições individuais, e porque trabalhei com uma média. Alguns, poucos, críticos e pessoas ligadas a outras áreas que escrevem esporadicamente sobre cinema estão conscientes da manipulação da história, não trabalham com o conceito de reconstituição, não limitam a história a uma questão de fatos e figurinos, não tomam a verossimilhança por verdade, situam a história e o trabalho estético feito sobre ela numa luta ideológica. Mas estes trabalhos são raros em jornais, revestem-se de um caráter ensaístico. Trabalhei sobre uma média da crítica jornalística cotidiana, principalmente a produzida em São Paulo e no Rio de Janeiro. (Este texto recebeu a colaboração de Martino Sbragia).

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