Regressão e tradição na arte contemporânea
Resumo
O progresso atua de forma diferente no campo da arte e no da ciência. Para a ciência é elemento constitutivo do próprio conhecimento como uma exigência interna, na arte só se evidencia a posteriori, nas rupturas, nas marcas deixadas no simbólico, na afirmação de uma diversidade de manifestações num mesmo momento histórico.
Na ciência, a ideia de progresso é inerente ao processo. Não é possível fazer ciência através de movimentos regressivos sem conduzir à estagnação de todo um campo do conhecimento. Ademais, na ciência a estagnação só é garantida através da ação exterior da ideologia.
Na arte, diversos períodos de sua história conhecem o retorno a valores do passado como condição para o avanço. A Renascença, por exemplo, é o mais tradicional desses exemplos onde valores do passado são revividos para fundar uma nova ordem estética.
O que está sendo chamado de pós-modernismo não é mais do que a emergência dos valores da sociedade de consumo ao campo da cultura dos especialistas num momento em que esses valores já se encontram disseminados na cultura do homem médio, na vida cotidiana das sociedades contemporâneas. A novidade dos ambientes arquitetônicos pós-modernos é a cultura do homem médio suburbano, distraído de interesses formais mais elaborados, ignorando-os mesmo, na sua preocupação com o bem-estar de sua família, que passa agora destilado e filtrado pelos especialistas. Não há retomada de valores do passado para construção do presente. Há consequências culturais da emergência da classe média, agora acompanhada de um redimensionamento da divisão social do trabalho. Na esfera da arte e sua história, os limites da modernidade se mantêm e não se encontram superados em nenhuma das manifestações chamadas de pós-modernas.
Estagnação e desencanto encontram-se na base do fenômeno que se convencionou chamar de pós-modernismo. De um lado há uma espécie de mudança de velocidade e de direção no movimento das esferas da arte e da ciência, principalmente se examinarmos esta última do ponto de vista de sua instrumentalização na tecnologia. Enquanto o campo da arte parece ter encontrado e traçado seus limites no interior do horizonte histórico mais recente, a ciência e a técnica apresentam um movimento incessante e acumulativo dando fundamento à afirmação de Popper de que “O progresso contínuo é uma parte essencial do caráter racional e empírico do conhecimento científico; se deixa de progredir, a ciência perde seu caráter. É esse crescimento que a torna racional e empírica […]”. Ambas as esferas – arte e ciência -, quando confrontadas com o mundo e com a vida, apresentam-se como um elenco de promessas não cumpridas. Nem a arte, explorando seus limites, reconciliou o homem com a natureza, nem o conhecimento científico e o desenvolvimento das forças produtivas construíram o mundo prometido há mais de duzentos anos. Dos fins não cumpridos, do fracasso teleológico, da desesperança, derivaria a situação blasé do intelectual contemporâneo. (E aqui, corrija-se logo o risco da generalização evitando enfiar o homem médio, o trabalhador “reificado” ou “unidimensionado”, nesse bolo.) Este mantém seus deuses e seus mitos ainda que metamorfoseados. Para ele, o que alguns intelectuais consideram uma “reificação da vida”, é amplamente compensado se houver a certeza da mesa farta, do descanso semanal, do acesso ao ensino fundamental e aos antibióticos, da casa própria. Enfim, ele quer a certeza de paz e sossego.
Podemos, portanto, depreender que o progresso atua de modo diferente no campo da arte e no da ciência. Para a ciência é elemento constitutivo do próprio conhecimento como uma exigência interna, na arte só se evidencia a posteriori, nas rupturas, nas cicatrizes que deixa no simbólico, na afirmação de uma diversidade de manifestações num mesmo momento histórico, onde fica impossível ser reduzida a um eixo linear.
Uma produção artística não substitui a que lhe antecedeu por ser melhor, ou sua forma mais avançada, do mesmo modo que uma teoria da hereditariedade ou um teorema matemático.
Não podemos substituir as sinfonias de Beethoven pelas de Mahler, da mesma forma que se fez com a noção de impectus da física medieval depois da descoberta da lei da inércia. A presença da verdade na obra de arte não está sujeita à evidência da demonstração, à prova de testes empíricos, nem comprometida com o real. Mesmo o leigo intui que Mahler pressupõe Beethoven do mesmo modo que o Barroco pressupõe o Renascimento e Cézanne pressupõe Manet e o Impressionismo. A ideia de progresso está, portanto, presente na história das formas.
Mas esta presença é distinta na arte e na ciência. Nesta, é inerente ao processo; se quisermos, o progresso é imanente à ciência. Não é possível fazer ciência através de movimentos regressivos sem conduzir à estagnação de todo um campo do conhecimento. E mais, na ciência a estagnação só é garantida através da ação exterior da ideologia. São exemplos clássicos desse caso a resistência da Igreja Romana às teses do heliocentrismo no início da era moderna e a “teoria” genética de Lyssenko na Rússia de Stalin. Tanto o geocentrismo como a “dialética da natureza” lyssenkista se sustentam em “visões de mundo” que o progresso da ciência contrariava.
Na arte, diversos períodos de sua história conhecem o retorno a valores do passado como condição para o avanço. Regresso e progresso tecem uma rede de interações extremamente complexas onde parecem ser mais imediatas que na ciência as determinações sociais quando observados certos momentos retrospectivamente. A Renascença é o mais tradicional desses exemplos onde valores do passado são revividos para fundar uma nova ordem estética. O neoclassicismo do final do século XVIII e início do XIX pode, igualmente, ser lembrado. Mais próximo de nós, o romance de Thomas Mann se funda nas conquistas da narrativa do século passado, abrindo mão de experiências formais, sendo, de modo evidente, uma obra que vive intensamente o seu tempo. As relações da pintura de Bacon com o Expressionismo seriam da mesma natureza. A dimensão da questão histórica em Mann e existencial em Bacon nos deixam a impressão de uma ontologia prática que vivencia uma falta ao abrir mão do risco da experiência radical na linguagem. Mas, talvez por isso mesmo, parecem levar às últimas consequências, atingindo os limites da obsessão, suas escolhas, seus projetos artísticos. Num outro sentido e por motivos quase inversos, a mesma sensação nos é transmitida por obras como Un coup de dés, Finnegans’ Wake, o action-painting e tantos outros trabalhos que marcam a modernidade.
Dessas rápidas observações pode-se concluir que as relações entre ideologia e arte gozam de certa intimidade ambígua e ambivalente. Os efeitos da reação católica à Reforma nos deram o Maneirismo e o Barroco além da Inquisição, a reação nazi e estalinista à modernidade capitalista no campo da arte nos deram uma lista de prisões, assassinatos e um realismo beócio.
Ora, o que está sendo chamado de pós-modernismo não é mais do que a emergência dos valores da sociedade de consumo ao campo da cultura dos especialistas num momento em que esses valores já se encontram disseminados na cultura do homem médio, na vida cotidiana das sociedades contemporâneas. Os limites traçados pelos trabalhos de um Picasso, de um Mondrian, de um Malevich, de um Pollock ou de um Rothko, para nos atermos aos exemplos da pintura, parecem desaparecer, ou melhor, parecem nunca ter existido. O mundo inaugurado por Cézanne deixa de ser marco de referência e assiste-se à regressão no sentido psicanalítico do termo, Recordemos o sentido freudiano do conceito com o apoio cuidadoso de Laplanche e Pontalis: “Num processo psíquico que contenha um sentido de percurso ou de desenvolvimento, designa-se por regressão um retorno em sentido inverso desde um ponto já atingido até um ponto situado antes desse. […] No seu sentido temporal, a regressão supõe uma sucessão genética e designa o retorno do indivíduo a etapas ultrapassadas do seu desenvolvimento […]. No sentido formal, a regressão designa a passagem a modos de expressão e de comportamento de nível inferior do ponto de vista da complexidade, da estruturação e da diferenciação.” A grande novidade que nos trazem os capitéis e colunas dos prédios e ambientes arquitetônicos pós-modernos é a cultura do homem médio suburbano, distraído de interesses formais mais elaborados, ignorando-os mesmo, na sua preocupação com o bem-estar de sua família, que passa agora destilado e filtrado pelos especialistas. Não há retomada de valores do passado para construção do presente, nem haveria sentido para isso. Há, e assusta, as consequências culturais da emergência da classe média, agora acompanhada de um redimensionamento da divisão social do trabalho, com a própria revisão radical do conceito clássico de trabalho que nos foi transmitido por Adam Smith e Ricardo.
Para quem observa a esfera da arte e sua história, os limites da modernidade se mantêm e não se encontram superados em nenhuma das manifestações chamadas de pós-modernas. Ao contrário, apontam para o caráter regressivo destas últimas, portanto, rompendo com a tradição da modernidade que era de trabalhar nos limites, na inscrição de sucessivas rupturas consigo mesma.
Resta saber se o mundo que está sendo realizado no triunfo da razão, da ciência e da técnica, tão distante· de suas promessas originais, tem necessidade de trabalhar com a noção de limite e com o conceito de História. Essa discussão extrapola o campo estético.
Para uma primeira aproximação a estas questões seria recomendável a leitura dos textos publicados em Arte em Revista, especialmente Pós-moderno, coord. por Otília Beatriz Fiori Arantes (nº 7, agosto de 1983, São Paulo, Ed. CEAC – Centro de Estudos de Arte Contemporânea). Consulte-se, igualmente, Fredric Jameson, Pós-modernidade e sociedade de consumo (in Novos Estudos Cebrap, nº 12, junho de 1985, São Paulo, Ed. CEBRAP).