2005

Quem faz teatro

por Mariângela Alves de Lima

Resumo

Em 1979, durante a apresentação de A vaca surrealista, dois espectadores invadem o palco e desabam no meio dele. Ficam prostrados até quase o final da peça, atravancando a movimentação dos atores. Enfim, levantam e reproduzem a seguinte fala: “Pois bem, não sabemos recitar, representar, cantar, desenhar, escrever, dançar, ensinar lições angustiantes ou reconfortantes. Nada faremos por ou para vocês: desistam. Queremos apenas quebrar as paredes que envolvem as janelas!”. Eis um trecho do manifesto do grupo teatral Viajou sem passaporte, que, exposto a reações de todo tipo, age com um número mínimo de participantes. Com que objetivo? O de – numa época de repressão – transformar a vontade de ação numa ação consequente. E nisso, ou seja, em sua recusa, sobretudo de projetar um modelo artístico, ele se filia a uma série de movimentos musicais, literários etc. da época.

Fato é que, na década de 1970, são muitos os movimentos teatrais que buscam reunir artistas para os quais atuar é mais importante do que estabelecer o que fazer para responder às exigências sociais. Isso decorre do desejo de coletividade, socialmente reprimido, sobretudo no contexto do modo de produção do país.

Certo que qualquer empresa teatral é necessariamente coletiva. A questão é, portanto, outra: em seu devido contexto, a da reprodução do sistema produtivo predominante na sociedade a que ela pertence. No caso, a capitalista. Assim, o que se verifica é que, nem que seja por vias tortuosas, a empresa teatral participa da natureza de qualquer núcleo produtor – de sapatos, enlatados ou o que seja. Há, pois, o dono do capital, o assalariado e o intermediário, que se encarrega de difundir o produto no mercado. Entre outras, eis, para o bem, uma das dificuldades da implantação de uma espécie de lógica produtiva no âmbito teatral: não há bom resultado quando se trabalha com atores que produzem cordões de sapato sem saber que se destinam a sapatos. Ou seja: em teatro, não há trabalho alienado, uma vez que isso contraria sua própria natureza, anômala se comparada à organização política e econômica do país. O que há, enfim, é a predominância da coletividade sobre a finalidade ou da distribuição sobre a destinação do lucro ao dono do capital. E isso apesar de, analiticamente, insistir-se na ideia de empresa como face capitalista do teatro. Ela que visaria, sim, o lucro, alienaria o trabalhador, satisfaria apenas a vontade do público consumidor e, com ele, do poder que determina os rumos políticos do país. Ora, se assim fosse, o teatro seria necessariamente retrógrado.

É o Viajou sem passaporteque mais uma vez subverte, ao declarar, ainda em seu manifesto, que: “Não há correntes de opinião! Não há propostas globalizantes! Não há debate ou polarização! Há sim uma variedade infinita de manifestações de ganância travestidas de saídaspara aarte brasileira, cuja profundidade dura o tempo exato da temporada do filme, show ou peça em questão. Auferida a bilheteria, encerra-se o debate…”.

Se a bilheteria é primordial, não é menos primordial a criação de uma obra que sobreviva ao consumo imediato. E é nisso que se destacam não só o Viajou, como também Os comediantes, o Teatro Brasileiro de Comédia, o Arena, o Oficina etc., mesmo que empresas. Como? Ao criar segundo referências que não se submetam às exigências mercadológicas, mas às artísticas, pois é assim que peças teatrais tornam-se mais do que meros espetáculos. Mais: contrapõem-se a aspectos exteriores a ele. Daí, as criações coletivas, em que os intérpretes exercem as funções de que realmente estão investidos, sobretudo as de interpretar o mundo artisticamente e de empregar, nos palcos, suas experiências e histórias. Estas que, a partir de 1968, correspondem cada vez mais aos anseios de setores sociais que se opõem às imposições de um governo para o qual duas pessoas reunidas implicam conspiração e três revolta. Eis como se esfacelavam os canais informativos: ao assumir como legítimas somente as demandas de uma minoria da população, associada ao Estado. Não por acaso é na década de 1970 que surgem a Confenata, a cooperativa de teatro e cinema e a associação de produtores, todas reguladas por um esquema tradicional de empenho de capital e contratação assalariada. É protegidos por elas que artistas de toda ordem, desinformados quanto ao mercado e inseguros de falar em seus próprios nomes, tentam não só organizar uma frente ideológica de resistência como viabilizar a produção e comercialização de suas obras.

Exemplo disso deu a peça Hoje é dia de Rock, de José Vicente, que foi encenada no Teatro Ipanema, nos anos 1971/2 (sob o governo Médici, portanto). Ela que não só cumpriu a utopia da criação coletiva, em que os atores e máscaras confundem-se, como integrou palco e público numa espécie de cerimônia hedonista. Tanto que um número expressivo de espectadores foi assisti-la 20, 30 vezes, e, em pouco tempo, ela foi investida de uma espécie de aura, para usar a palavra que mais se aproxima do sentimento inefável a que se referem seus participantes.

Onde estava a ligação desse espetáculo com a história que lhe era contemporânea, com a desagregação que levou tantos espectadores (algo em torno de 600 por apresentação) a procurar o ninho do grupo? Aparentemente em lugar nenhum, e esse é o xda questão. Não era preciso nominar, apontar, aclarar as analogias. O simbolismo das personagens e o fato de que elas caminhavam bastavam para englobar tudo, para canalizar para dentro da encenação a história pessoal de cada espectador presente. O contorno amplo do espetáculo comportava muitas ideias, muitos sentimentos, mas principalmente dava o desenho de um movimento interior que, independentemente da sua validade, estava acontecendo. Os espectadores investigavam seu espaço interior.

Mas não foi só.

Os teatros de Arena, em São Paulo e Porto Alegre, os Centros Populares de Cultura, no Rio de Janeiro e nas capitais do Nordeste, atingiram efeitos similares, pois mais do que grupos de artistas que, através de vertentes ideológicas, procuraram oferecer produções coerentes e de boa qualidade, eles também tentaram estabelecer com os mais diversos públicos diálogos que permitiram chegar a acordos éticos, estéticos, políticos etc. Mais do que contribuições para a linguagem teatral, tais companhias destacaram-se por transformar os modos de produção no interior delas mesmas, o que, como costuma acontecer com as utopias, durou pouco.

Os papéis foram, então, definindo-se. Diretor, ator, cenógrafo, iluminador – todos, em seus devidos lugares, foram se encaminhando para novas empresas teatrais ou canais televisivos.

Duas concepções artísticas radicalmente diferentes sucederam-se. De um lado, o modelo empresarial, que, sobretudo na região Sudeste, produziu um teatro facilmente assimilado pelo Estado; de outro, o amador, que respondia por cerca de 80% das peças encenadas no país, espalhadas pelas regiões Sul, Norte e Nordeste. Neste caso, foi fundamental a oficina de teatro, orientada por Joana Lopes, com o objetivo de instruir seus participantes sobre suas capacidades criativas em qualquer área da expressão humana. O teatro passava a não mais precisar, necessariamente, de diretor, texto, cortina etc. A novidade circulou e reinstaurou a solidariedade, tão necessária. Havia um dilema prático, contudo. Era a sobrecarga de funções atribuídas a todos os envolvidos, que, no caso dos atores, não só ensaiavam, como precisavam costurar, pintar, divulgar etc. No mais, não havia como uma produção que seguisse tais moldes competir com o produto empresarial.

De todo modo, a expressividade, no caso da peça amadora, muitas vezes compensava o acabamento formal precário, sobretudo quando o ator construía em cena, a partir de sua experiência vital, os signos representativos. Tudo era, então, inaugural e visceral, assim como acontecia, por exemplo, com a representação de Triste fim de Policarpo Quaresmapela companhia Jaz-o-coração, que pouco mantinha relação com o romance de Lima Barreto. E isso não se restringia ao ator ou ao argumento; afinal, em termos materiais – panos, cadeiras, caixas de papelão, papel crepom, velas, objetos confeccionados a partir de latas etc. – cabe lembrar que muitos são os objetos num só objeto, e a finalidade do teatro é revelá-los, mudando sua significação através da imaginação ativa. Exemplo máximo disso deu a célebre encenação de Trate-me, leão, para qual, como cenário, bastava uma esquina ao entardecer.

Enfim, o teatro que vem sobrevivendo à Idade das Trevas é o que descobriu que, para que haja um novo produto, é preciso que haja também um novo modo de produção.


Na primeira semana de agosto de 1979, um espetáculo que se apresentava no Teatro Eugênio Kusnet serviu como campo de experiência para um grupo de ação cultural paulista. Como a ação cultural no caso é realmente uma prática, vale a pena descrevê-la:

A certa altura de A vaca surrealista, quando há dois atores em cena, dois espectadores se deslocam do espaço reservado ao público e desabam subitamente no meio do pequeno palco em arena. Ficam inertes, prostrados, atravancando a movimentação prevista do espetáculo. Ao mesmo tempo outro espectador avança em direção ao centro da cena e ocupa uma cadeira do cenário destinada à representação de um bar.

Visivelmente abalados com a interferência imprevista, os atores reagem como podem e sabem: a atriz tentando dar continuidade às suas falas, preservando uma tradição imemorial que faz com que a representação sobreviva mesmo que o circo pegue fogo. O ator, mais atento aos seus próprios instintos, reage com um copo de água lançado em cheio sobre o seu repentino companheiro de cena. E o público? Inquieto, sussurrante, com a sensação de que não era isso exatamente o combinado. Mas, de qualquer forma, pagando para ver. E, nesse sentido, cumprindo também a sua tradição imemorial de passivo usufruto de um espetáculo.

Esse último grupo que aparece em São Paulo, interferindo concretamente no espetáculo, é o afunilamento de uma onda de agrupamentos e desagregações que constitui talvez a nota mais característica das formas de associação do artista de teatro nesta década. Associações que se constituem tendo como base postulados ideológicos, novos modos de produção econômica ou que, simplesmente, são tentativas de unir qualquer coisa com o objetivo de fazer qualquer coisa. Dentro de uma configuração política e social que concentra em poucas mãos o poder e a riqueza, o artista de teatro tenta, com a maior boa vontade, opor a esse “salve-se quem puder” um projeto coletivo. Ser coletivo nessas circunstâncias é uma condição primeira e imperiosa. Pode-se começar a ilustração pelo fim, ou seja, pelo grupo Viajou sem Passaporte. Esses amáveis invasores da seara alheia, que ousam romper a polidez da convenção teatral interferindo e desarticulando um espetáculo, são, a seu modo, a sublimação dessa vontade de agrupar-se. Por que estão juntos?

Pois bem,

não sabemos recitar, representar, cantar, desenhar, escrever, dançar

não sabemos ensinar lições angustiantes ou reconfortantes

nada faremos por ou para vocês: desistam.[1]

Alentadoramente o texto encerra-se com uma afirmativa, depois de caracterizar-se amplamente pelas exclusões: “Queremos apenas quebrar as paredes que envolvem as janelas!” E esse ponto de exclamação garante que, apesar de tudo e graças a Descartes, trata-se de um manifesto. Manifesto é uma coisa que a gente sabe o que é: os surrealistas já fizeram, os dadaístas já fizeram e a antropofagia ofereceu um belo espécime, tanto que o manifesto já pode ser considerado um gênero literário sedimentado. Quem manifesta declara, quem declara debate e a conversa pode continuar. A despeito do eventual mutismo de um dos interlocutores.

O fato é que esse grupo se forma porque quer e faz alguma coisa. Arrisca-se a impropérios e aguaceiros porque pratica a sua negação dos modelos culturais vigentes. Tem uma coesão interna que lhe permite atuar com uma representação de base, por mais ínfima que seja a constituição numérica dessa base. Ainda que pareça insólita, a sua poética é um compromisso público de transformar a vontade de agir numa ação consequente. E nisso, como na sua recusa em delinear uma arte para o futuro, o Viajou sem Passaporte é parente próximo de muitos grupos de teatro, música, literatura e artes plásticas que se formaram nesta década. Reunir pessoas, conseguir alguma forma de atuação, parece mais importante do que definir, de uma forma clara e indiscutível, o que se quer fazer para responder às exigências do tempo e do espaço.

Observando com atenção as declarações programáticas dos grupos de teatro que se organizaram nos últimos dez anos, é fácil encontrar muitos pontos comuns. O desejo de ser coletivo, de produzir uma arte que não seja apenas expressão individual, nasce de uma oposição explícita da história do país a esse modo de convivência e trabalho. Antes de corresponder a um ideário artístico, o grupo responde a uma desarticulação real da sociedade, prevista inclusive no modo de produção predominante nessa sociedade. Se os homens de teatro se agrupam é porque há um inimigo externo que obriga a invenção de estratégias de associação.

Está certo que o teatro é uma obra coletiva. Só isso bastaria para justificar a formação de um grupo que produz uma única obra. Mas há outro fator a ser considerado. Repetidamente a história mostra que o modo de produção de uma arte adapta-se, por tortuosos caminhos, ao modo de produção predominante na sociedade em que essa arte é produzida. No caso do teatro, que é por natureza uma arte produzida por várias pessoas, a empresa teatral funcionou durante muito tempo como uma organização intermediária, que adapta esse produto coletivo às exigências do modelo econômico capitalista. No caso do teatro, a empresa participa da natureza de qualquer núcleo de produção que trabalhe com produtos essencialmente diferentes, como sapatos ou enlatados. Uma empresa teatral precisa do dono do capital, de assalariados e de intermediários que se encarregam de veicular o produto no mercado.

O fato de que um espetáculo só vive se contar com a participação consciente e interessada de todos os que o realizam é certamente um ponto de eterno conflito dentro dessa organização empresarial.

Entre outras razões, é essa uma das dificuldades de implantação de uma empresa em estado puro na produção teatral. É muito difícil conseguir um bom resultado com atores trabalhando em linha de montagem, colocando apenas um cordão num sapato cuja forma final ignoram. Para si mesmo, como unidade dentro de um todo que o contraria, o grupo significa uma tentativa de eliminar do interior da criação teatral a divisão social do trabalho. É uma entidade ideal, célula anômala no tecido político e econômico do país, que representa para o artista de teatro uma estratégia foquista. Mil grupos de teatro podem irradiar para áreas circundantes à produção artística a ideia de que é possível arregimentar, unir, socializar. O grupo em vez da empresa, a coletivização do produto em vez do lucro retornando ao dono do capital.

Muito bem, a empresa é o vilão ou o testa-de-ferro do vilão. Repetidas análises, programas, entrevistas individuais concordam em caracterizar a empresa teatral como a face nítida do capitalismo na arte. Seu produto, afirmam várias vozes, é carta marcada. Visa o lucro, aliena o trabalhador, satisfaz apenas as necessidades já manifestas do público consumidor e, portanto, a vontade ainda mais claramente manifesta do poder que determina os rumos políticos do país.

Assim, da empresa teatral só pode nascer uma arte retrógrada, porque conivente com as linhas predominantes de uma história que já deveria ser passada. A empresa é omissa quando se trata de produzir uma obra mobilizadora e prospectiva, uma obra que realize a potencialidade divinatória da arte.

Neste ponto pode-se recorrer novamente ao Viajou sem Passaporte: “Não há correntes de opinião! Não há propostas globalizantes! Não há debate, polarização! Há sim uma variedade infinita de manifestações de ganância financeira travestidas de saídas para o cinema brasileiro, a música brasileira, o teatro brasileiro, cuja profundidade dura o tempo exato da temporada do filme, show ou peça em questão. Auferida a bilheteria, encerra-se o debate…”

Se a bilheteria é assunto primordial, entra em segundo plano a tarefa não menos primordial de encontrar vertentes para a produção de uma obra que sobreviva de alguma forma ao seu consumo imediato.

E o que é que o grupo tem que a empresa não tem? Em primeiro lugar, é contra. Sendo contra tem algumas raízes fincadas na década anterior. Seu ascendente direto é a companhia, as famosas companhias ensaiadas e executadas por elencos insatisfeitos com a linha de montagem na produção artística: Os Comediantes, o Teatro Brasileiro de Comédia, o Arena, o Oficina.

Essas companhias são ainda empresas, mas são o primeiro passo contra o estatuto jurídico que lhes serve de suporte. São companhias que têm um ideário artístico, que pretendem uma unidade entre diferentes encenações que seja não apenas uma satisfação imediata às exigências do consumidor, mas também uma manifestação da vontade dos artistas empenhados na confecção de uma obra. Além do lucro pretendem imprimir na memória do espectador uma imagem residual, que sobreviva à duração do espetáculo.

Só que o grupo acrescenta a isso algumas outras coisas: não é apenas contra determinada concepção da função da arte. Sua forma de organização é uma contraproposta a uma organização exterior ao mundo da criação artística.

O modo de produção de um grupo de teatro é uma alternativa real, em microcosmo, do modo de produção capitalista. Pretende eliminar da esfera da criação a linha de montagem representada pela definição rigorosa de atribuições no processo de produção do espetáculo. Em tese, um grupo de teatro não admite a preponderância deste ou daquele setor do espetáculo ou mesmo o monopólio de uma área por um único indivíduo.

Como resultado artístico, a obra é de autoria coletiva. Quem faz o texto, quem organiza a produção executiva ou quem sobe ao palco é sempre o intérprete. Intérprete no sentido original do termo, ou seja, aquele que interpreta o mundo através da arte. O grupo pode ser um globo de espelhos porque congrega, num único objeto, o espetáculo e o reflexo. Cada membro de um grupo emprega na confecção da obra a sua história e o seu desejo. O globo é coletivo e deve conter o sujeito e a sociedade. A forma como é construído é tão modelar quanto a sua existência tridimensional.

A história manifesta do grupo de teatro não é muito diferente, portanto, da história de outros setores da atividade cultural do país a partir de 1968. Mostra que há um esforço consciente e racionalizado em vários programas de ação para aglutinar a atividade cultural, encontrar uma irmandade que no espírito e na letra se oponha à diáspora ordenada pelo governo.

No momento em que um grupo de duas pessoas é conspiração e o de três é sedição, há um esfacelamento dos canais de informação mais informais, como o mero convívio social. Formar grupos culturais significa reunir fiapos de informação dispersos, criar um espaço expressivo para sedimentar a amargura, levantar a dúvida e ensaiar a resistência. Independentemente do espetáculo que venha a produzir, a formação de um grupo é uma ação cultural e uma ação social.

Por trás da associação existe a ideia da legitimidade. O Estado fala em nome de poucos porque governa de acordo com os interesses de uma minoria. De alguma forma o grupo cultural quer formar uma base mais ampla que possa representar vértices do interesse coletivo. Não é circunstancial que a década de 70 tenha propiciado o aparecimento da Confenata, das cooperativas de teatro e de cinema, aglomerando produtores independentes, e mesmo de associações de produtores que funcionavam normalmente dentro de um esquema tradicional de empenho de capital e contratação de assalariados. Um artista não se sente seguro falando em seu próprio nome e além disso não dispõe de informações suficientes para embasar a construção de uma obra. É indispensável construir circuitos internos de veiculação de informações, para poder aumentar a representatividade do que se coloca no palco.

Poetas, produtores, artistas plásticos, músicos e bailarinos procuram as asas protetoras da associação para organizar não só uma frente ideológica de resistência como para tentar viabilizar a produção e a comercialização das suas obras.

Além dessa história manifesta, entretanto, há um rio mais profundo, de sondagem arriscada, que só pode ser penetrado experimentalmente. A busca de um semelhante, da harmonia do conjunto, corresponde também à formação de um gueto cultural que até certo ponto resiste ao caos de um país em que a progressiva estagnação econômica da maioria produz consequências nada menos do que violentas.

Enquanto as pessoas se agregam sadiamente para resistir, há um movimento paralelo de neutralizar a eficácia dessa resistência. O grupo deve funcionar também como reforço de certos comportamentos ou ideias já estabelecidos, porque é uma forma de procurar a concordância em meio à geleia geral de um país em que a atuação do cidadão é reduzida a pó.

Ora, se não há meios legais para expressar opiniões discordantes, se o papel do cidadão é concretamente restrito, é preciso encontrar outras pessoas que ouçam, um grupo social onde seja possível atuar, algumas pessoas que ou concordem com algumas coisas comuns ou simplesmente discordem da ordem vigente. E aqui entramos na limitação numérica do grupo.

Muitas vezes o grupo é uma casa, um lar, uma família, um porto relativamente seguro. Mas não é nem pode ser, pela semelhança entre os indivíduos que o constituem, uma amostragem das variações que ocorrem à sua volta. Todos os grupos que se formam nesta década têm como ponto de partida, e isto é óbvio, alguma identificação entre os participantes. Juntar-se ao grupo significa também construir uma cidadela onde o ataque e a defesa são planejados estrategicamente, mas onde a sólida realidade do cotidiano contribui para alicerçar um refúgio imune às tempestades do mundo exterior.

É possível identificar um vértice em que o conforto e o perigo se estabilizam momentaneamente, criando condições para um trabalho que é ao mesmo tempo agressivo ideologicamente e estável na sua coerência interior. Por outro lado, a trajetória de muitos grupos denota como passo seguinte a opção pelo útero, pelo refúgio. Com consequências evidentes para o conteúdo e a linguagem dos espetáculos idealizados por esses grupos.

Há inúmeros casos que poderiam exemplificar essa atuação flutuante dos grupos. Mas como o objetivo deste trabalho é menos fazer história e mais identificar alguns rumos, basta citar um caso que parece dos mais significativos.

Em 1971, durante o governo Médici (um período de triste memória para a liberdade de expressão, entre outras coisas), o grupo do Teatro Ipanema colocou em cartaz uma peça de José Vicente, Hoje é dia de rock.
Na forma de encenação estavam contidas embrionariamente todas as proposições típicas de um grupo de teatro: os atores e demais trabalhadores do espetáculo participavam como co-autores do trabalho, ideologicamente identificados com o resultado apresentado no palco.

Não era exatamente o “todo mundo faz tudo”, mas sim um tipo de trabalho em que o produto cênico deveria corresponder à proposta de vida que os participantes haviam idealizado para si mesmos. O texto, uma caminhada lírica do autor em direção ao seu Eu presente, esgarçava os contornos do acontecimento e do tempo, fazendo de cada personagem um rio tributário de uma única personalidade, aquela que ativa o arquivo da memória. Os fatos, exatamente porque pertenciam a uma memória pessoal, podiam ser deformados, embelezados, reconstruídos com inteira liberdade. Indiretamente a peça propunha a utopia de um reino livre, o reino interior de cada ser humano onde é possível exercer-se.

Alguma coisa especial aconteceu nesse espetáculo. Talvez a máscara da personagem tenha se colado indissoluvelmente ao rosto do ator. Ou talvez os tempos fossem realmente propícios para o retorno aos mananciais, às cavernas mais profundas da vida coletiva. Quando tudo parece disperso e difícil de abarcar com a consciência, é compreensível que as pessoas concentrem-se intensamente nas raízes comuns de humanidade, na pré-história.

O que interessa observar aqui é que esse espetáculo ficou em cartaz durante dois anos, atraindo um público que não ia apenas para conhecer uma obra, mas para viver com ela e por ela a duração do espetáculo. Algumas pessoas viram mais de 30 vezes a representação. Não interessava a esses espectadores o fato de que uma obra teatral dá-se a conhecer. Interessava fazer coincidir o momento vital do espectador com a manifestação teatral.

Por estar muito perto da essência do teatro, por proporcionar uma comunicação em que a mediação da máscara se torna cada vez menos perceptível, os atores do Teatro Ipanema reuniram em torno de si um fantástico grupo de co-participantes dessa cerimônia. Uma cerimônia que só não atingiu a dimensão do rito porque a capacidade de adorar exige uma proposta transcendente que o grupo não pretendia oferecer. O que estava em cena, sob a forma de teatro, era ainda assim a metáfora obscura de um acontecimento muito concreto, que dizia respeito antes de mais nada à vida terrena. Junto com o público os atores celebravam a possibilidade do prazer, um atributo humano que resiste às mais intensas pressões e que permite armazenar energias para o ato. Sob a forma de um trabalho artístico, esses atores funcionavam também como um grupo de pessoas que conseguia atrair mais pessoas e, junto com elas, fazer alguma coisa. Segundo observações da época, esse encontro, por mais discutível que fosse a sua validade política e social, assumiu as dimensões de uma verdadeira pororoca.

Em outubro de 1973, no dia em que o espetáculo deveria dizer adeus ao público, Yan Michalski relata os acontecimentos:

Entre as mais de 600 pessoas que devem ter estado presentes, relativamente muito poucas eram as que queriam realmente assistir a Hoje é dia de rock e receber pela última vez a sua mensagem de fraternidade. A imensa maioria (integrada, aliás, em grande parte por quase crianças, que de qualquer modo dificilmente assimilariam o conteúdo da obra) estava ligando muito pouco para o espetáculo e para aquilo que este já lhe trouxera em visitas anteriores, ou poderia lhe trazer ainda na sua última apresentação. Para estes, a única coisa que contava era não sofrer a frustração de ficar à margem do local que era naquela noite o mais badalado da Zona Sul, era exibir a sua própria desinibição e a sua própria energia vital, de uma maneira bastante parecida com o alienadíssimo comportamento da torcida do Festival da Canção. E para conseguir esse objetivo, os jovens abriram mão da sua individualidade e se transformaram numa multidão incrivelmente fanatizada, que não hesitaria em abrir seu caminho à força de músculos e de brutalidade, e em impedir sem qualquer escrúpulo a realização do espetáculo que seria o próprio motivo da festa, contanto que ninguém ficasse do lado de fora. A violência e o inconsciente fanatismo desses adolescentes impressionaram-me bastante, pois senti neles um grão que pode facilmente tornar-se uma planta muito perigosa.

E conclui:

De qualquer modo estou convencido de que o pessoal do Teatro Ipanema, que hoje em dia se tornou uma espécie de guru coletivo dessa juventude desorientada e carente de afeto, saberá meditar sobre a séria responsabilidade que esse merecidamente conquistado prestígio lhe impõe.[2]

O que esse trabalho propiciou, de acordo com depoimentos, não pode ser resumido pela proposta do espetáculo. Houve realmente um encontro onde não só o prazer predominou, mas a plateia pôde revelar o seu estado anímico, aquilo que a impulsiona para a sala de espetáculos.

O paraíso terreno que o grupo do Teatro Ipanema mostrava não era despido de arestas, mas pelo menos era um espaço onde o espectador podia ser e acontecer. Vale a pena dizer que esse espaço idílico vive simultâneo com a apropriação da palavra comunidade. Havia um trabalho comum e esse trabalho resultava num produto amorável, cheio de encantos, encantos que adornam a obra onde o artista põe “tudo de si”. E, ao mesmo tempo, nenhuma sugestão de sacrifício. Em nenhum momento os artistas cobravam do espectador o fato de que aquela oferta representava uma doação abnegada das suas individualidades.

Era possível ser um núcleo harmonioso dentro do todo, porque havia uma obra que comprovava isso e que, pela sua própria existência, convidava à proliferação de experiências semelhantes.

Certamente havia uma aura em torno desse espetáculo. Eu, que nunca vi uma aura face a face, uso a palavra para exprimir o inenarrável. E assim todas as pessoas que testemunharam esse trabalho partilham dessa incompetência para transpô-lo para outra linguagem.

Quem partilhou da cerimônia teatral de Hoje é dia de rock do Teatro Ipanema pode não ser capaz de explicitar a natureza desse espetáculo. Mas pode também discorrer longamente sobre as suas experiências pessoais durante o desenrolar do espetáculo.

Onde estava a ligação desse espetáculo com a história que lhe era contemporânea, com a desagregação que levou tantos indivíduos a procurar o ninho do grupo? Aparentemente em lugar nenhum, e esse é o x da questão. Não era preciso nominar, apontar, aclarar as analogias. O simbolismo das personagens e o fato de que elas caminhavam bastava para englobar tudo, para canalizar para dentro da encenação a história pessoal de cada espectador presente. O contorno amplo do espetáculo comportava muitas ideias, muitos sentimentos, mas principalmente dava o desenho de um movimento interior que, independentemente da sua validade, estava acontecendo. Os espectadores investigavam seu espaço interior.

Pode-se especular. O túnel negro inaugurado em 1964 chapou todas as expectativas, senão por outras razões, no mínimo porque impediu a participação do cidadão na vida política do país. O Ato Institucional n° 5 desorganizou os últimos setores que ainda permitiam ouvir os murmúrios da discordância social. Depois disso o país se dividiu, silenciosamente, entre os poucos comandantes e os muitos comandados. As táticas de oposição ensaiadas, verdade seja dita, não foram eficazes para arregimentar os setores populares porque antes de adquirir forças foram aniquiladas pela repressão. Havia apenas o sentimento geral, claramente expresso na produção cultural, de que as trevas eram demasiadamente longas e que era muito difícil, embora não fosse impossível, mobilizar-se contra ela. Por isso a arte foi genérica. Porque a insatisfação foi genérica, como se o opressor não tivesse nome e história, mas fosse apenas um opressor com O maiúsculo.

Esse teatro, como o que o grupo de Ipanema faz, convida a um diálogo escandaloso, e não furtivo, com o próprio eu. Pode portanto abarcar essa identidade monstruosamente deformada do inimigo e introjetá-la para estabelecer um combate invisível ao observador externo. É uma forma de agir sobre si mesmo, com armas em que o oprimido pode levar vantagem e que de qualquer forma revelam um conflito que não precisa da anuência do poder constituído.

Essas considerações passam ao largo do espetáculo em questão. Não se relacionam com a peça de José Vicente a não ser por exclusão, porque abordam não o que o espetáculo ofereceu intencionalmente, mas aquilo que se criou pelo fato de o grupo ter conseguido estabelecer uma relação especial com o seu público. Uma relação tão rara no teatro quanto escassa na vida social do país na época em que o trabalho foi produzido. Qualquer espaço aberto para o exercício da pessoa ou flexível à permeação de qualquer forma de comunicação parecia tão importante que foi imediatamente e intensivamente ocupado pelo público.

Interessa observar aqui o fato de que o Teatro Ipanema proporcionava aos seus espectadores a oportunidade de vivenciar alguma coisa que não pertence exclusivamente ao terreno da arte. Durante a representação o palco e a plateia realmente formavam uma unidade. O espetáculo era a mediação de um acontecimento novo, alguma coisa profundamente diferente da experiência do mundo exterior, com limites imaginários muito mais amplos do que os que rodeavam a casa de espetáculos.

Era possível sentir-se integrado, irmanado aos atores, porque eles gentilmente convidavam a isso, além das personagens que ofereciam como invólucro dessa oferta pessoal. Não era um teatro para levar para casa, como o melhor teatro geralmente é, mas um teatro para ser vivido. Diga-se de passagem que o espetáculo nunca cumpriu a enganadora tarefa de oferecer uma ponte de fuga para compensar as frustrações do cotidiano, como aquele teatro que vulgarmente chamamos digestivo faz. Pelo contrário, o grupo arriscava-se a partilhar com o espectador desconhecido suas experiências mais pessoais, arriscando-se também a reações emocionais imprevisíveis, com as que o crítico do Jornal do Brasil descreve.

Está claro que, em dois anos de trabalho, isso acaba ficando um tanto cansativo para os atores. Despir a situação ideal e voltar a vesti-la na noite seguinte é angustiante para qualquer pessoa e muito mais para um grupo de atores treinado para trabalhar ao nível de superexcitação. Tentar ser um homem feliz ao mesmo tempo em que indica a possibilidade da existência desse homem é uma tarefa, ao fim e ao cabo, exaustiva. Na medida em que o espetáculo possibilitou relações interpessoais entre o elenco e o público, exigiu dos atores uma reserva de humanidade que iria muito além da dedicação profissional. Essa mesma corda-bamba seria experimentada com igual ou menor intensidade por outros grupos de atores que, partindo de impasses artísticos diferentes, tomaram o mesmo rumo do Teatro Ipanema, misturando indiscriminadamente a obra e a vida, a individualidade e o projeto coletivo.

Em que pese a elaboradíssima realização desse grupo em particular, o produto artístico criado enfatizava a semelhança entre o espectador e o ator. Deliberadamente criou-se a ilusão de interpessoalidade e os atores preferiram trocar a ilusão por uma espécie de compromisso pessoal em torná-la verdadeira. Através da obra não se encontraria uma caminhada simbólica, mas um exemplo vivo, o convívio com pessoas que estavam experimentando a viagem inventada por José Vicente. Entretanto, por tradição e nada mais do que por tradição, não é a verdade que interessa à arte, mas sim a ilusão, a mais perfeita das ilusões.

Rejeitando essa tradição o grupo abriu um espaço. Não pôde mantê-lo por muito tempo. O mesmo grupo trabalhou em mais uma encenação, em que se poupava, reservando ao espectador uma participação mais contemplativa. E, depois disso, no final de 1973, dissolveu-se como grupo, com os atores dispersos em outras formas de atuação profissional.

O que pode se questionar, utilizando o Teatro Ipanema como ponto de partida, é se essa forma de associação, o grupo, é um invólucro suficientemente elástico para encaminhar a produção de um conjunto de obras coerentes entre si e, ao mesmo tempo, manter ativos os canais de contato dos participantes com o mundo exterior. O Teatro Ipanema experimentou ativamente, chegou a novos resultados e também usou a si mesmo, como grupo, para informar e construir uma obra. Sua dispersão, em pleno auge da realização artística, é sintoma de um certo esgotamento, de uma dificuldade em realimentar o grupo com experiências vitais que pudessem gerar outras obras. De uma certa forma, o contato do grupo com o público e consigo mesmo foi tão satisfatório e absorvente que tornou tênues os laços com os espectadores que não foram atingidos, os possíveis espectadores de outras obras.

De qualquer forma, há uma tensão permanente e visível nos grupos teatrais que, de certo modo, precipita a sua dissolução durante esses anos, muito antes que o grupo tenha realizado sua potencialidade.

Quando a vida profissional e a vida pessoal do artista confluem até se tornarem indissolúveis, as contradições entre a ideologia da arte e a realidade cotidiana tendem a explodir sob a forma de conflitos pessoais nem sempre claros para os diretamente envolvidos.

A história dos grupos de teatro é caracterizada por uma luta intensa, e a cada espetáculo reafirmada, pela unidade grupal. Nem todos os membros resistem a essa pressão constante que tangencia a arte e a vida pessoal. Depois de um certo tempo em que as pessoas se sentem protegidas pela integração social e pelo trabalho coletivo, há um momento em muitos grupos em que essa proteção e essa coletividade parecem tornar-se constrangedoras.

Num certo sentido a produção convencional pode oferecer aos que abandonam os grupos alguma coisa mais do que a segurança de uma remuneração. A empresa, com todos os entraves que pode opor à liberdade de criação, oferece, além de um papel ficcional, um papel social definido. O ator é ainda um intérprete, mas não mais o intérprete de si mesmo. Pode ser inclusive, dependendo da rigidez da companhia, um mero executor de uma proposta artística com a qual não tem o menor ponto de contato pessoal. Está disposto a executar uma tarefa e será pago por ela.

Para um analista apaixonado o panorama é desolador. Como alguém pode trocar o seu grupo de teatro, onde há amigos, pessoas que pensam mais ou menos as mesmas coisas, possibilidades de criar uma obra, por uma situação de tarefeiro da arte?

O fato é que isso acontece com uma frequência maior do que a situação deixa supor. Há um movimento inverso de retorno do grupo à empresa. Depois de atravessar a experiência do grupo muitos atores retornam a um trabalho mais convencional. Há um alto custo pessoal para construir uma obra enraizada no sujeito que a produz. É compreensível portanto que muitos atores procurem livrar-se por tempo indeterminado de uma forma de arte que não tolera o recuo e oferece poucas oportunidades de estabilidade material.

A precariedade econômica, aliás, não justifica a dissolução dos grupos mais significativos da época. Em primeiro lugar porque alguns desses grupos, como o Oficina ou o do Teatro Ipanema, foram responsáveis por grandes sucessos de bilheteria. Depois porque a companhia está longe de ser uma alternativa econômica promissora. A dissolução dos grupos, quando acontece, tem motivos muito mais complexos do que a inviabilidade econômica do projeto.

Voltar à empresa, entretanto, é um movimento que, como toda ação humana inscrita na história, não se processa em linha reta. Algumas das propostas essenciais da poética dos grupos penetram na empresa através da mobilidade dos participantes. A ideia de que é preciso associar-se para sobreviver atinge inclusive as áreas aparentemente mais imobilizadas da criação teatral: o Estado (através do órgão que regulamenta a atividade teatral) e as associações patronais (como a associação de produtores de São Paulo e a do Rio de Janeiro). O Serviço Nacional de Teatro, a partir de 1974, inclui os grupos na lista de agraciados com subvenções oficiais e as associações patronais passam a incluir representantes de grupos entre os associados.

Seria interessante ensaiar a demarcação desse movimento no tempo. Os teatros de Arena, em São Paulo e Porto Alegre, os Centros Populares de Cultura, que foram especialmente ativos no Rio de Janeiro e nas capitais do Nordeste, têm raízes na década de 60. São agrupamentos de artistas que, através de uma unidade ideológica, procuram oferecer uma produção coerente de diversos espetáculos. Não querem garantir apenas a boa qualidade artística, mas também estabelecer com o público um diálogo que permita chegar a um acordo. Um diálogo que só pode evoluir, aliás, se o espetáculo conseguir essa mútua concordância, se conseguir convencer o espectador de que as teses que dão origem a esse tipo de arte são válidas.

Nesses movimentos é possível encontrar, embrionariamente, os grupos de teatro que aparecem com nitidez e constância na década de 70. Dentre esses há exemplos de companhias que evoluem para a participação igualitária (como o Arena) e de outras, como os Centros Populares de Cultura, que adotam na produção da arte uma forma tributária da ação política que lhes dá o suporte ideológico. O que é marcadamente diferente dos grupos posteriores é que, nessa forma de associação, há ainda papéis definidos no processo de produção. Há o diretor, o cenógrafo, o ator e o iluminador.

A história dessas companhias já é bastante conhecida para que se retorne a elas. De qualquer forma interessa aqui observar que, além da contribuição evidente que ofereceram à linguagem do teatro, interferiram também nos modos de produção da arte. Quando o Teatro de Arena de São Paulo foi dissolvido, em 1970, o processo de desagregação dessas companhias completou-se. Algumas desapareceram, outras transformaram-se radicalmente, ou formando grupos ou fornecendo atores para empresas de teatro ou canais de televisão.

Uma vez que a continuidade dessas companhias foi cerceada por fatores externos ao desenvolvimento da arte, as formas de associação e as concepções artísticas que as sucederam são duas faces radicalmente diferentes e dificilmente complementares. Num certo sentido eram formas harmoniosas de evolução da empresa ao grupo, resolvendo em termos de síntese muitas contradições que foram retomadas pelos grupos e empresas a partir da estaca zero.

Essas companhias de teatro reuniam não só a experiência técnica e administrativa da empresa como a unidade ideológica que veio a constituir a marca distintiva dos grupos. Conheciam um métier tradicional e bastante desgastado, mas acrescentavam a isso uma grande paixão pelas transformações mais novidadeiras da história e da arte. Foram esmagadas quando estavam no ápice da sua capacidade de representação, ou seja, no momento em que realmente eram a voz audível de setores da sociedade em vias de mobilização. O regime calou os ideários que sustentavam essas associações, descaracterizando-as assim como formas de produção teatral. O campo experimental inaugurado não foi reabsorvido ao nível do modo de produção da arte. Individualmente os participantes dessas companhias integram-se às vezes a outros projetos interessantes. Mas começaram de outras bases, interrompendo assim um fio que poderia dar resultados menos contraditórios.

O período que vai de 1974 a 78 é quando se define com maior nitidez a contraposição de dois modos de produção teatral. De um lado há a empresa, juridicamente estabelecida e produzindo um teatro perfeitamente assimilável aos objetivos do Estado. Essa empresa não chega a ser uma companhia: para cada espetáculo organiza-se um elenco sob a responsabilidade e supervisão muitas vezes estrita de um produtor. Há pouco a falar sobre isso. Basta olhar os anúncios, a coleção de “tijolinhos” dos jornais para obter uma imagem bastante precisa desse tipo de teatro. Os esforços mais bem-intencionados para transmitir uma “mensagem” através dessas obras estão suficientemente louvados pela crítica, enquanto as obras mais declaradamente omissas estão suficientemente relegadas ao seu merecido esquecimento. O fato é que a produção isolada, nos seus melhores momentos, não chega a constituir um fator que abale ou modifique de alguma forma a linguagem disponível do teatro. Muda o texto, mudam os atores, mas os grandes espetáculos são mais ou menos aquela coisa que a gente já sabe o que é antes de ter chegado lá.

Para se ter uma ideia da importância do processo de produção basta lembrar que um texto tão importante como Gota d’água tem o mesmo impacto, quando encenado, de uma comédia de costumes do Sr. João da Silva. Ou seja, não tem impacto nenhum. O espetáculo fica muito tempo em cartaz, é sucesso de bilheteria, mas sai de cena sem deixar atrás de si um único herdeiro que possa aproveitar alguma ideia em outros trabalhos.

Dentro desse panorama a formação de grupos não representa apenas uma alternativa, mas sim uma postura antagônica cuja base envolve tanto uma nova forma de pensar a arte como uma nova forma de organização social. A linguagem é o campo da experimentação, mas o fim é atingir, através desse labirinto, novos conteúdos.

A importância do grupo fica mais evidente considerando-se que a bipolarização com a empresa espraia-se além dos grandes centros de produção teatral do país, transferindo-se para os movimentos amadores, que constituem mais de 80% da produção teatral do país.

Nos lugares onde a empresa é praticamente inviável, como nas cidades do Sul, do Norte e do Nordeste, mas onde a atividade teatral é intensa, a ideologia do grupo reforça uma prática. O que já era uma experiência comum dos amadores (quando não há capital empenhado no financiamento de um espetáculo a divisão de trabalho é forçadamente pouco nítida) passa para o nível da consciência, norteando o espírito de novas produções.

Os encontros de teatro amador, que até então eram marcados pela discussão da qualidade estética das obras, passaram a discutir também o seu modo de produção.

Já em 1970, num encontro nacional de amadores em São José do Rio Preto, elencos de todo o país discutiram em seminários a necessidade de reforçar as bases da criação artística esclarecendo individualmente os participantes de cada espetáculo sobre a sua responsabilidade na totalidade da obra.

Nesse encontro, cujas teses são repetidas até hoje por amadores de diferentes lugares do país, havia uma “oficina de teatro” orientada por Joana Lopes com o objetivo de instruir os participantes sobre a sua capacidade de criar em qualquer área da expressão humana. Para muitos amadores era a primeira vez que alguém dizia que qualquer pessoa pode fazer teatro e, mais do que isso, que esse teatro não precisa ser parecido com nenhum espetáculo visto anteriormente. Teatro não precisa de diretor, nem de texto, nem de cortina, nem de falha trágica. Pode ter ou não ter tudo isso. Essa liberdade circulou como uma boa nova e libertou muita gente dos dilemas técnicos de uma cópia bem-feita. E reinstaurou com mais força uma solidariedade que já era real pela necessidade, mas que não tinha nenhuma justificação teórica. Com atores-autômatos não seria possível mesmo renovar nada em teatro.

Resta saber como é que essas novas ideias postas em circulação se refletem na produção de espetáculos. Qual é o conteúdo diferencial que aparece a partir de novas concepções do modo de produção?

Primeiramente a responsabilidade igual de todos os participantes elimina uma série de especificidades normalmente atribuídas a cada participante. A tendência é eliminar, ou tentar eliminar, as funções de cenógrafo, figurinista, iluminador, autor e ator. Na medida em que o espetáculo veicula um consenso interpretativo, todos os participantes devem estar capacitados para opinar em cada área do espetáculo e, se possível, para passar das palavras à ação.

Como consequência prática, o aumento da carga de trabalho de cada participante é assustador. De todas as tarefas a que acarreta maior sobrecarga é, sem dúvida alguma, a de produzir o espetáculo.

Além de trabalhar no processo criativo propriamente dito, o membro de um grupo tem que reunir as condições materiais para a execução dos seus devaneios de natureza poética. Ele é responsável não só pela ideia como pela forma que essa ideia adquire no espaço do palco.

Nesse ponto juntam-se duas esferas da arte, num esforço para recuperar para o teatro a sua condição original de produto artesanal. Como o artesão de uma corporação de ofícios, o ator é agora o proprietário dos meios de produção da arte e deve saber manipulá-los ainda que não disponha mais da orientação de um mestre. E não é fácil adquirir esse domínio num período curto de tempo.

Se um ator é obrigado a conhecer profundamente uma caixa de luz, além de trabalhar na confecção de uma caixa de luz, está dividindo suas energias, canalizando parte da sua força criadora para a construção de um alicerce invisível aos olhos do espectador. Por mais rica que seja essa aprendizagem, não há como negar que o tempo que seria utilizado na criação das cenas é dispendido em corte e costura, pintura e divulgação do espetáculo.

Esse dilema prático se agrava quando se considera que um espetáculo teatral confeccionado segundo moldes artesanais entra no mercado em condições de igualdade competitiva com o produto empresarial. Um grupo precisa divulgar o seu trabalho e vendê-lo quase sempre ao mesmo público que aflui às produções empresariais. No balanço comercial o grupo inclui nas despesas o contrato com o teatro, o pagamento dos tijolinhos, as obrigações sindicais e a confecção de cartazes. Parte das despesas é solucionada internamente, na medida em que um ator construiu o cenário e outro instalou a luz. Mas ainda assim esses trabalhos de grupo percorrem, em escala reduzida, o mesmo circuito de comercialização dos espetáculos empresariais.

Essas dificuldades repercutem profundamente não só no cotidiano da produção de um espetáculo como na própria formulação estética que esses grupos constituem para embasar o seu trabalho. Funcionando internamente como uma corporação de ofícios, mas colocando o seu produto num mercado regido pela oferta e pela procura, os grupos formulam uma poética que pretende valorizar esse produto artesanal através da ênfase dada à sua especificidade.

O “segredo” do grupo, assim como o segredo de uma corporação, pode ser um elemento químico adicionado ao esmalte, é a valorização da expressividade. Mais interessante do que o acabamento formal de um espetáculo é a sua intensidade tanto ao nível das ideias como da execução. Essa verdade deve sobrepor-se sempre a um magistral dó de peito.

A verdade passa aqui a integrar os domínios da arte porque é, programaticamente, a mensagem que o grupo oferece através do seu trabalho, como o grupo do Teatro Ipanema encenou Hoje é dia de rock. É dessa forma que muitos grupos entendem a função da arte: para ser eficaz a arte precisa ser sincera e a sinceridade, não apenas um discurso sobre ela, é o que o grupo tem a dizer de mais importante.

Eliminando frequentemente a mediação de um autor, o ator em cena constrói os signos da representação a partir da sua experiência vital. Situa-se no palco não apenas como instrumento de uma imagem a ser representada, mas como parte constituinte dessa imagem.

Os objetos que utiliza em cena, a forma como dialoga com um interlocutor ficcional ou com o próprio público são formas pessoais e intransferíveis de atuação artística. Diferentes atores podem iluminar diferentes facetas de Hamlet, mas o próprio Hamlet sobrevive a todas essas incursões. Ao contrário, a personagem apropriada por um grupo só pode existir sob aquela forma de representação. Representada por outro grupo será outro ser no mundo, completamente inaugural. Mesmo o Policarpo Quaresma, quando representado pela companhia Jaz-o-Coração, tem pouco ou nada a ver com o original de Lima Barreto.

Uma vez que a representação é o resultado da interferência de cada participante no processo criativo, o espectador deve saber que está em contato, no mesmo espetáculo, com diferentes expressões individuais. Como contraponto ao ator perfeito, ao ator-Stradivarius, a cena apresenta o ator “visceral”, que deve ir muito além do mero instrumento. Esse não é o ator que transmite uma emoção, mas aquele que vivencia a emoção em cena. Mesmo que esse ator não tenha disponibilidade para cultivar-se, as possíveis arestas podem ser compensadas com uma outra exigência que o ator faz a si mesmo. E que implica necessariamente num tremendo desgaste emocional e físico, em cordas vocais arrebentadas e numa avaliação da qualidade do espetáculo não pela comunicação racional que estabelece com o público, mas pelo trânsito das emoções que cruzam o espaço entre o palco e a plateia. Ressalve-se o fato de que esse turbilhão de paixões não tem a menor intenção de minimizar o conhecimento que a arte proporciona, mas sim altera a veiculação desse conhecimento na ordem da percepção do espectador.

O trabalho do ator é mencionado a título de exemplo, mas esses valores perpassam todas as áreas do espetáculo. A cenografia, por exemplo, torna-se campo para o expressionismo, cada vez menos empenhada em situar a ação e cada vez mais preocupada em participar da interpretação de uma ideia, de um sentimento, de um clima.

Como resultado, a tônica dominante da composição cenográfica é o elemento de cena que o ator ajuda a descobrir e que frequentemente relaciona com a sua atuação individual em cena. Os espaços construídos cedem lugar aos espaços cambiáveis, preenchidos esporadicamente por objetos de cena que o autor manipula segundo as intenções de determinada cena.

Por sua vez, os materiais que compõem a imagem do espetáculo são muitas vezes matérias-primas em estado bruto, e o uso que se faz delas é mais importante do que a sua aparição formal. Ou, como diriam Brecht e José Celso Martinez Correa: há muitos objetos num só objeto. A função do teatro é revelá-los, mudando a sua significação através da imaginação ativa.

Como consequência, o teatro da década mostra panos, cadeiras, caixas de papelão, papel crepom, velas e ornamentos de lata. Em vez de esconder a verdadeira natureza de um objeto, a cenografia expõe orgulhosamente a transformação de um repertório comum em criação artística. Isso é feito, diga-se de passagem, sem nenhuma inspiração no didatismo brechtiano. Não é para mostrar que as pessoas estão vendo ficção, mas para mostrar-lhes que a imaginação criadora pode transformar e criar coisas novas. Ninguém pretende com isso anular o poder encantatório da arte e transformar o espetáculo numa aula de criatividade para meninos pobres.

Também a unidade dramática sofre vários golpes e retaliações a partir desse império da expressividade. Com a minimização do texto ou com a sua substituição por textos criados pelo próprio grupo, a ação dramática é esgarçada para permitir o acesso das individualidades que compõem o grupo.

Em As três irmãs, uma peça de Tchecov encenada pelo Teatro Oficina em 1973, o texto foi seccionado em “árias”. O momento crucial de uma personagem foi alargado para que cada ator pudesse intensificar no espetáculo as suas relações pessoais com a personagem, principalmente nos pontos em que a trajetória da personagem se aproximava da vida pessoal do ator. No momento da ária dessa personagem, os outros valores do espetáculo esmaeciam-se, abrindo uma espécie de clareira onde o ator desenvolvia o trabalho com os recursos que, pessoalmente, achasse necessários. Antes disso, durante o processo de produção do espetáculo, os atores haviam procurado papéis que se adaptassem à função que cada ator desempenhava dentro do grupo de trabalho.

Da mesma forma, o ex-diretor do Oficina, José Celso Martinez Correa (quem em 1973 declarava-se apenas um membro do grupo e não mais o diretor), terminava o espetáculo assumindo a forma e o conteúdo de Tcheboutkine e não apenas representando o personagem. Balançava-se entre o palco e a plateia, em movimentos gradualmente mais enérgicos e mais amplos dizendo como ele mesmo, José Celso, as falas da sua personagem: “Que sentido terá tudo isso?”. A pesada massa do tempo que Tchecov interpretou como insuportavelmente estagnada foi interpretada pelo Oficina como uma massa explodida cuja poeira provoca um doloroso obscurecimento. Outro tempo, outra obra.

Muitos grupos de teatro preferiram escrever os seus próprios textos, com um resultado invariável de uma composição nitidamente dividida em cenas. Para quem cultiva as unidades aristotélicas, a absorção desses textos continua difícil.

A esses grupos parece menos importante, como valoração estética, a transmissão de uma ideia ou de uma experiência do que a organização lógica da representação. As lacunas de raciocínio, quando existem, devem ser preenchidas por um outro tipo de comunicação que privilegia a contradição como mensagem. Contraditórios somos todos nós, contraditório é este país — dizem esses textos. E dizem mais ainda: “A contradição é o nosso conflito. Como sair dela?”

A perplexidade transparece portanto como parte integrante da verdade que esses grupos querem imprimir à sua poética e à sua obra. Muitos desses trabalhos concentram-se explicitamente em explorar as experiências individuais dos membros do grupo como participantes da vida do país. Como se cada membro do grupo pudesse oferecer com a sua própria vida uma parcela representativa da comunidade.

Quer lidando ou não diretamente com a realidade política e social da década, é um tema comum a esses grupos o delineamento de uma situação extrema. Ao que parece, o cidadão se coloca antes do artista para tentar uma espécie de auto-análise que lhe permita compreender não só a sua função social como artista, como o seu papel social fora da arte.

A perplexidade é o lote comum deste tempo e deste espaço. Na medida em que não tem liberdade para transcender os seus limites, o homem de teatro representa em profundidade (maior ou menor, e nesse ponto entra o que se pode chamar de qualidade artística) o seu próprio espaço social e existencial. Essa área limitada, com todas as suas particularidades exploradas, deve funcionar pelo menos para indicar ao espectador uma situação análoga à que ele próprio está vivendo. Dentro dessa perspectiva, compete ao teatro não tanto lançar novas luzes para espaços novos, como tornar públicos a confusão e o sufoco. Por uma ironia histórica, o teatro é obrigado a reinventar o lirismo e a tirar dele o melhor partido.

Está claro que a exploração poética dos temas a serem representados, esse reviver do lirismo, nada tem a ver com imagens açucaradas ou tênues. Pelo contrário, embora prevaleça a relação emocional com o universo a ser representado, é uma relação marcadamente agressiva onde se utiliza o grotesco, o exagero e a ironia. Se não é possível avançar lealmente contra uma instituição ou um sistema, é possível pelo menos mostrar a sua face mais negra através dos efeitos que provoca sobre a existência dos indivíduos.

Não se argumenta tão bem porque não se vê tão claro. Enquanto os grupos mais avançados da década anterior, como por exemplo o Arena, tinham um projeto ideológico para o país que norteava a construção das obras, os grupos da década de 70 mal conseguem definir a sua própria imagem no espelho do tempo. Não podem, como o Arena, ensinar alguma coisa a seu público nem propor atitudes que considerem válidas para transformar a face do mundo. No máximo podem oferecer eles mesmos um espelho em que o público se veja refletido e possa, a partir desse reflexo, compreender-se um pouco melhor, ou então entregar-se à angústia de não conhecer a própria identidade.

Um espetáculo dos mais significativos desta década, o Trate-me, leão, funciona aqui exemplarmente para ilustrar essas tendências. O grupo que o produziu escolhe como material para construir um espetáculo a sua própria esquina, a esquina de qualquer centro urbano onde ao cair da tarde se reúnem os adolescentes e as crianças.

Isso é tudo que o grupo tem para contar, porque é nesse espaço reduzido, na confluência de duas ruas, que acontecem as experiências sociais e humanas de um jovem da cidade grande. Há um limite físico intransponível em cada canto: a parede do prédio, o mar e o buraco do metrô.

Trata-se portanto de explorar intensivamente os meandros que essa geografia retilínea pode proporcionar. Mesmo porque não há outro espaço alternativo previsto para que essa juventude possa crescer como melhor lhe aprouver. A possibilidade de intercâmbio e movimento que essa sociedade coloca à disposição dos jovens corresponde em gênero, número e grau ao espaço físico e está perfeitamente representada pela escola.

Por isso o grupo narra-se no seu teatro com a angústia claramente expressa de que levanta a voz a partir de um espaço diminuto. O gesto que procura romper esse espaço é a vontade de narrar essa cela a inúmeros interlocutores.

Mesmo referindo-se a um espaço tão particular, a experiências tão restritas ao mundo de uma classe média de cidade grande, o espetáculo relaciona-se indiscriminadamente (e a afluência de público em São Paulo comprova esse interesse universal) porque lamenta o isolamento, a ignorância e a sensação de desamparo que têm os jovens do período pós-64: crianças mal-informadas, sem história e sem objetivos.

Para cada cena que explora os desejos, as angústias e a consciência possível dessas personagens com uma experiência de vida tão pobre há um grande espaço vazio que o espetáculo enfatiza. Os fatos deslizam sobre um vácuo ideológico, as personagens trafegam ao sabor dos acontecimentos, sabem narrar apenas o que sentem e vêem, mas não têm a mais tênue capacidade de prever ou organizar o desejo.

O mais importante não é o que está expresso por palavras ou gestos, mas um espaço obscuro ao redor da cena onde circulam coisas sem nome e que não têm denominação porque não puderam vir à luz. “No momento em que estou mais frágil…” é a frase final do espetáculo e que passa para o espectador como uma deixa de um diálogo que continua fora da casa de espetáculos. Quem conhece e experimentou esse desgarramento, essa limitação espacial, talvez possa, a partir dessa experiência, ensaiar mais um passo para alargar os horizontes de alguma forma que os atores não podem indicar.

É evidente que esses espetáculos que tomam como centro de investigação o próprio grupo não formam uma única linha nos trabalhos de grupo. Mas o grupo é, de qualquer forma, o centro nevrálgico de onde partem as referências para investigar e representar o país.

Em 1975 um grupo de São Luís do Maranhão encenou a peça Tempo de espera. Embora seja um espetáculo com uma divisão de trabalho delineada (o diretor é Aldo Leite), o grupo funcionava na cidade como um grupo de ação cultural, com todos os participantes colaborando na investigação do assunto que resultou no espetáculo.

Neste caso, a mesma perplexidade comum a outros trabalhos transparece na linguagem adotada para representar a vida da população do interior do Maranhão. A ênfase na lentidão, a minuciosa cópia de detalhes que formam o cotidiano, a descrição de uma forma de vida em que a comunicação inexiste porque não há um sentido a ser comunicado expressam a sensação de impotência e isolamento dos artistas em relação ao sujeito da sua obra.

Quando um grupo escolhe deliberadamente o reflexo, por mais poderosa que seja a organização artística desse reflexo, está colocando no espetáculo a incomensurável distância que o separa dos homens que escolheu representar. Resumir o significado desse trabalho a uma denúncia é acatar apenas o lado mais fácil e evidente da obra. O que realmente se destina ao espectador de Tempo de espera, como usufruto de uma experiência artística, é uma desolada sensação de incompetência para transformar a realidade. Sabe-se através do espetáculo como vive a população rural do país, pode-se sentir e compreender perfeitamente a extensão da miséria e do abandono desses seres humanos. Mas compreender não basta, como não bastou ao grupo Mutirão. O insulamento tanto dos artistas como do público é por demais consolidado para que se possa extrair desse conhecimento alguma ação sensata, algum relacionamento produtivo entre os dois extremos do país.

Em parte, essa tão mencionada perplexidade, essa sensação de insulamento, essa busca de uma identidade dizem respeito a toda e qualquer criação artística. Formam o substrato comum de todo homem que se aparta ligeiramente do mundo para refletir sobre a sua natureza e poder assim representá-lo. Todo ato de criação exila temporariamente o criador para preparar a gestação da obra num certo silêncio. Esse exílio normal dentro da anomalia que é a arte deveria ser, entretanto, um arco tenso de onde sai uma flecha que alcança longe. Mas, como o tempo não permitiu, o exílio se tornou involuntário e perene, o que deveria ser circunstância passou a constituir a essência da criação teatral.

Isso não quer dizer, absolutamente, que se tenha estancado a criação teatral ou que não tenham aparecido espetáculos bons, fortes e importantes. Pelo contrário. Mas o que parece claro é que a qualidade prospectiva da arte foi menos exercida do que a sua qualidade exploratória, simplesmente porque explorar os próprios limites era uma tarefa premente que consumiu todas as forças. Não houve muito espaço para transcender.

E é dentro do grupo de teatro, onde o que dizer tem a mesma importância do como dizer, que as características da década aparecem de forma mais aguda e conflitante. Cada nova produção gerada por um grupo, muitas vezes sem o subsídio de um texto oferecido por um dramaturgo e sem a garantia de um circuito de distribuição, suscita um frenesi exploratório que põe em pauta todas as questões do teatro, começando por definir novamente a sua função ideal. Muitas vezes o grupo, que não tem um projeto social definido (porque não consegue vislumbrar a viabilidade desse projeto), faz um espetáculo em que a questão social é o resíduo mais importante da obra. Simplesmente porque pensa tanto, revê tantas coisas, que acaba chegando não só a uma única imagem, mas a vários campos que abarcam as questões mais interessantes da vida social.

Neste ponto se situa talvez a distinção operacional mais importante entre o grupo de teatro e a empresa teatral. A empresa teatral funciona ainda como se fosse a detentora dos signos que compõem uma linguagem e como se fosse possível deter os signos que compõem uma linguagem. Possui uma herança, um cabedal solidificado pela convenção que é, ao mesmo tempo, a sua riqueza e a sua prisão. Tem um método de trabalho que segue invariavelmente as mesmas etapas e onde o artista se encaixa respeitando principalmente o cronograma.

Para compor um espetáculo é preciso encontrar um texto cujo significado seja, por si mesmo, adequado aos interesses artísticos e financeiros do produtor. Depois disso é preciso encontrar um diretor que seja adequado ao texto, atores que sejam adequados às personagens, e assim sucessivamente até que o resultado final se aproxime com a maior fidelidade possível do conteúdo intencionado pelo texto.

O texto, inventado por um autor que está sozinho na sua sala de trabalho, pode ser pura virtualidade. Mas o espetáculo, produzido como uma corrente que deve ser coerente na adição de cada elo, é muitas vezes a materialização do imaginário, e não uma criação independente. Já não se trata de fazer viver a imaginação de uma forma tridimensional, mas sim de consubstanciar uma obra que foi construída mentalmente, a partir de palavras e visualizações de uma única pessoa.

Dentro desse esquema de produção, a capacidade de criar do ator, do diretor e do cenógrafo é dirigida para um objetivo, e ao mesmo tempo limitada por esse objetivo que é a obra dramática. Se alguma coisa falhar, se alguém não atingir o objetivo ou render menos do que deveria, o todo fica irremediavelmente comprometido. O que se viu é menos, muito menos do que o autor imaginou quando estava só. Enquanto o grupo valoriza cada parte a ponto de que ela possa respirar por si, a empresa depende do conjunto, de uma execução disciplinada da partitura, para que não sobressaiam as notas dissonantes.

Nesse sentido, porque é pouco maleável e não dispõe de caminhos alternativos, a empresa teatral foi mais duramente atingida pelas interferências da censura na década de 70. Inventou menos do que poderia ou desejaria porque não teve alguns recursos sacados do bolso do colete, ou seja, a vivacidade de compreender que mesmo dentro do buraco pode-se discorrer sobre o buraco.

O primeiro passo que um produtor teatral dá antes de organizar uma produção é conferir se o texto que o interessa pode passar pela censura. E nesse primeiro passo já encalharam muitas produções teatrais idealizadas para esta década.

Não se sabe ainda, e não é possível saber antes que a censura franqueie os seus arquivos, quantas foram as peças de teatro interditadas nos últimos anos.

Só se pode conjeturar, e a conjetura não leva longe, sobre um teatro que não pôde vir à luz tal como teria desejado. Além disso muitas obras que conseguiram emergir, e não circunstancialmente as mais interessantes, tiveram a sua aparência desfigurada pelos cortes. Pode ser que as características de virtualidade e prospecção que o teatro não pode oferecer estivessem contidas em alguns desses textos. Entre os dramaturgos pode existir alguém que tenha criado para si mesmo um espaço mais amplo, que tenha conseguido enxergar além das fronteiras impostas.

Mas o fato concreto é que a empresa teatral, que poderia ter trabalhado outros temas, limitou-se a funcionar com as peças disponíveis, com aquelas que escaparam às malhas da censura. Com uma economia periclitante e textos inócuos, a empresa teatral fez ainda menos do que o seu esquema de produção pode oferecer. Os bens herdados foram subaproveitados e, como a ousadia não é o seu traço distintivo, o panorama teatral foi marcado pela atuação dos grupos, ainda que os sucessos ocasionais de uma ou outra produção empresarial reativassem momentaneamente o interesse dos produtores pela continuidade das produções.

O grupo, como se propõe a rever o modo de produção da arte, não pode repousar sobre louros do passado. E, na maior parte dos casos, o ator de um grupo não domina as técnicas mais elementares de um ator do teatro empresarial. Tem que descobrir técnicas adequadas para o seu próprio processo de produção. Trabalhos encenados por grupos tornam-se portanto discussões em torno da linguagem do teatro. O que é o teatro, como ele deve e pode ser, como executá-lo são questões que permeiam o cotidiano dessas produções. E como tudo que os preocupa acaba aparecendo no palco, o próprio teatro torna-se personagem dessas representações.

O artista não está seguro da sua linguagem, assim como o espectador não está seguro do seu papel social e do seu repertório de direitos. A linguagem da cena não pode ser pensada como um código transmissível porque a instabilidade dos conteúdos é a mesma que atinge o artista e o espectador. Para ambos a falta de liberdade tem a proporção tão alarmante quanto a falta de segurança. Sobre isso é possível representar, mas uma representação eternamente cambiável, uma representação que, para não mentir e para estabelecer uma comunicação sincera e válida, precisa questionar constantemente os seus signos.

Esse é apenas um dos efeitos que um Estado autoritário pode exercer sobre a criação artística. Os outros, os que só podem ser ensaiados por um estudo mais profundo, se referem não só às coisas que não puderam ser ditas como às coisas que não puderam ser vividas.

Embora essa seja uma tarefa de fôlego e mais adequada para historiadores e cientistas políticos, há algumas coisas que qualquer pessoa sabe por experiência própria ou por informação remota, e que não foram nem sequer tangenciadas pelo teatro, quando deveriam constituir pontos cruciais de qualquer forma de manifestação. Repercutiram também, está claro, porque não foram abordadas. Produziram uma espécie de negativo que de alguma forma é um registro histórico.

Sob o lema “segurança e desenvolvimento”, o país deveria estar florescendo admiravelmente, de acordo com o retrato falado que era oferecido pelos órgãos oficiais de informação. A progressiva dívida externa, a deterioração da qualidade de vida do trabalhador, os índices inflacionários, a violência dos órgãos de repressão, as questões fundiárias, o hipercongestionamento dos centros urbanos do país, a corrupção de muitos dos nossos dirigentes foram assuntos olvidados, contornados e sufocados pela interferência direta do Estado. Todas essas coisas foram proibidas na arte, assim como foram proibidas de circular como informação em todos os veículos de comunicação.

O que não se soube, mas se intuiu, o que não foi dito, mas foi visto por alguém, o que não foi obtido, mas foi desejado, todas essas coisas, de alguma forma, constituíram matéria de representação artística. Muitas vezes o espetáculo não chegou até o público, mas o fato de ter sido pensado e às vezes até ensaiado provou que as informações de alguma forma obscura circulavam, que nem todos os buracos podem ser tapados quando o dique vaza por muitas brechas.

Durante dez anos os críticos de teatro (e aí me incluo) bateram incansavelmente na mesma tecla: o teatro está pobre, o teatro vai mal, porque a censura não permite que ele se manifeste. Era uma forma de protesto, certamente necessária, ainda que frágil. Agora, aproveitando a oportunidade dessa visão em perspectiva de dez anos, posso perceber que a primeira parte do corolário não correspondia à verdade. O teatro não esteve mal coisíssima nenhuma. Esteve realmente ótimo, não só disse o que era possível dizer, como disse muitas coisas importantes que realmente precisavam ser expressas. Apenas não disse tudo o que poderia ter dito, e nesse sentido deve retomar a batalha para reconstruir um caminho que não pôde trilhar. Mas a perseverança, o empenho e principalmente a capacidade de criar garantiram para o teatro brasileiro formas inéditas de atuação, para não dizer esdrúxulas.

As táticas são certamente estranhas, mas nem por isso ineficazes. Muitos trabalhos teatrais foram criados a partir de um processo de eliminação. O que unia primariamente um grupo era a vontade de fazer teatro. A partir daí os participantes traçavam o círculo em que poderiam eventualmente se movimentar. Não se tratava de perguntar primeiro, como seria natural, o que eu quero dizer com o meu teatro, mas de perguntar antes: o que eu posso dizer além do que não se pode dizer? E qual é portanto a linguagem adequada para este tempo em que eu devo dizer que não posso dizer o que gostaria de dizer? Essa enroladíssima questão final parece ter-se tornado em muitos casos a temática de vários grupos. É preciso revisar uma a uma todas as etapas da criação artística para encontrar meios de expressar uma coisa que não está clara nem para quem faz. E é compreensível que essa questão apareça explicitada nos espetáculos, inclusive porque ela pertence ao mundo do espectador.

A eterna suspeição aos olhos do Estado atinge tanto o artista como o cidadão que nunca pensou em expressar-se através da arte, mas que ainda assim deseja expressar-se e não pode. Nenhum dos dois tem um espaço reservado na sociedade para pensar livremente e irradiar as suas ideias como bem entender. O ato comum que partilham nas áreas respectivas do palco e da plateia está sob estreita vigilância, da mesma forma que os atos que praticam nas suas vidas “leigas”, no cotidiano de qualquer aparição pública.

Se o artista não dispõe de uma área livre para pensar, refletir e veicular, nem por isso deixa de exercer a sua vontade de representação. Deixa claro para o espectador qual é a sua situação e procura, a partir daí ou dentro desse núcleo, novas táticas que possam, ainda que indiretamente, relacioná-lo com o público. E contar a sua própria história parece ter sido, em muitos casos, a tática que permitiu maiores avanços no campo da linguagem, porque guardava a sinceridade fundamental para a expressão desses grupos.

A criação artística e a situação social do ator, quando minuciosamente revolvidas, funcionam para estabelecer uma analogia entre as diferentes atividades produtivas. Em qualquer área da atividade humana há alguém que nesse momento não consegue fazer o que gostaria ou não pode ir um pouco além e enxergar a que fim se destina o seu produto, o resultado do seu trabalho.

O teatro falando de si mesmo foi largamente explorado como metáfora da sociedade. E há aí também um aspecto de eterno retorno, como a serpente que engole o próprio rabo. A incansável utilização de si mesmo resultou, para vários artistas, num processo de esgotamento, numa espécie de estagnação e desespero porque, uma vez explorada intensivamente a metáfora, a situação permanecia a mesma.

Os grupos que sobreviveram produzindo bem durante um período de tempo maior foram aqueles que conseguiram armar um projeto, ainda que de dimensões reduzidas, fora do circuito normal de veiculação da arte.

Grupos como o Núcleo, ou o Teatro União e Olho Vivo, para citar apenas dois dos inúmeros grupos que dentro dessa linha proliferaram, resistiram mais no tempo, porque se desgastaram menos como artistas. Para esses grupos o público a ser atingido constituía também um elemento diferencial da reação. O espectador desses grupos é o trabalhador ou o marginal que mora na periferia dos grandes centros urbanos. Mesmo sem poder dizer coisas fundamentais para esse público, esses grupos teatrais de periferia puderam alimentar o seu trabalho estudando uma realidade que era muito diferente da sua própria. Cada produção era subsidiada não só pela consciência da opressão e do forçado imobilismo social, mas também pela ginástica necessária para entrar em contato com um espectador que era atingido por essa opressão e reagia a ela de uma maneira totalmente desconhecida.

No exato momento em que este trabalho está sendo escrito, há grupos de teatro embrionários ou já funcionando a todo vapor situados nas zonas mais carentes de várias grandes cidades do país. Da mesma forma que o Núcleo, outros jovens ou não tão jovens atores procuram outro tipo de público. É mais que provável que nessa procura encontrem novos conteúdos e novas linguagens.

Deve haver alguma obscura razão para esse movimento em direção ao círculo exterior das cidades. As antenas são propriedade do artista e ele é que sabe como sintonizá-las. Mas uma coisa que até o governo pode perceber é que, onde a arte está agora, se inicia um movimento provavelmente incontrolável de pessoas confinadas ao largo não só do espaço central da cidade como dos bens que a sociedade utiliza discriminadamente. O teatro pelo menos já está acontecendo e não se parece em nada com o que conhecemos até agora.

Na sua Ópera do malandro, Chico Buarque de Holanda nos mostra, numa linguagem que podemos reconhecer, o avanço dessas forças que ainda não vimos descortinadas. Por enquanto os manifestantes que Duran coloca na rua ainda não estão visíveis. São criações da imaginação de autor, digamos assim. De qualquer forma o teatro central, feito por uma empresa, afirma que é possível vislumbrá-los. E ao mesmo tempo os pequenos grupos de teatro, funcionando dentro das associações de moradores, ou dentro das salas paroquiais, trabalham para descobrir não só o teatro de um futuro próximo como o espectador de um futuro próximo.

Pessoalmente devo dizer que um observador do teatro, ou pelo menos eu, como observadora de teatro, partilho dessa perplexidade, dessa invenção intensa desenvolvida sobre uma área reduzida, dessa ignorância do todo, e dessa falta de uma visão mais ampla de como o teatro poderia ser, porque ela inclui uma visão de como o país poderia ser se lhe fosse permitido desenvolver-se de acordo com o interesse da maioria da sua população.

O que eu posso saber, por enquanto, é que o teatro sobrevive à Idade das Trevas. Os grupos, mais do que as empresas cadastradas pelo Serviço Nacional de Teatro, foram, nestes últimos dez anos, pequenos pontos luminosos que permitiram entender a extensão das trevas.

Permitiram enxergar, entre outras coisas, que para se obter um novo produto é indispensável alterar o modo de produção. Parece simples agora.

25 anos depois

Ao reler agora este texto sobre as estratégias de agrupamento concebidas pelos artistas de teatro durante a ditadura ocorreu-me chamar a atenção do leitor para o modo como foi escrito. Também nós, pesquisadores reunidos por Adauto Novaes para refletir sobre a cultura dos anos 70 do século 20, tínhamos certa prática de trabalho coletivo. De modo geral, quando a pressão sobre a liberdade de expressão acentuou-se, o trabalho intelectual tornou-se gregário. Cooperativas, publicações alternativas, grupos de pesquisa amparados por instituições privadas e núcleos de estudo vinculados à Igreja Católica e a sindicatos independentes corresponderam, do ponto de vista organizacional, ao formato dos grupos de artes cênicas descritos neste ensaio.

Nessa rede de resistência cultural o todo era certamente maior do que a soma das partes e a marca autoral perdia a importância. Pode-se supor que a vaidade de cada um dava-se por satisfeita ao proclamar o vínculo com um grupo, instituição ou publicação que não dava o braço a torcer.

Foi essa a prática de trabalho adotada na pesquisa Anos 70. Ouvimos o que tinham a dizer pesquisadores de diferentes áreas da cultura. Emprestei ideias com a maior sem-cerimônia e há trechos deste ensaio que parafraseiam conceitos de José Arrabal. Com civismo espartano, nós, pesquisadores encarregados das artes cênicas, dividimos os temas de um modo que parecia útil aos leitores, sem levar em consideração as preferências e aptidões dos autores. Talvez tenhamos sacrificado a capa do estilo e o penacho da competência, mas a proposta da pesquisa era compreender o que estava acontecendo. Depois disso viriam — se não me engano — os especialistas.

/comentário de Mariângela Alves de Lima /

Notas

  1. Viajou sem Passaporte, in Cine Olho, n° 5/6. junho/julho/agosto de 1979.
  2. Yan Michalski. Os perigos do entusiasmo, Jornal do Brasil, 12/10/1973.

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